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José Ortega y Gasset e a encruzilhada da clareza (por Martim Vasques da Cunha)

Filosofia | 25/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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Ilustração de Paulo von Poser para a edição impressa.

Sentía los quatro vientos,
en la encrucijada
de su pensamiento.

Antonio Machado, Proverbios y cantares,
LXIII, dedicado a Ortega

Todo grande pensador corre o risco de ser incompreendido – especialmente entre os seus admiradores. É normal na história da filosofia: afinal, um pensamento que abrange num só olhar todo o arco das ambigüidades da vida tem de provocar certo grau de incompreensão, o que só vem a confirmar sua grandeza. Contudo, há limites até para a incapacidade de entender; e, entre eles, a regra elementar – mas pouco observada até por alguns dos estudiosos mais sérios – de que, antes de se poder alimentar a pretensão de ter compreendido corretamente qualquer pensamento, é preciso devassar de ponta a ponta a alma de quem o formulou.

Ora, o problema dessa compreensão parcial diz respeito de uma maneira especial a José Ortega y Gasset (1883-1955). São justamente os seus admiradores quem pretende reduzir sua espantosa obra filosófica a uma ciência política divulgada em periódicos. Assim, é normal vermos como resumem, com ar gaiato, cinqüenta anos de esforço por entender a realidade do mundo e do seu país – a Espanha da primeira metade do século XX, uma nação profundamente violentada pelas ideologias – em um corpo de artigos reunidos na Rebelião das massas (1930).

O próprio Ortega ajudou a criar essa confusão ao afirmar que, desde criança, quando via o pai trabalhando em seu jornal El Imparcial, sempre experimentava o ímpeto do jornalista que quer ir ao fundo do real para descobrir novos matizes, novas luzes, novas possibilidades de entender o que se passa no mundo. Mas não devemos esquecer que também criticava o empenho de muitos jornalistas em pertencer a uma pretensa “elite espiritual”, quando não passam de mergulhadores que mal arranham a superfície do real, apesar da sua vontade de flutuar sem amarras. A verdadeira profundidade, dizia ele, cabe apenas ao filósofo.

Portanto, se o jornalista Ortega sentia o ímpeto de descobrir o real, era a dama Filosofia quem lhe permitia ir às raízes das coisas – e não lhe permitia esquecer a distância que há entre a vontade e a sua realização. Sobretudo, não lhe permitia esquecer que o abismo que existe entre a primeira e a segunda é o começo de qualquer tragédia; e a sombra da tragédia acompanhou-o ao longo de toda a sua vida e obra e, em especial, depois da morte.

Em 2005, Mario Vargas Llosa, que chegou a escrever livros notáveis como Conversa na catedral e A cidade e os cachorros, realizou uma Conferência Nexus em Amsterdam sobre os cinqüenta anos da morte de Ortega, motivado pela boa intenção de recuperar o pensador do “limbo da história das idéias” (de fato, com exceção de alguns eventos sem grande divulgação na mídia, ninguém havia lembrado mais amplamente o cinqüentenário). Chamava-se nada mais nada menos que “O resgate liberal de Ortega y Gasset”; infelizmente, o raciocínio do autor – como o de qualquer pessoa imbuída de uma ideologia (não esqueçamos que Mario, depois de um longo namoro com o socialismo latino-americano, é hoje um liberal inveterado) – é de uma estreiteza assustadora. Pois Vargas Llosa faz justamente o que um admirador de Ortega não deveria fazer: cita uma ou duas obras do filósofo e argumenta as suas idéias em um estilo belo mas vago, sob a impressão de estar traçando um panorama sintético do seu pensamento, quando na realidade mal chega a apresentar uma minúscula fração do seu trabalho. Por fim, voilá, aplica-lhe um chavão, classifica-o como um “livre-pensador” ou, pior ainda, um “filósofo laico”.

O problema é que Ortega nunca foi uma coisa ou a outra. Vargas Llosa tenta a todo custo encaixá-lo na ideologia liberal, esquecendo-se de que uma filosofia autêntica não se esgota em um sistema estreito. E isso se aplica especialmente à obra orteguiana, pois o filósofo espanhol foi contra qualquer petrificação do real, qualquer submissão a uma idéia que pudesse justificar atitudes políticas e, especialmente, atitudes políticas criminosas. Esta era, aliás, a base de sua “ciência política”, explicitada em dois livros exemplares: o já citado Rebelião, um clássico na análise da psicologia das multidões que viria a ser superado apenas por Masse und Macht (“Massa e poder”), de Elias Canetti, e o pequeno mas perspicaz España invertebrada (1921), cujo título já insinua todo um estado de coisas.

É um “estado de coisas” bastante tenebroso: Ortega enxerga na sociedade do seu tempo o domínio do “homem-massa”, que deixou perder-se a sua individualidade e, com ela, tudo o que o tornava autêntico; em conseqüência, rebaixou o seu nível de consciência, a sua forma de ver o mundo e de transmiti-lo por meio da cultura, a qual por sua vez se degradava e perdia a transcendência. Essas características só podiam desembocar em um resultado – guerras sobre guerras.

Em España invertebrada, Ortega adianta-se quinze anos à Guerra Civil Espanhola de 1936, o evento que antes de tudo “assassinou a verdade”, nas palavras do historiador Anthony Beevor; e vinte e quatro anos à Segunda Guerra Mundial, dominada pelo “homem-massa” nazista e socialista. E se o seu diagnóstico estava correto, como os fatos mostraram, não tinha deixado de prescrever também uma profilaxia, habitualmente esquecida por admiradores indiscretos como Vargas Llosa e, em conseqüência, pouco divulgada. Vamos examiná-la mais adiante, e sobretudo perguntar-nos se continua a ter validade para os nossos dias.

Seja como for, começamos já a perceber que o clichê do “filósofo laico” apenas parece oferecer um resumo fácil para uma obra que perturbou tantos dos seus contemporâneos pela sua determinação em pôr os problemas como problemas, sem oferecer soluções precipitadas para eles. Para Ortega, essas soluções só podiam vir de encarar os problemas com clareza, de caçar sua essência, de persegui-los como o toureiro persegue seu touro.

A obra de José Ortega y Gasset não se resume à sua “ciência política”, como pensou Vargas Llosa. É verdade que o pensador também foi um político ativo nas decisões de seu país – chegou a ser deputado, em 1931, pela Agrupacíon al Servicio de la República, um episódio da sua vida a que sempre se referiria com melancolia… -, mas acima de tudo há nele um profundo respeito perante a realidade. Aqui parece levantar-se uma divergência: pois se o político é um homem de ação, alguém que ousa modificar o mundo, o filósofo tem de ir ao fundo das coisas para, a partir dali, recuperar o sentido verdadeiro dessa realidade modificada pela ação dos contemporâneos. Como sair desse impasse, como conciliar ação política com contemplação filosófica?

Tratava-se de um falso impasse, pois para Ortega nada impediria o filósofo de ser também um homem de ação; a questão estaria em evitar qualquer espécie de pose, de veleidade intelectualista, de beataría de cultura, segundo sua formidável expressão. A ação do filósofo teria de ser mais demorada do que a do político por um motivo muito simples: o primeiro age para desvelar a verdade, a alethéia que a realidade insiste em esconder nas suas profundezas, enquanto o segundo provoca uma conseqüência imediata na physis, na própria natureza das coisas. O segundo pressuporia o primeiro.

Diante disso, Ortega impôs-se uma tarefa que ele próprio chamava de “luciferina” (no sentido original de “portadora de luz”): a de levar a luz para o que estava coberto pelas trevas; e reconhecia nela a tragédia de sua vocação, remetendo ao famoso adágio de seu querido Goethe: a cortesia do filósofo é a clareza. Uma clareza de que a sua Espanha, por sinal, necessitava desesperadamente.

Quando Ortega y Gasset surgiu no meio intelectual espanhol de começos do século XX, seus contemporâneos ainda estavam sob o impacto da Geração de 98, representada por gente do calibre de Antonio Machado, Miguel de Unamuno e Pio Baroja. Ortega nunca fez parte dessa geração, mas sempre frisou a influência dela em sua obra – em especial a de Unamuno, que lhe deu intuições importantes sobre “a vida como um naufrágio constante”, intensificando aliás o seu “sentimento trágico” da existência. Mas uma fissura separava os antigos mestres do jovem filósofo: a Geração de 98 queria apossar-se da Espanha, ao passo que Ortega queria compreendê-la com todas as suas forças intelectuais. E para compreender esse “mistério da iniqüidade espanhola”, era importantíssimo entender também a Europa.

Difícil empreitada! A publicação do seu primeiro livro, Meditaciones del Quijote, em 1914, quando tinha apenas 31 anos (“a idade em que um homem começa a atuar no mundo”, segundo o autor), marca o início de um diagnóstico e de uma profilaxia duras e afiadas, que não hesitam em mostrar a ferida. A partir da figura de Dom Quixote, a criação de Cervantes que revela o impulso espanhol pelo “idealismo da clareza”, o nosso pensador tenta apresentar uma filosofia do amor que frutifique naquele “território de infiéis” (“in partibus infidelium”) em que se havia convertido a Espanha.

O tema do eros filosófico e a referência religiosa não são aleatórios: Ortega já se vê como o representante de uma cruzada intramundana que tentará seduzir o leitor pela amizade, pela forma carinhosa de voltar aos princípios da filosofia como algo útil e concreto para a vida. Em contrapartida, a queda dos seus conterrâneos pela abstração, a insistência deles na beataría de cultura, a sua transformação em “homens-massa”, a perda que sofreram do sentido do amor – tudo isso, para ele, resulta no assassinato espiritual de seu país. Explica-o em um trecho antológico das Meditaciones:

 “Suspeito eu que, mercê de causas não conhecidas, a morada íntima dos espanhóis foi tomada há tempos pelo ódio, que ali permanece entrincheirado a mover guerra ao mundo. Ora bem: o ódio é um afeto que conduz à aniquilação dos valores. Quando odiamos alguma coisa, erguemos entre a nossa intimidade e esse objeto uma impiedosa cortina de aço que impede a fusão, mesmo transitória, da coisa com nosso espírito. Só existe para nós aquele ponto em que nosso ódio se fixa; tudo o mais, ou nos é desconhecido, ou o vamos esquecendo, tornando-o estranho a nós mesmos. A cada instante o objeto faz-se menos, consome-se, perde valor. Assim o Universo se transformou, para o espanhol, numa coisa rígida, seca, sórdida e deserta. E nossas almas atravessam a vida com trejeitos amargos, suspicazes e fugitivas como pobres cães famintos. Entre as páginas que simbolizam toda uma era espanhola deverão sempre incluir-se aquelas tremendas em que Matéo Alemán esboça a alegoria do Descontentamento”.

Ortega citava Matéo, mas poderia igualmente bem ter citado Antonio Machado, talvez um dos poucos espanhóis que enfrentou com coragem o “idealismo da clareza”, e que escrevia estes versos proféticos no poema “Por las tierras de la España”:

Pequeño, ágil, sufrido, los ojos de hombre

[astuto,

hundidos, recelosos, movibles; y trazadas

cual arco de ballesta, en el semblante enjuto

de pómulos salientes, las cejas muy pobladas.

Abunda el hombre malo del campo y de la

[aldea,

capaz de insanos vicios y crímenes bestiales,

que bajo el pardo sayo esconde un alma fea,

esclava de los siete pecados capitales.

Los ojos siempre turbios de envidia o de

[tristeza,

guarda su presa y llora la que el vecino alcanza;

ni para su infortunio ni goza su riqueza;

le hieren y acongojan fortuna y malandanza.

El numen de estos campos es sanguinario y

[fiero:

al declinar la tarde, sobre el remoto alcor,

veréis agigantarse la forma de un arquero,

la forma de un inmenso centauro flechador.

Veréis llanuras bélicas y páramos de asceta

¿no fue por estos campos el bíblico jardín?:

son tierras para el águila, un trozo de planeta

por donde cruza errante la sombra de Caín.

O que o poeta e o filósofo descobrem na Espanha é o retorno de um problema que já havia sido descrito por Platão em sua República: a de que as mazelas de um país sempre começam com as mazelas da alma individual. Neste caso, uma “sombra de Caim” que impede qualquer exercício unificador, seja da razão seja do espírito; e sua conseqüência direta: a institucionalização da estupidez, camuflada pelo gosto beletrista do hombre satisfecho, que mata o risco da vida e não percebe, de forma deliberada, que a sua existência não passa de um naufrágio. E nessa mesma medida prepara-se, de forma involuntária, para o fratricídio.

É aqui que Ortega esboça sua profilaxia – na qual se aprofundaria por cinqüenta e um anos de intensa atividade filosófica. A raiz da cura está na procura pela conexão, pela unidade que somente o eros philosophicus pode iniciar:

 “O amor […] nos une às coisas, ainda que de modo passageiro. Pergunte-se o leitor que novo caráter sobrevém a uma coisa quando sobre ela se derrama a qualidade de ‘amada’. Que sentimos quando amamos a mulher, quando amamos a ciência, quando amamos a pátria? Antes de qualquer outra coisa, encontraremos isto: o que chamamos ‘amar’ apresenta-se diante de nós como algo imprescindível. O amado torna-se imediatamente em algo que nos parece imprescindível. Imprescindível! Quer dizer que não podemos viver sem ele, que não podemos admitir uma vida na qual nós existíssemos e o amado não, que o consideramos parte de nós mesmos.

“Por conseguinte, há no amor uma ampliação da individualidade que absorve as outras coisas no seu íntimo, que as funde conosco. Tal liame e compenetração nos levam a internar-nos profundamente nas propriedades do amado. Vemo-lo inteiro, e ele se nos revela em todo o seu valor. E então percebemos que o amado é, por sua vez, parte de outra coisa, que dela necessita e a ela está ligado. Imprescindível ao amado, essa coisa também se faz imprescindível para nós. Deste modo o amor vai ligando coisa a coisa e tudo conosco, em firme estrutura essencial. O amor é um divino arquiteto que baixou ao mundo ‘a fim de que tudo no universo viva em conexão’.

“A inconexão é o aniquilamento. O ódio fabrica inconexão, isola e desliga, atomiza o orbe e pulveriza a individualidade.

“Nós, espanhóis, oferecemos à vida um coração blindado pelo rancor, e as coisas, ao ricochetear nele, são repelidas cruelmente. Existe ao nosso redor, há séculos, um incessante e progressivo derribamento dos valores”.

Ortega dedicar-se-á, em conseqüência, à tentativa de gerar o impulso do amor no coração dos espanhóis, especialmente na geração mais jovem. É um trabalho que lembra muito a missão de Sócrates – portanto, o motor fundamental de qualquer ação filosófica. Mas quais serão os passos seguintes? Ou, melhor: como transmitir esse impulso, há muito tempo perdido, sem esquecer que a vida continua e na verdade está em constante risco de extinguir-se?

Poderíamos dizer que a palavra-chave para compreender essa atitude seria circunstância. Contudo, se seguirmos por esta trilha, seremos obrigados a citar a famosa frase pela qual Ortega é sempre lembrado – e geralmente mal-lembrado e, portanto, mal-compreendido. Mas não é nossa intenção, nem ir por esse caminho, nem muito menos relembrar a frase tão batida. A circunstância é um termo central para entender o propósito orteguiano, mas não é o único, como ocorre com qualquer pensamento que não se deixa petrificar.

Para irmos além, talvez possamos lembrar uma exclamação sua – na verdade, um quase-imperativo que se parece muito com uma ordem militar – que é um aviso de profunda raiz moral: “Alerta!” Em um livro da maturidade chamado La caza y los toros, Ortega parte de um simples fato social do passado – o hábito da caçada como jogo que revela a capacidade humana de controlar ou dominar a natureza violenta – para levantar vôos vertiginosos, e afirmar que a própria existência humana é uma contínua caçada em que devemos estar constantemente alertas, em atenção imediata, para caçarmos a essência das coisas reais e não nos deixarmos capturar por ilusões do passado, nem muito menos do futuro – para nos atermos ao que ocorre no presente.

Eis aí o nó da circunstância para o filósofo espanhol: o seu país esqueceu-se da situação concreta, e é dever da Filosofia lembrar-lhe que não existe futuro, nem muito menos passado, se ninguém se preocupar com o que acontece agora. Não é, em hipótese nenhuma, o elogio de um carpe diem pasteurizado, mas o retorno a uma virtude que a modernidade deixou de lado e que a Espanha abandonaria na Guerra Civil de 1936 – a prudência.

Nesse sentido, quando Julián Marías, talvez o maior sucessor de Ortega, afirma que os escritos de seu mestre são, antes de tudo, escritos circunstanciais, escritos que precisam de uma determinada situação para articular uma filosofia sempre prestes a se desintegrar, temos de notar que a preocupação com a circunstância é um dos imperativos da prudência. Na verdade, é o imperativo: sem a noção real das coisas que o rodeiam, o homem jamais poderá agir com moderação, com a solércia necessária, amarrando em sua consciência tanto os princípios morais que o guiam como a superação dos obstáculos encontrados em sua trajetória.

Talvez seja aqui que se encontram tanto a grandeza como a limitação de Ortega. Sua grandeza está, sem dúvida, em fazer uma filosofia no “calor da hora”, fundamentada nos problemas de uma vida concreta, sem abstrações ou conceitos desnecessários, percebendo-a como um drama que nos atinge a todos (ele a chamaria depois de razão histórica). Entretanto, sua maior limitação está em que Ortega não expõe o organismo completo de sua filosofia em nenhum escrito; só a conhecemos através de fragmentos, artigos, palestras, livros póstumos ou incompletos – mas nunca em um tratado sistemático, certinho, sem nenhuma lacuna de raciocínio.

Evidentemente, não se trata de um problema insuperável; caso não estejamos lembrados, o mesmo acontece com Kierkegaard e tantos outros grandes pensadores. Então, por que isso dificultaria o nosso entendimento de Ortega? A resposta é simples: porque perdemos uma das coisas que o espanhol sempre nos recordava – perdemos a capacidade de viver a vida como uma viagem atribulada em que somente nos podemos fiar da incerteza do concreto. Sem este norte – ou, melhor, sem a aceitação desta ausência de um norte intramundano – jamais poderemos compreender Ortega (ou qualquer filósofo que valha a pena). Com ele, a verdade é que seremos capazes de entender em qualquer dos seus fragmentos, não a filosofia orteguiana em uma forma sistemática, mas o núcleo do seu pensamento.

Para sermos justos, ele nos deixou algo semelhante a um tratado orgânico, porém inacabado – La ideia de principio en Leibniz y la evolución de la teoría deductiva, publicado postumamente em 1957. É um dos livros mais vertiginosos já escritos, concebido enquanto Ortega era obrigado a viver num auto-exílio, seja na própria Espanha seja em Portugal, vendo o seu mundo ruir e aceitando a impotência de seu trabalho com uma dignidade quase estóica. Foi também nesse auto-exílio que aprofundou as raízes do problema já vislumbrado em 1914: Onde teve início esse ódio que aniquila não só o pensamento, mas também a alma européia? Como se deu essa aniquilação? Quem foram seus autores?

É deste período a publicação das suas obras mais importantes: En torno a Galileo, Una interpretación de la Historia Universal, La caza y los toros, El hombre y la gente. Nelas, Ortega não deixa espaço para nenhum pensamento simplificador, nenhuma ideologia que ofereça explicações simples e abrangentes para o mundo; pelo contrário, fiel ao seu modo de ser, aprofunda-se nos problemas, ataca-os sem misericórdia e tenta encontrar-lhes alguma saída. Infelizmente, sua tentativa não foi de grande utilidade – pelo menos a curto ou médio prazo. A Espanha era uma nação em que as ideologias políticas tinham substituído os hormônios.

Ao mesmo tempo, Ortega sofria fisicamente com o ostracismo e com as doenças que o acometeram nesses dez últimos anos de vida. Para os comunistas, era um problema porque nunca se opôs explicitamente a Franco – até se afirma que, em cartas pessoais, aceitava o caudillo como um “mal menor”. E, vejam só, para os nacionalistas sempre foi um simpatizante dos anarquistas e dos liberais de esquerda, uma verdadeira ameaça que temiam de tal forma que, nas vésperas da sua morte, lançou-se a seguinte ordem para a imprensa espanhola, redigida pelo Ministro da Informação de Franco, Arías Salgado: “Com a possível contingência do falecimento de don José Ortega y Gasset, esse diário dará a notícia com um título máximo de duas colunas e a inclusão, se quiser, de um único artigo encomiástico, sem se esquecer dos seus erros políticos e religiosos e, em qualquer caso, eliminará sempre a denominação de mestre“.

Assim, a morte de Ortega, em 1955, passou praticamente em silêncio – mas a lista
dos discípulos comprova que um mestre o é, não por ordens estatais, mas sim pelo valor e continuidade de seu trabalho. É só observar os nomes que continuaram seu legado: Julián Marías, José Ferrater Mora, Manuel García Morente, José Gaos, Xavier Zubiri e tantos outros. Além disso, não se pode negar que ninguém no século XX se esforçou tanto quanto Ortega para difundir entre as pessoas um vínculo de amizade com a Filosofia, não através de termos ou conceitos que facilitassem a nossa compreensão das coisas, mas apenas graças ao seu estilo límpido, aguçado, veloz, capaz de reviravoltas que somente o pensamento sadio pode dar quando vê que o problema está ali, pronto para ser agarrado e transformado em uma questão que nos ajudará a encarar o drama de nossas vidas – um estilo que hoje é reconhecido como simplesmente a maior prosa espanhola já escrita desde Cervantes.

Contudo, “sentir os quatro ventos do mundo em seu pensamento”, como observa Antonio Machado na epígrafe deste texto, não permitiu a Ortega escapar de sua encruzilhada. É ela que talvez nos possibilite uma compreensão melhor do que acontecia em sua alma e, mais, um correto entendimento dos problemas que atingiram a sua Espanha e que nos atingem atualmente a nós. E é algo que não se pode observar no seu pensamento, mas em uma breve e singela ação.

A encruzilhada de Ortega y Gasset é, na realidade, muito simples: trata-se do problema de Deus. Apesar da amplidão temática de sua filosofia – tem-se a impressão de que falou de quase tudo, das artes à sociologia, sem desprezar os relatos de viagem -, há nela pouco espaço para o questionamento a respeito da abertura da alma à transcendência do real. Não há dúvida de que existe em sua obra uma compreensão sadia do ensimismamiento, da solidão radical em que o homem se recolhe em seu íntimo mais profundo – onde pode, se o quiser, encontrar a Deus. Ortega afirma que essa atitude é o início de toda verdadeira ação que atinge o mundo, da ação que procura respeitar a realidade pelo que é e não pelo que gostaríamos que fosse.

Mas será isso suficiente? Na filosofia orteguiana, a preocupação com o que seria ou poderia ser Deus parece antes uma presença reconhecida muito a contragosto, algo indesejado mas necessário para preencher determinado espaço. Qual seria o seu problema com Deus? Uma simples questão de anticlericalismo liberal clássico, como relatam diversos depoimentos, segundo os quais Ortega era dado a esbravejar contra a Igreja Católica na época da ditadura de Franco? Talvez uma tentativa patética de afirmar a sua independência e autonomia? Ou uma maneira de ressaltar que era um “realista espiritual”, alguém que não negava a existência do divino no mundo, mas também sabia que a falta de prudência em identificá-lo podia chegar às raias da loucura (como efetivamente aconteceu com a Espanha depois da Guerra Civil)?

O fato é que, se lermos com atenção suas páginas, encontraremos belíssimas meditações a respeito de experiências fundamentais para quem quer que se preocupe com o assunto “Deus”. Que dizer, por exemplo, da arguta análise da crise cristã renascentista que traça em En torno a Galileo? Ou da afeição com que descreve os êxtases de Santa Teresa de Ávila como maneira fundamental de conhecer o mundo em seus Estudios sobre el amor? Não se percebem ali as habituais notas anticlericais, nem muito menos uma pessoa fechada às intervenções da transcendência, e sim um pensador que sabe muito bem que seu país caiu em desgraça justamente por não ter compreendido melhor a importância desses fatos e experiências. Mas por que não foi além? Por que insistiu na ausência?

Talvez porque tenha cabido a Ortega y Gasset, na sua encruzilhada particular, o papel de revelar com a clareza do gênio a encruzilhada em que se encontrava o século XX. No âmbito do intramundano, a luz não existe sem treva. Os ideólogos tentaram criar uma luz racional que excluísse a treva, mas só conseguiram aprofundá-la, quando o primeiro passo é aceitá-la como parte da limitação do ser. No entanto, só se consegue perceber isso quando se ultrapassa o estágio em que Deus é reduzido a um problema ou conceito a ser discutido, e se consegue atingir um relacionamento pessoal que nenhuma filosofia, nenhum país, nenhuma razão histórica é capaz de dar. Muitos homens permanecem paralisados nessa encruzilhada situada apenas no seu pensamento, repleto de teias e tramas que dão a impressão de serem paradoxos jamais resolvidos e até insolúveis; no entanto, tudo o que se requer é uma simples e pequena ação.

Ortega observou demais o mundo e esqueceu-se do que movia o mundo. Mas, mesmo em seus últimos momentos de vida, foi de uma coerência exemplar com os seus princípios: agarrou o seu problema e perseguiu-o até o fim. Segundo sua esposa, Rosa Spottorno, em depoimento aos filhos, o filósofo espanhol teria agarrado e beijado um crucifixo oferecido por um padre que ninguém sabe como chegou ao seu leito de moribundo. A família prefere acreditar que o pai não estava lúcido nesse instante. Quem sabe? Em uma vida que se dedicou tanto a propagar o amor numa terra dominada pela sombra de Caim, não é de duvidar que a loucura final tenha sido o gesto de uma sabedoria conquistada a muito custo.

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista e doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, com a tese “Violência e Epifania: a liberdade interior na filosofia política de John Milton”. É também mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP e foi um dos criadores e editores da revista cultural “Dicta&Contradicta”, do Instituto de Formação e Educação (IFE). Atualmente colabora com o “Jornal Rascunho”, de Curitiba, e é autor dos livros “Crise e Utopia: O dilema de Thomas More” (Vide Editorial, 2012) e “A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira” (Editora Record, no prelo). [informações a partir de seu CV Lattes]

Ensaio publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição 1, Junho/2008. Ilustração de Paulo von Poser para este artigo na edição impressa da revista.

O mundo após a crise das utopias (por Massimo Borghesi)

História | 20/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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Transcrição da palestra Depois de 68 e 89: o mundo após a crise das utopias, pronunciada pelo prof. Massimo Borghesi no dia 02 de outubro de 2008, no IICS (Instituto Internacional de Ciências Sociais) de São Paulo. Após o texto da conferência, reproduzimos algumas respostas especialmente significativas a perguntas formuladas durante o debate que se seguiu.

Buona sera a tutti voi. Antes de entrar no tema sobre o qual me foi pedido que falasse, gostaria de esclarecer algumas premissas.

A primeira destas duas datas, 1968, situa-se dentro do quadro de um mundo bipolar, dividido, e que assim continuou até 1989. É nesse contexto de bipolaridade que se compreende o clima daqueles anos, e como o ano de 1968 adquiriu uma forte orientação anti-ocidental e anti-americana, que levou muitos a aderir a uma perspectiva da história de tipo marxista. Naturalmente, o quadro mundial é diferenciado. Como sabem, no Brasil houve, de 1964 a 1985, uma ditadura militar e, portanto, a situação era diferente daquela em que se encontravam os Estados Unidos e a Europa nessa época.

A segunda data, 1989, precedida pelo declínio das ditaduras militares na América Latina, representou o fim da divisão entre leste e oeste. Se as ditaduras desapareceram naquele período, foi porque o mundo estava superando a divisão; não se tratava apenas de um fenômeno latino-americano, mas de um fenômeno mundial.

 

Os ventos mudam

Queria começar por ressaltar que as premissas de 1968 não nascem do espírito do marxismo – este é um aspecto para o qual quase nunca se chama a atenção.

O 1968 europeu é, sem dúvida, reflexo do americano. Todos sabemos que foi a contestação na Universidade de Berkeley que deu início aos movimentos estudantis nos Estados Unidos e depois na Europa. Essa contestação, no entanto, nascia de uns motivos muito concretos, sobretudo da oposição à guerra do Vietnã. Os jovens não queriam mais ir combater ali, e certamente tinham boas razões para fazê-lo, visto que os Estados Unidos se tinham embrenhado, graças à administração Johnson, em uma guerra perdida de antemão e difícil de compreender para os americanos de 65, 66, 67…

Na época de Kennedy, somente especialistas militares tinham ido ajudar o exército vietnamita; com Johnson, porém, dezenas de milhares de jovens americanos foram enviados a combater em uma guerra que não entendiam. Os historiadores sabem que a escalada militar empreendida por Johnson só foi decidida em 1965, após um incidente falso inteligentemente orquestrado no golfo de Tonquim e que serviu para justificar uma intervenção maciça.

Em oposição à batalha do Vietnã, estavam os ideais da New Frontier – a “Nova Fronteira” -, ou seja, os da era Kennedy, que preconizavam o apaziguamento leste-oeste depois da grave crise dos mísseis de Cuba, momento em que o mundo quase “tocou” a Terceira Guerra Mundial. Essa crise cubana foi a maior que o mundo enfrentou desde 1945, e por muito pouco não se chegou a um conflito atômico; apenas um milagre o impediu.

Recordemos que a encíclica Pacem in terris, de João XXIII, foi escrita nesse momento, depois da grave crise de Cuba; não nasceu do nada, mas de o mundo haver vislumbrado a Terceira Guerra Mundial – outro ponto de que quase ninguém se lembra. Toda a vez que se fala da Pacem in terris, fala-se dela como se fosse um documento de ideais altíssimos, mas utópicos. No entanto, o Papa quis aquele documento porque o mundo quase tinha chegado à Terceira Guerra.

Os ideais da era Kennedy eram de oposição não-violenta, como o eram inicialmente as contestações estudantis, que retomavam o ideário de Martin Luther King, nome de enorme peso e grande fascínio nos Estados Unidos. Esses ideais inspiravam-se, ainda de forma muito ingênua, no movimento hippie americano, no famoso dístico peace and love, ou seja, na concepção de um retorno edênico à natureza, alimentada por certa literatura de tipo naturalístico.

Também na Europa o clima que precedeu 1968 era positivo, sem nenhuma relação com a violência subseqüente: o mundo passava por um momento de apaziguamento leste-oeste; havia acontecido o Concílio Vaticano II, com suas grandes esperanças; existia um desejo de solidariedade entre os povos. Recordo-me disso porque era jovem como vocês são agora, e lembro-me da ânsia que havia entre a juventude de que se resolvesse o problema da fome no mundo e de que a Europa e o Ocidente ricos se encarregassem dos problemas dos países pobres – o que, do ponto de vista europeu, significava principalmente o continente africano.

Esta atmosfera positiva mudou logo depois dos episódios de violência de 1968 e 69. Muitas vezes nos perguntamos: Como foi que se chegou àqueles anos? Como foi que se chegou àquele clima contestatário?

Chegamos a isso porque os próprios poderes intervieram para criar uma situação de violência, isto é, houve uma série de episódios nos quais os interesses dos poderosos causaram traumas que a seguir se manifestaram em reações violentas. Isto é importante, ao menos na minha modesta opinião, porque foi exatamente nesta passagem que se consumiu a alma religiosa cristã dos anos 60. Ou seja, o período que precedeu o ano de 68 era de forte idealismo, e quem não o viveu dificilmente pode compreender o que foi; mas aqueles ideais, a certa altura, foram crestados, destruídos pela radicalização de um conflito que se tornou violento.

A década de 60 viveu certamente, e com grande intensidade, uma ideologia de matriz fortemente cristã, determinada também, no mundo inteiro, pelo espírito do Vaticano II. E foi nesse momento que ocorreu a transição para a hegemonia marxista, passando-se de um tempo carregado dos valores da solidariedade cristã para um clima violento, duro, no qual o modelo marxista toma a primazia e passa a englobar em si o cristão.

Quais foram os eventos de violência que radicalizaram a situação, modificando o clima? Nos Estados Unidos, foi com certeza a morte de Martin Luther King, assassinado em Memphis a 4 de abril de 1968. A morte de King significava que os negros americanos não podiam mais esperar conseguir a igualdade pela via pacífica, baseada no modelo de Gandhi; e prevaleceu a idéia de que somente poderiam obter seus direitos pelas armas, pela violência. Pouco depois, a 6 de junho de 1968, Robert Kennedy foi assassinado, e também isto teve um significado muitíssimo simbólico: depois de John, também o seu irmão Bob tinha sido morto, o que era como se o ideal da “Nova Fronteira” se tivesse afundado definitivamente.

Na Itália – menciono-o porque evidentemente é a situação que conheço melhor -, aquilo que se veio a chamar de estratégia da tensão iniciou-se em 1969 com a bomba colocada no Banco Nacional da Agricultura, que fez mais de oitenta mortos. Os culpados jamais foram encontrados, mas as investigações apontam certamente para movimentos da extrema direita italiana. A estratégia da tensão (que se concluiu nos anos 80 com mais de 500 vítimas, entre mortos e feridos) principiou com essa bomba e originou a dialética rosso-nero, entre “vermelhos” e “negros” [1], da qual não se sairá mais – ou seja, a dialética entre a extrema esquerda e a extrema direita, unidas em torno da santificação da violência como método político.

 

À esquerda da esquerda

Como reação a tudo isso, cria-se uma radicalização da esquerda, que passa a estar toda sob a hegemonia da posição marxista. Trata-se de um comunismo revolucionário que já não se reconhece mais nos velhos partidos comunistas do tipo do italiano ou francês, mas busca como modelo a China, o Vietnã ou Lênin – o comunismo soviético do início, puro e duro, que não aceitava nenhum compromisso com o mundo burguês. Isso ao menos na Itália e na Alemanha, não na França, o que é um pouco paradoxal porque o ano de 1968 na Europa se abre com o famoso maio parisiense.

Na França, entretanto, o ano de 68 tem uma coloração diferente, porque ali penetra muito rapidamente a lição do Arquipélago Gulag, de Aleksander Solzhenitsyn, o grande autor russo que, depois de passar pela experiência do campo de concentração, escreveu essa que foi a mais crua denúncia do totalitarismo soviético. Enquanto Solzhenitsyn não foi levado muito a sério na Itália, os intelectuais parisienses foram muito influenciados por ele.

E eis que agora a contestação francesa assume uma fisionomia diferente em relação à alemã e à italiana: na França, o ano de 1968 não gerou a hegemonia marxista nem o terrorismo. Ao contrário, o 68 parisiense é fortemente crítico do modelo soviético, e valoriza um outro 68, aquele que ocorreu nas ruas de Praga (vocês sabem que na Checoslováquia houve a famosa “primavera de Praga”, esmagada pelos tanques soviéticos). Pois bem, a França era muito sensível a esse outro 68 que protestava, sobretudo, pela liberdade, e não apenas contra o mundo burguês.

Nos Estados Unidos, a esquerda não é marxista, pois jamais houve um partido comunista digno deste nome. E esta esquerda “oposicionista” exprime-se por meio de uma espécie de ideologia dos pluralismos “mutuamente incompatíveis”, por assim dizer. A refutação do modelo americano se expressa em uma série de “tribos” que reivindicam de maneira orgulhosa a própria identidade. Assim, os negros americanos assumem a mensagem de Malcolm X, a idéia de que os afro-americanos não devem se identificar com a sociedade dos brancos, mas sim construir uma identidade totalmente fechada ao relacionamento com eles. Assim também a idéia do feminismo como identidade que não é possível harmonizar com o universo masculino, e igualmente os movimentos homossexuais, etc.

Na América Latina, o vento de 1968 traz a concepção da “teologia da revolução”, paradoxalmente favorecida também pelas ditaduras que, neste intervalo, tomaram a geografia da América do Sul. A seguir, este vento traria a “ideologia indígena”, também ela uma realidade que reivindica o retorno à “antiga identidade” contra o Ocidente, ao menos o hispânico e cristão, e por isso acalenta a volta às antigas origens indígenas, pré-cristãs, anteriores à colonização. Essa perspectiva é o resultado final daqueles anos…

Voltando à Europa, a corrente que se põe à esquerda do partido comunista italiano, aquela que deu vida ao fenômeno terrorista, manifesta-se na Itália, na Alemanha, na Espanha com a ETA e na Irlanda com o IRA. Na Itália, atinge o ponto máximo de força e violência com a morte do grande estadista Aldo Moro, o primeiro-ministro democrata-cristão assassinado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas [2]. Este é auge do terrorismo na Itália, mas ao mesmo tempo é um ponto de inflexão, pois os terroristas alcançam um grau de alienação tão radical da sociedade civil italiana que assinam ao mesmo tempo a sua condenação moral e, conseqüentemente, a sua crise.

Quem encarna verdadeiramente o ideal dos jovens daqueles anos? Certamente é o mito de Ernesto Che Guevara, morto em 9 de outubro de 1967. Em 1968, 69 e 70, Guevara torna-se um mito para milhares e milhares de jovens europeus. A famosa foto de Alberto Corda que mostra o “guerrilheiro heróico” percorre o mundo inteiro. Guevara aparece realmente como um novo Cristo, mas um Cristo guerrilheiro, que não se limita a carregar a cruz, mas a usa como espada, e assim une o pathos da paixão ao do poder.

Esta atitude, ou melhor, este mito, este herói ateu repleto de um poder propriamente religioso, certamente traz consigo a idéia da “santificação da violência”, que serviria para desagregar os poderes maus do mundo e que, por isso mesmo, traz em si alguma coisa de sagrado. Para muitos jovens, o Che fez o papel de mediador da passagem do cristianismo para o marxismo. Se não tivesse havido esta imagem de um “santo laico”, tal passagem teria sido muito mais difícil, porque não é tanto a ideologia que atrai, mas sobretudo o exemplo: a imagem do Che morto era como a do Cristo morto. Tudo isso mexia mais com a imaginação do que todas as doutrinas possíveis.

A legitimação cristã passava agora através da revolução. Para poder ser cristão, era preciso ser de alguma forma revolucionário; caso contrário, a pessoa seria considerada reacionária ou conservadora, ou ao menos pertencente ao mundo burguês. Um cristão, para poder afirmar-se como tal, tinha de pagar o seu tributo à ideologia da revolução: ao menos, deveria ser inimigo das classes superiores, deveria de algum modo aceitar a violência como método para a libertação dos oprimidos.

É aqui que se encontra o fulcro da crise do Concílio Vaticano II, e também este é um aspecto sobre o qual se reflete muito raramente. O período de 1968-1970 não é o da realização do Vaticano II, mas o da sua traição. Do ponto de vista “tradicionalista”, costuma-se dizer que Vaticano II e o ano de 68 são a mesma coisa, o que não é verdade. Os anos de 68 a 70 são a traição do seu espírito, do espírito que desejava a unidade, o apaziguamento, a paz, o “método da paz” como solução para os conflitos entre os povos, que queria que se atenuassem as diferenças entre “norte e sul” – e em tudo isso não há nada da ideologia marxista que depois virá, com a “teologia da revolução”. O marxismo sempre pretende tomar o lugar do cristianismo, e por isso trai necessariamente o Vaticano II: não há conciliação possível.

 

O que ficou de 1968?

O mundo bipolar era um mundo impiedoso. Combatia-se pela hegemonia, e as “forças alternativas” não tinham espaço – ou se estava de um lado, ou se estava do outro. Era uma perspectiva impiedosa, mórbida nos países da Europa e sangrenta fora deles – como na África, no Oriente Médio e na América Latina. O clima somente melhoraria a partir de meados dos anos 80, com a presidência de Gorbachev na União Soviética.

Sabemos que o Muro de Berlim caiu em 1989. Em 1991, foi o fim da URSS, quando a bandeira vermelha foi recolhida dos muros do Kremlin, em Moscou. E era também o fim da ideologia comunista – a grande religião atéia, a religião para os ateus do século XX, a grande fé que moveu milhões de homens que não acreditavam mais em Deus.

Com isto, é chegado o momento de nos perguntarmos: O que ficou de 1968? O que esse ano construiu?

Ficou muito pouco em termos positivos, e muito em termos negativos. A associação entre utopia e violência consumiu tudo o que havia de positivo na utopia, a ânsia inegável de solidariedade e de justiça. E trouxe como resultado uma espécie de cinismo em massa, ou seja, aquilo que um grande pensador italiano, Augusto del Noce [3], chamou “o burguês no seu estado puro”.

O resultado do fracasso da revolução ou dos ideais revolucionários foi a “era do desencanto”, do cinismo generalizado. Os anos 80, e depois também os 90, são a era na qual os ideais se resumem a: “Divirta-se, goze a vida e enriqueça”. Quem for mais capaz e tiver mais meios na vida, passe à frente. Para os outros, não há piedade. São os anos do “novo poder”, daquilo que na Itália Pier Paolo Pasolini diagnosticava de maneira muito lúcida: “Está-se criando um novo poder, o mais dessacralizante que possa haver. Um poder para o qual não há mais nada de sagrado”. Dizia-o a respeito da vida humana, do aborto; e, dirigindo-se aos seus amigos progressistas, acrescentava: “Vocês não se dão conta de que estão dando um presente àquelas forças desapiedadas que não reconhecem mais nada de sagrado, às forças da mercantilização integral da vida? Pensam que são progressistas, mas não percebem que desta maneira estão sendo conduzidos por aqueles que querem que a vida se reduza a uma mera mercadoria!”

A falência da ideologia marxista, portanto, cria um xeque-mate que ela não pôde dar enquanto existia: a sua falência é a sua realização, a sua única realização possível. Ou seja, o marxismo não pode atuar na parte positiva, porque é uma utopia que jamais se pode realizar. Continua a atuar, porém, pela parte negativa, que é a crítica a todos os ideais.

Para o marxismo, todos os ideais são disfarce para interesses de classe; ou seja, todos os ideais são ideologias, não há ideais verdadeiros. Mesmo os ideais universais são ideologias, refletem apenas o ponto de vista dos vencedores, que querem impor a sua ideologia a todos. Assim, o marxismo educou os seus seguidores para a mentalidade de que não existe nenhum ideal válido, porque tudo está em função das leis da economia.

E quando o marxismo morre, o que fica? Permanece, como vimos, a parte negativa, que é aquela que chegou até os nossos dias e atingiu milhões de jovens nestes últimos anos. Se não há mais nada a que valha realmente a pena dedicar a vida, a única coisa que resta é enriquecer e progredir sem escrúpulos. Isso significa, no final das contas, que só permanece a idéia do “burguês em estado puro”. O revolucionário gera o “burguês em estado puro”, um burguês que não tem mais nenhum interesse ideal com exceção do de enriquecer sem nenhum freio ético e moral.

Depois do fim do poderio soviético, esta crítica investe contra o próprio marxismo e o comunismo. No fundo, o comunismo, nos anos em que existiu – também quando criticava a União Soviética -, vivia do seu poderio. No momento em que a União Soviética acaba, quando já não se considera comunista, o comunismo passa a não ter mais nenhuma “realização histórica” e o marxismo também se reduz a uma ideologia. A crítica que fez a todas as outras ideologias volta-se contra ele mesmo, que se torna uma ideologia entre tantas outras. Já não pode certificar a própria realidade porque, como o seu único critério de verdade é a práxis, a atuação histórica, no momento em que é desmentido pela história decai para uma posição totalmente questionável.

 

A vacilante ideologia da globalização

Dizíamos que os anos 80 são movidos pelo desencanto, pela ânsia de enriquecimento e pela euforia de mercado. Ou seja, movem-se por uma nova ideologia, a ideologia da globalização. Não foi somente o ano de 1968 que gerou utopias, igualmente o fez o ano de 1989. Por exemplo, aquela que o filósofo americano Francis Fukuyama chamou, em 1992, deThe End of History and the Last Man: ou seja, a idéia de que, com o fim do comunismo, a história acabou; o mundo já não seria bipolar, mas unipolar, uno, baseado todo ele no modelo americano, controlado por uma única economia global. Este foi o sonho, o mito de inícios dos anos 90.

É a idéia, enfim, de que não temos mais razão para conflitos, de que as guerras não têm mais sentido, de que a humanidade se encaminha para a uniformidade e, portanto, para a paz. Tudo isso era, em todo o caso, sugerido pelo que acontecia na política, porque aquele foi um período feliz, especialmente para a América Latina, uma vez que todas as ditaduras – ou quase todas – foram caindo uma após outra como castelos de cartas.

No plano religioso, a “teologia da revolução” torna-se “teologia do diálogo”. Esta é outra transição interessante, pois se passa do ideal da violência para o do diálogo, que é levado ao ponto de afirmar que, no fundo, todas as religiões são iguais. O mundo é uno e, portanto, todas as religiões veneram a mesma coisa… Graças a essa tendência, a religiosidade vai-se superficializando para uma espécie de New Age. Como sabem, a década de 90 é a do New Age: a religiosidade já não tem fronteiras, une os homens para além da diversidade das Igrejas e dos credos, etc. Tudo isso leva ao declínio da política e à idéia de que o fator que realmente importa é o econômico – a globalização -, juntamente com o religioso, sob a forma de uma religiosidade do tipo New Age.

Diante disso, o 11 de setembro de 2001 certamente representou a crise do período pós-1989. De modo repentino, passou-se de uma espécie de condição de conciliação ecumênica, de “diálogo”, ao maniqueísmo mais brutal e decidido. O mundo subitamente voltou a colorir-se de preto e branco: o Ocidente contra o Oriente, contra o Islã que agora aparece como totalmente negativo, como a fonte de todo o mal; mas ainda em nome de uma globalização que já não era pacífica, mas devia ser imposta à força, se necessário. A democracia já não se exportava em conjunto com o mercado, exportava-se da maneira dura, à base de canhões.

Mas era já uma globalização em crise. Todos conhecemos a obra de Samuel Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, de 1996, que representa uma resposta a Fukuyama, e sabemos da sua importância. Não é verdade que o mundo é uno, diz ele: está dividido em grandes civilizações inconciliáveis entre si, em grandes civilizações históricas que voltam à tona de tempos em tempos e tendem a estar em conflito umas com as outras.

Esse texto de Huntington era extremamente crítico com relação às teses de Fukuyama. Foi escrito em 1996, mas se tornaria atual em 2001. Examina os limites do poder americano frente ao renascimento da Ásia, ou melhor, da China e da Índia, das grandes civilizações históricas. O autor faz uma análise muito interessante: uma vez que a globalização favorece o poder econômico de grandes zonas da terra que foram excluídas da riqueza, aquelas zonas inevitavelmente redescobriram as suas identidades culturais e religiosas ancestrais e passaram a orgulhar-se das suas próprias tradições culturais e religiosas. Redescobriram assim a sua identidade, em antítese às outras identidades.

A globalização favoreceria, portanto, o pluralismo das potências civilizadas, resultado que não era previsto pela análise de Fukuyama. E não só não favoreceria a unidade, mas, pelo contrário, favoreceria o renascimento do prestígio das grandes potências históricas, que tinham sido niveladas no embate entre Leste e Oeste, entre comunismo e capitalismo. Na sua divisão, Huntington se refere particularmente ao Ocidente cristão, mas sem incluir a América Latina, pois para ele o “Ocidente cristão” é o majoritariamente protestante. A América Latina, diz ele, faz parte de um cristianismo, digamos, sui generis.

O último elo das ideologias de 89 a cair é a idéia do mercado global, que constitui o problema dos dias atuais. A atual crise do sistema financeiro americano, de 2008, põe-nos novamente cara a cara com o primado do político, aquele fator que tinha sido esquecido. Acabou-se a era do mercantilismo: agora, todos gritam que o mercado deve ser submetido a regras e todos almejam a “economia real” contra a tal “economia financeira” que reinou inconteste durante todos estes anos.

Ao mesmo tempo, percebemos que também a visão economicista da ideologia da globalização produziu um deserto da vida, uma destruição das relações pessoais. É nesta perspectiva que as reflexões dos pensadores comunitários americanos se tornam importantes – penso em MacIntyre ou em Charles Taylor como representantes desta corrente que indubitavelmente é importante. Na Europa, é dominante a figura de Jürgen Habermas, o expoente da “inteligência democrática” européia, que nos últimos anos – mais precisamente depois de 2001 – volta a perguntar-se sobre a importância da dimensão religiosa para recriar entre as pessoas uma solidariedade que a secularização maciça desses anos dissolveu de maneira impiedosa…

A partir disto, este crítico laico iluminista iniciou um diálogo de enorme interesse com o então cardeal Ratzinger, dando origem a um debate que continua até hoje. Na Itália, por exemplo, as teses de Habermas são muito discutidas, sobretudo nos ambientes laicos, porque apanharam o laicismo italiano de surpresa. Afinal, foi do mais importante expoente da inteligência progressista européia que veio uma provocação de altíssimo nível: o pensamento laico democrático atual não pode deixar de considerar a dimensão religiosa, a fim de ser capaz de reconstituir os vínculos de solidariedade que estão por trás da prática democrática hoje…

 

Conclusão

Em resumo: que aconteceu de 1968 a 1989 e até 2008? Passamos da utopia coletivista a um individualismo exasperado, e depois à consciência de que tanto um quanto o outro são ideologias. É ideologia o marxismo, é ideologia a idéia de que a globalização traz o paraíso a terra. Tudo não passa de ideologia. Na realidade prática, são necessários tanto o Estado como o mercado; são necessárias tanto a nação como a realidade supranacional, tanto a laicidade como a abertura para a dimensão religiosa, tanto a fé quanto a razão. Esta é a compreensão realista, que considera as diferenças e ao mesmo tempo trabalha para trazê-las a uma possível harmonia.

Mas há uma reductio ad unum das ideologias que não se sustenta. Um modelo é ideológico precisamente quando pretende simplificar a realidade, reduzindo-a à unidade. A realidade não é una: vive de tensões que têm de ser contidas para que não se tornem conflitivas, para que não explodam. Isso vale para as suas diversas formas, desde classes sociais e religiões até as nações e os estados. Por isso, pede sempre uma “política” em sentido amplo, política que é a arte, não apenas do possível, mas a arte de criar relações tranqüilas entre as diversas entidades contrapostas.

Isto vale também para a teologia, a qual, com excessiva freqüência, andou a reboque da sede de poder das ideologias que se alternaram ao longo dos últimos trinta anos. Nos anos 70, em muitas partes do mundo, fez-se uma “teologia da revolução” que, no fundo, ia atrás do poder – do “poder dos oprimidos”, sim, mas na realidade também de um outro poder muito bem determinado. Nos anos 80 e 90, passou a ser a “teologia New Age“, a do diálogo fácil, como se o mundo já estivesse às portas do Éden e tudo fosse simples. E de 2001 para cá tornou-se “teologia da identidade”, como na Europa, onde se fala agora com muita desenvoltura do “Ocidente cristão”, como se o cristianismo não fosse mundial, como se tantas partes do mundo fora do Ocidente não fossem católicas. Nesta ótica, não seriam cristãs a América Latina, as Filipinas, parte do Vietnã e da Coréia, grande parte da África… O “Ocidente cristão” significa a parte rica do mundo, isto é, somente o Canadá, os Estados Unidos e a Europa.

É evidente que aqui há um uso ideológico: quando a fé não interessa, é “privatizada”, e quando interessa é “propagandizada” em função do adversário. Isso não passa de uma instrumentalização, a que a teologia não se deveria prestar. O cristianismo corresponde às exigências do tempo sem, no entanto, conformar-se a ele. Deve levar em consideração a época histórica, as alternâncias de poder, as novas orientações, mas isso não significa conformar-se ao poder do momento. É necessário levar em conta os poderes, mas também a transcendência em relação a eles. Caso contrário, como o demonstra o percurso de 1968 a 2001, a fé condena-se a perseguir as ideologias do momento. Aquelas que a história, ao voltar as páginas, descartará como desatualizadas.

 

Perguntas

O materialismo, a crise da metafísica, da espiritualidade, da moralidade…, parecem ter crescido mesmo depois da queda do marxismo. Podemos dizer que o marxismo político, econômico, etc. caiu, mas o marxismo cultural permanece e até ganhou mais força?

Essa pergunta levanta um problema interessante: se o marxismo continua apesar dos pesares a ter certo peso no plano cultural, é evidente que traduz ou responde de alguma maneira a problemas reais. Para que determinada atitude cultural, política, religiosa…, responda adequadamente ao marxismo, é necessário que responda a esses problemas. Não basta simplesmente dizer que o marxismo está errado – o que é verdade -, mas depois não ter em conta que milhares de pessoas julgaram encontrar nele a solução para os seus problemas. Uma posição que queira ser antitética, oposta, ao marxismo, deve mesmo assim dar-se conta dos problemas históricos, sociais, reais a que o marxismo, ainda que de maneira errada, tentou dar solução. Caso contrário, diz-se: “Errou , e…” Não, as coisas não são tão simples assim. Afinal, o problema das tensões sociais, o problema de uma maior eqüidade, etc., são problemas reais.

Considerem o documento em que a Congregação para a Doutrina da Fé criticou de maneira impecável a Teologia da Libertação. Pois bem, nesse mesmo documento, se for lido com atenção, encontra-se toda uma série de pontos em que o mesmo organismo diz ser preciso enfrentar as exigências de justiça oriundas daqueles setores da população que, mais do que outros, puseram as suas esperanças na utopia marxista. Ou seja, a crítica à Teologia da Libertação deve ser acompanhada de um relançamento da Doutrina social da Igreja. Caso contrário, desenvolve-se apenas a parte negativa, quando o que falta é muitas vezes a parte positiva.

 

Hoje temos, de um lado, o extremismo islâmico, e do outro o “extremismo consumista”, tanto no Ocidente como nos países egressos do marxismo. No caso do Islã, o perigo parece ser o de uma cultura dirigida para o extremismo, ou pelo menos de uma cultura que o facilita; já o que caracteriza o consumismo é a falta de cultura, ou uma cultura apenas internética e superficial.

Eu diria que o consumismo e o extremismo islâmico, como diz, certamente merecem ser considerados as duas faces de uma mesma moeda. Porque é do deserto que nasce a reação fundamentalista: quanto mais uma sociedade é árida, tanto mais o fascínio do integralismo fundamentalista encontra eco ali.

No que diz respeito a muito dos islâmicos europeus, são com freqüência os filhos daqueles que vieram para a Europa a fim de trabalhar e inserir-se na sociedade ocidental que encontram na mensagem fundamentalista um sentido para a vida, em contraste com o deserto das nossas cidades em que já não lhes é oferecida nenhuma mensagem espiritual de tipo algum. Como a secularização esvaziou totalmente as almas, a mensagem fundamentalista representa para estes filhos de imigrantes um encontro com as suas raízes, um retorno à dimensão comunitária, uma redescoberta dessa relação com o divino que já não lhes é oferecida de outra maneira. Portanto, o fundamentalismo do tipo que amadurece na Europa é uma reação à secularização, àquilo a que chamamos consumismo, e que na realidade quer dizer, em última análise, a destruição da alma. Quando sobram apenas os corpos, as almas – por assim dizer – já não têm vida.

 

Um dos grandes problemas, que me parece que os europeus também têm, mas aqui me dá a impressão de ser mais dramático, é o do aburguesamento da juventude, no sentido de um fechamento cada vez mais individualista diante de uma realidade social em que a solidariedade é, no entanto, uma exigência gritante. Gostaria de que você falasse um pouco mais sobre o que significa esse “burguês em estado puro”, no conceito de Augusto del Noce.

Antes de mais nada, desejo prevenir um equívoco: não pretendo fazer polêmica contra a burguesia, porque isto não faria sentido. Todos aqui, até certo ponto, pertencemos à classe burguesa; não é esta a questão que interessa, não se trata de fazer aqui uma análise de tipo sociológico.

O que caracteriza o “burguês em estado puro” é que perdeu completamente os ideais da vida. Esta foi, de alguma maneira, a tragédia do fim do comunismo. O comunismo não foi uma tragédia apenas quando era poderoso; foi também uma tragédia quando desabou porque, ao desabar, arrastou consigo todos os ideais. Como todos estavam concentrados nessa ideologia, o fim dela trouxe consigo o fim de todos eles. Este é o grande paradoxo do fim do comunismo!

Isto se observa muito bem em toda a minha geração, a geração de 68. Esta geração lutou, esperou, fracassou, e qual é o resultado hoje? Quem tem agora cinqüenta, sessenta anos, é via de regra um homem totalmente desencantado, que não crê mais em nada. Os ideais em que esperou nos anos de sua juventude faliram e o resultado é a falência de todas as esperanças. E é esta geração, muitas vezes, que está ensinando nas cátedras das escolas. Já não consegue transmitir nenhuma esperança aos jovens porque carrega consigo apenas a desilusão da falência dos próprios ideais. Não pensa que, como os seus ideais faliram, precisa experimentar outros. Pensa que aqueles ideais eram os únicos, e como faliram, que já não há esperança alguma. Este é o seu drama – e por isso repito que o comunismo foi uma tragédia não somente enquanto estava no poder, mas que também criou uma tragédia ao cair, porque levou consigo toda a capacidade de esperar por uma mudança.

O resultado é o “burguês em estado puro”, ou seja, a pessoa que agora vive unicamente da dimensão imediata da vida. Entre milhões de jovens europeus de hoje, qual é a percepção imediata da vida? Limita-se a um medo instintivo da morte, a uma instintividade imediata, que substancialmente quer dizer Eros vivido de maneira naturalística, e à possibilidade de ter sucesso na vida a qualquer custo e sem muito escrúpulo. Essa instintividade imediata foi o que sobrou – e não há mais nada.

 

O que fazer, como professores universitários, diante dessa situação, além de observá-la e lastimá-la?

O que fazer…? Diria que, diante disto, a Universidade tem antes de mais nada uma responsabilidade educativa. Porque a maneira como se transmite uma matéria não é nunca algo neutro, é sempre uma maneira de você se encontrar com jovens que desejam aprender, conhecer. Você não se limita a ensinar-lhes uma disciplina, você lhes ensina um modo de enfrentar essa disciplina, um modo de relacionar-se com a vida através dessa disciplina. É tudo isto que está contido no ensino: não se trata apenas de uma série de informações sobre uma determinada matéria, mas da maneira como essa matéria será exercida, compreendida, relacionada com a própria existência e depois com a realidade da vida em geral. Nisto há uma dimensão ideal, ética, moral, e em última análise religiosa, que quem se limita a fazer de “informador” simplesmente já não compreende.

 

Recordo-me de uma frase que, como professor, sempre me impressionou muitíssimo. É de Olivier Clément, que, com palavras talvez um pouco injustas, mas tocantes, dizia: “Vocês, professores, continuam a ensinar do jeito que sempre ensinaram e os vossos alunos continuam a suicidar-se cada vez mais”. O que percebemos é que quase todos os professores concordam em princípio com essa afirmação, mas pouquíssimos são capazes de aplicá-la na prática; não querem limitar-se a ser meros “retransmissores de informação” ou, pior ainda, “transmissores de vazio”, mas acabam tornando-se exatamente isso.

Este processo de formação do “burguês em estado puro” – equivalente na prática ao que se costuma chamar “processo de secularização” – atingiu todas as principais figuras sociais. Hoje costumamos falar de “crise de valores”, e esta frase tornou-se tão comum que passou a ser banal. “A nossa sociedade não vai bem porque existe uma crise de valores”. Mas os valores, em si, não dizem nada! Os valores só são reais quando estão encarnados, e dentro de uma sociedade os valores são encarnados pelas figuras sociais.

Quais são as principais figuras sociais que já não representam valores? São as figuras eminentes. Pensem na figura do médico: até há trinta ou quarenta anos – na Europa pelo menos, não sei como será aqui -, ser médico não era apenas uma profissão, era também uma vocação. O médico podia ser chamado a qualquer hora, estava sempre a serviço do doente. Hoje, para nós, tornou-se um burocrata. É alguém que se limita a escrever receitas e a mandar-nos para o hospital. É médico apenas para ganhar dinheiro, não mais por uma vocação; esqueceu-se totalmente da dimensão pessoal do relacionamento com o paciente, que antes estava no próprio centro da prática médica.

O mesmo ocorre com outras figuras sociais: o político, antigamente, era alguém que vivia por uma paixão ideal, representava o povo, ao passo que hoje é um burocrata muitas vezes sem relacionamento algum com os eleitores; responde apenas ao poder do alto, não mais ao poder que vem de baixo. Mesmo os sacerdotes transformaram-se muitas vezes em burocratas: o sacerdote era aquele que cuidava das almas, ao passo que hoje muitas vezes é alguém que precisa fazer mil coisas de caráter burocrático. E a mesma coisa vale para os professores: antigamente, também esta era uma vocação; hoje, o professor é um “informador” técnico, alguém que se limita a transmitir informações. Assim, as principais figuras sociais transformaram-se em figuras burocráticas; secularização quer dizer também burocratização, ou seja, a exclusão do elemento pessoal.

Portanto, o médico, o professor, o sacerdote, as principais figuras sociais que encarnavam os ideais, não o fazem mais. Do ponto de vista dos jovens, que precisam de figuras com as quais possam identificar-se, este é o verdadeiro problema ético da crise de valores. Porque, para um jovem, um valor encarna-se em uma pessoa: em um professor, em um padre, em um médico…, em alguém que se dedique aos outros. A redução dessa dimensão vocacional é a causa da crise moral dos nossos dias. Porque a moral somente é possível em um processo de identificação com alguém que encarne um ideal. É graças ao fascínio de uma personalidade que atrai pela sua idealidade que seguimos um ideal. Por isso, dizia que Ernesto Che Guevara se transformou no falso Cristo de milhões de jovens, porque ali, no meio do deserto em que estavam, podiam vislumbrar um ideal encarnado. Encarnado de maneira errônea, mas encarnado.

A ausência dessas personalidades é que constitui o grande problema dos nossos dias. É o que vemos também no nível educacional. Um educador só é realmente educador se essa for a sua vocação.

Vocare, “chamar”, implica que se responde a alguém. Você, educador, responde ao rapaz, ao jovem que está ali na sua frente; não pode perder o interesse por ele, não pode simplesmente dar-lhe aquelas quatro informações e, depois, ele que “se vire”… De algum modo, a existência desse jovem universitário encontra-se com a sua vida, e aquilo que você lhe dá e lhe comunica é importante para ele. A maneira pela qual se comunica é importante. A maneira, porque a personalidade está no estilo, no modo pelo qual se comunica alguma coisa, mesmo que se trate uma fórmula abstrata de matemática. É o modo como você vai ao encontro do estudante, como se preocupa em saber se ele compreendeu – se compreendeu de verdade! -, como o quer ajudar. Só assim emerge a paixão da educação e, portanto, do relacionamento que se tem de pessoa para pessoa. O elemento pessoal é o que faz a diferença!

 

Parece-me evidente que, se Che Guevara acabou assumindo um papel, digamos, “Cristo-símile”, evidentemente foi porque o verdadeiro Cristo não foi mostrado na sua integralidade. Houve, portanto, uma deficiência dos cristãos nessa tarefa. Qual é a nossa responsabilidade, e quais foram as nossas falhas, como professores universitários e como cristãos, para que a situação chegasse ao ponto a que chegou? E o que pode a Universidade fazer como estrutura para resgatar valores para o século XXI, que não serão apenas do século XXI, mas de todos os séculos futuros?

Concordo inteiramente com o que você dizia, ou seja, que se o Che Guevara assumiu o lugar de Cristo para milhares de jovens, foi porque o verdadeiro Cristo, na sua figura e na sua realidade, já não estava claro. Aliás, em muitos casos estava totalmente ausente… Poder-se-ia escrever um livro sobre a passagem de Cristo a Guevara, como Guevara tomou o lugar de Cristo no coração de milhares de rapazes na América Latina, levando-os depois às armas, levando-os a um destino terrível.

Li recentemente um livro de um teólogo bastante famoso que continua a dizer que Che Guevara convidava a amar os homens. Ma Santo Dio! Insomma… Quanta ingenuidade há nisso! Guevara queria ser um militante marxista-leninista perfeitamente ortodoxo, era extremamente duro na observância das regras da militância marxista, a ponto de ser cruel. Era duro consigo e impiedoso com os que estavam sob o seu comando. Para dizer o que dizia esse teólogo, é preciso sofrer de uma miopia absoluta!

E esse é o drama por trás do que você dizia: que a Igreja não foi capaz de propor Cristo como o verdadeiro tipo de homem e de ideal na integralidade dos fatores da vida, não para “o lado de lá”, mas para “o lado de cá”. Para a vida real, para a vida social…, para a solução dos problemas reais.

Em relação à Universidade, você perguntava – como docente cristão – qual é a nossa responsabilidade. Ela consiste, acima de tudo, em comunicar um ideal, não uma utopia. Porque nestes anos muitos confundiram os ideais com as utopias. Os ideais, já vimos, encarnam-se na existência do dia-a-dia, realizam-se no dia-a-dia, sem jamais atingirem a perfeição na sua realização histórica. Isto, porém, nada subtrai à energia e à paixão com que se procura comunicá-los e traduzi-los no concreto da existência, até os mínimos detalhes. Até chegarem a traduzir-se em paixão que se empenha no social e no político, paixão por uma mudança efetiva, para que a sociedade possa construir condições para o aprimoramento real da vida dos homens, sobretudo daqueles que têm mais necessidades.

Isto não é um “pauperismo”, diga-se de passagem; esta é a solidariedade que surge da fé como uma dinâmica própria. O marxismo apropriou-se da categoria de “pobre”, mas até prova em contrário a atenção aos pobres sempre foi uma expressão da dinâmica cristã da existência. Não nos esqueçamos disso, porque em caso contrário daremos ao marxismo uma dimensão que na verdade nasce da fé cristã. É conceder demais ao marxismo dizer que o problema dos pobres diz respeito só aos marxistas. A paixão pela justiça e pela realidade nasce propriamente de uma fé cristã encarnada – mesmo lembrando-nos de que os pobres sempre existirão, como diz Cristo, o que significa que a utopia nunca se realizará. Porque o que está em jogo é a condivisão da realidade da vida, de pessoa para pessoa, não a realização de um reino perfeito.

Será tão difícil assim distinguir entre os ideais que se declinam na história, por um lado, e as utopias pelo outro? Essa foi a grande confusão cultural destes anos: dizer que os ideais cristãos, que eram ideais de solidariedade e de justiça, nascidos da graça da fé e não de um projeto social, não podem nunca traduzir-se em um reino perfeito. Ora, o cristianismo realmente não propõe nenhuma teologia política! A teologia política é o sonho de que a política seja a realização da teologia; mas nenhuma política, nenhuma!, pode jamais realizar o teológico! Simplesmente não é possível! Daí não se deduz, porém, nem o desinteresse perante o sofrimento alheio, nem o fim dos ideais cristãos.

 

O filósofo Jacques Maritain propunha o Humanismo Integral, o “humanismo cristão”, como uma resposta frente ao marxismo. O senhor acredita, depois de o mundo ter passado pelo marxismo, depois de passar pelo capitalismo, que esse humanismo cristão não seria algo capaz de tapar as lacunas que apontava?

Se o “Humanismo Integral” seria a resposta? Dito assim, parece-me antes que seria uma nova ideologia. Maritain, naqueles anos, fez uma proposta ousada – é importante essa obra de 1936 -, e dizia muitas coisas verdadeiras. Mas não é que o cristão realize o humanismo de forma integral. Penso que é antes a fé que tem de encarnar-se, e que ela traz em si uma paixão integral por tudo o que é humano, e não censura nenhum fator do humano, nem os belos, nem os feios. Que ela tudo acolhe e tudo redime, não por obra das mãos do cristão – um mísero pecador como todos -, mas por obra de um Outro que através dele se exprime e se realiza na história. Por isso, diria que o cristianismo, quando é a consciência de Cristo que opera através de você, se exprime como paixão pela integralidade do humano.

“Integralidade do humano” quer dizer das necessidades mais simples às mais complexas; quer dizer a cultura, a política, as condições de vida, a família etc. etc. Quer dizer a relação entre homem e mulher, a relação com o estudo. Tudo vem revestido dessa presença que muda o coração dos homens, e provoca neles a esperança de uma mudança que se transforma em experiência. Há esperança na mudança, porque é uma mudança real, que acontece. E a vida que muda transforma-se no testemunho de um novo modo de agir dentro da sociedade, de uma modalidade nova de ser dentro do mundo.

Não é uma utopia, é o testemunho de humanidade renovada o que muda o mundo. A pequena Teresa de Calcutá era uma nulidade do ponto de vista político, mas aquela pequena mulher mudou a vida de centenas de milhares de pessoas. Sinal de esperança para os deserdados da terra, figura moral que deu a muitos a esperança de que, neste mundo de deserto, se pode viver com uma humanidade diferente, impregnada de ideal até às vísceras da carne.

 

Massimo Borghesi é professor titular de Filosofia Moral na Universidade de Perugia, de Ética e Teologia Filosófica na Universidade São Boaventura e de Hermenêutica e Filosofia da Cultura na Universidade Urbaniana de Roma; tem estudado especialmente o tema das raízes culturais da crise do pensamento moderno e das suas implicações políticas. É autor de diversos livros, ainda inéditos no Brasil, entre os quais os mais recentes são Il soggetto assente. Educazione e scuola tra memoria e nichilismo, Castel Bolognese, 2005 (trad. espanhola, Madrid, 2005);Secolarizzazione e nichilismo. Cristianesimo e cultura contemporanea, Siena, 2005 (trad. espanhola, Madrid, 2007);L’era dello Spirito. Secolarizzazione ed escatologia moderna, Roma, 2008. É o editor de Caro collega ed amico. Lettere di Etienne Gilson ad Augusto del Noce, Siena, 2008, com a correspondência entre os dois autores.

 

Tradução de Juliana Di Lollo, licenciada em Letras pela FFLCH-USP.

 


 

[1] Na Itália, assim como a cor vermelha é associada à esquerda e ao socialismo, a negra é associada à direita e ao fascismo (N. do E.).

[2] O principal grupo terrorista da esquerda italiana nos anos 70 (N. do E.).

[3] Augusto del Noce (1910-1989) foi um dos mais importantes filósofos políticos italianos do século XX. É um dos grandes estudiosos da crise do marxismo e do secularismo, e das suas relações com as raízes do pensamento moderno (N. do E.).

Publicado originalmente em: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-2/o-mundo-apos-a-crise-das-utopias/

A pátria (por Gustavo Corção)

Política e Sociologia | 13/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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"A primeira missa no Brasil", Victor Meireles (1860)

“A primeira missa no Brasil”, Victor Meireles (1860)

 

A idéia de pátria e a correlata de patriotismo vêm sendo sabotadas, há séculos, pelas correntes históricas que nas últimas décadas formam o enorme estuário de equívocos que constituem o néctar, o uísque escocês dos “intelectuais” das chamadas esquerdas. A corrente anarco-socialista, bem como a marxista, sempre anunciaram em canto e prosa a Internacional, sem nunca suspeitarem que deste modo pretendiam combater uma exigência da alma humana tão profunda como a de querer constituir família.

À primeira vista, e numa análise sem vigor, parece que o amor da pátria exclui o resto da humanidade e assim se opõe ao mandamento de Deus. Na verdade, todo amor exclusivo será egoísta e defeituoso, já que o próprio do amor, ainda que inclua as mais densas dileções, é ser difusivo. E se não for difusivo não é amor; será quando muito egoísmo ou amor próprio.

Vejamos como se entende, dentro do imperativo de universalidade, o bom fundamento do amor da Pátria. É sabido que nenhum homem esgota em sua vida e com suas aptidões todas as virtualidades da alma humana. Para bem manifestar toda a grandeza e toda a beleza da alma humana, em todas as suas possibilidades, foi preciso que os homens se multiplicassem e se diversificassem. A perfeição do homem se vê na humanidade desdobrada. Mas não basta essa multiplicação. Para bem exibir diante do universo e das galerias angélicas toda a riqueza do animal-racional, ou da alma feita à imagem e semelhança de Deus, foi preciso ainda recorrer ao curso da história e ao contraponto das civilizações. E além dos desdobramentos e dos alongamentos individuais, foi preciso diferenciar os agrupamentos humanos em tipo, com línguas, costumes e cultura diversificados.

E este é o fundamento natural da pátria.

Faz parte da grande e inebriante aventura humana esse tipo de experiência que consiste em viver, num dado território e ao longo de uma história, uma vocação comum, uma cultura comum, que se exprime não apenas pela língua comum mas por todo o jogo de símbolos, de significações multiplicadas que resultam das alegrias comuns e dos sofrimentos comuns expressos na profundidade das almas por sinais comuns.

Quando eu penso com simplicidade no objeto do amor pátrio, eu penso numa grande comunidade que acabou de chegar na ponta de uma grande história e que acampou, se instalou numa imensa geografia. Tudo isso me envolve numa cercadura enorme, e tudo isso nos diz que somos portadores duma vocação, de uma parte, de uma tarefa na grande aventura humana. Toda essa cercadura, esse envoltório humano, cultural, sociológico, histórico, geográfico é um campo de forças que nos penetra, e que se cruza dentro de nós, e nos faz o que somos, o que sentimos e amamos. Curioso processo psicológico que sempre se repete para as coisas mais amplas e mais próximas. Nossos envoltórios, a família, o bairro, a pátria, são obras emanadas de nossas almas, e são elas que refluem e modelam nossas almas. Há por fora de nós um enorme Brasil exterior; há dentro de nós um Brasil interior de sentimentos e de virtudes que devem ser cultivadas e apuradas para que o Brasil exterior seja melhor e mais Brasil, e mais e melhor para formar as almas de seus filhos.

Precisamos cultivar essa piedade, esse respeito pelo grande quinhão que nos coube na prodigiosa aventura do gênero humano, não para nos excluirmos e nos fecharmos, mas para que nosso amor pátrio seja difusivo e se transforme em amor universal. Precisamos sentir e agir como se o mapa-múndi a cosmografia e a história fossem inconcebíveis sem a nossa presença.

Não há nenhum espasmo de eloquência convencional nem sombra de orgulho nesse reconhecimento de nosso valor: haverá até um ato de humildade acompanhado de um sentimento de responsabilidade. Aprendi essa lição do valor de cada ser dentro da Criação com um pobre cego, a quem uma senhora bondosa queria confortar e de quem lamentava a triste sorte. Agradecendo a bondade, o ceguinho confortou-a com estas palavras:

— Sem eu o mundo não estaria completo. Faltaria minha cegueira…

Tudo tem valor. Que valor tremendo, terrível, não terá essa comunidade pátria? Que aleijão enorme faria no mundo a falta desse jeitão coletivo, nosso, meu, seu, vosso, que chamamos Brasil! Esse modo de sermos, de falarmos, de sentirmos, essa esparsa alma comum: Brasil.

E para não desmerecermos em tal tarefa (a de completar o universo!) precisamos friccionar nossos sentimentos e nossas virtudes, e para isto precisamos de comemorações, de sinais e símbolos já que nesta vida terrena, como disse o apóstolo Paulo, vivemos entre sinais e enigmas. Daí a utilidade das bandeiras, dos hinos e das festividades cívicas que todos os povos normais sempre amaram. Mas a necessidade mais imperiosa e contínua que decorre da consciência patriótica é a do serviço prestado no dia a dia da vida profissional. Festejemos os dias da pátria, mas essas festividades seriam vazias e até falsas se não fossem sinais do desejo de servi-la.

Publicado originalmente em http://www.formacaopolitica.com.br/artigos/a-patria-gustavo-corcao/

Newman e a educação liberal (por Júlio César Lemos)

Educação | 11/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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Ilustração por Paulo von Poser

Ilustração por Paulo von Poser

 

John Henry Newman inicia seu prefácio a The Idea of a University deixando claro o objetivo último dos discursos coligidos nessa obra, e dirigidos aos católicos de Dublin: mostrar que a Universidade é um “lugar onde se ensina o conhecimento universal”.

O pano de fundo dessa obra é a tentativa de Newman de estabelecer um programa de ensino superior (higher education) para a Universidade Católica da Irlanda, da qual se tornou o primeiro reitor em 1851. A criação dessa Universidade atendia a uma diretiva de Roma; desde a conquista da Irlanda pelos ingleses em 1653, os católicos irlandeses praticamente não tinham tido acesso ao ensino superior, e as instituições universitárias existentes eram de confissão anglicana, como o tradicional Trinity College de Dublin. Após a criação dos colleges governamentais de Cork e Galway – apelidados de “godless colleges” por Sir Robert Inglis -, a santa sé resolveu estimular a criação de um ambiente universitário católico na ilha.

A diretriz foi tomada a peito por Paul Cullen, arcebispo de Armagh. Este, que conhecia Newman desde quatro anos antes, chamou-o para tomar parte no empreendimento como reitor. A oposição que encontrou levou-o a uma declaração muito significativa: “Alguns dos bispos não querem essa nomeação, mas não dispomos na Irlanda de uma pessoa adequada. Newman equivale por si só a um exército”. Após considerar o assunto, Newman aceitou a nomeação em 14 de novembro de 1851. Para preparar o terreno, começou a redigir uma série de discursos públicos destinados cativar os ambientes cultos de Dublin e torná-los receptivos à Universidade, bem como atrair pessoas que pudessem ocupar as cátedras da nova instituição.

O primeiro discurso foi pronunciado a 10 de maio de 1852. Teve grande êxito, apesar do seu caráter “excessivamente intelectual”, como na ocasião se comentou. Mais quatro foram pronunciados nas semanas seguintes, mas os quatro últimos nunca chegaram a ser lidos publicamente, pois pouco mais tarde Newman foi forçado a desistir do projeto todo. Os nove discursos foram publicados mais de dez anos depois, em 1863, em Discourses on University Education, e uma segunda vez outros cinco anos mais tarde, em Lectures and Essays on University Subjects. Por fim, em 1873, passaram a constituir, já revistos e melhorados, a primeira parte do The Idea of a University, juntamente com outros que constituem a segunda parte; essa edição de 1873 é a considerada definitiva. Para efeitos deste ensaio, utilizamos a edição da Doubleday, New York, 1959.

Como diz o título desta seção, esta obra ainda não mereceu uma edição completa no Brasil. Até onde foi possível verificar, houve apenas o lançamento de Newman e a idéia de uma Universidade, organizado por Frank M. Turner, pela EDUSC (tradução de Gilson César Cardoso de Sousa; São Carlos, 2001, 474 págs.; o original, de 1996, é da Yale University Press). O problema é que essa edição não traz todos os textos originais e em vez disso introduz cinco ensaios que pretendem interpretar e atualizar o pensamento de Newman – com um sucesso bastante desigual. Para quem tiver interesse no original, há no momento duas edições completas disponíveis no mercado: a da Loyola University Press, de 1987, e a da University of Notre Dame Press, de 1982. Também se pode encontrar o texto integral em www.newmanreader.org, um site muito bem cuidado e criterioso [1].

Antes de entrarmos no livro propriamente dito, duas palavras sobre o autor. Diz-se com freqüência que as suas obras são um monumento da prosa inglesa – com o que só podemos concordar -, mas que as suas idéias estariam desatualizadas – o que a sua popularidade lenta e firmemente crescente não avaliza. Sem dúvida, não é um autor “de moda”: como todos os pensadores realmente grandes, nunca experimenta um boom nem é possível torná-lo popularesco sem perder o essencial do seu pensamento. Por isso, não o veremos em propagandas, filmes ou jornais; mas é conhecido e respeitado mesmo por aqueles que nunca se atreveram a enfrentar o que escreveu, o que é certamente um dos maiores sinais de grandeza.

Newman tem a reputação de ser um pensador, escritor e pregador “difícil” e altamente “intelectual”. Isso se deve, provavelmente, ao elevado nível de concatenação do seu pensamento, que faz com que praticamente nunca se repita, apesar de ter pronunciado literalmente centenas de sermões e discursos. Além disso, são notáveis as suas frases redondas, completas, sintaticamente ricas, que traduzem uma notável capacidade de observação aliada a um pensamento atento aos matizes e ao mesmo tempo extremamente claro, direto e simples nos diagnósticos, e imbuído ainda por cima de uma suave e amável ironia. Sirva de exemplo um trecho do “Discurso I” do The Idea of a University, que nos servirá para introduzir o tema central desta resenha-ensaio. Newman descreve aqui o homem intelectualmente imaturo:

 “Seria bom que ninguém permanecesse um menino ao longo da vida inteira; no entanto, o que é mais comum do que ver homens crescidos falando de temas políticos, morais ou religiosos dessa maneira superficial e frívola que descrevemos com a palavra absurdo? ‘Simplesmente não sabem do que estão falando’: essa é a observação espontânea e silenciosa de qualquer pessoa de bom senso que os ouça. Daí que esses homens não encontrem dificuldade em contradizer-se em sentenças sucessivas, sem terem consciência de fazê-lo.  Daí que outros, cujas deficiências de treinamento intelectual são mais latentes, apresentem lamentáveis distorções […] que os privam da influência que as suas qualidades, de resto muito grandes, lhes proporcionariam. Daí que outros nunca consigam enxergar com retidão, nunca vejam o que está em jogo, e nunca encontrem dificuldades mesmo nos assuntos mais difíceis. Outros são irremediavelmente obstinados e preconceituosos e, depois que tiveram de abrir mão das suas opiniões, retornam a elas logo no momento seguinte sem ao menos tentarem explicar por quê. Outros ainda são tão destemperados e teimosos que não há calamidade maior para uma causa boa do que contá-los entre os seus defensores”.

Como se vê, o trecho nada tem de obscuro ou difícil; simplesmente está formulado com uma amplitude e perfeição de acabamento da qual quase se pode dizer que perdemos o segredo.

Outra qualidade intelectual de Newman, essencial ao tema que nos interessa, é a sua honestidade intelectual, a disposição de “tomar a verdade pelos chifres” custasse o que lhe custasse. Foi por isso que teve a força suficiente para converter-se do anglicanismo ao catolicismo, mesmo sabendo que isso lhe custaria a sua posição de capelão de Oxford, o prestígio de teólogo renovador da Igreja anglicana e até o seu sacerdócio. E não é descabido supor que boa parte da resistência que enfrentou por parte dos católicos irlandeses também seja devida ao fato de não olhar a conveniências, mas à sua consciência.

Mas voltemos mais especificamente à obra que nos interessa. Graças às qualidades que acabamos de mencionar, o resultado final não é uma coletânea de peças de ocasião, mas um longo ensaio dividido em várias teses e dotado de uma forte unidade de pensamento. “A unidade que conecta entre si as diversas partes do Idea of a University – comenta G.N. Schuester – é a força da mente de Newman”.

O plano da primeira parte, intitulada “Ensino universitário”, é o seguinte:

– Discurso I: introdutório, sobre a definição e a necessidade do ensino universitário;

– Discurso II: a teologia como ramo da ciência (knowledge, “conhecimento certo”);

– Discurso III: a influência da teologia nas outras ciências;

– Discurso IV: a influência das outras ciências na teologia;

– Discurso V: o conhecimento como fim em si mesmo;

– Discurso VI: o conhecimento do ponto de vista do aprendizado;

– Discurso VII: o conhecimento do ponto de vista da habilidade profissional;

– Discurso VIII: o conhecimento do ponto de vista do dever religioso;

– Discurso IX: os deveres da Igreja com relação ao conhecimento.

A segunda parte, intitulada “Temas universitários”, traz ensaios sobre a relação entre o cristianismo e as letras, a literatura, a literatura católica de língua inglesa, os estudos básicos (gramática, redação), a descrença e o ensino universitário, o papel da pregação na Universidade, o cristianismo e a física, o cristianismo e a pesquisa científica, o cristianismo e as ciências médicas, e a disciplina (treinamento) da inteligência. Newman desenvolve aqui, em diversas direções especializadas, as idéias que já apresentou de maneira ampla na parte inicial.

Ainda um comentário antes de enfrentarmos a questão central que unifica esse temário. Num momento em que muitos pensariam encontrar uma intrusão indevida da fé em matérias científicas ou filosóficas, convém esclarecer que, se há alguém consciente das exigências da razão e da liberdade acadêmica, é esse pensador. Um dos aspectos em que fica mais evidente a sua grandeza intelectual é precisamente que seja capaz de harmonizar esses dois âmbitos de verdade sem encontrar oposição entre eles e sem reduzir nenhum dos dois a um simulacro, e por isso mesmo tenha uma clara distinção dos respectivos âmbitos num momento em que, na mentalidade eclesiástica e popular, os dois estavam completamente imbricados. Ninguém consegue ser mais honesta e entusiasticamente racional do que ele, e por isso também um cético e um descrente encontram muitas idéias luminosas mesmo nas obras mais católicas que escreveu.

O problema central em The Idea of a University é o da “educação liberal”, cuja atualidade é evidente. Com efeito, já há tempos que os “espíritos acadêmicos” vêm alertando as elites para a crise da instituição universitária. Geralmente, identifica-se a causa dessa crise no gradual deslizamento da própria concepção da Universidade: da universitas scientiarum (“conjunto universal das ciências”) medieval passamos para a “academia científica” dos séculos XIX-XX e estamos agora chegando à de “provedora do mercado de trabalho”. Já Newman – que pôde sentir na sua carne esse problema, graças aos dois períodos que passou em Oxford -, recupera e atualiza a concepção original, formulando-a como “a place of teaching universal knowledge”, “um lugar onde se ensina um conhecimento universal“.

A questão da universalidade do conhecimento é estudada no discurso intitulado Knowledge Its Own End, em que o autor se volta para os estudantes. A Universidade, diz ele, é antes de mais nada um ambiente composto por professores, pesquisadores e alunos. Embora os professores e pesquisadores não estejam estudando as mesmas ciências particulares, todos se beneficiam desse convívio: homens zelosos dos seus ramos de conhecimento, a princípio rivais uns dos outros, são trazidos a um habitat comum, por assim dizer “familiar” (não à toa a Universidade era conhecida como alma mater, que não quer dizer “alma mãe”, mas “mãe carinhosa”), ambiente esse que os obrigará a ajustar as suas próprias pretensões às das outras ciências, respeitando-se, ajudando-se e consultando-se mutuamente. É essa a atmosfera em que o aluno viverá, levando-o a inserir-se em uma tradição intelectual e a formar um hábito de estudo que durará toda a vida, e “cujos atributos são a liberdade, a eqüidade, a calma, a moderação e a sabedoria” (Discurso V).

Mas, afinal de contas, o que é a educação liberal?

Newman não considera adequado utilizar a distinção meramente gramatical entre liberale e servile, porque há atividades predominantemente “servis” (manuais) tidas por “liberais”, como o hipismo, os jogos olímpicos, a guerra, a caça, etc.; e atividades intelectuais que definitivamente não podem receber a qualificação de “liberais”, como o comércio, a medicina – na Antigüidade praticada por escravos -, e em geral as profissões de natureza técnica. Como ponto de partida, prefere valer-se desta consideração de Aristóteles: “Das coisas que possuímos […], algumas são úteis, por trazerem ‘fruto’; outras são liberais, por tenderem à ‘satisfação’. […] Estas últimas nenhuma outra conseqüência trazem além da produzida pelo seu uso em si mesmo” (Ret. 1, 5).

O contexto da educação liberal é, assim, o da posse de um conhecimento que é fim em si mesmo; e assim uma Universidade que se proponha essa meta – a de ensinar o conhecimento como um fim -, e eduque os estudantes de acordo com esse critério ministrará uma “educação liberal”. O conhecimento que lhe serve de fundamento é filosófico; pois “o conhecimento é especialmente liberal, ou suficiente em si mesmo – para além de qualquer finalidade externa e ulterior -, quando e na medida em que é filosófico” (Discurso V).

É evidente que “conhecer é poder”, mas antes de mais nada conhecer é um bem. Esse bem pode ser instrumentalizado por uma ars servilis e produzir um fruto tangível; mas também pode voltar-se para a razão que o informa, tornando-se filosófico. No primeiro caso, temos um saber útil; no outro, um saber liberal, “gentlemanly”. Embora a vida não possa existir sem o útil, torna-se muito mais nobre quando preenchida pelo conhecimento filosófico, de acordo com o “princípio da dignidade real do conhecimento” (Discurso VI). Por essa razão, no âmbito universitário deve-se falar, não em instrução, mas em educação.

A educação liberal consiste no cultivo da inteligência, e o seu objeto é unicamente a excelência intelectual; por si só, ela não promete nem a virtude, nem o conforto, nem a consolação espiritual. Eis um parêntese digno de nota. Newman recorda dolorosos exemplos de filósofos, homens serenos e magnânimos que, diante de fortes contrariedades, caíram no desespero, contradizendo o que vinham pregando a vida inteira. A observação é importante para mostrar aos leitores e ouvintes que não se pode esperar da educação liberal aquilo que não é da sua competência; a questão da educação da afetividade e da aquisição das virtudes é um capítulo à parte, pois a perfeição e a beleza da inteligência não trazem consigo, necessariamente, perfeição moral. Todavia, a liberal education é excelente estímulo e preparação para essa outra esfera.

O autor comenta que não há, em inglês, um termo que traduza essa idéia de excelência ou perfeição intelectual, como o fazem as palavras health (“saúde”) e virtue (“virtude”) em outras esferas. Wisdom (“sabedoria”) tem o inconveniente de pressupor a boa conduta pessoal, e “conhecimento” (knowledge, science) o de não ser uma qualidade do intelecto, mas um conteúdo desse mesmo intelecto. Como comentava J. Dufy em um artigo no Rambler, segundo Newman a educação liberal não constitui uma mera “aquisição mental”, mas o sistema, a forma, a vida que informa filosoficamente essa aquisição.

Em todo caso, a idéia não é difícil de compreender: trata-se do cultivo do intelecto como um fim em si mesmo; e a sua proposta é usar para isso o termo filosofia, ou então conhecimento filosófico. Seja qual for o termo utilizado, porém, o fim da Universidade é proporcionar aos estudantes exatamente esse tipo de cultura intelectual, analogamente ao que faz um hospital com os seus pacientes quando lhes proporciona os meios para atingir a saúde.

O resultado final dessa educação – o beau ideal da Universidade – será, deste modo, uma visão de mundo calma, acurada, serena; uma compreensão de todas as coisas, cada uma no seu lugar, enxergada com as suas características próprias. É uma idéia próxima da denotada pelo termo theoría de Aristóteles, a atividade mais nobre da qual se poderia ocupar o homem, não raro traduzida por “contemplação”.

Essa excelência intelectual, continua Newman, obtém-se com esforço. Mas pode-se ler muitos livros, observar muitos exemplos e comparações, examinar muitos assuntos, realizar experiências e assistir a muitas palestras sem atingir esse objetivo. O que é necessário, pergunta-se ele no Discurso VII, para obter essa qualidade intelectual, filosófica? Afinal, esta é justamente a finalidade da educação liberal: a capacidade de emitir julgamentos claros, filosóficos, que compreendam a diferença entre o verdadeiro e o falso, entre o que tem e o que não tem valor.

Como já ficou claro, a educação liberal é uma questão de disciplina e hábito, uma disciplina e um hábito que levam à apreensão, não de fins secundários do conhecimento – como ocorre nas filosofias utilitaristas -, mas do seu objeto próprio. A definição formulada por Newman, nesse sentido, merece ser chamada genial:

“O processo de treinamento pelo qual o intelecto, ao invés de ser formado em um propósito particular ou acidental – ou sacrificado a ele -, como uma profissão, ofício, estudo ou ciência específicos, é disciplinado em função de si mesmo, dirigido para a apreensão do seu objeto próprio [as coisas como são], tendo por fim o seu mais alto grau de cultivo, isso é o que se chama educação liberal” (Discurso VII).

Isto não significa que essa educação não seja útil. Newman lembra que, se é verdade que nem tudo o que é útil é bom, tudo o que é bom é sempre útil, porque o bem é difusivo, superabundante; e se o intelecto é uma porção tão excelente do homem, então o seu cultivo não é apenas o cultivo do belo, do agradável, da perfeição e da nobreza, mas também daquilo que é mais útil para o seu possuidor e para tudo o que está ao seu redor. Útil não no sentido mecânico, mercantil, mas como tesouro, dom, poder. Se se reconhece que a educação liberal é um bem, não se pode deixar de admitir que é útil.

Newman argumenta que a educação liberal dada pela Universidade – eis a sua utilidade – tem como objetivo aumentar o nível intelectual médio da sociedade. Ela cultiva a mentalidade pública, purifica o gosto, fornece verdadeiros princípios para o entusiasmo popular, confere sobriedade às idéias do tempo, facilita o exercício do poder político e refina o intercâmbio pessoal na esfera privada. Finalmente, o homem que a possui tem uma visão clara e consciente das suas próprias opiniões e juízos, desenvolve-os de acordo com um critério verdadeiro, exprime-os com eloqüên-cia e força.

Essa concepção newmaniana da educação liberal convida a um breve comentário, com o qual encerraremos o artigo.

A mentalidade moderna tende a considerar qualquer instituição – incluídas as de natureza religiosa – como mero produto histórico, sujeito à construção social, quando não a uma “dialética da História” determinista, no sentido hegeliano. A Universidade não seria uma exceção. É de se notar, contudo, que a Universidade, assim como muitas outras instituições importantes, possui não só uma origem que não pode ser ignorada, mas também uma vocação que lhe é própria, que a faz ser aquilo que é, e que desempenha um papel social insubstituível.

Isso não significa que os elementos acidentais da educação universitária não devam submeter-se às mudanças do Zeitgeist. E, por mais que a Universidade seja herdeira da Academia platônica e das primeiras Universidades medievais – Coimbra, Oxford, Paris, Salamanca… -, não se trata tampouco de reviver experiências já passadas ou manter a todo o custo estruturas fossilizadas. Agora, se a Universidade é transformada em outra coisa, mantendo-se embora o seu nome, desaparece ao mesmo tempo a sua função social. A sociedade como um todo, ao invés de enriquecer-se, empobrece.

Este é o motivo, segundo penso, do título atribuído por Newman: Idea of a University. O que ele procura é apresentar-nos uma Universidade ideal, fiel à sua vocação própria. Se descaracterizamos isso a que ele e outros pensadores dão esse nome, aplicando-o a instituições de ensino superior preocupadas apenas com produzir conhecimento ou, pior, informação, ou com o formar pessoas de acordo com a demanda em moda no mercado de trabalho, estamos desvirtuando esse nome. Há um lugar para esse tipo de ensino científico-técnico, certamente, e um lugar enormemente importante – só não deveria chamar-se “Universidade”, e sim “Escola superior técnica” (Technische Hochschule, como dizem os alemães), “Escola Politécnica”, “Faculdade” ou o que queiramos.

O panorama mundial, neste sentido, não é animador: estatisticamente, quase não há mais Universidades dignas do nome. Mas algo sobra desse ideal acadêmico genuíno em algumas Universidades européias e americanas, inclusive novas, que não só possuem um curriculum que inclui disciplinas de caráter liberal, mas também – o que é mais importante – professores e alunos animados por esse ideal.

Como sabemos, o empreendimento de Newman falhou, em boa parte devido às resistências que encontrou nos meios universitário e eclesiástico. No entanto, o grande fracasso deu-se depois da sua saída: vinte anos mais tarde, em 1879, a Universidade Católica da Irlanda recebeu ao todo três (!) pedidos de matrícula, porque nem era escola técnica reconhecida pelo Estado, nem empreendimento universitário digno desse nome.

Uma reforma geral das Universidades parece hoje uma causa perdida, embora seja muito mais uma questão do espírito com que se fazem as coisas do que das coisas que se fazem. Por isso mesmo, o ideário de Newman continua tão atual hoje como quando pronunciou os seus discursos na subdesenvolvida Irlanda de 1851. E para quem não perdeu o ideal da educação liberal e filosófica, ou para quem deseja adquiri-lo, o seu livro constitui um norte permanente. Basta que nos lembremos do conselho atribuído a Thomas Payne e que Chesterton repete em toda a sua obra: “Lost causes are the only causes worth fighting for”, as causas perdidas são as únicas pelas quais vale a pena lutar…

Júlio César Lemos é escritor e doutor pela Faculdade de Direito da USP.


NOTAS:

[1] É interessante ver também José Ortega y Gasset, Missão da Universidade e outros textos, trad. Carlos Filipe Nogueira, Coimbra: Angelus Novus, 2003, 142 págs.; e Jaroslav Pelikan, The Idea of the University: A Reexamination, Yale University Press, 1992, 248 págs., série de conferências sobre a situação contemporânea das academias influenciada por Newman


Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição 1, 2008.

“Estado da Arte”: Tolerância

Filosofia | 10/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 01 de dezembro de 2014.

Tolerância

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Em 1648 as potências continentais europeias ratificavam a chamada Paz de Westphalia, encerrando trinta anos de guerra civil no Sacro Império Romano-Germânico e oitenta anos de conflitos entre o Reino Espanhol e a República dos Países Baixos. Ainda que os príncipes se comprometessem a garantir a liberdade de culto para todos os seus súditos cristãos, o mundo teria de esperar até 1782 para testemunhar a última execução legal de uma bruxa na Suíça protestante, e até 1826 para o derradeiro herege vitimado pela Inquisição Espanhola. Entrementes, em 1789 a Assembleia Nacional Francesa regulamentava em sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão a liberdade irrestrita de culto e de opinião. Mas, entre setembro de 1793 e julho de 1794, o Tribunal Revolucionário jacobino executaria mais de 40.000 cidadãos franceses, acusados de “inimigos da liberdade”. Do outro lado do canal da mancha, os católicos ingleses teriam de esperar até 1829 para se verem completamente reintegrados à sociedade civil, enquanto a emancipação dos judeus avançava a duras penas em todo o Ocidente. Contudo, caberia ao século XX revelar a face mais brutal do antissemitismo, com cerca de um terço da população judaica sendo dizimada nos campos de concentração nazistas, junto a prisioneiros políticos, padres, ciganos, homossexuais e deficientes físicos e mentais. Logo depois, os 48 países signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos se obrigavam a garantir o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião. Mas isso não foi suficiente para impedir o extermínio de milhões de dissidentes políticos durante os regimes stalinista e maoísta, nem o apartheid ou os genocídios no Timor Leste, Coreia do Norte, Ruanda, Bósnia-Herzegovina entre tantos outros. E, hoje, enquanto muitos secularistas se surpreendem de que a religião sequer exista, testemunhamos uma epidemia do extremismo islâmico, que conta com um número cada vez maior de fanáticos dispostos a mutilar suas mulheres, decapitar seus inimigos e explodir seus corpos e os de milhares de inocentes em nome de Deus.

Estes são só alguns capítulos da história da Tolerância. Seria possível prever os próximos? Como a tolerância se transformou de um sinal de fraqueza em um valor hegemônico? Como ela é ameaçada por novas formas de intolerância? E acaso deveríamos ser irrestritamente tolerantes com tudo e com todos, ou, como diz a refugiada somali Ayaan Hirsi Ali, a “tolerância com intolerantes é covardia”?


Convidados

– Paula Montero, antropóloga, professora na Universidade de São Paulo e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

– Cicero Araujo, doutor em filosofia e professor de Teoria Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

– Lucas Petroni, editor do site de teoria política Liga da Justiça e pesquisador da Universidade de São Paulo com tese sobre Os Fundamentos Morais da Justiça Social.


Referências

  • Da Tolerância (On Toleration) de Michael Walzer (Editora Martins Fontes).
  • Dossiê Tolerância Novos Estudos n. 84 (http://novosestudos.uol.com.br/v1/issues/view/142).
  • “Tolleranza”, “Liberalismo”, “Libertà”, “Libertà politica”, “Locke”, “Mill”, “Rawls”, “Comunitarismo”, “Multiculturalismo”, “Dignità umana”, “Diritti umani”, “Pluralismo” e outros na Enciclopedia Filosofica Bompiani.
  • “A política do reconhecimento” (Multiculturalism: Examining the Politics of Recognition) em Argumentos Filosóficos de Charles Taylor (Editora Loyola).
  • Die Einbeziehung des Anderen, Jürgen Habermas (Neuauflage).
  • “Temos o dever de tolerar?” de Lucas Petroni : (http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n15/0103-3352-rbcpol-15-00095.pdf).
  • Liga da Justiça: um blog de teoria política : (http://ligajus.blogspot.com.br/)
  • Il problema della tolleranza religiosa nell’età moderna, Massimo Firpo (Loescher).
  • Toleration in conflict de Rainer Forst (Cambridge University Press).
  • “Tolerância”, “Liberalismo”, “Liberdade de expressão”, “Locke”, “Mill”, “Rawls”, “Comunitarismo”, “Dignidade” e outros no Dicionário de Ética e Filosofia Moral (Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale) organizado por Monique Canto-Sperber (Editora Unisinos).
  • “Tolleranza” e outros na Enciclopedia delle Scienze Sociali : (http://www.treccani.it/enciclopedia/tag/scienze-sociali/Enciclopedia_delle_scienze_sociali/)
  • O Liberalismo Antigo e Moderno de José Guilerme Merquior (Ed. É Realizações).   
  • “Toleration” e outros na Stanford Encyclopedia of Philosophy (http://plato.stanford.edu/).
  • Liberalismo político: uma defesa, dissertação de Lucas Petroni  (http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-13032013-123653/pt-br.php).
  • “Tolerância” e outros no Dicionário de Política (Dizionario di Politica) organizado por N. Bobbio, N. Matteucci e G. Pasquino (Universidade de Brasília).

Produção e apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Echo’s Studio

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/tolerancia/