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Uma vida comum: o encanto de uma rotina iluminada, por Pablo González Blasco

Cinema | 05/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Still Life. (2013). 92 min. Diretor: Uberto Pasolini . Eddie Marsan, Joanne Froggatt.

Still life     Uma vida comum. Esse é o título que nos oferece a tradução brasileira. Correto, resume o contexto, mas não chega a ser tão desafiante como o original: Still Life, natureza morta. Esse sim é preciso, audaz, impactante. Igual a temática, a interpretação – quase um solo extraordinário do protagonista- e os detalhes nas tomadas da câmara. Nada sobra, nada falta. Um quadro perfeitamente encaixado, silencioso e gritante, instigador. Uma verdadeira natureza morta pintada, para maior requinte, por um diretor italiano transplantado na Inglaterra. Uma bela mistura que cristaliza num filme singular e intrigante.

A estética merece comentários, muitos, e sem dúvida de mais categoria do que estes. Mas não é o propósito destas linhas. Mais do que descrever o quadro, o nosso é relatar o que o quadro nos provoca. E, isso sim, origina uma enxurrada de reflexões. Tive muitas quando o vi, vieram muitas mais depois –aquele efeito retardado próprio dos filmes de categoria-, e ampliaram-se quando coloquei a fita como base de um cine-debate com universitários. Ninguém tinha assistido o filme ainda –nos dias de hoje um verdadeiro recorde- e eu sentia a necessidade de observar as reações, os comentários, de espectadores variados para ampliar um universo de percepções que, desde o início, suspeitei ser de grande riqueza.

Still life - movie 2     Eddie Marsan é o ator monumental que dá vida ao protagonista, John May. Um funcionário público de um distrito londrinense que gasta seus dias –somam já muitos anos- buscando possíveis parentes daqueles que morrem sozinhos. E, naturalmente, ocupa-se de executar o que a lei prescreve sobre o sepultamento desses cidadãos. A tarefa em si é rotineira, cinzenta, uma estrita disposição municipal ao alcance de qualquer burocrata. A diferença –enorme- é o modo como Mr. May realiza sua função, quer dizer, o modo como vive o seu trabalho. Com delicadeza e ternura. Busca com afinco, esforça-se para que os defuntos tenham alguma companhia na hora de serem enterrados. Adapta o funeral aos prováveis gostos e crenças do falecido, arrisca homenagens póstumas e presta tributo pessoal com sua presença sempre discreta. Quase me atreveria a dizer que ‘humaniza’ a morte.

Não é pouco nestes tempos que vivemos onde a tal humanização parece ser a bola da vez: algo de que todos falam, dizem precisar dela, mas na prática pouco se percebe nas ações concretas que conduzam ao tal sonhado estado de humanização. Lembrei daquele outro filme japonês (A Partida) do qual saímos com uma pergunta crítica na cabeça: Como é possível fazer de um tema tão triste um filme tão delicado e positivo? A resposta trouxe outra lembrança –o filme é um gatilho de evocações- nos versos de Morte e Vida Severina: “Podeis aprender que o homem, é sempre a melhor medida; mais, que a medida do homem, não é a morte mas a vida!” A resposta, a almejada humanização, é preciso praticá-la em vida, no dia a dia, e não apenas in artículo mortis. Somente quem humaniza os detalhes simples, corriqueiros, que salpicam a rotina diária, é capaz de ter uma performance invejável no momento final, como John May.

Still life - movie 1     As muitas recordações que lutavam por abrir-se passo a passo ampliaram-se no cine debate. Tomei algumas notas, o que rendeu ainda mais reflexões, e outras lembranças estocadas na memória vieram a tona. Também as aparentemente cômicas, como a do sujeito que está sendo enterrado na presença de apenas duas pessoas que comentam: onde estão os milhares de amigos que ele dizia ter no Facebook? E outras, muito pessoais, como aquele comentário que escutei do meu irmão, um ano antes dele falecer, e que utilizei no seu funeral para agradecer a presença de muitos amigos que lá estavam: “Meu irmão disse-me certa vez, falando de um velho conhecido que estava no final da vida, que ele dizia aos amigos que não se preocupassem de ir ao seu funeral, que havia muita coisa que fazer. Sei que meu irmão teria dito o mesmo, mas felizmente ninguém obedeceu, e eu agradeço a presença de todos vocês nestes momentos tão especiais”.

Mas a nossa natureza morta não é um filme sombrio, uma espécie de elegia em celuloide. Fala da vida, do trabalho, da rotina, do encanto. Da amizade, e do melhor investimento que é sempre pensar nos demais, sair do casulo do egoísmo. Dai provém os melhores dividendos, mesmo os que não conseguimos apreciar naquele momento. A vida virtual que muitas vezes vivemos –vivemos mesmo? ou sonhamos que vivemos?- situa-nos num universo de paradigmas falsos que na hora do balanço aponta inexoravelmente os lucros e os prejuízos. Os ativos a receber –inflacionados por supostas relações e networks globais- , esfarelam-se, transformam-se em perdas porque ninguém aparece para pagar esse crédito…..que nunca existiu.

Still life - movie 3     Certa vez conversava sobre estes temas com um profissional de informática, que era cego. Tinha conseguido desenvolver sistemas e recursos de computador para pessoas deficientes, apoiando-se na capacidade de escuta que nessa situação sempre é aguçada. Falava-me do muito que tinha pensado sobre o valor real das coisas na vida, e ilustrou o tema com um comentário definitivo: “Quando vou a um enterro, e escuto o golpe da terra caindo sobre a madeira do caixão, penso que é preciso gastar a vida sendo útil. Do contrário tudo se acaba nesse golpe seco e fatal”. Cada um percebe a hora do balanço como pode, e mesmo quem ganhava a vida ajudando os outros a se comunicar não se deixava enganar com quimeras virtuais.

A medida não é a morte, mas a vida. A vida que se gasta em rotinas iluminadas, porque a rotina gris não consiste em fazer as coisas de sempre, mas em fazê-las como sempre. E no suceder-se dos dias iguais, é possível um colorido repleto de detalhes, viver uma cortesia como Mr. May, quase litúrgica, com os semelhantes, com os mortos e com os vivos. Atitude que personaliza o trato, que se adapta a cada um, que humaniza –que permite dar transito ao humano que todos levamos dentro- , sem desculpar-se com ações globais, ou atentar aos impactos do último post no Youtube. De que serve que acessem milhões de vezes a tua página web, se na hora do vamos ver não há um ombro onde chorar, alguém com quem conversar de coração aberto? Dizia Gustavo Corção que os milhares de conquistas da técnica não consolam o namorado infeliz, ou o pai que perdeu o mais amável dos filhos. Os acessos também não possuem esse predicado. E quando alguém se atreve a batizar esses relacionamentos vulgarizando o termo amizade, converte-o numa palavra vazia. Um flatus vocis, como diziam os filósofos medievais. Um termo sem nenhuma substância; thin air, por usar uma genuína expressão britânica ao gosto de John May.

Still life - movie 5     Voltamos ao filme japonês, A Partida, que também se fez presente no cine debate. Há um momento onde alguém pergunta à esposa do protagonista, já convencida da importância do trabalho do marido, como é possível viver dessa atividade, arrumando cadáveres para o sepultamento. Ela responde sem hesitar: “O meu marido é um profissional!”. Foi mais uma evocação quando vi surgir na tela a protagonista feminina aproximando-se de Mr. May. Curiosidade no início, seguida de admiração, para converter-se em encanto. O entusiasmo pelo trabalho, a capacidade de sonhar e de aperfeiçoá-lo, independente do conteúdo, tem um poder sedutor para a alma feminina. Talvez porque as mulheres têm essa leitura transcendente que sabe apreciar os detalhes que realmente importam, na hora de fazer o balanço. Esse deve ser o motivo que explica porque, diariamente, encontro muitas mais mulheres do que homens do lado dos pacientes que sofrem, atentas aos pormenores que fazem a doença mais suportável.

Um homem apaixonado pelo seu trabalho, que não precisa de plateia para certificar-se do valor que encerram suas cuidadosas ações diárias. São qualidades que costumam passar desapercebidas aos que vivem na superfície dos acontecimentos. O chefe de John May é um belo exemplo de insensibilidade. Não é mau, até cumpre o seu dever, mas escapa-lhe o essencial. Vivemos rodeados desses espécimes, e com frequência sucumbimos ao seu fascínio. A tentação de entregar-se a aparência e desprezar a verdadeira substância, de prestar culto ao sucesso sem avaliar a competência é realidade que convive conosco e nos absorve ao menor descuido. A opinião dos espectadores pesa demais nas nossas decisões, é um tributo enorme contra o qual nos custa revelar-nos. Talvez é questão de mudar o foco, e escolher outra plateia.

Still life - movie 4     Vai uma última lembrança, visto que são as recordações as que teceram esta colcha de retalhos, a modo de um quadro impressionista, manchas de luz. Foi um comentário em espanhol sobre esta produção, que chegou há algum tempo à minha caixa de e-mails. A tradução do titulo não reflete o miolo do filme (Nunca é tarde demais), mas não me pareceu totalmente infeliz, especialmente pelo subtítulo que lá colocam: Deus o vê! Se a proposta para atuar com eficácia, é livrar-se da plateia convencional e estabelecer o gabarito com outros paradigmas, a construção de virtudes em que tudo se passa entre Deus e o homem parece um bom começo. Sempre há tempo para isso. Este filme pode ser uma boa largada nessa empreitada.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005). 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/02/18/uma-vida-comum-o-encanto-de-uma-rotina-iluminada/#more-2289

Tucídides, o estudioso do comportamento político (por Donald Kagan)

Política e Sociologia | 03/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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O estudo de Tucídides e da sua famosa História da Guerra do Peloponeso nunca foi tão intenso, difundido e influente como no nosso tempo. Tucídides afirmava que a sua obra era um “patrimônio perene” com o fim de servir “aos homens que desejem ver claramente o que ocorreu e ocorrerá novamente, com toda a possibilidade humana, de maneira idêntica ou semelhante”. Mais de vinte e quatro séculos depois, líderes políticos e estudiosos da política vêem-na exatamente dessa maneira.No mundo antigo, o foco de Tucídides na política foi além do âmbito mais amplo, embora menos profundo, dos seus predecessores. Heródoto, com o seu estilo cheio de digressões e parênteses acerca dos costumes e hábitos de vários povos, e também com as suas graves considerações sobre o papel desencadeador dos deuses nos assuntos humanos, não se tornou um modelo daquilo que viria a ser considerado o melhor da historiografia na Antigüidade. Políbio e os romanos Salústio, Tito Lívio, Tácito e Amiano Marcelino foram os grandes historiadores clássicos. E escreveram sobre o seu próprio tempo, a sua própria nação e, especialmente, sobre guerra e política.Os historiadores favoritos durante a Renascença e os começos da Idade Moderna na Europa foram Políbio, cuja história da conquista do mundo mediterrânico por Roma seguiu o modelo de Tucídides, e Tácito, que tinha foco na política de Roma. No século XVII, Thomas Hobbes publicou a primeira tradução inglesa completa da História de Tucídides feita a partir do original grego. “Tucídides”, disse, “é alguém que, embora nunca se desvie do seu texto para tecer considerações, de cunho moral ou político, nem penetre no coração dos homens para além dos limites a que as próprias ações o levam indubitavelmente, é, no entanto, tido como o maior historiógrafo que já existiu”. Isto significa que ele proporciona tanto um relato como uma orientação para o entendimento dos assuntos contidos na categoria “política”: a competição política interna dentro de uma cidade-estado ou uma nação e as relações internacionais em tempos de guerra e paz.

Os escritores do século XVIII, com o seu interesse nos modos e nas civilizações mais antigas de todo o mundo, redescobriram Heródoto, embora também tenham, como filósofos da História, admirado o esforço de Tucídides por escrever uma história útil, que buscasse as causas dos eventos nos constituintes permanentes da condição e da natureza humanas. O século XIX, porém, especialmente na Alemanha, viu o triunfo da história política e o consequente eclipse de Heródoto por Tucídides.

Uma nova grande onda de interesse sobreveio com o advento da guerra fria. As pessoas viram uma semelhança impressionante entre o longo conflito de Atenas e Esparta e a concorrência dos Estados Unidos e os seus aliados da OTAN com a União Soviética e os seus satélites do Pacto de Varsóvia. Em 1947, o secretário de Estado dos EUA, George C. Marshall, disse: “Duvido seriamente de que um homem que não tenha pelo menos repassado na sua mente a época da Guerra do Peloponeso e da queda de Atenas possa refletir com plena sabedoria e profundas convicções a respeito de certos temas das relações internacionais de hoje”. Os membros das escolas “realista” e “neo-realista” de relações internacionais vêem em Tucídides o seu fundador.

De fato, a perspectiva tucidideana dominou de tal maneira os estudos históricos que foi preciso recordar a nós mesmos que a historiografia deve combinar a história da política, da diplomacia e da guerra com a história da sociedade, da cultura e da civilização, de modo que se chegou a fortalecer um movimento que visava a afastar-se da história política tucidideana. Agora, porém, o mundo da escrita da História mudou o suficiente para que tais advertências pareçam datadas. Em grande parte do mundo acadêmico americano, a “história extrapolítica” conseguiu tudo menos varrer a história política para fora. O mais famoso e influente historiador social, Fernand Braudel, desprezou a política, a diplomacia e a guerra como meros évènements, transitórios e triviais se comparados aos problemas maiores e mais duradouros postos pela geografia, a demografia e os desenvolvimentos econômicos e sociais ocorridos ao largo de extensos períodos. Na sua obra mais famosa, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Felipe II, as decisões, eventos e desenvolvimentos políticos são de pequena monta se comparados com as forças inanimadas e impessoais que moldam as sociedades a longo prazo.

É bastante claro que tais forças existem e que possuem um impacto considerável na política, na guerra e na diplomacia, principalmente para estabelecer os limites daquilo é possível. Dentro desses limites, porém, um ou mais seres humanos tomam decisões de importância vital. E essas decisões, que são militares, diplomáticas e políticas, influenciam grupos crescentes de pessoas de maneira a afetar a própria existência de povos, nações e da raça humana. É importante compreender as forças e condições de fundo que envolvem e influenciam as escolhas feitas nesses campos decisivos, mas o historiador deve ligar esse conhecimento a fatos, decisões e eventos específicos que tomam lugar na praça pública, isto é, no mundo da política. Os historiadores “extrapolíticos” não fizeram essas ligações, preferindo assim deixar por fazer as grandes questões políticas que sempre foram a centelha a iniciar o interesse pela História desde o começo e que ainda hoje é o que inspira os amadores.

Aquilo que Tucídides chamou de “Guerra entre os atenienses e os peloponenses” e que nós chamamos de Guerra do Peloponeso estourou em 431 a.C. Um dos antagonistas principais, os espartanos, foram a cabeça da Liga do Peloponeso, uma coalizão grega que resistiu à invasão persa de 480-479, e a potência-líder da Grécia. Um pouco antes da invasão, os atenienses haviam construído uma nova esquadra grandiosa, que se mostrou o núcleo e a espinha da marinha grega que esmagou os persas nas batalhas de Salamina e de Micale. Essas vitórias elevaram Atenas a um grau de prestígio que chegou a desafiar a posição de Esparta, ainda que os espartanos tenham concomitantemente liderado os gregos na vitória decisiva na Batalha de Plateias.

O poder e a prosperidade da democracia ateniense tornaram-se dependentes do domínio sobre o seu grande império marítimo. Começou como “os atenienses e os seus aliados” (os estudiosos modernos chamam-nos de a Liga de Delos), uma aliança voluntária de estados gregos que convidaram Atenas para liderar uma continuação da guerra de libertação e vingança contra a Pérsia. Pouco a pouco, tornou-se um império que funcionava principalmente em benefício de Atenas.

Na medida em que a Liga de Delos tornou-se mais e mais forte, alguns espartanos ficaram invejosos, desconfiados e temerosos de um desafio à sua supremacia por parte de Atenas. Querelas na década de 460 levaram à Primeira Guerra do Peloponeso, que durou, entre idas e vindas, até 445. Acabou com a paz de trinta anos em que cada um dos lados reconhecia a hegemonia do outro na sua própria esfera, e ambos concordaram em submeter quaisquer desacordos futuros a um árbitro reconhecido pelas duas partes. A paz durou por mais de uma década, mas uma série de conflitos entre Atenas, por um lado, e Esparta e vários de seus aliados, por outro, conduziram à Grande Guerra. No inverno de 432-1, Tebas, aliada de Esparta, atacou Plateias, aliada de Atenas, e desencadeou a chamada Guerra Arquidamiana, devido ao nome do rei espartano que liderou as primeiras invasões.

O líder de Atenas quando da irrupção da Guerra era Péricles. A sua estratégia era evitar as batalhas por terra, fazer breves ataques ao redor do Peloponeso e esperar até que os Espartanos descobrissem que não havia uma estratégia para vencê-los — dentro de um, dois ou três anos. Em 430, contudo, uma terrível praga abateu-se sobre a cidade, causando terríveis desastres físicos, sociais e psicológicos. Os adversários políticos de Péricles convenceram os atenienses a pedir paz aos espartanos, retiraram Péricles do seu cargo e o puniram com uma pesada multa. O inimigo, porém, recusou quaisquer termos aceitáveis para a paz, de modo que a guerra continuou. Não mais sendo a paz uma opção, os atenienses reelegeram Péricles, que retomou a sua política. Ele, porém, contraiu a praga e morreu no outono de 429.

Após a morte de Péricles, nenhum líder forte emergiu para sustentar os atenienses numa política consistente. Duas facções estavam na disputa pela influência: uma, liderada por Nícias, queria manter a política defensiva; a outra, liderada por Cleonte, preferia uma estratégia mais agressiva. Em 425, a facção agressiva alcançou uma vitória significativa: quatrocentos espartanos renderam-se e Esparta propôs a paz a fim de tê-los de volta. Os atenienses, contudo, quiseram continuar a guerra, porque a paz espartana não significava nenhuma garantia real de que Atenas estaria segura.

Em 424, os atenienses levaram a cabo uma política mais agressiva, que falhou e conduziu a uma trégua em 423. No ínterim, o mais capaz dos generais espartanos, Brásidas, capturou Anfípolis, a colônia mais importante de Atenas na Trácia. Tucídides era o responsável pela esquadra ateniense nas águas daquela região e foi apontado como o responsável pela perda da cidade. Em 422, as mortes dos agressivos Cleonte e Brásidas abriram caminho para a paz de Nicias, que foi selada na primavera de 421.

A paz, que oficialmente deveria durar cinqüenta anos e que, com algumas exceções, garantia o status quo, era, de fato, frágil. Nenhum dos lados cumpriu com todos os seus compromissos e vários aliados de Esparta recusaram ratificá-la. Em 415, Alcebíades persuadiu os atenienses a atacar a Sicília e pô-la sob o domínio de Atenas. Essa empresa ambiciosa e desnecessária acabou em desastre em 413, quando toda a expedição foi destruída. Como resultado, o prestígio de Atenas foi abalado; o seu poder, reduzido; iniciaram-se revoltas e a riqueza e o poder da Pérsia entraram na Guerra ao lado de Esparta. É notável que os atenienses tenham podido continuar lutando após o desastre. Obtiveram diversas vitórias importantes no mar à medida que a guerra deslocou-se para o Egeu. Os seus aliados, porém, rebelaram-se e a Pérsia pagou as esquadras para que mantivessem a insurreição. Os recursos financeiros da Atenas encurtaram e finalmente desapareceram. Atenas não pôde construir uma nova frota depois que a sua foi apanhada cochilando, sendo destruída em Egospotamia em 405. Os espartanos, sob Lisandro, cortaram o fornecimento de comida através do Helesponto, o que fez com que os atenienses padecessem de fome até a rendição. Em 404, renderam-se incondicionalmente; derrubaram os muros da cidade, abriram mão da sua esquadra e perderam o seu império. Tucídides nunca terminou a sua História.

Quem foi esse Tucídides e qual a natureza da sua obra que continua a interessar-nos e influenciar-nos hoje? Era um aristocrata ateniense, membro de uma das mais nobres famílias, com riquezas consideráveis, e que atingiu a maioridade no ápice da grandeza da Atenas de Péricles. Nascido entre 460 e 455, estava ainda na casa dos vinte quando a Guerra do Peloponeso estourou. Morreu poucos anos após o fim dela, deixando inacabada a sua grande obra. Tucídides toma o cuidado de nos deixar saber que era maduro o suficiente para entender os acontecimentos desde o começo: “Vivi toda a guerra, tendo idade para compreender os eventos e aplicar a eles a minha mente de modo a vê-los com exatidão”. O seu pai, Olorus, carregava um nome trácio e não ateniense. Foi o mesmo nome do avô de Címon, o grande general e estadista que dominou a vida pública ateniense pelas duas décadas seguintes à invasão persa. É praticamente certo que Tucídides fosse parente de Címon e também de um outro Tucídides, filho de Melésias, que foi o mais perigoso adversário político de Péricles na década de 440. Como formulou um estudioso: “Nascido no seio da oposição a Péricles, seguiu-o com um zelo de convertido”.

Tucídides esteve em Atenas desde o começo da Guerra até 424, e nesse período contraiu a grande praga que assolou Atenas entre 430 e 427. Teve sorte em sobreviver, pois a epidemia matou um terço da população. Em 424, foi eleito general, um dos dez homens que eram os mais proeminentes líderes militares e políticos em Atenas. Comandou a força naval na região da Trácia, cuja principal cidade era a colônia ateniense de Anfípolis, local de grande importância econômica e estratégica.  Possivelmente, fora escolhido para o posto devido à sua influência na região. Ele mesmo diz-nos que controlava minas de ouro lá e “tinha uma grande influência entre os líderes” da região. Quando o brilhante general espartano Brásidas tomou a cidade num ataque surpresa, os atenienses culparam Tucídides e condenaram-no por traição. Foi forçado a exilar-se pelos vinte anos que a Guerra ainda duraria. Tamanho infortúnio teve as suas vantagens, especialmente para nós, os seus leitores, porque o permitiu “saber o que estava a ser feito em ambos os lados, especialmente do lado peloponense… E esse tempo livre permitiu-me obter um melhor entendimento do curso dos eventos”.

Tucídides não foi o primeiro a escrever história. Os gregos acreditavam que os poemas épicos de Homero – a Ilíada e a Odisséia –, apesar de compostos com métrica e repletos de personagens mitológicos e divindades – relatavam eventos e pessoas reais de um passado distante. Mesmo um cabeça-dura como Tucídides usou-os como evidência para a história primitiva dos gregos. No século sexto, porém, uma nova maneira de pensar emergiu entre as cidades gregas da Jônia, na costa oeste da Ásia e, especialmente, em Mileto. Não será exagero dizer que essa nova perspectiva trocou o mito pelo pensamento racional, científico até, como meio para explicar o universo.

Essa revolução intelectual ocorreu em algum momento entre o poeta Hesíodo, que descreveu boa parte da mitologia grega por volta do ano de 700, e Hecateu de Mileto, que viveu cerca de dois séculos mais tarde. Hecateu, diferentemente dos primeiros pensadores milésios que especularam sobre questões filosófico-científicas como a natureza e a composição do universo, tratou de temas mais tangíveis. Produziu o primeiro mapa do qual se tem notícia, uma “Descrição da Terra”. Também pesquisou a experiência passada dos seres humanos na forma de Genealogias, nas quais examinava racionalmente os mitos heroicos do passado. Hecateu abordou com juízo crítico as histórias das famílias nobres, que reclamavam para si uma ascendência divina. As suas Genealogias começam com um desafio à tradição: “Eu, Hecateu, direi o que penso ser verdade: as histórias dos gregos são muitas e ridículas”. Isto não o levou a inventar qualquer história que lhe apetecesse ou a se desesperar para encontrar a verdade. Levou-o a interrogar e a pesquisar e à busca racional por conhecimento e entendimento precisos – ou seja, a sua busca levou-o à História.

Não é a Hecateu, contudo, que chamamos o pai da História, mas a Heródoto, nascido em Halicarnasso, na mesma costa egéia da Ásia Menor, em 484. Heródoto faleceu em cerca de 425, vários anos após o começo da Guerra do Peloponeso. Não escreveu sobre o seu próprio tempo, como Tucídides, mas apoiou-se principalmente naquilo que lhe foi dito sobre os tempos passados. Hecateu parece haver se limitado à comparação e à crítica racional daquilo que se supunha ser conhecido. Heródoto levou a cabo novas pesquisas, chegou mesmo a viajar a outros países para coletar novas evidências. Objetivava não apenas conservar as tradições, mas descobrir fatos novos. Ambos os autores precisaram de um novo método que exigia não apenas a ponderação racional das probabilidades, mas também a avaliação da confiabilidade da evidência.

Heródoto, contudo, não foi visto pelos escritores da Antiguidade como alguém que se preocupava com a exatidão, a veracidade e a objetividade dos seus relatos. Apontavam-lhe as imprecisões factuais; muitos o chamaram abertamente de mentiroso e Plutarco escreveu um ensaio sobre a sua “malignidade”, em que o acusava de falta de patriotismo e preconceito em favor de Atenas. De fato, dizem do “Pai da História” que ele lia a sua obra em apresentações públicas, como a poesia épica, para o deleite das suas platéias. Foi Tucídides, um jovem contemporâneo de Heródoto, que reinventou a História, abordando-a de uma maneira completamente distinta. Criticou Heródoto sem nomeá-lo diretamente e corrigiu alguns dos seus erros factuais, menosprezando a obra do historiador das Guerras Médicas como “um texto de encomenda apenas válido para o momento” se comparado ao seu próprio esforço.

Não é fácil entender as idéias de Tucídides. Ele não escreveu um tratado político ou filosófico apresentando os seus pontos de vista e os seus argumentos em favor deles. Escreveu uma história, almejando a maior objetividade possível, prendendo-se seriamente ao tema da guerra do Pelopoloneso e evitando digressões ao máximo. São importantes os momentos em que afirma a sua opinião diretamente; são a base mais apropriada para a compreensão do seu pensamento. Algumas dessas afirmações tratam do seu método de pesquisa e outras, da sua visão dos processos usuais da vida política.

Considerando as idéias incorporadas na História, parece útil e interessante comparar Tucídides com o seu grande predecessor Heródoto. Tucídides parece ter dado um salto espetacular rumo à modernidade. Não aceitava nem racionalizava os mitos, mas os ignorava ou os analisava com sangue frio. Não buscava na vontade dos deuses as explicações para o comportamento humano e, algumas vezes, não as buscava sequer na vontade dos indivíduos, mas numa análise geral do comportamento dos homens em sociedade. Tucídides, porém, não era um tipo que aparecia milagrosa e inexplicavelmente na cena. Refletia o crescimento das faculdades intelectuais, que vieram a exercer uma influência importante na vida grega no século V, e que no seu todo são algumas vezes chamadas de “o Iluminismo grego”.

Dois elementos de tal movimento parecem ter afetado com força o pensamento de Tucídides: o movimento sofista e a escola de escritores médicos ao redor de Hipócrates de Quios. De modos diferentes, cada uma era um ramo da árvore da pesquisa racional sobre o universo radicada nas cidades gregas da Ásia Menor no século sexto. Tales, Anaximandro, Anaxímenes e os seus sucessores diferiam dos primeiros pesquisadores da natureza do mundo e da sua origem por terem intuições inteiramente naturalistas. Tales, por exemplo, propôs uma teoria da origem da Terra em que tudo se desenvolvia naturalmente, sem intervenção divina, a partir de uma água primeva num processo parecido com as cheias do Nilo.

Essa tradição de teorizar em termos naturalistas deu origem tanto à Ciência como à Filosofia, que não se diferenciavam uma da outra nas primeiras especulações acerca do mundo físico. O pensamento sobre a Física parecia ter ido o mais longe possível por volta do século V. O que permanecia vivo e potente era o espírito de investigação de cunho naturalista. O sentimento da nova época é que o próprio homem é o que deveria ser estudado pelo homem. Os sofistas interessaram-se profundamente pelo papel do homem na sociedade; a escola hipocrática de medicina preocupava-se com o bem-estar físico do homem. Ambas continuavam a evitar explicações não naturais ou sobrenaturais e a buscar um entendimento do ser humano que levasse em conta apenas a sua própria natureza.

O campo de pesquisa de Tucídides não era a natureza física do universo nem a natureza física do homem, mas a sociedade do homem que vive na polis. Política, no mais amplo sentido, a busca da compreensão do comportamento do homem em sociedade, era o seu interesse transcendente. Nisso ele se distinguia dos físicos, dos sofistas e dos hipocráticos, mas as idéias deles ajudaram a moldar a sua mente. Como todos eles, começou pela observação dos fenômenos e passou a identificar e descrever o padrão racional que emergia deles. Os seus dados eram as ações históricas dos homens no passado, remoto ou muito recente. Quando suficientemente multiplicados e propriamente compreendidos, os dados davam origem a regras gerais do comportamento humano que poderiam ser úteis aos homens no futuro. O estudioso do comportamento social — isto é, o historiador — tem uma dupla responsabilidade: primeiro, buscar com diligência e exatidão a verdade sobre o passado e, depois, interpretar os eventos com sabedoria e entendimento, fazendo assim uma contribuição perene. A parte de estabelecer os fatos (ta erga) tinha importância vital, mas estava subordinada à formulação das interpretações (logoi) que dela emergiam.

Tucídides era mais e menos que qualquer tipo de cientista, mas ninguém que leia o relato do historiador da grande praga em Atenas poderá deixar de ver sua grande dívida para com os hipocráticos com relação a tal doença, que ele mesmo contraiu. Ele oferece uma descrição precisa dos sintomas e da evolução de modo a que ela “quiçá possa ser reconhecida pelo estudioso, no caso de um novo surto”. A implicação clara disso é que um relato preciso do que ocorreu pode ser usado no futuro para ajudar a deter o progresso da doença ou, pelo menos, preparar as pessoas para lidarem com os sintomas dela.

Mas Tucídides é um estudioso da sociedade e a sua descrição da praga inclui mais coisas do que as suas conseqüências físicas. O efeito de um choque tão grande no espírito de uma sociedade tinha mais interesse. Na medida em que a morte e o desespero enfraqueciam a fibra moral da comunidade, os escrúpulos legais e religiosos normais dos homens pararam de atuar e os atenienses entregaram-se a um hedonismo irrestrito que talvez tenha sido mais danoso à sua causa do que o mero sofrimento físico. A descrição da praga não é apenas uma digressão humanitária e útil, mas um componente necessário dos erga que ajudará a justificar o resultado da guerra.

Mas a descrição e análise cuidadosas da praga não iluminam apenas o curso futuro da Guerra do Peloponeso. Um entendimento apropriado dos eventos pode contribuir para uma melhor compreensão de toda a história humana. As revoluções que perturbaram a Grécia durante a Guerra, como por exemplo em Córcira, trouxeram consigo calamidades terríveis, “tais como as que já houve e sempre haverá, enquanto a natureza da humanidade permanecer a mesma, embora de maneiras mais severas ou mais brandas e com variados sintomas de acordo com a variedade de casos particulares”.

Para o exame da descrição e análise da política que inventou, Tucídides trouxe ferramentas fornecidas pelos sofistas e pelos hipocráticos. Uma das idéias características do sofismo era a distinção de dois elementos que determinam o comportamento do homem em sociedade: physis (natureza) e nomos (costume ou lei). Na visão dos sofistas, physisrepresenta a tendência inata do homem a satisfazer os seus quereres, enquanto nomos é o mecanismo pelo qual a sociedade se protege dos impulsos anti-sociais da physis humana. A sociedade grega baseava-se na aceitação geral donomos como algo sagrado; o radicalismo dos sofistas está em ampla medida na sua atitude cética com relação a isso. Tucídides não aceitava a iconoclastia extremista dos sofistas, mas julgava a distinção entre physis e nomos uma ferramenta útil para a análise política. Como compreender as atrocidades aterrorizantes que os homens cometem em tempos de guerra civil? Como explicar a transformação de cidadãos que normalmente respeitam a lei em animais de rapina movidos por paixões incontroláveis? “No meio da confusão em que a vida foi lançada nas cidades, a natureza humana (hê anthropeia physis), sempre a rebelar-se contra a lei e agora contra o seu mestre, mostrou-se com alegria desgovernada pelas paixões, acima do respeito pela justiça e inimiga de toda a superioridade”.

Essa passagem é um exemplo esplêndido do método de Tucídides: assumir a natureza essencialmente uniforme do ser humano, neste caso, a inveja e a desconfiança com relação a qualquer distinção e superioridade. Sob circunstâncias normais, a lei e o costume a controlam, mas quando as circunstâncias — no caso, prolongadas pela guerra — permitem, os elos artificiais desfazem-se e os homens retornam ao seu estado natural. Um diagnóstico analítico apropriado é capaz de prever a sua aparição e o seu desenvolvimento da mesma maneira que um médico que conheça os sintomas do seu paciente pode predizer com grande chance de acerto a evolução da doença, visto que ele conhece as suas características gerais e o seu curso natural.

Tamanha austeridade, tamanha aproximação aos métodos das ciências naturais, podem dar a impressão de deixar Tucídides vulnerável a acusação de ser demasiado científico e, por isso, anti-histórico. É, contudo, errado dizer que Tucídides pouco se importava com os eventos; a sua própria proximidade com a idéia hipocrática supõe uma preocupação cuidadosa com os eventos específicos que constituem o todo do seu objeto de estudo. Além do mais, ninguém que leia o relato brilhante e comovente que Tucídides faz da campanha na Sicília, desde o seu leviano planejamento até o seu final trágico, pode duvidar do seu gênio narrativo ou do seu amor de historiador pelos eventos em si. É errado, ainda por cima, reprovar Tucídides por buscar padrões na História: é um equívoco ver a sua tentativa de produzir um estudo empírico rigoroso sobre a política como a procura por “uma verdade eterna e imutável”. Tucídides buscou apenas o grau de certeza e consistência possível no estudo dos eventos da sociedade humana, não nos elementos da natureza.

As afirmações do próprio Tucídides deixam claro que o seu entendimento dos eventos humanos nada tem que ver com leis como as da Física ou as verdades “absolutas” de tipo filosófico. A visão tucidideana da análise política não apresenta a corrente diamantina do determinismo e, de fato, reconhece verdadeiramente a existência do inexplicável. Em diversos pontos cruciais da sua História, explica eventos importantes referindo-se à tychê (fortuna), embora tais casos não sejam evidência de que acreditasse na essencial irracionalidade do mundo. Pelo contrário, o historiador acreditava que o mundo era passível de uma análise racional, apenas não com uma certeza absoluta ou científica. Pessoas inteligentes com dotes extraordinários poderiam, mediante um estudo cuidadoso e sistemático do comportamento humano, fazer estimativas úteis da provável reação das pessoas, especialmente en masse.

A concepção tucidideana do estudo do comportamento político distingue-se do determinismo que supostamente é a base das ciências naturais de um modo ainda mais básico. Tucídides dá grande ênfase ao papel do indivíduo na História e na capacidade que ele tem de mudar o seu curso. O aspecto didático da sua obra, a tentativa de identificar padrões subjacentes, quer oferecer aos indivíduos perspicazes o insight (gnômé) com que ver e controlar os eventos políticos. E tais líderes políticos perspicazes existiam.

Temístocles, por exemplo, “era o melhor juiz para aquilo que estava próximo de acontecer e o mais sábio para prever o que aconteceria num futuro distante” e podia “prever brilhantemente aquilo de melhor e de pior que estava oculto num futuro obscuro”. Como conseqüência, “superava a todos os outros na capacidade de responder intuitivamente numa emergência”. É ainda mais clara a convicção de Tucídides de que os dotes especiais de Péricles afetaram o curso da Guerra. Péricles possuía as qualidades da antevisão, do patriotismo e da incorruptibilidade: “Durante todo o tempo em que esteve à frente do Estado no período de paz, buscou uma política moderada e conservadora, e no seu tempo a grandeza atingiu o seu ápice”, mas foi sucedido por homens que careciam dos seus dotes e desviaram-se das suas sábias políticas. “E, no entanto,” diz Tucídides,

“ainda resistiram por dez anos aos seus inimigos originais… e aos seus próprios aliados… e contra Ciro, filho do rei da Pérsia… E não desistiram enquanto não se destruíram a si próprios por causa dos seus conflitos internos. Os recursos com que Péricles contava na época eram tão imensamente grandiosos que ele previu uma vitória fácil para Atenas sobre os peloponenses apenas”.

Não pode haver acordo mais claro com a idéia de que os homens sábios podem fazer planos precisos e bem fundamentados para o futuro.

É precisamente essa expectativa de que tais homens acharão o seu relato útil no futuro que explica a sua extraordinária ênfase na exatidão do trabalho do historiador. Com exceção das raras afirmações diretas, as opiniões do próprio historiador podem ser vistas nos discursos que ele põe na boca dos seus personagens. Tucídides conta-nos a respeito do seu tratamento dos discursos:

“Em todos os casos, sempre foi muito difícil guardá-los palavra por palavra na memória, então o meu hábito foi fazer com que os oradores dissessem aquilo que na minha opinião esperava-se deles nas diferentes ocasiões, claro que se prendendo o máximo possível ao sentido geral do que eles realmente disseram”.

Este é a declaração do propósito de registrar os discursos como foram realmente pronunciados, não os inventados pelo historiador, na tentativa de deixá-los o mais fidedignos possível. Se Tucídides fizesse qualquer outra coisa, se inventasse discursos ou inserisse neles as suas próprias idéias em vez de tentar preservar os assuntos abordados pelo orador como era seu costume, teria mentido aos seus leitores. Deve-se assumir aqui que Tucídides quis dar às suas palavras exatamente o seu sentido mais óbvio: esses discursos que ele provavelmente ouviu pessoalmente devem ser tomados como um registro preciso e razoável das idéias do orador. Os discursos que ele provavelmente não ouviu e de que provavelmente não recebeu um relato confiável, se os há, podem ser tomados como expressão das idéias de Tucídides.

Após explicar o seu método de registrar os discursos, Tucídides conta ao leitor os grandes trabalhos que teve para certificar-se do curso dos eventos:

“No que diz respeito aos fatos dos eventos da Guerra, julguei que seria certo relatá-los não como me deparei com eles nem de acordo com as minhas pré-disposições, mas apenas depois de investigá-los com a maior exatidão possível, tanto os eventos em que estive presente como aqueles de que fui informado por outros. E o empenho em descobrir a verdade desse fatos significou um trabalho muito duro, porque aqueles que foram testemunhas oculares dos mesmos eventos não relataram as mesmas coisas. Os relatos diferiam por causa da parcialidade em favor de um ou de outro lado ou também por causa das falhas na memória deles.

“E, talvez, por carecer de contos fabulosos, o meu relato será considerado pouco agradável àqueles que o ouvirem, mas se for julgado útil para aqueles que buscam um conhecimento exato do passado como um auxílio à interpretação do futuro – que no curso das coisas humanas parecerá com ele, quando não o refletir – dar-me-ei por satisfeito.”

Poucos notaram que o último parágrafo está intimamente ligado ao que vem antes e é o seu complemento necessário. Explica o porquê de Tucídides ter se submetido a tantos trabalhos para apresentar os fatos da sua História da maneira mais exata possível. Apenas assim ela poderia cumprir o seu propósito de servir de material para que os sábios do futuro possam estudar o padrão do comportamento humano, especialmente em circunstâncias tão tensas, tirar lições disso, e conseqüentemente tomar melhores decisões. Se os fatos do seu relato estiverem errados, suas interpretações também estarão e tampouco servirão para fomentar a sabedoria política.

A magnífica História de Tucídides toca pontos que permanecem vitais em áreas de importância crônica para o seu tema: Política, Relações Internacionais e Guerra. Elas continuam a ser inescapáveis e cruciais para o entendimento e condução dos assuntos humanos, independentemente das modas intelectuais do nosso tempo. Tucídides foi o primeiro a tratar dessas questões de significância permanente usando a razão e o mais árduo e cuidadoso exame da história do seu tempo para jogar uma luz sobre elas.

Donald Kagan é professor de Clássicos e História na Universidade de Yale. “The student of political behavior” é um excerto de Thucydides: The Reinvention of History (Viking Adult, 2009).

Tradução de Cristian Clemente.

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 4, Dez/2009. Disponível [online] no link: <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-4/tucidides-o-estudioso-do-comportamento-politico/>

Imagem: Estátua de Tucídides  em frente ao Parlamento em Viena. Foto de Marco Woschitz, neste link.

Religião, violência e liberdade (por Joathas Bello)

Teologia | 17/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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René Girard, importante autor contemporâneo, sustenta que a religião é um dos meios mais poderosos com os quais o homem contou para controlar a espiral de violência que ameaça a comunidade: a solução do bode expiatório servia para amenizar os conflitos sociais nascidos do que ele chamou “desejo mimético” (o desejo do desejado por outrem)[1]. Como tese global sobre as religiões é uma ideia discutível, mas não é meu intento discuti-la aqui, senão que gostaria de chamar a atenção, primeiramente, para o significado que ele vê no relato bíblico em que Deus impede o sacrifício de Isaac: o que ali se estaria nos dizendo é que Ele não deseja sacrifícios humanos, e que, portanto, não se solidariza com as religiões que têm sua base nesta prática (e cujos deuses são, portanto, ídolos). Ainda segundo Girard, quando Cristo, vítima inocente, faz-se expiação, seu sacrifício, solidário com o de todas as vítimas da injustiça, religiosa ou não, representa a abolição de todo e qualquer sacrifício cruento, mesmo o de animais; de agora em diante, a Igreja cristã ofereceria apenas o sacrifício eucarístico das espécies consagradas. Ao contrário do que repetem certas visões superficiais, Deus não é um sujeito sanguinário e arbitrário a impor sua vontade, mas aceita até mesmo a consequência mais sórdida da liberdade humana, que é a morte do seu Filho, para justamente através dela resgatar o homem da morte. Em Deus, o atributo da vontade aparece unido à inteligência: é razoável seu agir, Ele não resolve a violência através da violência, mas a vence com amor, e convida a liberdade humana a fazer o mesmo.

O Ocidente nasceu sob a égide destas ideias: uma Razão amorosa que liberta a pessoa humana e lhe revela a verdade de sua dignidade. No final da Idade Média, a filosofia nominalista, para acentuar a onipotência divina, negou as essências eternas em Deus: Ele poderia ter feito tudo de outro modo e, no campo moral, poderia ter ordenado mandamentos contrários aos que ordenou (de acordo com essa visão, se Deus quisesse, o assassinato ou até mesmo o ódio contra Ele poderiam ser meritórios); até por conta disso é que não há, para o nominalismo, conceitos universais, mas só realidades individuais. A partir dessas ideias é que se vai formando o pensamento moderno, e, aos poucos, vão se acentuando cada vez mais a vontade e a liberdade como as principais características do ser humano, uma vontade independente da razão, e, consequentemente, uma liberdade cada vez mais dissociada do bem objetivo: o homem (cada indivíduo) agora é livre para eleger ou inventar os seus fins; a liberdade só é limitada pela liberdade dos demais[2]. Nesse ambiente surgem as várias liberdades modernas ou liberais: liberdade de culto, liberdade de opinião, liberdade de expressão, etc. Depois de muito conflito, a Igreja Católica se dispôs a reconhecer o que haveria de positivo –desde sua perspectiva– nas liberdades modernas, com a Declaração sobre a Liberdade Religiosa, do Concílio Vaticano II[3]. O que ali se expressa é que a liberdade de consciência não é uma liberdade independente da verdade, mas para a busca da mesma[4]. Assim, não há, para a pessoa humana, uma liberdade absoluta: entre outras coisas, não há liberdade para o exercício da ofensa, seja esta, por exemplo, em forma de blasfêmia, seja na forma mais atroz, de atentar contra a vida de outrem[5].

As religiões, especialmente aquelas que se consideram herdeiras de Abraão, deveriam dar testemunho dessa relação entre liberdade, razão e amor –é bastante complicada para a(s) teologia(s) muçulmana(s) a questão da liberdade humana frente a onipotência divina (o mutazilismo foi um intento frustrado), mas o que digo aqui é o que se requer para uma mútua convivência–, e, na esteira do ensinado por Girard, compreender que, assim como não quis o sacrifício de Isaac (ou de Ismael, na versão do Alcorão), Deus não quer vítimas humanas em seu nome: o não fiel é alguém a quem propor a fé e com quem se deve conviver. Por outro lado, o Ocidente secularizado deveria aprender que o “deus” do qual ele burla é um espantalho que não corresponde à adequada imagem divina, que nos selou com um profundo anelo pela liberdade.

Joathas Bello é Doutor em Filosofia pela Universidade de Navarra.

NOTAS

[1] Cf. GIRARD, René. A violência e o sagrado. Tradução: Martha Conceição Gambini. S. Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1990.

[2] Não é meu intuito resumir o complexo processo que levou do nominalismo ao liberalismo (sobre o voluntarismo do que é considerado o pai da modernidade, Descartes, por exemplo, pode-se ver: ZUBIRI, Xavier. Natureza, História, Deus. Tradução: Carlos Nougué. São Paulo: É Realizações, 2010, pp. 163-168), mas quero deixar indicado um possível paralelismo entre a teologia nominalista (da onipotência divina suprarracional) que estaria na raiz da liberdade sem freios do Ocidente, e aquela teologia que domina nos meios fundamentalistas islâmicos (da imposição da vontade/lei divina), que gera o terror irracional. Inclusive os totalitarismos ocidentais se inscreveriam nesta problemática: eles nada mais seriam que a tentativa de unir à força os indivíduos que já não podem mais se encontrar razoável e amorosamente (uma maneira de entender a relação nominalismo-individualismo-totalitarismo pode ser vista em: CORÇÃO, Gustavo. Dois amores, duas cidades: A civilização do homem-exterior [2o volume]. Rio de Janeiro: Agir, 1967, pp. 260-265).

[3] Cf. http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651207_dignitatis-humanae_po.html.

[4] A liberdade religiosa é compreendida pelo liberalismo como o direito do indivíduo a escolher a religião que lhe aprouver, uma vez que não se poderia falar de uma “religião verdadeira”; para o catolicismo, tal direito (natural) existe para que a pessoa humana adore a Deus em verdade, isto é, para que mantenha uma relação autêntica com a questão do sentido da existência, buscando-o sem constrangimento.

[5] Laicistas e fundamentalistas islâmicos transformam em bode expiatório, respectivamente, os religiosos e os “infiéis”: os primeiros, simbolicamente, através do escárnio, e os segundos, fisicamente, através do assassinato.

*** Texto publicado originalmente no site da revista do IFE, Dicta&Contradicta, em 11 de Fevereiro de 2015. Link: http://www.dicta.com.br/religiao-violencia-e-liberdade/

A energia escura e o destino do Universo (por Mario Livio)

Epistemologia e Ciência | 16/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Imagem de uma supernova


A composição do nosso Universo parece ser assaz estranha. Apenas 5% de toda a sua energia é feita de matéria conhecida – aqueles tipos de partículas que formam estrelas, planetas e pessoas. Cerca de 23% é “matéria escura”, possivelmente um tipo de partícula subatômica que nós ainda não identificamos em laboratório, mas cuja força gravitacional mantém as galáxias juntas. Os 72% restantes são ainda mais misteriosos: um tipo de “energia escura” que faz a expansão do Universo se acelerar.

Mas o que é esta energia escura? Sabemos que a sua densidade é praticamente constante no tempo e no espaço, mas não sabemos o que é de fato, e entender a verdadeira natureza dessa energia talvez seja o maior desafio da Física hoje.

A expansão cósmica

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Figura 1

Com centenas de bilhões de galáxias, o Universo observável é realmente grande, e vai ficando cada vez maior à medida que se expande. Mas nem todas as coisas do Universo estão em expansão: os átomos, as pessoas e mesmo as galáxias não estão. Com o passar do tempo, entretanto, o espaço entre galáxias distantes está cada vez maior.

A expectativa geral era de que a expansão cósmica diminuiria gradualmente, visto que as galáxias exercem a sua força gravitacional umas nas outras. Houve, portanto, uma imensa surpresa em 1998, quando duas equipes de astrônomos trabalhando independentemente anunciaram que a expansão estava na realidade ficando mais rápida. Ambas as equipes valeram-se da explosão das supernovas de tipo IA (ver figura 1). Essas explosões são tão brilhantes que podem ser vistas a uma distância de bilhões de anos-luz. A luz de um objeto que esteja, por exemplo, a cinco bilhões de anos-luz leva cinco bilhões de anos para chegar até nós; noutras palavras, observamos o Universo tal como ele era há cinco bilhões de anos. As supernovas foram encontradas mais longe do que se esperava para um Universo movido apenas pela inércia – o que indicava um sinal de aceleração.

A melhor explicação atual para a inesperada aceleração do Universo é a energia escura, uma forma de energia cuja densidade é praticamente ou talvez exatamente a mesma em toda a parte e sempre. Sua persistência proporcionaria uma força repulsiva constante ao Universo, acelerando assim a sua expansão.

Energia do vácuo?

A explicação mais aceita sobre a natureza da energia escura é a de que ela seria a energia do vácuo, uma energia perfeitamente uniforme presente nos espaços vazios em qualquer lugar do Universo. A autoria dessa idéia remonta a Einstein, que introduziu a “constante cosmológica” na sua Teoria da Relatividade Geral em 1917. Na época, os astrônomos pensaram que o Universo não estava nem em expansão nem em desaceleração, e ele então utilizou a constante cosmológica para compensar a atração gravitacional da matéria. Quando Edwin Hubble descobriu a expansão cósmica em 1929, Einstein percebeu que a constante cosmológica não era necessária e descartou o conceito, que viria depois a chamar (segundo o físico George Gamow) de “o seu mais crasso erro científico”.

A energia do vácuo não é um gás, um fluido ou qualquer outro tipo de substância; está mais para uma propriedade do espaço-tempo em si. É simplesmente a quantidade mínima de energia presente em qualquer região do espaço, a energia que permanece quando removemos todo o tipo de “tralha” daquela região. Na relatividade geral, essa quantidade pode ser positiva ou negativa, sem qualquer razão especial para ser zero.

O mundo microscópico obedece as leis da mecânica quântica, que proclamam que o nosso entendimento do estado de qualquer sistema envolve uma inevitável incerteza (o famoso princípio da incerteza de Werner Heisenberg). Os campos de energia, portanto, flutuarão mesmo no espaço vazio, uma vez que não podemos determinar que o espaço vazio possui zero de energia. Nessas “flutuações do vácuo”, partículas virtuais aparecem e desaparecem em frações de segundo. Tais partículas contribuem para a energia do vácuo, mas não são a sua única causa, uma vez que a relatividade geral permite-nos assumir uma energia do vácuo arbitrária sem levar em conta essas flutuações. Einstein com certeza não estava pensando em partículas virtuais quando concebeu a constante cosmológica.

Se a energia escura observada for realmente energia do vácuo, então será muito pouca: a quantidade dela dentro do volume da Terra não é maior que a média anual de consumo de eletricidade no Brasil. De fato, a energia escura observada está mais de cento e vinte ordens de grandeza abaixo das mais ingênuas estimativas para o seu valor.

Seria a quintessência?

Uma vez que a energia do vácuo parece ser diminuta, seria mais fácil inventar uma teoria que a considere nula do que uma que a reduz ao valor exato observado. Uma suposição é a de que a energia escura observada não é a energia do vácuo, mas alguma outra forma sutil que evolui lentamente.

Vários candidatos foram apresentados, mas nenhum parece ser completamente natural. Um dos favoritos é aquintessência, um campo invisível (similar aos campos eletromagnético e gravitacional) que muda lentamente à medida que o Universo se expande. Imagino que quando Universo tinha apenas frações de segundo de existência, talvez um tipo de campo similar à quintessência o tenha inflado, só que com muito mais energia. A energia que desencadeou a expansão acabou por tornar-se matéria e radiação, também em frações de segundo após o Big Bang.

Uma dos principais objetivos da cosmologia contemporânea é determinar se a energia escura é dinâmica como a quintessência ou algo estritamente constante como a energia do vácuo. A evolução da energia escura afetam diretamente a expansão cósmica, de modo que os cosmólogos vêm empenhando-se para mapear a história da expansão com o maior cuidado possível. Os limites da evolução da energia escura são freqüentemente postos em termos do “parâmetro de equação de estado”, simbolizados por w, que é a pressão da energia escura dividida pela densidade da sua energia. Se a energia escura é pura energia do vácuo invariável, a medida de w será exatamente igual a –1.

Um método óbvio para a mensuração do valor de w é continuar com a observação de supernovas tipo IA, só que com mais precisão e usando números de maior grandeza. Medidas futuras da radiação cósmica de fundo e das oscilações acústicas dos bárions – flutuações na distribuição comum da matéria que se manifestam no modelo em larga escala do Universo – também ajudarão a compreender a natureza da energia escura.

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Figura 2

Os cosmólogos também esperam usar a quantidade e a evolução dos conglomerados de galáxias como pontas de prova da expansão cósmica (ver figura 2). A história da expansão determina quantos conglomerados podem ser formados e quão grandes eles podem ser. Há gás quente nos conglomerados, e os astrônomos podem estudá-los diretamente por meio da emissão de raio-X do material. A temperatura do gás está intimamente relacionada com a massa do conglomerado. Conglomerados com muita massa podem reter gás muito quente, ao passo que o gás escapa dos conglomerados menores como vapor de uma chaleira. Com todos esses métodos diferentes, e talvez futuras missões espaciais, podemos esperar para os próximos anos uma maior riqueza de dados acerca da expansão cósmica.

O destino do Universo

Sabemos desde 1998 que Universo está se expandindo aceleradamente. Mas será que essa aceleração continuará para sempre? Em caso afirmativo, qual será o destino dos conglomerados de galáxias, das galáxias e das estrelas? A resposta a essas questões depende de um intrincado equilíbrio entre a geometria do Universo e as propriedades dessa forma sutil de energia, apelidada “Energia escura”, que permeia todo o espaço.

O papel da geometria

Num cosmo sem energia escura, a relatividade geral enuncia que o destino último do Universo é total e inequivocadamente determinado pela sua geometria [N.E.: aqui na revista impressa havia uma imagem ilustrativa “Figura 3”, mas não conseguimos recuperá-la]. Um Universo com curvatura positiva, como a superfície de uma esfera, acabará por implodir (tal Universo é dito fechado). Um Universo geometricamente plano (euclidiano) ou com curvatura negativa, como a superfície de uma sela, expande-se indefinidamente (trata-se de um Universo aberto).

A existência da energia escura complica consideravelmente a situação. Se ela é de fato a energia associada com o vácuo – uma possibilidade que se mostra consistente diante das últimas observações das supernovas, dos conglomerados de galáxias e da radiação cósmica de fundo –, então a sua densidade de energia permanece constante, ao passo que as densidades de energia tanto da matéria e a da radiação diminuem continuamente na medida em que o Universo se expande. Isso quer dizer que a energia escura começa a preponderar quando o Universo se torna suficientemente extenso. Para um parâmetro de equação de estado w = –1, caracterizando o vácuo, dá-se a dominância da energia escura independentemente do sinal da curvatura geométrica. Uma vez que a energia escura produz uma força repulsiva à gravidade, a expansão cósmica começa a se acelerar, tal como observamos hoje no nosso Universo.

Se a expansão do nosso Universo é regida pela energia do vácuo, então continuará a se acelerar, resultando eventualmente num desvio para o vermelho: todas as galáxias que estiverem mais distantes do que as duas dúzias que formam, aproximadamente, o nosso Grupo Local irão tão longe que não se poderá mais detectá-las. Noutras palavras, os astrônomos vivendo na Via Láctea daqui a 100 bilhões de anos não serão capazes de observar nenhuma galáxia fora do nosso Grupo Local. De fato, tais astrônomos (supondo que existam então) sequer serão capazes de observar a radiação cósmica de fundo, porque também ela sofrerá um desvio para o vermelho.

Tamanho isolamento cósmico e a morte final num “grande resfriamento” não é o pior dos possíveis destinos do Universo.

O “big rip” e outros destinos possíveis

Se a energia escura não for a energia do vácuo, mas em vez disso estiver associada a algum tipo de campo de quintessência, sendo caracterizada por um parâmetro de equação de estado w menor (mais negativo) que –1, então a densidade de energia da energia escura crescerá com o tempo. Nesse caso, quando a densidade da energia escura exceder a dos conglomerados de galáxias, estes desintegrar-se-ão. O mesmo destino terão as estrelas, os planetas, as pessoas, os átomos e mesmo os núcleos atômicos. Nenhuma estrutura sobreviverá à crescente densidade da energia escura. O Universo acabará naquilo que foi batizado de big rip (“o grande rasgo”).

Há possibilidades menos extremas relacionadas com a energia escura na forma de um campo escalar quando w é maior(menos negativo) que –1. Geralmente espera-se do campo escalar que diminua a sua energia potencial assim como uma bola de gude diminuiria a sua energia rolando pelas laterais de uma tigela, acabando por repousar quanto atingisse a sua energia potencial mínima. Nesse caso, o destino do Universo depende do valor desse mínimo de energia potencial. Num Universo como o nosso, onde apenas a matéria não é suficiente para torná-lo geometricamente plano, qualquer valor positivo causaria uma expansão acelerada, e o mesmo desvio para o vermelho ocasionado pela energia do vácuo aconteceria. Uma energia potencial mínima que é exatamente igual a zero asseguraria um novo domínio da matéria em algum ponto do futuro, e o Universo começaria a se desacelerar. Nesse caso, o destino será determinado pela geometria do Universo, como no caso de um Universo sem energia escura. Por fim, se a energia potencial mínima for negativa, acabará por ocorrer a implosão do Universo, não importando a sua geometria.

As complicações trazidas pela presença da energia escura são tamanhas que é essencialmente impossível determinar o destino do Universo a partir apenas de observações. Imaginemos, por exemplo, que no nosso Universo a densidade da energia escura fosse de apenas um trilionésimo da densidade da matéria – muitas ordens de grandeza abaixo de qualquer detecção. Ainda assim, após ele ter se expandido por um outro fator de dez mil, a energia escura transformar-se-ia na forma de energia dominante – aquela que selaria o  seu destino. Por conseguinte, não seremos capazes de conhecer o destino do nosso Universo com certeza até sermos capazes de complementar as observações com uma teoria confiável que nos permita entender a própria natureza e as propriedades específicas da energia escura.

Há ainda outro ponto digno de nota. A composição do Universo, com os seus 5% de matéria normal (bariônica), 23% de matéria escura e 72% de energia escura, parece ser bastante arbitrária. Assim, há físicos que pensam estarmos completamente equivocados. Talvez a energia escura não exista realmente; talvez as nossas teorias da gravidade e da relatividade geral não dêem conta das escalas cosmológicas. Algumas teorias alternativas da gravidade foram aventadas partindo-se dessa linha. Boa parte delas envolve dimensões extras, além das nossas três dimensões de espaço e uma de tempo. Até agora, não houve rachaduras experimentais ou observacionais na relatividade geral. Mas a experiência passada ensina-nos a sempre esperar o inesperado.

Mario Livio é astrônomo sênior e chefe do departamento de relações públicas do Space Telescope Science Institute, entidade responsável pelo programa do telescópio espacial Hubble. Publicou mais de 400 artigos científicos acerca de uma grande variedade de temas de Astrofísica, bem como quatro livros de divulgação, dos quais dois (Razão Áurea: a história de fi e A equação que ninguém conseguia resolver) já foram publicados no Brasil pela editora Record. O seu livro Is God a Mathematician? está prestes a ser publicado aqui pela mesma casa.

Tradução de Cristian Clemente.

***Texto originalmente publicado na revista-livro do IFE, Dicta&Contradicta, nº 4, Dez/2009. Disponível [online] no site da revista no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-4/a-energia-escura-e-o-destino-do-universo/

**Fonte da imagem principal: NASA/ESA Uploaded by Metrónomo, “Hubble Space Telescope-Image of Supernova 1994D (SN1994D) in galaxy NGC 4526 (SN 1994D is the bright spot on the lower left)”. Link: http://en.wikipedia.org/wiki/Dark_energy#mediaviewer/File:SN1994D.jpg

**Fonte da Figura 1: NASA/CXC/Rutgers/J.Warren & J.Hughes et al. Link: http://it.wikipedia.org/wiki/Supernova_di_tipo_Ia#mediaviewer/File:Tycho-supernova-xray.jpg

**Fonte da Figura 2: NASA/WMAP Science TeamOriginal version: NASA; modified by Ryan Kaldari. Link: http://en.wikipedia.org/wiki/Metric_expansion_of_space#mediaviewer/File:CMB_Timeline300_no_WMAP.jpg

A complementaridade entre razão e religião no âmbito democrático e os desafios do mundo contemporâneo: dez anos do debate Habermas-Ratzinger, por Tarcísio Amorim

Filosofia | 12/02/2015 | | IFE RIO

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No inverno de 2004, dois renomados pensadores da atualidade – o filósofo Jürgen Habermas e o teólogo Joseph Ratzinger – reuniram-se para um debate na Academia Católica de Baviera, em Munique, na Alemanha. Com o título Dialética da Secularização: sobre Razão e Religião, o diálogo abordou temas como o secularismo político, direitos humanos, bioética e terrorismo religioso.

De um lado, o filósofo buscou conciliar a defesa de fundamentos seculares para o Estado democrático com a possibilidade de acomodação dos argumentos religiosos para fins deliberativos. Em sua visão, a democracia não dependeria de nenhuma base transcendental para justificar-se, mas as razões religiosas poderiam – e deveriam – contribuir para o debate público por meio de conceitos e imagens de mundo que viriam a ser apropriadas pela razão secular, especialmente através da filosofia. De fato, Habermas sublinhou que, no Ocidente, o entrelaçamento das tradições cristãs com a metafísica grega influenciou as intuições morais com conceitos como o de responsabilidade, despojamento, justificação e recomeço, além da própria crença na semelhança do homem com Deus, cuja transposição para a noção de igual dignidade ainda preserva seu valor nos dias atuais[1].

Como um filósofo político liberal, em seu sentido amplo, Habermas acredita que a democracia se baseia no exercício livre de uma razão que questiona seus próprios fundamentos, estabelecendo redes comunicativas das quais o consenso político em torno do melhor argumento deve emanar, depois de sucessivas transformações nas percepções e interpretações pessoais da realidade. Nesse sentido, em vista de sua igualdade jurídica, os argumentos morais provindos de indivíduos ou grupos religiosos devem ser acolhidos, pois “a neutralidade ideológica do poder do Estado que garante as mesmas liberdades éticas a todos os cidadãos é incompatível com a generalização política de uma visão de mundo secularizada”[2].

Por sua vez, o teólogo Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (hoje Papa emérito Bento XVI), enfatizou a necessidade de princípios normativos de direito que evitem tanto o extremismo religioso quanto um cientificismo desprovido de restrições morais. Igualmente, seria preciso prevenir o jogo de poder das maiorias, que na história já mostraram ser capazes de usar de instrumentos democráticos para oprimir as minorias. Assim, além de um exercício de mútua purificação por meio do confronto de razões religiosas e seculares, Ratzinger defendeu o reconhecimento da existência de valores intrínsecos “que decorrem da essência do ser humano e que, por esse motivo, são invioláveis em todos os detentores dessa essência”[3].

Embora tivesse sublinhado que tal princípio ainda encontrava sua expressão nos chamados direitos humanos – ininteligíveis sem o pressuposto de uma concepção universalista do homem que envolva a razão natural – Ratzinger, aproveitando-se das reflexões de Habermas e de seu pragmatismo, preferiu utilizar-se de sua lógica deliberativa para ressaltar o fato de que a visão democrática secular não pode ser generalizada, mas deve engajar-se no diálogo com as perspectivas religiosas. De fato, além das interpretações cristãs que continuam a influir no Ocidente, as grandes culturais do mundo (islâmica, indiana, africana e ameríndia) permanecem avançando intepretações teístas da realidade. Uma vez que a democracia pressupõe o pluralismo e a interculturalidade, seria preciso incluir todas essas perspectivas “na tentativa de uma correlação polifônica, na qual elas próprias possam abrir-se à complementaridade essencial de razão e fé” [4].

A ocorrência desse encontro entre Habermas e Ratzinger em 2004 foi oportuna por vários motivos. Dentre eles, o fato de que os fluxos imigratórios entre o Oriente o Ocidente vieram a reforçar o questionamento das bases seculares do pensamento liberal europeu. Com efeito, um mês após o 11 de Setembro, em um discurso proferido por ocasião do Prêmio da Paz da Associação de Editores Alemães, Habermas pontuou que o desenvolvimento de uma linguagem comum que reconhece a fluidez das fronteiras entre razões seculares e religiosas é fundamental para que a sociedade possa ir “além do violento silêncio dos terroristas e dos mísseis” e evitar “a batalha das culturas” [5]. De acordo com o filósofo, a visão do processo de secularização como um jogo de soma zero entre as forças progressistas da ciência e as correntes conservadoras da religião “não se enquadra em uma sociedade pós-secular que busca adaptar-se à contínua existência de comunidades religiosas” [6]. Ao contrário, a secularização para Habermas é um processo dialético no qual a atitude racional permanece autônoma, mas sem desprezar as perspectivas oferecidas pelas razões religiosas.

As reflexões sobre a secularização no Ocidente também ganharam alento devido ao processo de integração da Comunidade Europeia. O papel da religião para a construção de sua identidade cultural mostrava-se uma questão controvertida, e a rejeição à proposta de menção ao cristianismo na Carta Europeia naquele mesmo ano de 2004 não esvaziou o debate. Ao receber o Prêmio São Bento para a Promoção da Vida e da Família em 2005, Joseph Ratzinger afirmou que a oposição a tal referência se relacionava com o contexto cultural do Ocidente, que vinha privilegiando uma perspectiva positivista, e por tanto, antimetafísica, na qual as questões sobre Deus e sobre os fins últimos da vida humana não têm lugar. Para o teólogo, esta filosofia não expressaria a razão humana em sua totalidade, constituindo-se como o verdadeiro obstáculo para a união entre o Ocidente e as grandes civilizações não cristãs, especialmente aquelas formadas no seio do islamismo [7]. Vale recordar que em 2011, durante a presidência Húngara da União Europeia, um evento reunindo lideranças políticas dos países membros foi organizado na cidade de Gödöllo, região metropolitana de Budapeste, em vista da reflexão sobre a cooperação entre cristãos, judeus e muçulmanos na Europa e no mundo. O então vice-primeiro-ministro, Zsolt Semjén, sublinhou que a separação entre Igreja e Estado não exclui as relações entre religião e sociedade e que “o ser humano está aberto para os infinitos horizontes da existência, levantando questões que vão além das coisas visíveis, ansiando por explorar a vida última” [8].

Hoje, dez anos depois daquele encontro, as mesmas questões que delinearam as diretrizes do debate ainda se fazem presente nas nossas sociedades democráticas. Em meio à relativização dos discursos morais que permeia o âmbito do Direito, os dois autores apresentam uma perspectiva comum quanto ao papel da razão para o estabelecimento de normas democráticas: a rejeição do chamado “contextualismo”, como defendido pelo filósofo Richard Rorty, no qual definições de verdade e de justiça são reduzidas aos resultados de práticas culturais de justificação. Mesmo para Habermas, que situa as razões religiosas e seculares em igualdade no processo deliberativo, a justiça não é um arranjo nacional ou comunitário, mas é fruto de um processo de aprendizagem no qual a razão se expressa orientada pela verdade, transcendendo os contextos locais. Na percepção do filósofo, a concepção de um progresso sócio-cultural como resultado do desenvolvimento moral pela razão seria, a princípio, independente da religião, mas acabaria por ter de confrontar as razões transcendentes que desafiam suas bases durante o exercício deliberativo.

Nesse sentido, a lacuna entre o pensamento do filósofo para com a teologia de Ratizinger – embora persistente – acaba por se estreitar no resultado do processo democrático – se não na forma, ao menos no conteúdo. Pois, a partir do momento em que as razões religiosas (metafísicas) questionam os fundamentos profanos da democracia, elas introduzem uma crítica à forma do modelo de Habermas, crítica que o próprio sistema democrático – como esboçado pelo filósofo – teria que admitir.

Em todo o caso, tanto um quanto o outro endossam o potencial racional dos argumentos religiosos e metafísicos. Para Ratzinger, trata-se também de reconhecer que os direitos humanos podem estar em risco a partir do momento em que já não se define mais o que é o homem, tendo em conta sua origem e seu fim. Em Fé, Verdade e Tolerância, o teólogo reflete sobre esse ponto a partir do embate entre liberdade e solidariedade na demanda de alguns setores do movimento feminista em prol da autonomia do corpo. Como explicita, o feto constitui um ser-de que, por sua vez, reclama um ser-para (a mãe) a fim de se desenvolver. Mesmo após o nascimento – ainda que seja entregue a outro lar – ele continuará a depender dessa figura antropológica, assim como o adulto deverá também se reportar aos outros, como um ser em relação que é. A liberdade, então, abrange não somente direitos negativos (aquilo que podemos fazer sem a interferência de outros), mas também direitos positivos (aquilo que devemos fazer em vista da própria existência pessoal e comunitária). Dessa forma, contraponto a demanda feminista em favor do livre uso do corpo, Ratzinger afirma que a liberdade do homem apenas pode constituir-se na coexistência ordenada de liberdades, que acarreta, por si mesmo, a referência ao outro, pois toda subsistência e desenvolvimento da vida humana se apoia na interdependência das relações entre liberdade e solidariedade. Nos termos do teólogo: “se a verdade sobre o homem não existe, então ele também não possui nenhuma liberdade. Somente a verdade liberta” [9].

Como se percebe, o debate sobre razão e religião é fundamental em uma época em que novas demandas culturais reivindicam uma redefinição do lugar da religião nas democracias contemporâneas. De modo particular, ele se faz cada vez mais importante no Brasil, onde a percepção da organização política de grupos religiosos e a persistência de símbolos cristãos na esfera pública têm estado em pauta. Por um lado, como destacou Habermas, os cidadãos que partem de uma visão do mundo secularizada “não podem nem contestar em princípio o potencial de verdade das visões religiosas do mundo, nem negar aos concidadãos religiosos o direito de contribuir para os debates públicos servindo-se de uma linguagem religiosa” [10]. Por outro, os cidadãos que avançam razões religiosas devem apresentá-las em uma linguagem racional que, sem perder seu caráter transcendente, seja acessível aos outros participantes do processo deliberativo.

Como ressalta a filósofa irlandesa Maeve Cooke, essa universalidade não deve referir-se ao tipo de linguagem empregada, na tentativa de reduzir os argumentos religiosos a uma razão secular, mas à própria racionalidade do processo comunicativo, pois – conforme a própria lógica habermasiana – quando os argumentos são confrontados, o resultado de um consenso não resulta necessariamente na conversão à perspectiva do outro, mas em uma nova perspectiva, diferente de ambas, na qual as razões metafísicas podem seguir desempenhando um papel fundamental [11]. Nesse contexto, as reflexões de Jürgen Habermas e Joseph Ratzinger podem ser úteis, não tanto para questionar o ideal democrático, mas para assegurar seus próprios fundamentos, prevenindo-se o relativismo que atenta contra a dignidade humana, bem como o extremismo religioso que se fecha ao diálogo racional.

Por fim, suas ideias também podem trazer luz sobre o tenebroso contexto de violência religiosa no Iraque e em outras partes do mundo. Com a ascensão do Estado Islâmico e o surgimento de um novo conflito internacional, pode-se questionar como um diálogo público seria capaz de reconciliar visões tão díspares acerca do papel da religião e do Estado na vida civil. Sobre esse ponto, Razinger sublinha que, assim como não há um discurso homogêneo acerca do secularismo político no Ocidente, também a esfera cultural islâmica se divide quanto ao tema, com posturas que vão desde “o absolutismo fanático de um Bin Laden” até aquelas que estão abertas a uma racionalidade tolerante [12].

Como demonstra Abdulaziz Sachedina, no que diz respeito aos direitos humanos o pensamento no mundo muçulmano tem se divido entre o tradicionalismo legal dos defensores da Declaração do Cairo (que contempla somente os seguidores da Sharia), e as abordagens teológico-políticas que levam em conta a racionalidade prático-filosófica na formulação da jurisprudência islâmica (fiqh), bem como sua contingência em termos de cultura, tempo e espaço. Acadêmicos como Muḥammad al-Ghazālī, Yūsuf al-Qarāḍāwī, Aytollah Jawādī Āmolī e Allāma Muḥammad Taqī Jafarī Tabrīzī, entres outras autoridades sunitas e xiitas, vêm defendido uma visão universalista de Direitos Humanos, buscando um diálogo que permita o reconhecimento das origens teológicas da concepção de Dignidade Humana, explicitada na Declaração da ONU, por meio de uma ética filosófica inclusivista e multicultural [13].

Como bem pontou Maeve Cooke, um secularismo excludente não apresentaria nenhuma consistência para o tratamento das questões levantadas pelo islamismo político, ou pela constante imigração para o Ocidente de povos cujas visões de mundo são fortemente marcadas pelo senso religioso – e para os quais a experiência secular ocidental é amplamente remota ou completamente estranha. Ao contrário, a inerente abertura do processo de aprendizagem, combinada com o princípio de autonomia política que permite que cada indivíduo busque a autorrealização em concordância com os próprios valores, sugere que é tempo de reconsiderar os argumentos em prol de fundamentos exclusivamente seculares da autoridade política [14]. Dessa forma, razão e religião devem caminhar juntas, aparando-se e aperfeiçoando-se mutualmente, provendo novos discursos de moralidade pública e atualizando as fontes ético-jurídicas do Estado democrático.

Dez anos após o encontro de Munique, o diálogo entre Habermas e Ratzinger ainda repercute no mundo acadêmico, e suas reflexões se fazem cada vez mais atuais em meio ao ressurgimento religioso testemunhado não só nos países orientais, mas também em partes da Europa, África e América Latina. A foto acima mostra o Parlamento da República da Polônia, onde uma moção destinada a remover o crucifixo sob o argumento da laicidade foi derrubada em 2013 pela Corte de Varsóvia. A decisão converge com julgamento da Corte de Estrasburgo, sobre a exposição de crucifixos nas escolas publicas italianas em 2011, levando em conta aspectos da cultura nacional. Na Ucrânia, o levante que derrubou o governo de Yanukovich – embora diversificado em sua natureza – foi marcado por uma forte presença do clero, além de diversas manifestações religiosas em sítios públicos.

Como se percebe, a ideia de secularização como um processo linear ao longo da história destoa tanto das recentes reflexões acadêmicas acerca da pós-secularidade quanto da realidade sócio-política das democracias contemporâneas. Nesse sentido, o debate Habermas e Ratzinger torna-se significativo ao ilustrar o encontro da reflexão filosófica com a razão religiosa em prol de uma sociedade universalmente solidária e de uma cultura política legitimamente democrática.

[1] HABERMAS, Jürgen. Fundamentos pré-políticos do Estado de direito democrático?. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 50.
[2] Ibidem, p. 57.
[3] RATZINGER, Joseph. O que mantém o mundo unido: fundamentos morais pré-políticos de um estado liberal. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 68.
[4] Ibidem, p. 90.
[5] HABERMAS, Jürgen. Faith and knowledge. 2001. Disponível em: . Acesso em: 4 jan. 2014.
[6] Ibidem.
[7] RATZINGER, Joseph. La última conferencia de Ratzinger: Europa en la crisis de las culturas. 2005. Disponível em . Acesso em: 4 jan. 2014.
[8] Hongaars Voorzitterschap benadrukt belang van vrijheid van religie (en). Europa Nu, 2 jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: Acesso em: 4 jan. 2014.
[9] RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: O Cristianismo e as Grandes Religiões do Mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2007, p. 222-232.
[10] HABERMAS, Jürgen. Op. Cit. 2007, p. 57.
[11] COOKE, Maeve. A Secular State for a Postsecular Society? Postmetaphysical Political Theory and the Place of Religion. Constellations, 14, 2, 2007, 224-238.
[12] RATZINGER, Joseph. O que mantém o mundo unido: fundamentos morais pré-políticos de um estado liberal. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 90.
[13] SACHEDINA, Abdulaziz. Islam and the Challenge of Human Rights. New York: Oxford University Press, 2009.
[14] COOKE, Maeve. A Secular State for a Postsecular Society? Postmetaphysical Political Theory and the Place of Religion. Constellations, 14, 2, 2007, 233-234.

Tarcísio Amorim é doutorando em Ciência Política pela University College Dublin e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fonte: http://www.dicta.com.br/a-complementaridade-entre-razao-e-religiao-no-ambito-democratico-e-os-desafios-do-mundo-contemporaneo-dez-anos-do-debate-habermas-ratzinger/