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Família, estado e mercado

Opinião Pública | 21/10/2015 | | IFE CAMPINAS

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Os estudiosos da ciências humanas coincidem no mesmo diagnóstico atual da sociedade: um paciente que passa por uma crise de sentido e que reflete, em parte, o mal do homem moderno, a depressão. O discurso da modernidade esclarecida representou um longo salto para a promoção da ciência e da tecnologia. Contudo, foi pouco capaz de proporcionar um crescimento profundo do ser humano como pessoa.

Uma das razões desta crise estrutural está na polarização que a modernidade criou entre indivíduo e Estado. Certamente, a vida humana é marcada por uma tensão dialética entre sua dimensão pessoal e sua dimensão social, mas tensão não significa necessariamente alienação ou mesmo oposição.

Supõe uma harmonia íntima reforçada mutuamente, pois somente por meio da relação com os outros, a reciprocidade e o exercício do diálogo com nossos semelhantes a pessoa desenvolve todas as suas potencialidades e pode responder à sua vocação natural.

Com efeito, um novo paradigma social deve evitar as patologias de um individualismo institucionalizado, que tende a reduzir a pessoa nas dimensões econômica e política. Resulta urgente promover iniciativas que fortaleçam o tecido social e impeçam o império da mercantilização das interações sociais ou mesmo de uma vazia politização social.

O indivíduo é hoje muitas vezes sufocado entre os dois pólos do Estado e do mercado. De fato, às vezes, parece que ele existe apenas como produtor e consumidor de mercadorias ou como objeto da administração do Estado, esquecendo que a coexistência dos homens não tem como fim nem o mercado nem o Estado, já que a pessoa tem em sim mesma um valor singular, a cujo serviço devem estar o Estado e o mercado.

O banimento das esferas de sentido humano, fruto próprio da extremada racionalização da vida contemporânea, aumenta a entropia do sistema social, cuja legitimidade vai sendo constantemente questionada, em razão do esfacelamento do consenso social (con-senso: sentir com os outros) nas áreas vitais. Como reação, estes âmbitos tendem a dobrar sobre si mesmos e a autorreferencialidade dos sistemas sociais passa a refletir a autorreferencialidade dos indivíduos.

Daí a oportunidade de assegurar contínuos e flexíveis intercâmbios entre as esferas do sistema (político e econômico) e do mundo da vida. O desengate havido entre sistema e mundo da vida criou uma falsa contraposição entre a tese pública do bem comum e a antítese privada do bem pessoal que, na prática, resulta numa confusa síntese entre conformidade estática e alienação hedonista.

Creio que o “reacoplamento” de ambas as esferas poderia ser feito pela adoção da órbita social como espaço para uma gestão livre e solidária, fruto da criatividade das organizações intermediárias autônomas e com reconhecimento público pela burocracia estatal. Logo, o sistema deve favorecer, na prática, tais grupos sociais, pois estão em condições de alcançar iniciativas que transcendem os interesses setoriais e de desenvolver objetivos comunitários de envergadura universal.

O núcleo dessas iniciativas repousa sobre o conceito clássico de amizade social e sua importância reside na atenção conferida aos dados pré-políticos e pré-econômicos da vida cotidiana, como a educação familiar, ajudando no resgate das fibras do esfacelado tecido social.

Além das agências de solidariedade secundárias, como as organizações não-governamentais, mais importante ainda, para o fomento da amizade social, são os grupos de solidariedade primários, onde a família, notória vítima das ideologias modernas, tem o principal destaque: é fonte radical de sociabilidade e de mediação humana cheia de sentido. É necessário, assim, sublinhar a “subjetividade” da família. Porque a pessoa é um sujeito e assim também é a família, por estar constituída por pessoas que, unidas por um laço profundo de comunhão, formam um único sujeito comunitário.

Além disso, a família precede outras instituições, como a própria sociedade e o Estado, os quais gozam de uma subjetividade peculiar na medida em que a recebem das pessoas e de suas famílias. E não o oposto: perverter essa relação é tão totalitário quanto acomodar o indivíduo à sombra do Estado ou do mercado. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 20/10/2015, Página A-2, Opinião.

 

 

Felicidade à la carte

Opinião Pública | 14/10/2015 | | IFE CAMPINAS

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Num jantar, alguns comensais conversavam sobre a felicidade. Quando fui chamado a dar minha contribuição ao assunto, socraticamente, disse: “Felicidade: haverá tema mais infeliz?”. Nossa sociedade é curiosa. É um paradoxo darmos uma importância excepcional à felicidade individual, talvez como nunca antes na história, e, ao mesmo tempo, tropeçarmos diariamente em pessoas infelizes e insatisfeitas.

Durante muito tempo, nossa realidade foi um vale de lágrimas e contávamos com as graças de nossa advogada celeste para superar esse desterro existencial. Depois que irromperam a ciência e a técnica e sua visão otimista do progresso perene, o homem tornou-se senhor e possuidor da natureza. O Iluminismo veio e canalizou essa atitude ao considerar que o infinito progresso transformaria nossa vida terrestre numa espécie de paraíso.

Como efeito, deu ao homem a sensação de confiança para poder conseguir por si mesmo a felicidade. Essas ideias consolidaram-se nos séculos XIX e XX e, atualmente, seus influxos alimentam dois fenômenos bem presentes: o consumismo e o individualismo, os quais transformaram o presumido direito à felicidade no dever de ser feliz.

Recordo-me, antes, porém, dos livros de autoajuda. A quase maioria dos livros de autoajuda são livros de anti-ajuda. Seguem a toada iluminista ao transformarem a felicidade em direito e, depois, em dever. Conheço gente que começou infeliz lendo um dessas cartilhas e, no final da odisseia, estava mais infeliz ainda.

O consumismo, alimentado pelo capitalismo, concebeu-se de pronto como o meio de se assegurar a satisfação de todas as necessidades. Os mecanismos de crédito adquiriram um papel determinante, porque tornaram possível a realização dos desejos sem a preocupação de se pensar nas contraprestações.

Numa época ainda recente, o sujeito juntava e juntava dinheiro antes de comprar isso e aquilo. Nos dias atuais, com aqueles mecanismos, a ”frustração” de não se poder comprar aqui e agora tornou-se insuportável: importa viver o presente e pagar no futuro. Nem que isso gere uma crise financeira sistêmica, como já se deu num passado recente.

Já o individualismo canaliza nossos esforços para a busca da felicidade desde nós mesmos, de sorte que eventual insatisfação deve ser debitada na conta da responsabilidade exclusiva do indivíduo. Não é à toa que proliferam os negócios relacionados com a realização pessoal, desde as cirurgias estéticas até as pílulas dietéticas, todas a prometer a reconciliação conosco mesmos e a consumação de todo nosso potencial.

Se o homem está condenado à felicidade, então qualquer contratempo converte-se numa espécie de enfermidade e, como doente, o insatisfeito acaba por ver-se como um inadaptado. “É obrigatório ser feliz!”. Se assim é para os indivíduos, o cenário piora para as nações. Na opinião pública, começa-se a falar sobre os índices de felicidade dos países: “país feliz” é tão absurdo como um “hipopótamo voador”. Os países não são pessoas e a felicidade não pode ser medida por níveis de “felicidade interna bruta”.

Aviso aos navegantes: nada disso funciona, porque a “felicidade nacional” não existe. Existem felicidades particulares, individuais, muitas vezes intransmissíveis, que não podem ser reduzidas a um denominador comum. As pessoas não são números, são distintas e irrepetíveis. Muitas vezes insondáveis e insolúveis.

Não adianta se encher de bens e mais bens e fechar-se para os outros. E, depois, ser medido por um índice que não mede nada. Somos, provavelmente, a primeira sociedade na história que produz indivíduos infelizes pelo simples fato de não serem felizes. Tenho a impressão de que não somos donos das fontes da felicidade e que nossa própria finitude deveria nos levar a reconsiderar saídas para esse beco em que nos enfiamos.

Ainda que consigamos aliviar muitas misérias, não podemos seguir concebendo a felicidade como quem solicita esse ou aquele prato num cardápio à la carte. Nesse sentido, a felicidade continuará sendo um tema infeliz. Até para uma conversa de jantar entre amigos. Com respeito à divergência, é o que penso. 

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 14/10/2015, Página A-2,Opinião.

O mundo após a crise das utopias (por Massimo Borghesi)

História | 20/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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Transcrição da palestra Depois de 68 e 89: o mundo após a crise das utopias, pronunciada pelo prof. Massimo Borghesi no dia 02 de outubro de 2008, no IICS (Instituto Internacional de Ciências Sociais) de São Paulo. Após o texto da conferência, reproduzimos algumas respostas especialmente significativas a perguntas formuladas durante o debate que se seguiu.

Buona sera a tutti voi. Antes de entrar no tema sobre o qual me foi pedido que falasse, gostaria de esclarecer algumas premissas.

A primeira destas duas datas, 1968, situa-se dentro do quadro de um mundo bipolar, dividido, e que assim continuou até 1989. É nesse contexto de bipolaridade que se compreende o clima daqueles anos, e como o ano de 1968 adquiriu uma forte orientação anti-ocidental e anti-americana, que levou muitos a aderir a uma perspectiva da história de tipo marxista. Naturalmente, o quadro mundial é diferenciado. Como sabem, no Brasil houve, de 1964 a 1985, uma ditadura militar e, portanto, a situação era diferente daquela em que se encontravam os Estados Unidos e a Europa nessa época.

A segunda data, 1989, precedida pelo declínio das ditaduras militares na América Latina, representou o fim da divisão entre leste e oeste. Se as ditaduras desapareceram naquele período, foi porque o mundo estava superando a divisão; não se tratava apenas de um fenômeno latino-americano, mas de um fenômeno mundial.

 

Os ventos mudam

Queria começar por ressaltar que as premissas de 1968 não nascem do espírito do marxismo – este é um aspecto para o qual quase nunca se chama a atenção.

O 1968 europeu é, sem dúvida, reflexo do americano. Todos sabemos que foi a contestação na Universidade de Berkeley que deu início aos movimentos estudantis nos Estados Unidos e depois na Europa. Essa contestação, no entanto, nascia de uns motivos muito concretos, sobretudo da oposição à guerra do Vietnã. Os jovens não queriam mais ir combater ali, e certamente tinham boas razões para fazê-lo, visto que os Estados Unidos se tinham embrenhado, graças à administração Johnson, em uma guerra perdida de antemão e difícil de compreender para os americanos de 65, 66, 67…

Na época de Kennedy, somente especialistas militares tinham ido ajudar o exército vietnamita; com Johnson, porém, dezenas de milhares de jovens americanos foram enviados a combater em uma guerra que não entendiam. Os historiadores sabem que a escalada militar empreendida por Johnson só foi decidida em 1965, após um incidente falso inteligentemente orquestrado no golfo de Tonquim e que serviu para justificar uma intervenção maciça.

Em oposição à batalha do Vietnã, estavam os ideais da New Frontier – a “Nova Fronteira” -, ou seja, os da era Kennedy, que preconizavam o apaziguamento leste-oeste depois da grave crise dos mísseis de Cuba, momento em que o mundo quase “tocou” a Terceira Guerra Mundial. Essa crise cubana foi a maior que o mundo enfrentou desde 1945, e por muito pouco não se chegou a um conflito atômico; apenas um milagre o impediu.

Recordemos que a encíclica Pacem in terris, de João XXIII, foi escrita nesse momento, depois da grave crise de Cuba; não nasceu do nada, mas de o mundo haver vislumbrado a Terceira Guerra Mundial – outro ponto de que quase ninguém se lembra. Toda a vez que se fala da Pacem in terris, fala-se dela como se fosse um documento de ideais altíssimos, mas utópicos. No entanto, o Papa quis aquele documento porque o mundo quase tinha chegado à Terceira Guerra.

Os ideais da era Kennedy eram de oposição não-violenta, como o eram inicialmente as contestações estudantis, que retomavam o ideário de Martin Luther King, nome de enorme peso e grande fascínio nos Estados Unidos. Esses ideais inspiravam-se, ainda de forma muito ingênua, no movimento hippie americano, no famoso dístico peace and love, ou seja, na concepção de um retorno edênico à natureza, alimentada por certa literatura de tipo naturalístico.

Também na Europa o clima que precedeu 1968 era positivo, sem nenhuma relação com a violência subseqüente: o mundo passava por um momento de apaziguamento leste-oeste; havia acontecido o Concílio Vaticano II, com suas grandes esperanças; existia um desejo de solidariedade entre os povos. Recordo-me disso porque era jovem como vocês são agora, e lembro-me da ânsia que havia entre a juventude de que se resolvesse o problema da fome no mundo e de que a Europa e o Ocidente ricos se encarregassem dos problemas dos países pobres – o que, do ponto de vista europeu, significava principalmente o continente africano.

Esta atmosfera positiva mudou logo depois dos episódios de violência de 1968 e 69. Muitas vezes nos perguntamos: Como foi que se chegou àqueles anos? Como foi que se chegou àquele clima contestatário?

Chegamos a isso porque os próprios poderes intervieram para criar uma situação de violência, isto é, houve uma série de episódios nos quais os interesses dos poderosos causaram traumas que a seguir se manifestaram em reações violentas. Isto é importante, ao menos na minha modesta opinião, porque foi exatamente nesta passagem que se consumiu a alma religiosa cristã dos anos 60. Ou seja, o período que precedeu o ano de 68 era de forte idealismo, e quem não o viveu dificilmente pode compreender o que foi; mas aqueles ideais, a certa altura, foram crestados, destruídos pela radicalização de um conflito que se tornou violento.

A década de 60 viveu certamente, e com grande intensidade, uma ideologia de matriz fortemente cristã, determinada também, no mundo inteiro, pelo espírito do Vaticano II. E foi nesse momento que ocorreu a transição para a hegemonia marxista, passando-se de um tempo carregado dos valores da solidariedade cristã para um clima violento, duro, no qual o modelo marxista toma a primazia e passa a englobar em si o cristão.

Quais foram os eventos de violência que radicalizaram a situação, modificando o clima? Nos Estados Unidos, foi com certeza a morte de Martin Luther King, assassinado em Memphis a 4 de abril de 1968. A morte de King significava que os negros americanos não podiam mais esperar conseguir a igualdade pela via pacífica, baseada no modelo de Gandhi; e prevaleceu a idéia de que somente poderiam obter seus direitos pelas armas, pela violência. Pouco depois, a 6 de junho de 1968, Robert Kennedy foi assassinado, e também isto teve um significado muitíssimo simbólico: depois de John, também o seu irmão Bob tinha sido morto, o que era como se o ideal da “Nova Fronteira” se tivesse afundado definitivamente.

Na Itália – menciono-o porque evidentemente é a situação que conheço melhor -, aquilo que se veio a chamar de estratégia da tensão iniciou-se em 1969 com a bomba colocada no Banco Nacional da Agricultura, que fez mais de oitenta mortos. Os culpados jamais foram encontrados, mas as investigações apontam certamente para movimentos da extrema direita italiana. A estratégia da tensão (que se concluiu nos anos 80 com mais de 500 vítimas, entre mortos e feridos) principiou com essa bomba e originou a dialética rosso-nero, entre “vermelhos” e “negros” [1], da qual não se sairá mais – ou seja, a dialética entre a extrema esquerda e a extrema direita, unidas em torno da santificação da violência como método político.

 

À esquerda da esquerda

Como reação a tudo isso, cria-se uma radicalização da esquerda, que passa a estar toda sob a hegemonia da posição marxista. Trata-se de um comunismo revolucionário que já não se reconhece mais nos velhos partidos comunistas do tipo do italiano ou francês, mas busca como modelo a China, o Vietnã ou Lênin – o comunismo soviético do início, puro e duro, que não aceitava nenhum compromisso com o mundo burguês. Isso ao menos na Itália e na Alemanha, não na França, o que é um pouco paradoxal porque o ano de 1968 na Europa se abre com o famoso maio parisiense.

Na França, entretanto, o ano de 68 tem uma coloração diferente, porque ali penetra muito rapidamente a lição do Arquipélago Gulag, de Aleksander Solzhenitsyn, o grande autor russo que, depois de passar pela experiência do campo de concentração, escreveu essa que foi a mais crua denúncia do totalitarismo soviético. Enquanto Solzhenitsyn não foi levado muito a sério na Itália, os intelectuais parisienses foram muito influenciados por ele.

E eis que agora a contestação francesa assume uma fisionomia diferente em relação à alemã e à italiana: na França, o ano de 1968 não gerou a hegemonia marxista nem o terrorismo. Ao contrário, o 68 parisiense é fortemente crítico do modelo soviético, e valoriza um outro 68, aquele que ocorreu nas ruas de Praga (vocês sabem que na Checoslováquia houve a famosa “primavera de Praga”, esmagada pelos tanques soviéticos). Pois bem, a França era muito sensível a esse outro 68 que protestava, sobretudo, pela liberdade, e não apenas contra o mundo burguês.

Nos Estados Unidos, a esquerda não é marxista, pois jamais houve um partido comunista digno deste nome. E esta esquerda “oposicionista” exprime-se por meio de uma espécie de ideologia dos pluralismos “mutuamente incompatíveis”, por assim dizer. A refutação do modelo americano se expressa em uma série de “tribos” que reivindicam de maneira orgulhosa a própria identidade. Assim, os negros americanos assumem a mensagem de Malcolm X, a idéia de que os afro-americanos não devem se identificar com a sociedade dos brancos, mas sim construir uma identidade totalmente fechada ao relacionamento com eles. Assim também a idéia do feminismo como identidade que não é possível harmonizar com o universo masculino, e igualmente os movimentos homossexuais, etc.

Na América Latina, o vento de 1968 traz a concepção da “teologia da revolução”, paradoxalmente favorecida também pelas ditaduras que, neste intervalo, tomaram a geografia da América do Sul. A seguir, este vento traria a “ideologia indígena”, também ela uma realidade que reivindica o retorno à “antiga identidade” contra o Ocidente, ao menos o hispânico e cristão, e por isso acalenta a volta às antigas origens indígenas, pré-cristãs, anteriores à colonização. Essa perspectiva é o resultado final daqueles anos…

Voltando à Europa, a corrente que se põe à esquerda do partido comunista italiano, aquela que deu vida ao fenômeno terrorista, manifesta-se na Itália, na Alemanha, na Espanha com a ETA e na Irlanda com o IRA. Na Itália, atinge o ponto máximo de força e violência com a morte do grande estadista Aldo Moro, o primeiro-ministro democrata-cristão assassinado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas [2]. Este é auge do terrorismo na Itália, mas ao mesmo tempo é um ponto de inflexão, pois os terroristas alcançam um grau de alienação tão radical da sociedade civil italiana que assinam ao mesmo tempo a sua condenação moral e, conseqüentemente, a sua crise.

Quem encarna verdadeiramente o ideal dos jovens daqueles anos? Certamente é o mito de Ernesto Che Guevara, morto em 9 de outubro de 1967. Em 1968, 69 e 70, Guevara torna-se um mito para milhares e milhares de jovens europeus. A famosa foto de Alberto Corda que mostra o “guerrilheiro heróico” percorre o mundo inteiro. Guevara aparece realmente como um novo Cristo, mas um Cristo guerrilheiro, que não se limita a carregar a cruz, mas a usa como espada, e assim une o pathos da paixão ao do poder.

Esta atitude, ou melhor, este mito, este herói ateu repleto de um poder propriamente religioso, certamente traz consigo a idéia da “santificação da violência”, que serviria para desagregar os poderes maus do mundo e que, por isso mesmo, traz em si alguma coisa de sagrado. Para muitos jovens, o Che fez o papel de mediador da passagem do cristianismo para o marxismo. Se não tivesse havido esta imagem de um “santo laico”, tal passagem teria sido muito mais difícil, porque não é tanto a ideologia que atrai, mas sobretudo o exemplo: a imagem do Che morto era como a do Cristo morto. Tudo isso mexia mais com a imaginação do que todas as doutrinas possíveis.

A legitimação cristã passava agora através da revolução. Para poder ser cristão, era preciso ser de alguma forma revolucionário; caso contrário, a pessoa seria considerada reacionária ou conservadora, ou ao menos pertencente ao mundo burguês. Um cristão, para poder afirmar-se como tal, tinha de pagar o seu tributo à ideologia da revolução: ao menos, deveria ser inimigo das classes superiores, deveria de algum modo aceitar a violência como método para a libertação dos oprimidos.

É aqui que se encontra o fulcro da crise do Concílio Vaticano II, e também este é um aspecto sobre o qual se reflete muito raramente. O período de 1968-1970 não é o da realização do Vaticano II, mas o da sua traição. Do ponto de vista “tradicionalista”, costuma-se dizer que Vaticano II e o ano de 68 são a mesma coisa, o que não é verdade. Os anos de 68 a 70 são a traição do seu espírito, do espírito que desejava a unidade, o apaziguamento, a paz, o “método da paz” como solução para os conflitos entre os povos, que queria que se atenuassem as diferenças entre “norte e sul” – e em tudo isso não há nada da ideologia marxista que depois virá, com a “teologia da revolução”. O marxismo sempre pretende tomar o lugar do cristianismo, e por isso trai necessariamente o Vaticano II: não há conciliação possível.

 

O que ficou de 1968?

O mundo bipolar era um mundo impiedoso. Combatia-se pela hegemonia, e as “forças alternativas” não tinham espaço – ou se estava de um lado, ou se estava do outro. Era uma perspectiva impiedosa, mórbida nos países da Europa e sangrenta fora deles – como na África, no Oriente Médio e na América Latina. O clima somente melhoraria a partir de meados dos anos 80, com a presidência de Gorbachev na União Soviética.

Sabemos que o Muro de Berlim caiu em 1989. Em 1991, foi o fim da URSS, quando a bandeira vermelha foi recolhida dos muros do Kremlin, em Moscou. E era também o fim da ideologia comunista – a grande religião atéia, a religião para os ateus do século XX, a grande fé que moveu milhões de homens que não acreditavam mais em Deus.

Com isto, é chegado o momento de nos perguntarmos: O que ficou de 1968? O que esse ano construiu?

Ficou muito pouco em termos positivos, e muito em termos negativos. A associação entre utopia e violência consumiu tudo o que havia de positivo na utopia, a ânsia inegável de solidariedade e de justiça. E trouxe como resultado uma espécie de cinismo em massa, ou seja, aquilo que um grande pensador italiano, Augusto del Noce [3], chamou “o burguês no seu estado puro”.

O resultado do fracasso da revolução ou dos ideais revolucionários foi a “era do desencanto”, do cinismo generalizado. Os anos 80, e depois também os 90, são a era na qual os ideais se resumem a: “Divirta-se, goze a vida e enriqueça”. Quem for mais capaz e tiver mais meios na vida, passe à frente. Para os outros, não há piedade. São os anos do “novo poder”, daquilo que na Itália Pier Paolo Pasolini diagnosticava de maneira muito lúcida: “Está-se criando um novo poder, o mais dessacralizante que possa haver. Um poder para o qual não há mais nada de sagrado”. Dizia-o a respeito da vida humana, do aborto; e, dirigindo-se aos seus amigos progressistas, acrescentava: “Vocês não se dão conta de que estão dando um presente àquelas forças desapiedadas que não reconhecem mais nada de sagrado, às forças da mercantilização integral da vida? Pensam que são progressistas, mas não percebem que desta maneira estão sendo conduzidos por aqueles que querem que a vida se reduza a uma mera mercadoria!”

A falência da ideologia marxista, portanto, cria um xeque-mate que ela não pôde dar enquanto existia: a sua falência é a sua realização, a sua única realização possível. Ou seja, o marxismo não pode atuar na parte positiva, porque é uma utopia que jamais se pode realizar. Continua a atuar, porém, pela parte negativa, que é a crítica a todos os ideais.

Para o marxismo, todos os ideais são disfarce para interesses de classe; ou seja, todos os ideais são ideologias, não há ideais verdadeiros. Mesmo os ideais universais são ideologias, refletem apenas o ponto de vista dos vencedores, que querem impor a sua ideologia a todos. Assim, o marxismo educou os seus seguidores para a mentalidade de que não existe nenhum ideal válido, porque tudo está em função das leis da economia.

E quando o marxismo morre, o que fica? Permanece, como vimos, a parte negativa, que é aquela que chegou até os nossos dias e atingiu milhões de jovens nestes últimos anos. Se não há mais nada a que valha realmente a pena dedicar a vida, a única coisa que resta é enriquecer e progredir sem escrúpulos. Isso significa, no final das contas, que só permanece a idéia do “burguês em estado puro”. O revolucionário gera o “burguês em estado puro”, um burguês que não tem mais nenhum interesse ideal com exceção do de enriquecer sem nenhum freio ético e moral.

Depois do fim do poderio soviético, esta crítica investe contra o próprio marxismo e o comunismo. No fundo, o comunismo, nos anos em que existiu – também quando criticava a União Soviética -, vivia do seu poderio. No momento em que a União Soviética acaba, quando já não se considera comunista, o comunismo passa a não ter mais nenhuma “realização histórica” e o marxismo também se reduz a uma ideologia. A crítica que fez a todas as outras ideologias volta-se contra ele mesmo, que se torna uma ideologia entre tantas outras. Já não pode certificar a própria realidade porque, como o seu único critério de verdade é a práxis, a atuação histórica, no momento em que é desmentido pela história decai para uma posição totalmente questionável.

 

A vacilante ideologia da globalização

Dizíamos que os anos 80 são movidos pelo desencanto, pela ânsia de enriquecimento e pela euforia de mercado. Ou seja, movem-se por uma nova ideologia, a ideologia da globalização. Não foi somente o ano de 1968 que gerou utopias, igualmente o fez o ano de 1989. Por exemplo, aquela que o filósofo americano Francis Fukuyama chamou, em 1992, deThe End of History and the Last Man: ou seja, a idéia de que, com o fim do comunismo, a história acabou; o mundo já não seria bipolar, mas unipolar, uno, baseado todo ele no modelo americano, controlado por uma única economia global. Este foi o sonho, o mito de inícios dos anos 90.

É a idéia, enfim, de que não temos mais razão para conflitos, de que as guerras não têm mais sentido, de que a humanidade se encaminha para a uniformidade e, portanto, para a paz. Tudo isso era, em todo o caso, sugerido pelo que acontecia na política, porque aquele foi um período feliz, especialmente para a América Latina, uma vez que todas as ditaduras – ou quase todas – foram caindo uma após outra como castelos de cartas.

No plano religioso, a “teologia da revolução” torna-se “teologia do diálogo”. Esta é outra transição interessante, pois se passa do ideal da violência para o do diálogo, que é levado ao ponto de afirmar que, no fundo, todas as religiões são iguais. O mundo é uno e, portanto, todas as religiões veneram a mesma coisa… Graças a essa tendência, a religiosidade vai-se superficializando para uma espécie de New Age. Como sabem, a década de 90 é a do New Age: a religiosidade já não tem fronteiras, une os homens para além da diversidade das Igrejas e dos credos, etc. Tudo isso leva ao declínio da política e à idéia de que o fator que realmente importa é o econômico – a globalização -, juntamente com o religioso, sob a forma de uma religiosidade do tipo New Age.

Diante disso, o 11 de setembro de 2001 certamente representou a crise do período pós-1989. De modo repentino, passou-se de uma espécie de condição de conciliação ecumênica, de “diálogo”, ao maniqueísmo mais brutal e decidido. O mundo subitamente voltou a colorir-se de preto e branco: o Ocidente contra o Oriente, contra o Islã que agora aparece como totalmente negativo, como a fonte de todo o mal; mas ainda em nome de uma globalização que já não era pacífica, mas devia ser imposta à força, se necessário. A democracia já não se exportava em conjunto com o mercado, exportava-se da maneira dura, à base de canhões.

Mas era já uma globalização em crise. Todos conhecemos a obra de Samuel Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, de 1996, que representa uma resposta a Fukuyama, e sabemos da sua importância. Não é verdade que o mundo é uno, diz ele: está dividido em grandes civilizações inconciliáveis entre si, em grandes civilizações históricas que voltam à tona de tempos em tempos e tendem a estar em conflito umas com as outras.

Esse texto de Huntington era extremamente crítico com relação às teses de Fukuyama. Foi escrito em 1996, mas se tornaria atual em 2001. Examina os limites do poder americano frente ao renascimento da Ásia, ou melhor, da China e da Índia, das grandes civilizações históricas. O autor faz uma análise muito interessante: uma vez que a globalização favorece o poder econômico de grandes zonas da terra que foram excluídas da riqueza, aquelas zonas inevitavelmente redescobriram as suas identidades culturais e religiosas ancestrais e passaram a orgulhar-se das suas próprias tradições culturais e religiosas. Redescobriram assim a sua identidade, em antítese às outras identidades.

A globalização favoreceria, portanto, o pluralismo das potências civilizadas, resultado que não era previsto pela análise de Fukuyama. E não só não favoreceria a unidade, mas, pelo contrário, favoreceria o renascimento do prestígio das grandes potências históricas, que tinham sido niveladas no embate entre Leste e Oeste, entre comunismo e capitalismo. Na sua divisão, Huntington se refere particularmente ao Ocidente cristão, mas sem incluir a América Latina, pois para ele o “Ocidente cristão” é o majoritariamente protestante. A América Latina, diz ele, faz parte de um cristianismo, digamos, sui generis.

O último elo das ideologias de 89 a cair é a idéia do mercado global, que constitui o problema dos dias atuais. A atual crise do sistema financeiro americano, de 2008, põe-nos novamente cara a cara com o primado do político, aquele fator que tinha sido esquecido. Acabou-se a era do mercantilismo: agora, todos gritam que o mercado deve ser submetido a regras e todos almejam a “economia real” contra a tal “economia financeira” que reinou inconteste durante todos estes anos.

Ao mesmo tempo, percebemos que também a visão economicista da ideologia da globalização produziu um deserto da vida, uma destruição das relações pessoais. É nesta perspectiva que as reflexões dos pensadores comunitários americanos se tornam importantes – penso em MacIntyre ou em Charles Taylor como representantes desta corrente que indubitavelmente é importante. Na Europa, é dominante a figura de Jürgen Habermas, o expoente da “inteligência democrática” européia, que nos últimos anos – mais precisamente depois de 2001 – volta a perguntar-se sobre a importância da dimensão religiosa para recriar entre as pessoas uma solidariedade que a secularização maciça desses anos dissolveu de maneira impiedosa…

A partir disto, este crítico laico iluminista iniciou um diálogo de enorme interesse com o então cardeal Ratzinger, dando origem a um debate que continua até hoje. Na Itália, por exemplo, as teses de Habermas são muito discutidas, sobretudo nos ambientes laicos, porque apanharam o laicismo italiano de surpresa. Afinal, foi do mais importante expoente da inteligência progressista européia que veio uma provocação de altíssimo nível: o pensamento laico democrático atual não pode deixar de considerar a dimensão religiosa, a fim de ser capaz de reconstituir os vínculos de solidariedade que estão por trás da prática democrática hoje…

 

Conclusão

Em resumo: que aconteceu de 1968 a 1989 e até 2008? Passamos da utopia coletivista a um individualismo exasperado, e depois à consciência de que tanto um quanto o outro são ideologias. É ideologia o marxismo, é ideologia a idéia de que a globalização traz o paraíso a terra. Tudo não passa de ideologia. Na realidade prática, são necessários tanto o Estado como o mercado; são necessárias tanto a nação como a realidade supranacional, tanto a laicidade como a abertura para a dimensão religiosa, tanto a fé quanto a razão. Esta é a compreensão realista, que considera as diferenças e ao mesmo tempo trabalha para trazê-las a uma possível harmonia.

Mas há uma reductio ad unum das ideologias que não se sustenta. Um modelo é ideológico precisamente quando pretende simplificar a realidade, reduzindo-a à unidade. A realidade não é una: vive de tensões que têm de ser contidas para que não se tornem conflitivas, para que não explodam. Isso vale para as suas diversas formas, desde classes sociais e religiões até as nações e os estados. Por isso, pede sempre uma “política” em sentido amplo, política que é a arte, não apenas do possível, mas a arte de criar relações tranqüilas entre as diversas entidades contrapostas.

Isto vale também para a teologia, a qual, com excessiva freqüência, andou a reboque da sede de poder das ideologias que se alternaram ao longo dos últimos trinta anos. Nos anos 70, em muitas partes do mundo, fez-se uma “teologia da revolução” que, no fundo, ia atrás do poder – do “poder dos oprimidos”, sim, mas na realidade também de um outro poder muito bem determinado. Nos anos 80 e 90, passou a ser a “teologia New Age“, a do diálogo fácil, como se o mundo já estivesse às portas do Éden e tudo fosse simples. E de 2001 para cá tornou-se “teologia da identidade”, como na Europa, onde se fala agora com muita desenvoltura do “Ocidente cristão”, como se o cristianismo não fosse mundial, como se tantas partes do mundo fora do Ocidente não fossem católicas. Nesta ótica, não seriam cristãs a América Latina, as Filipinas, parte do Vietnã e da Coréia, grande parte da África… O “Ocidente cristão” significa a parte rica do mundo, isto é, somente o Canadá, os Estados Unidos e a Europa.

É evidente que aqui há um uso ideológico: quando a fé não interessa, é “privatizada”, e quando interessa é “propagandizada” em função do adversário. Isso não passa de uma instrumentalização, a que a teologia não se deveria prestar. O cristianismo corresponde às exigências do tempo sem, no entanto, conformar-se a ele. Deve levar em consideração a época histórica, as alternâncias de poder, as novas orientações, mas isso não significa conformar-se ao poder do momento. É necessário levar em conta os poderes, mas também a transcendência em relação a eles. Caso contrário, como o demonstra o percurso de 1968 a 2001, a fé condena-se a perseguir as ideologias do momento. Aquelas que a história, ao voltar as páginas, descartará como desatualizadas.

 

Perguntas

O materialismo, a crise da metafísica, da espiritualidade, da moralidade…, parecem ter crescido mesmo depois da queda do marxismo. Podemos dizer que o marxismo político, econômico, etc. caiu, mas o marxismo cultural permanece e até ganhou mais força?

Essa pergunta levanta um problema interessante: se o marxismo continua apesar dos pesares a ter certo peso no plano cultural, é evidente que traduz ou responde de alguma maneira a problemas reais. Para que determinada atitude cultural, política, religiosa…, responda adequadamente ao marxismo, é necessário que responda a esses problemas. Não basta simplesmente dizer que o marxismo está errado – o que é verdade -, mas depois não ter em conta que milhares de pessoas julgaram encontrar nele a solução para os seus problemas. Uma posição que queira ser antitética, oposta, ao marxismo, deve mesmo assim dar-se conta dos problemas históricos, sociais, reais a que o marxismo, ainda que de maneira errada, tentou dar solução. Caso contrário, diz-se: “Errou , e…” Não, as coisas não são tão simples assim. Afinal, o problema das tensões sociais, o problema de uma maior eqüidade, etc., são problemas reais.

Considerem o documento em que a Congregação para a Doutrina da Fé criticou de maneira impecável a Teologia da Libertação. Pois bem, nesse mesmo documento, se for lido com atenção, encontra-se toda uma série de pontos em que o mesmo organismo diz ser preciso enfrentar as exigências de justiça oriundas daqueles setores da população que, mais do que outros, puseram as suas esperanças na utopia marxista. Ou seja, a crítica à Teologia da Libertação deve ser acompanhada de um relançamento da Doutrina social da Igreja. Caso contrário, desenvolve-se apenas a parte negativa, quando o que falta é muitas vezes a parte positiva.

 

Hoje temos, de um lado, o extremismo islâmico, e do outro o “extremismo consumista”, tanto no Ocidente como nos países egressos do marxismo. No caso do Islã, o perigo parece ser o de uma cultura dirigida para o extremismo, ou pelo menos de uma cultura que o facilita; já o que caracteriza o consumismo é a falta de cultura, ou uma cultura apenas internética e superficial.

Eu diria que o consumismo e o extremismo islâmico, como diz, certamente merecem ser considerados as duas faces de uma mesma moeda. Porque é do deserto que nasce a reação fundamentalista: quanto mais uma sociedade é árida, tanto mais o fascínio do integralismo fundamentalista encontra eco ali.

No que diz respeito a muito dos islâmicos europeus, são com freqüência os filhos daqueles que vieram para a Europa a fim de trabalhar e inserir-se na sociedade ocidental que encontram na mensagem fundamentalista um sentido para a vida, em contraste com o deserto das nossas cidades em que já não lhes é oferecida nenhuma mensagem espiritual de tipo algum. Como a secularização esvaziou totalmente as almas, a mensagem fundamentalista representa para estes filhos de imigrantes um encontro com as suas raízes, um retorno à dimensão comunitária, uma redescoberta dessa relação com o divino que já não lhes é oferecida de outra maneira. Portanto, o fundamentalismo do tipo que amadurece na Europa é uma reação à secularização, àquilo a que chamamos consumismo, e que na realidade quer dizer, em última análise, a destruição da alma. Quando sobram apenas os corpos, as almas – por assim dizer – já não têm vida.

 

Um dos grandes problemas, que me parece que os europeus também têm, mas aqui me dá a impressão de ser mais dramático, é o do aburguesamento da juventude, no sentido de um fechamento cada vez mais individualista diante de uma realidade social em que a solidariedade é, no entanto, uma exigência gritante. Gostaria de que você falasse um pouco mais sobre o que significa esse “burguês em estado puro”, no conceito de Augusto del Noce.

Antes de mais nada, desejo prevenir um equívoco: não pretendo fazer polêmica contra a burguesia, porque isto não faria sentido. Todos aqui, até certo ponto, pertencemos à classe burguesa; não é esta a questão que interessa, não se trata de fazer aqui uma análise de tipo sociológico.

O que caracteriza o “burguês em estado puro” é que perdeu completamente os ideais da vida. Esta foi, de alguma maneira, a tragédia do fim do comunismo. O comunismo não foi uma tragédia apenas quando era poderoso; foi também uma tragédia quando desabou porque, ao desabar, arrastou consigo todos os ideais. Como todos estavam concentrados nessa ideologia, o fim dela trouxe consigo o fim de todos eles. Este é o grande paradoxo do fim do comunismo!

Isto se observa muito bem em toda a minha geração, a geração de 68. Esta geração lutou, esperou, fracassou, e qual é o resultado hoje? Quem tem agora cinqüenta, sessenta anos, é via de regra um homem totalmente desencantado, que não crê mais em nada. Os ideais em que esperou nos anos de sua juventude faliram e o resultado é a falência de todas as esperanças. E é esta geração, muitas vezes, que está ensinando nas cátedras das escolas. Já não consegue transmitir nenhuma esperança aos jovens porque carrega consigo apenas a desilusão da falência dos próprios ideais. Não pensa que, como os seus ideais faliram, precisa experimentar outros. Pensa que aqueles ideais eram os únicos, e como faliram, que já não há esperança alguma. Este é o seu drama – e por isso repito que o comunismo foi uma tragédia não somente enquanto estava no poder, mas que também criou uma tragédia ao cair, porque levou consigo toda a capacidade de esperar por uma mudança.

O resultado é o “burguês em estado puro”, ou seja, a pessoa que agora vive unicamente da dimensão imediata da vida. Entre milhões de jovens europeus de hoje, qual é a percepção imediata da vida? Limita-se a um medo instintivo da morte, a uma instintividade imediata, que substancialmente quer dizer Eros vivido de maneira naturalística, e à possibilidade de ter sucesso na vida a qualquer custo e sem muito escrúpulo. Essa instintividade imediata foi o que sobrou – e não há mais nada.

 

O que fazer, como professores universitários, diante dessa situação, além de observá-la e lastimá-la?

O que fazer…? Diria que, diante disto, a Universidade tem antes de mais nada uma responsabilidade educativa. Porque a maneira como se transmite uma matéria não é nunca algo neutro, é sempre uma maneira de você se encontrar com jovens que desejam aprender, conhecer. Você não se limita a ensinar-lhes uma disciplina, você lhes ensina um modo de enfrentar essa disciplina, um modo de relacionar-se com a vida através dessa disciplina. É tudo isto que está contido no ensino: não se trata apenas de uma série de informações sobre uma determinada matéria, mas da maneira como essa matéria será exercida, compreendida, relacionada com a própria existência e depois com a realidade da vida em geral. Nisto há uma dimensão ideal, ética, moral, e em última análise religiosa, que quem se limita a fazer de “informador” simplesmente já não compreende.

 

Recordo-me de uma frase que, como professor, sempre me impressionou muitíssimo. É de Olivier Clément, que, com palavras talvez um pouco injustas, mas tocantes, dizia: “Vocês, professores, continuam a ensinar do jeito que sempre ensinaram e os vossos alunos continuam a suicidar-se cada vez mais”. O que percebemos é que quase todos os professores concordam em princípio com essa afirmação, mas pouquíssimos são capazes de aplicá-la na prática; não querem limitar-se a ser meros “retransmissores de informação” ou, pior ainda, “transmissores de vazio”, mas acabam tornando-se exatamente isso.

Este processo de formação do “burguês em estado puro” – equivalente na prática ao que se costuma chamar “processo de secularização” – atingiu todas as principais figuras sociais. Hoje costumamos falar de “crise de valores”, e esta frase tornou-se tão comum que passou a ser banal. “A nossa sociedade não vai bem porque existe uma crise de valores”. Mas os valores, em si, não dizem nada! Os valores só são reais quando estão encarnados, e dentro de uma sociedade os valores são encarnados pelas figuras sociais.

Quais são as principais figuras sociais que já não representam valores? São as figuras eminentes. Pensem na figura do médico: até há trinta ou quarenta anos – na Europa pelo menos, não sei como será aqui -, ser médico não era apenas uma profissão, era também uma vocação. O médico podia ser chamado a qualquer hora, estava sempre a serviço do doente. Hoje, para nós, tornou-se um burocrata. É alguém que se limita a escrever receitas e a mandar-nos para o hospital. É médico apenas para ganhar dinheiro, não mais por uma vocação; esqueceu-se totalmente da dimensão pessoal do relacionamento com o paciente, que antes estava no próprio centro da prática médica.

O mesmo ocorre com outras figuras sociais: o político, antigamente, era alguém que vivia por uma paixão ideal, representava o povo, ao passo que hoje é um burocrata muitas vezes sem relacionamento algum com os eleitores; responde apenas ao poder do alto, não mais ao poder que vem de baixo. Mesmo os sacerdotes transformaram-se muitas vezes em burocratas: o sacerdote era aquele que cuidava das almas, ao passo que hoje muitas vezes é alguém que precisa fazer mil coisas de caráter burocrático. E a mesma coisa vale para os professores: antigamente, também esta era uma vocação; hoje, o professor é um “informador” técnico, alguém que se limita a transmitir informações. Assim, as principais figuras sociais transformaram-se em figuras burocráticas; secularização quer dizer também burocratização, ou seja, a exclusão do elemento pessoal.

Portanto, o médico, o professor, o sacerdote, as principais figuras sociais que encarnavam os ideais, não o fazem mais. Do ponto de vista dos jovens, que precisam de figuras com as quais possam identificar-se, este é o verdadeiro problema ético da crise de valores. Porque, para um jovem, um valor encarna-se em uma pessoa: em um professor, em um padre, em um médico…, em alguém que se dedique aos outros. A redução dessa dimensão vocacional é a causa da crise moral dos nossos dias. Porque a moral somente é possível em um processo de identificação com alguém que encarne um ideal. É graças ao fascínio de uma personalidade que atrai pela sua idealidade que seguimos um ideal. Por isso, dizia que Ernesto Che Guevara se transformou no falso Cristo de milhões de jovens, porque ali, no meio do deserto em que estavam, podiam vislumbrar um ideal encarnado. Encarnado de maneira errônea, mas encarnado.

A ausência dessas personalidades é que constitui o grande problema dos nossos dias. É o que vemos também no nível educacional. Um educador só é realmente educador se essa for a sua vocação.

Vocare, “chamar”, implica que se responde a alguém. Você, educador, responde ao rapaz, ao jovem que está ali na sua frente; não pode perder o interesse por ele, não pode simplesmente dar-lhe aquelas quatro informações e, depois, ele que “se vire”… De algum modo, a existência desse jovem universitário encontra-se com a sua vida, e aquilo que você lhe dá e lhe comunica é importante para ele. A maneira pela qual se comunica é importante. A maneira, porque a personalidade está no estilo, no modo pelo qual se comunica alguma coisa, mesmo que se trate uma fórmula abstrata de matemática. É o modo como você vai ao encontro do estudante, como se preocupa em saber se ele compreendeu – se compreendeu de verdade! -, como o quer ajudar. Só assim emerge a paixão da educação e, portanto, do relacionamento que se tem de pessoa para pessoa. O elemento pessoal é o que faz a diferença!

 

Parece-me evidente que, se Che Guevara acabou assumindo um papel, digamos, “Cristo-símile”, evidentemente foi porque o verdadeiro Cristo não foi mostrado na sua integralidade. Houve, portanto, uma deficiência dos cristãos nessa tarefa. Qual é a nossa responsabilidade, e quais foram as nossas falhas, como professores universitários e como cristãos, para que a situação chegasse ao ponto a que chegou? E o que pode a Universidade fazer como estrutura para resgatar valores para o século XXI, que não serão apenas do século XXI, mas de todos os séculos futuros?

Concordo inteiramente com o que você dizia, ou seja, que se o Che Guevara assumiu o lugar de Cristo para milhares de jovens, foi porque o verdadeiro Cristo, na sua figura e na sua realidade, já não estava claro. Aliás, em muitos casos estava totalmente ausente… Poder-se-ia escrever um livro sobre a passagem de Cristo a Guevara, como Guevara tomou o lugar de Cristo no coração de milhares de rapazes na América Latina, levando-os depois às armas, levando-os a um destino terrível.

Li recentemente um livro de um teólogo bastante famoso que continua a dizer que Che Guevara convidava a amar os homens. Ma Santo Dio! Insomma… Quanta ingenuidade há nisso! Guevara queria ser um militante marxista-leninista perfeitamente ortodoxo, era extremamente duro na observância das regras da militância marxista, a ponto de ser cruel. Era duro consigo e impiedoso com os que estavam sob o seu comando. Para dizer o que dizia esse teólogo, é preciso sofrer de uma miopia absoluta!

E esse é o drama por trás do que você dizia: que a Igreja não foi capaz de propor Cristo como o verdadeiro tipo de homem e de ideal na integralidade dos fatores da vida, não para “o lado de lá”, mas para “o lado de cá”. Para a vida real, para a vida social…, para a solução dos problemas reais.

Em relação à Universidade, você perguntava – como docente cristão – qual é a nossa responsabilidade. Ela consiste, acima de tudo, em comunicar um ideal, não uma utopia. Porque nestes anos muitos confundiram os ideais com as utopias. Os ideais, já vimos, encarnam-se na existência do dia-a-dia, realizam-se no dia-a-dia, sem jamais atingirem a perfeição na sua realização histórica. Isto, porém, nada subtrai à energia e à paixão com que se procura comunicá-los e traduzi-los no concreto da existência, até os mínimos detalhes. Até chegarem a traduzir-se em paixão que se empenha no social e no político, paixão por uma mudança efetiva, para que a sociedade possa construir condições para o aprimoramento real da vida dos homens, sobretudo daqueles que têm mais necessidades.

Isto não é um “pauperismo”, diga-se de passagem; esta é a solidariedade que surge da fé como uma dinâmica própria. O marxismo apropriou-se da categoria de “pobre”, mas até prova em contrário a atenção aos pobres sempre foi uma expressão da dinâmica cristã da existência. Não nos esqueçamos disso, porque em caso contrário daremos ao marxismo uma dimensão que na verdade nasce da fé cristã. É conceder demais ao marxismo dizer que o problema dos pobres diz respeito só aos marxistas. A paixão pela justiça e pela realidade nasce propriamente de uma fé cristã encarnada – mesmo lembrando-nos de que os pobres sempre existirão, como diz Cristo, o que significa que a utopia nunca se realizará. Porque o que está em jogo é a condivisão da realidade da vida, de pessoa para pessoa, não a realização de um reino perfeito.

Será tão difícil assim distinguir entre os ideais que se declinam na história, por um lado, e as utopias pelo outro? Essa foi a grande confusão cultural destes anos: dizer que os ideais cristãos, que eram ideais de solidariedade e de justiça, nascidos da graça da fé e não de um projeto social, não podem nunca traduzir-se em um reino perfeito. Ora, o cristianismo realmente não propõe nenhuma teologia política! A teologia política é o sonho de que a política seja a realização da teologia; mas nenhuma política, nenhuma!, pode jamais realizar o teológico! Simplesmente não é possível! Daí não se deduz, porém, nem o desinteresse perante o sofrimento alheio, nem o fim dos ideais cristãos.

 

O filósofo Jacques Maritain propunha o Humanismo Integral, o “humanismo cristão”, como uma resposta frente ao marxismo. O senhor acredita, depois de o mundo ter passado pelo marxismo, depois de passar pelo capitalismo, que esse humanismo cristão não seria algo capaz de tapar as lacunas que apontava?

Se o “Humanismo Integral” seria a resposta? Dito assim, parece-me antes que seria uma nova ideologia. Maritain, naqueles anos, fez uma proposta ousada – é importante essa obra de 1936 -, e dizia muitas coisas verdadeiras. Mas não é que o cristão realize o humanismo de forma integral. Penso que é antes a fé que tem de encarnar-se, e que ela traz em si uma paixão integral por tudo o que é humano, e não censura nenhum fator do humano, nem os belos, nem os feios. Que ela tudo acolhe e tudo redime, não por obra das mãos do cristão – um mísero pecador como todos -, mas por obra de um Outro que através dele se exprime e se realiza na história. Por isso, diria que o cristianismo, quando é a consciência de Cristo que opera através de você, se exprime como paixão pela integralidade do humano.

“Integralidade do humano” quer dizer das necessidades mais simples às mais complexas; quer dizer a cultura, a política, as condições de vida, a família etc. etc. Quer dizer a relação entre homem e mulher, a relação com o estudo. Tudo vem revestido dessa presença que muda o coração dos homens, e provoca neles a esperança de uma mudança que se transforma em experiência. Há esperança na mudança, porque é uma mudança real, que acontece. E a vida que muda transforma-se no testemunho de um novo modo de agir dentro da sociedade, de uma modalidade nova de ser dentro do mundo.

Não é uma utopia, é o testemunho de humanidade renovada o que muda o mundo. A pequena Teresa de Calcutá era uma nulidade do ponto de vista político, mas aquela pequena mulher mudou a vida de centenas de milhares de pessoas. Sinal de esperança para os deserdados da terra, figura moral que deu a muitos a esperança de que, neste mundo de deserto, se pode viver com uma humanidade diferente, impregnada de ideal até às vísceras da carne.

 

Massimo Borghesi é professor titular de Filosofia Moral na Universidade de Perugia, de Ética e Teologia Filosófica na Universidade São Boaventura e de Hermenêutica e Filosofia da Cultura na Universidade Urbaniana de Roma; tem estudado especialmente o tema das raízes culturais da crise do pensamento moderno e das suas implicações políticas. É autor de diversos livros, ainda inéditos no Brasil, entre os quais os mais recentes são Il soggetto assente. Educazione e scuola tra memoria e nichilismo, Castel Bolognese, 2005 (trad. espanhola, Madrid, 2005);Secolarizzazione e nichilismo. Cristianesimo e cultura contemporanea, Siena, 2005 (trad. espanhola, Madrid, 2007);L’era dello Spirito. Secolarizzazione ed escatologia moderna, Roma, 2008. É o editor de Caro collega ed amico. Lettere di Etienne Gilson ad Augusto del Noce, Siena, 2008, com a correspondência entre os dois autores.

 

Tradução de Juliana Di Lollo, licenciada em Letras pela FFLCH-USP.

 


 

[1] Na Itália, assim como a cor vermelha é associada à esquerda e ao socialismo, a negra é associada à direita e ao fascismo (N. do E.).

[2] O principal grupo terrorista da esquerda italiana nos anos 70 (N. do E.).

[3] Augusto del Noce (1910-1989) foi um dos mais importantes filósofos políticos italianos do século XX. É um dos grandes estudiosos da crise do marxismo e do secularismo, e das suas relações com as raízes do pensamento moderno (N. do E.).

Publicado originalmente em: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-2/o-mundo-apos-a-crise-das-utopias/

Éticas ‘Light’, ‘Diet’ e New Age: o eu, o outro e a solidão

Sem Categoria | 16/12/2014 | |

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Pintor: Hans Thoma (1839–1924). Títlo: Loneliness (“Solidão”). Local:  [show]National Museum in Warsaw (NMW). A imagem está em domínio público.Hans Thoma (1839–1924), “Loneliness” (“Solidão”), National Museum in Warsaw (NMW)

Hoje, nossa cultura tem sido influenciada por dois extremos que, a meu ver, não ajudam a bem compreendê-la: de um lado, o discurso social alarmista que lamenta o fim da moral e, de outro, a manifestação festiva e cínica deste fato.

Não faz muito tempo, a sociedade buscava incessantemente sua libertação de tudo que representasse um passado moralista, porquanto se tratava de puro farisaísmo, efeito colateral da repressão burguesa reinante. De repente, por toda parte, assiste-se a uma louvável onda de imperativos éticos: luta contra a corrupção, proteção ao meio ambiente, ações humanitárias, códigos de linguagem não discriminatórios, chamamentos à responsabilidade e ética corporativa.

Os cantores de música oferecem seus decibéis aos mais necessitados e os artistas partem para ações de generosidade. Tal efervescência ética é tão plural que permitiu a restauração de antigos deveres, porque “já não é obrigatório ser liberal em tudo”. No entanto, causa-me a impressão de que a noção de dever absoluto e toda construção teórica que a cortejava desapareceu completamente. Ninguém quer mudar as coisas substancialmente, mas todos estão dispostos a corrigir a superfície.

Do mesmo modo que a sociedade moderna erradicou os matizes arbitrários do poder político, também desqualificou de vez a imposição de normas austeras e disciplinadoras sobre o comportamento dos indivíduos. A era pós-moralista não é transgressiva nem acanhada, é apenas “correta”. Ou melhor, politicamente “correta”.

A nova moral, uma espécie de ética light, é uma ocupação privada justificada desde o momento em que não existam causas públicas que demandem algum holocausto pessoal. Trata-se de um cosmético que ao menos torna mais gratificante sua apresentação externa, de sorte que todos os novos imperativos categóricos morais devem ter o mesmo padrão estético. A dúvida reside na sustentabilidade dessa versão light da ética social.

Aí está o berço da nova moral doméstica, do hedonismo ecológico, da obsessão pelo visual externo. No lugar de uma teia de relações e dependências inerentes às sociedades tradicionais ou até mesmo revolucionárias, existe, hoje, uma justaposição de indivíduos soberanos ocupados diuturnamente com a administração de sua qualidade de vida e com a otimização da gestão do eu.

Nessa ótica, é importante não depender do outro, a fim de se construir um ethos de autossuficiência e de autotutela, típico de uma época em que o próximo é muito mais um perigo ou uma moléstia do que um elo de atração. E o próximo tornou-se uma ameaça, porque, quando se perde a noção de transcendência vertical, fundamento último dos valores, o esfacelamento da transcendência horizontal é só uma questão de tempo. E de espaço.

Na era moderna, de várias maneiras procedeu-se à redução da ideia de Deus e do alcance desta, até sua eliminação implícita ou explícita, provocado por um secularismo dessacralizante da existência. De várias formas, as inúmeras correntes filosóficas indicaram valores objetivos determinados, na maioria das vezes, desligando-os de um vínculo divino. O Iluminismo, pai de todos os racionalismos, é um exemplo significativo desse eclipse transcendental, em razão do princípio de que os valores podem provir unicamente da razão humana.

De lá para cá, todos os valores proclamados pelo Iluminismo foram minguando-se aos poucos, justamente por estarem desvinculados daquele vínculo capaz de sustentá-los e de lhes conferir consistência ontológica. Hoje, como nenhum deles restou de pé, vivemos sob o império do niilismo, da completa ausência de juízos de valor e a máxima nietzschiana “Deus está morto” é uma expressão teórica extremamente lúcida, pois significa exatamente a separação dos valores de seu fundamento ontológico.

Privada de uma âncora de valores, a barca da humanidade está à deriva no oceano da realidade. Buscar uma tábua de salvação na ética light não resolverá a situação, porque os valores desta ética são como castelos de areia, que não têm solidez, desmoronam-se e, logo em seguida, a primazia do eu é restabelecida. A ética light é uma filosofia romântica e vaga: filosofia que serve de pouco quando nos deparamos com a inexorável realidade do outro.

Por outro lado, a cultura da autodeterminação narcisista, efeito atual de um processo de individualismo que culminou com o niilismo existencialista, não submeteu a esfera da moral às forças de um egoísmo impetuoso, mas a deslocou para uma variante muito sutil, a de uma moral sem deveres: a ética diet. Em voga, estão a caridade sem obrigação, o altruísmo brando e a ética mínima da solidariedade compatíveis, é claro, com a primazia do eu.

Nessa ótica, é importante não estar preso ao outro, sobretudo numa época em que o próximo é fonte de desejos inconfessados, mas também de receio ou de perigo. Por isso, o preservativo tem um valor simbólico muito grande e, porque não dizer, paradoxal. Trata-se de um envoltório que protege o indivíduo que não quer se comprometer com nada, porém deseja relacionar-se com o todo.

É um dos símbolos de uma cultura que, sob o manto de uma simpatia universal, esconde uma sensação de incômodo ante a presença ameaçadora dos outros. Equivale a uma situação de guerra de todos contra todos onde os combatentes foram privados de uma arma mortífera e só podem agir defensivamente. Só que, agora, não dá mais para ouvir Hobbes dizer que auctoritas non veritas facit legem (Leviatã, p.2, c.26), porque, afinal, cada um tornou-se a autoridade de si próprio.

Essa é a imagem do outro que fica no subconsciente das pessoas. Como exemplo, tome-se o bombardeio de propaganda contra a indústria do tabaco e do combate à AIDS, ações que, por si só, são louváveis. Quem é o próximo? O próximo reduz-se a um ser fumante e contagioso. O que é a sociedade? Um mero sistema de compartimentos estanques que permite somente o trato e a comunicação impessoais.

E o outro? Fica relegado ao ostracismo? O outro merece a devida atenção sempre e quando não se pretenda ir mais além de um altruísmo indolor, num altruísmo que não muda as pessoas substancialmente. Aliás, substância lembra robustez e, certamente, hoje, é o que menos se vê na aparência física das pessoas, principalmente no mundo da moda.

Assim, pode-se afirmar que esse afã estético acaba por refletir no agir ético de cada um: surge uma ética diet, uma ética sem robustez. Sem substância.Não é à toa que nunca se exibiram tantas realidades inadmissíveis, numa espécie de convocação à solidariedade, acompanhada de uma linguagem de reprovação.

Entretanto, tal êxtase de alteridade é epidérmico e pontual, pois é somente uma identificação superficial com o outro, devido à repugnância do espetáculo do sofrimento alheio. Um compromisso moderado e distante, sendo suficiente um gesto de indignação para que a consciência não fique dolorida.

Se todo um discurso moral limita-se à ótica narcisista, não há como se justificar o menor sacrifício. O problema do sacrifício (decorrente do dever) é um dos temas centrais da ética. O sacrifício é razoável, ainda que soe como um profundo mistério.

É uma ingenuidade pensar que se pode amar alguém, repartir os recursos escassos, tolerar as ideias contrárias ou proteger o meio ambiente sem carregar sobre si toda uma série de inconvenientes presentes e futuros, entenda-se, sem algum gênero de sacrifício.

Os homens ouvem as vozes dos seres que o rodeiam e é próprio do ser humano sentir-se obrigado por essas vozes. Elas são ouvidas, porque o homem é dotado de inteligência, a qual rompe o cerco da psicologia instintiva. Surge o dever de respeito por tais vozes e descobre-se que elas não existem apenas em função das necessidades do outro, mas subsistem por si mesmas e também têm necessidades profundas e não meramente superficiais. Eis o sentido do dever.

A ética diet exige muito do homem e, ao mesmo tempo, muito pouco: muito pouco, porque não o obriga a encarar as contingências da vida, nem o exorta ao dever e à responsabilidade; muito, pois o abandona em seus medos e o deixa sozinho ante a necessidade de orientação, desconhecendo a debilidade de sua natureza.

Não podemos esquecer o fato de que o ser humano tem o particular atributo de ser incapaz de viver sem deveres, os quais são, por sua vez, necessárias limitações de sua liberdade e protetores de sua fragilidade. Por isso, a apoteose do eu não causa uma eliminação da moral, mas apenas sua modificação.

Como a energia, os deveres não se eliminam, transformam-se. Motivo pelo qual o assento dos deveres nunca está vacante. Mas nem sempre está ocupado pelos mais razoáveis, principalmente quando o homem converte-se num ser egocêntrico: eis o principal efeito da ética diet.

Contemporaneamente, um dos males mais gritantes está na diminuição da estatura ontológica do homem a uma única dimensão, a dimensão física. Trata-se do resultado tardio do materialismo ontológico que, a partir do século XVII, formulou que tudo aquilo que existe é realidade física ou epifenômeno desta e, logo, o ser em todas suas manifestações possíveis, é reduzido ao plano físico.

 

No âmbito antropológico, negada a existência de qualquer outra dimensão que não seja a física, todas as características psicológicas do homem (no sentido etimológico do termo), segundo essa visão abrangente, seriam apenas epifenômenos do físico. Ou seja, um fenômeno secundário, que acompanha o principal e é por ele causado: em suma, sem existência própria.

A imagem do homem seria, então, aquela que nos é dada pelas ciências humanas, que têm, como modelo, as ciências da natureza. O homem é, assim, reduzido a uma mera peça da realidade material, subsistente por si mesma e sem referência ao transcendente, um elo da cadeia que se articula na dinâmica social, sobretudo da produção e do consumo, sujeito e objeto ao mesmo tempo de conflitos de natureza vária.

Um bom exemplo disto está na questão do belo, infectado pelo relativismo decorrente deste vazio transcendente, onde se supunha já haver alcançado um nível abissal: compara-se o concerto nº5 para piano de Beethoven com o batuque do Timbalada, uma poesia de Drummond com uma letra do MV Bill, os afrescos de Michelangelo com grafites de viaduto e “O Pensador” de Rodin com o urinol de Duchamp. Como dizia Leo Strauss, se todos os valores são relativos, o canibalismo é só uma questão de gosto…

Nessa imagem, a antiga máxima “o homem é um fim em si mesmo” perde todo significado e é substituída por outra “o homem é um meio”, isto é, um instrumento, um objeto, qualificativo atribuído aos escravos nas sociedades da História Antiga. E, assim, nessa ótica ética new age, todos os homens seriam, principalmente, instrumentos vivos de produção e de consumo, inseridos nas engrenagens de um sistema social cuja lógica lhes escapa. Não é à toa que, acerca da atual crise da razão, sentencia-se a morte do homem, o falecimento de sua dimensão metafísica.

No fundo, o homem perdeu a fé em seu valor, conforme dizia Nietzsche em seus Fragmentos Póstumos. Engendrado numa teia de relações sociais em que atua mais como objeto do que como sujeito, sem qualquer abertura ao transcendente, o homem só tem um refúgio a buscar, a saber, o próprio homem. E o individualismo que lhe resta nesta situação acaba por influenciar seu agir frente à ordem moral e reforçar o império das éticas light e diet.

As notícias da imprensa estão repletas de exemplos que fizeram do amor pelos seus apenas um meio de satisfazer seus próprios desejos. São políticos, empresários, cantores, artistas, atores que sacrificaram a plenitude de sua vida em nome da respectiva carreira, submetendo as necessidades alheias a seus próprios interesses e abraçando a ambição privada.

Depois, quando vem a fatura – o insucesso, o ostracismo, a doença, a velhice – descobrem-se como estranhos num mundo de estranhos mais excêntricos ainda, mas, ainda, desejosos de uma “nova” vida, algo que provavelmente não sucederá, porque a existência tão esperada se revelará uma trama de fracassos e desilusões latentes na memória.

Os homens do século XX trocaram o amor de doação, tão bem ilustrado na literatura, na pintura, na escultura, enfim, na história da arte, depositária das experiências mais ricas da humanidade, por um amor de aquisição, verdadeira máscara, bonita por fora, como as de Veneza, mas que, na face interna, a face oculta, representa o individualismo levado ao extremo.

Tais máscaras, vistas nas tragédias diárias das revistas especializadas, digamos, em retratar as amenidades alheias em pormenores (na falta de uma expressão melhor), escondem o progressivo esquecimento do sentido de doação, de serviço gratuito e de oferta sem pedir nada em troca. As miragens dos interesses individuais provocam um deslumbramento interior que, aos poucos, vai minando o rol cada vez mais diminuto de valores que a pessoa carrega consigo.

Um autor estrangeiro diagnosticou bem esse problema ao ter dito que “(…) as paixões que consomem se consomem velozmente; o amor se enfraquece multiplicando-se, e com o tempo se torna frágil. Os encontros que fazem nascer um novo amor matam o antigo amor. Os casais se desfazem, outros casais se formam e depois novamente se afastam. No amor entre o mal da instabilidade, da pressa, da superficialidade, que reintroduz o mal da civilização esmagado pelo amor”.

O individualismo exacerbado conduz a sociedade à atomização total dos indivíduos e, consequentemente, à inevitável solidão, seu efeito mais nefasto, e a resultante final das três éticas aqui abordadas: a light, a diet e a new age.

A solidão sempre nos conduz à uma reflexão pretérita, mas de nada adianta olhar para trás, pois o tempo cobriu nosso passado existencial com invisíveis mortalhas. Esse mesmo passado é o porto de onde a nossa embarcação já se afastou há muito. Vemo-lo ao longe, por entre as brumas. Mas, certamente, não há mais chance de regresso. Só de inconfessáveis lamentos.

por André Fernandes (IFE Campinas)