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O mundo após a crise das utopias (por Massimo Borghesi)

História | 20/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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Transcrição da palestra Depois de 68 e 89: o mundo após a crise das utopias, pronunciada pelo prof. Massimo Borghesi no dia 02 de outubro de 2008, no IICS (Instituto Internacional de Ciências Sociais) de São Paulo. Após o texto da conferência, reproduzimos algumas respostas especialmente significativas a perguntas formuladas durante o debate que se seguiu.

Buona sera a tutti voi. Antes de entrar no tema sobre o qual me foi pedido que falasse, gostaria de esclarecer algumas premissas.

A primeira destas duas datas, 1968, situa-se dentro do quadro de um mundo bipolar, dividido, e que assim continuou até 1989. É nesse contexto de bipolaridade que se compreende o clima daqueles anos, e como o ano de 1968 adquiriu uma forte orientação anti-ocidental e anti-americana, que levou muitos a aderir a uma perspectiva da história de tipo marxista. Naturalmente, o quadro mundial é diferenciado. Como sabem, no Brasil houve, de 1964 a 1985, uma ditadura militar e, portanto, a situação era diferente daquela em que se encontravam os Estados Unidos e a Europa nessa época.

A segunda data, 1989, precedida pelo declínio das ditaduras militares na América Latina, representou o fim da divisão entre leste e oeste. Se as ditaduras desapareceram naquele período, foi porque o mundo estava superando a divisão; não se tratava apenas de um fenômeno latino-americano, mas de um fenômeno mundial.

 

Os ventos mudam

Queria começar por ressaltar que as premissas de 1968 não nascem do espírito do marxismo – este é um aspecto para o qual quase nunca se chama a atenção.

O 1968 europeu é, sem dúvida, reflexo do americano. Todos sabemos que foi a contestação na Universidade de Berkeley que deu início aos movimentos estudantis nos Estados Unidos e depois na Europa. Essa contestação, no entanto, nascia de uns motivos muito concretos, sobretudo da oposição à guerra do Vietnã. Os jovens não queriam mais ir combater ali, e certamente tinham boas razões para fazê-lo, visto que os Estados Unidos se tinham embrenhado, graças à administração Johnson, em uma guerra perdida de antemão e difícil de compreender para os americanos de 65, 66, 67…

Na época de Kennedy, somente especialistas militares tinham ido ajudar o exército vietnamita; com Johnson, porém, dezenas de milhares de jovens americanos foram enviados a combater em uma guerra que não entendiam. Os historiadores sabem que a escalada militar empreendida por Johnson só foi decidida em 1965, após um incidente falso inteligentemente orquestrado no golfo de Tonquim e que serviu para justificar uma intervenção maciça.

Em oposição à batalha do Vietnã, estavam os ideais da New Frontier – a “Nova Fronteira” -, ou seja, os da era Kennedy, que preconizavam o apaziguamento leste-oeste depois da grave crise dos mísseis de Cuba, momento em que o mundo quase “tocou” a Terceira Guerra Mundial. Essa crise cubana foi a maior que o mundo enfrentou desde 1945, e por muito pouco não se chegou a um conflito atômico; apenas um milagre o impediu.

Recordemos que a encíclica Pacem in terris, de João XXIII, foi escrita nesse momento, depois da grave crise de Cuba; não nasceu do nada, mas de o mundo haver vislumbrado a Terceira Guerra Mundial – outro ponto de que quase ninguém se lembra. Toda a vez que se fala da Pacem in terris, fala-se dela como se fosse um documento de ideais altíssimos, mas utópicos. No entanto, o Papa quis aquele documento porque o mundo quase tinha chegado à Terceira Guerra.

Os ideais da era Kennedy eram de oposição não-violenta, como o eram inicialmente as contestações estudantis, que retomavam o ideário de Martin Luther King, nome de enorme peso e grande fascínio nos Estados Unidos. Esses ideais inspiravam-se, ainda de forma muito ingênua, no movimento hippie americano, no famoso dístico peace and love, ou seja, na concepção de um retorno edênico à natureza, alimentada por certa literatura de tipo naturalístico.

Também na Europa o clima que precedeu 1968 era positivo, sem nenhuma relação com a violência subseqüente: o mundo passava por um momento de apaziguamento leste-oeste; havia acontecido o Concílio Vaticano II, com suas grandes esperanças; existia um desejo de solidariedade entre os povos. Recordo-me disso porque era jovem como vocês são agora, e lembro-me da ânsia que havia entre a juventude de que se resolvesse o problema da fome no mundo e de que a Europa e o Ocidente ricos se encarregassem dos problemas dos países pobres – o que, do ponto de vista europeu, significava principalmente o continente africano.

Esta atmosfera positiva mudou logo depois dos episódios de violência de 1968 e 69. Muitas vezes nos perguntamos: Como foi que se chegou àqueles anos? Como foi que se chegou àquele clima contestatário?

Chegamos a isso porque os próprios poderes intervieram para criar uma situação de violência, isto é, houve uma série de episódios nos quais os interesses dos poderosos causaram traumas que a seguir se manifestaram em reações violentas. Isto é importante, ao menos na minha modesta opinião, porque foi exatamente nesta passagem que se consumiu a alma religiosa cristã dos anos 60. Ou seja, o período que precedeu o ano de 68 era de forte idealismo, e quem não o viveu dificilmente pode compreender o que foi; mas aqueles ideais, a certa altura, foram crestados, destruídos pela radicalização de um conflito que se tornou violento.

A década de 60 viveu certamente, e com grande intensidade, uma ideologia de matriz fortemente cristã, determinada também, no mundo inteiro, pelo espírito do Vaticano II. E foi nesse momento que ocorreu a transição para a hegemonia marxista, passando-se de um tempo carregado dos valores da solidariedade cristã para um clima violento, duro, no qual o modelo marxista toma a primazia e passa a englobar em si o cristão.

Quais foram os eventos de violência que radicalizaram a situação, modificando o clima? Nos Estados Unidos, foi com certeza a morte de Martin Luther King, assassinado em Memphis a 4 de abril de 1968. A morte de King significava que os negros americanos não podiam mais esperar conseguir a igualdade pela via pacífica, baseada no modelo de Gandhi; e prevaleceu a idéia de que somente poderiam obter seus direitos pelas armas, pela violência. Pouco depois, a 6 de junho de 1968, Robert Kennedy foi assassinado, e também isto teve um significado muitíssimo simbólico: depois de John, também o seu irmão Bob tinha sido morto, o que era como se o ideal da “Nova Fronteira” se tivesse afundado definitivamente.

Na Itália – menciono-o porque evidentemente é a situação que conheço melhor -, aquilo que se veio a chamar de estratégia da tensão iniciou-se em 1969 com a bomba colocada no Banco Nacional da Agricultura, que fez mais de oitenta mortos. Os culpados jamais foram encontrados, mas as investigações apontam certamente para movimentos da extrema direita italiana. A estratégia da tensão (que se concluiu nos anos 80 com mais de 500 vítimas, entre mortos e feridos) principiou com essa bomba e originou a dialética rosso-nero, entre “vermelhos” e “negros” [1], da qual não se sairá mais – ou seja, a dialética entre a extrema esquerda e a extrema direita, unidas em torno da santificação da violência como método político.

 

À esquerda da esquerda

Como reação a tudo isso, cria-se uma radicalização da esquerda, que passa a estar toda sob a hegemonia da posição marxista. Trata-se de um comunismo revolucionário que já não se reconhece mais nos velhos partidos comunistas do tipo do italiano ou francês, mas busca como modelo a China, o Vietnã ou Lênin – o comunismo soviético do início, puro e duro, que não aceitava nenhum compromisso com o mundo burguês. Isso ao menos na Itália e na Alemanha, não na França, o que é um pouco paradoxal porque o ano de 1968 na Europa se abre com o famoso maio parisiense.

Na França, entretanto, o ano de 68 tem uma coloração diferente, porque ali penetra muito rapidamente a lição do Arquipélago Gulag, de Aleksander Solzhenitsyn, o grande autor russo que, depois de passar pela experiência do campo de concentração, escreveu essa que foi a mais crua denúncia do totalitarismo soviético. Enquanto Solzhenitsyn não foi levado muito a sério na Itália, os intelectuais parisienses foram muito influenciados por ele.

E eis que agora a contestação francesa assume uma fisionomia diferente em relação à alemã e à italiana: na França, o ano de 1968 não gerou a hegemonia marxista nem o terrorismo. Ao contrário, o 68 parisiense é fortemente crítico do modelo soviético, e valoriza um outro 68, aquele que ocorreu nas ruas de Praga (vocês sabem que na Checoslováquia houve a famosa “primavera de Praga”, esmagada pelos tanques soviéticos). Pois bem, a França era muito sensível a esse outro 68 que protestava, sobretudo, pela liberdade, e não apenas contra o mundo burguês.

Nos Estados Unidos, a esquerda não é marxista, pois jamais houve um partido comunista digno deste nome. E esta esquerda “oposicionista” exprime-se por meio de uma espécie de ideologia dos pluralismos “mutuamente incompatíveis”, por assim dizer. A refutação do modelo americano se expressa em uma série de “tribos” que reivindicam de maneira orgulhosa a própria identidade. Assim, os negros americanos assumem a mensagem de Malcolm X, a idéia de que os afro-americanos não devem se identificar com a sociedade dos brancos, mas sim construir uma identidade totalmente fechada ao relacionamento com eles. Assim também a idéia do feminismo como identidade que não é possível harmonizar com o universo masculino, e igualmente os movimentos homossexuais, etc.

Na América Latina, o vento de 1968 traz a concepção da “teologia da revolução”, paradoxalmente favorecida também pelas ditaduras que, neste intervalo, tomaram a geografia da América do Sul. A seguir, este vento traria a “ideologia indígena”, também ela uma realidade que reivindica o retorno à “antiga identidade” contra o Ocidente, ao menos o hispânico e cristão, e por isso acalenta a volta às antigas origens indígenas, pré-cristãs, anteriores à colonização. Essa perspectiva é o resultado final daqueles anos…

Voltando à Europa, a corrente que se põe à esquerda do partido comunista italiano, aquela que deu vida ao fenômeno terrorista, manifesta-se na Itália, na Alemanha, na Espanha com a ETA e na Irlanda com o IRA. Na Itália, atinge o ponto máximo de força e violência com a morte do grande estadista Aldo Moro, o primeiro-ministro democrata-cristão assassinado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas [2]. Este é auge do terrorismo na Itália, mas ao mesmo tempo é um ponto de inflexão, pois os terroristas alcançam um grau de alienação tão radical da sociedade civil italiana que assinam ao mesmo tempo a sua condenação moral e, conseqüentemente, a sua crise.

Quem encarna verdadeiramente o ideal dos jovens daqueles anos? Certamente é o mito de Ernesto Che Guevara, morto em 9 de outubro de 1967. Em 1968, 69 e 70, Guevara torna-se um mito para milhares e milhares de jovens europeus. A famosa foto de Alberto Corda que mostra o “guerrilheiro heróico” percorre o mundo inteiro. Guevara aparece realmente como um novo Cristo, mas um Cristo guerrilheiro, que não se limita a carregar a cruz, mas a usa como espada, e assim une o pathos da paixão ao do poder.

Esta atitude, ou melhor, este mito, este herói ateu repleto de um poder propriamente religioso, certamente traz consigo a idéia da “santificação da violência”, que serviria para desagregar os poderes maus do mundo e que, por isso mesmo, traz em si alguma coisa de sagrado. Para muitos jovens, o Che fez o papel de mediador da passagem do cristianismo para o marxismo. Se não tivesse havido esta imagem de um “santo laico”, tal passagem teria sido muito mais difícil, porque não é tanto a ideologia que atrai, mas sobretudo o exemplo: a imagem do Che morto era como a do Cristo morto. Tudo isso mexia mais com a imaginação do que todas as doutrinas possíveis.

A legitimação cristã passava agora através da revolução. Para poder ser cristão, era preciso ser de alguma forma revolucionário; caso contrário, a pessoa seria considerada reacionária ou conservadora, ou ao menos pertencente ao mundo burguês. Um cristão, para poder afirmar-se como tal, tinha de pagar o seu tributo à ideologia da revolução: ao menos, deveria ser inimigo das classes superiores, deveria de algum modo aceitar a violência como método para a libertação dos oprimidos.

É aqui que se encontra o fulcro da crise do Concílio Vaticano II, e também este é um aspecto sobre o qual se reflete muito raramente. O período de 1968-1970 não é o da realização do Vaticano II, mas o da sua traição. Do ponto de vista “tradicionalista”, costuma-se dizer que Vaticano II e o ano de 68 são a mesma coisa, o que não é verdade. Os anos de 68 a 70 são a traição do seu espírito, do espírito que desejava a unidade, o apaziguamento, a paz, o “método da paz” como solução para os conflitos entre os povos, que queria que se atenuassem as diferenças entre “norte e sul” – e em tudo isso não há nada da ideologia marxista que depois virá, com a “teologia da revolução”. O marxismo sempre pretende tomar o lugar do cristianismo, e por isso trai necessariamente o Vaticano II: não há conciliação possível.

 

O que ficou de 1968?

O mundo bipolar era um mundo impiedoso. Combatia-se pela hegemonia, e as “forças alternativas” não tinham espaço – ou se estava de um lado, ou se estava do outro. Era uma perspectiva impiedosa, mórbida nos países da Europa e sangrenta fora deles – como na África, no Oriente Médio e na América Latina. O clima somente melhoraria a partir de meados dos anos 80, com a presidência de Gorbachev na União Soviética.

Sabemos que o Muro de Berlim caiu em 1989. Em 1991, foi o fim da URSS, quando a bandeira vermelha foi recolhida dos muros do Kremlin, em Moscou. E era também o fim da ideologia comunista – a grande religião atéia, a religião para os ateus do século XX, a grande fé que moveu milhões de homens que não acreditavam mais em Deus.

Com isto, é chegado o momento de nos perguntarmos: O que ficou de 1968? O que esse ano construiu?

Ficou muito pouco em termos positivos, e muito em termos negativos. A associação entre utopia e violência consumiu tudo o que havia de positivo na utopia, a ânsia inegável de solidariedade e de justiça. E trouxe como resultado uma espécie de cinismo em massa, ou seja, aquilo que um grande pensador italiano, Augusto del Noce [3], chamou “o burguês no seu estado puro”.

O resultado do fracasso da revolução ou dos ideais revolucionários foi a “era do desencanto”, do cinismo generalizado. Os anos 80, e depois também os 90, são a era na qual os ideais se resumem a: “Divirta-se, goze a vida e enriqueça”. Quem for mais capaz e tiver mais meios na vida, passe à frente. Para os outros, não há piedade. São os anos do “novo poder”, daquilo que na Itália Pier Paolo Pasolini diagnosticava de maneira muito lúcida: “Está-se criando um novo poder, o mais dessacralizante que possa haver. Um poder para o qual não há mais nada de sagrado”. Dizia-o a respeito da vida humana, do aborto; e, dirigindo-se aos seus amigos progressistas, acrescentava: “Vocês não se dão conta de que estão dando um presente àquelas forças desapiedadas que não reconhecem mais nada de sagrado, às forças da mercantilização integral da vida? Pensam que são progressistas, mas não percebem que desta maneira estão sendo conduzidos por aqueles que querem que a vida se reduza a uma mera mercadoria!”

A falência da ideologia marxista, portanto, cria um xeque-mate que ela não pôde dar enquanto existia: a sua falência é a sua realização, a sua única realização possível. Ou seja, o marxismo não pode atuar na parte positiva, porque é uma utopia que jamais se pode realizar. Continua a atuar, porém, pela parte negativa, que é a crítica a todos os ideais.

Para o marxismo, todos os ideais são disfarce para interesses de classe; ou seja, todos os ideais são ideologias, não há ideais verdadeiros. Mesmo os ideais universais são ideologias, refletem apenas o ponto de vista dos vencedores, que querem impor a sua ideologia a todos. Assim, o marxismo educou os seus seguidores para a mentalidade de que não existe nenhum ideal válido, porque tudo está em função das leis da economia.

E quando o marxismo morre, o que fica? Permanece, como vimos, a parte negativa, que é aquela que chegou até os nossos dias e atingiu milhões de jovens nestes últimos anos. Se não há mais nada a que valha realmente a pena dedicar a vida, a única coisa que resta é enriquecer e progredir sem escrúpulos. Isso significa, no final das contas, que só permanece a idéia do “burguês em estado puro”. O revolucionário gera o “burguês em estado puro”, um burguês que não tem mais nenhum interesse ideal com exceção do de enriquecer sem nenhum freio ético e moral.

Depois do fim do poderio soviético, esta crítica investe contra o próprio marxismo e o comunismo. No fundo, o comunismo, nos anos em que existiu – também quando criticava a União Soviética -, vivia do seu poderio. No momento em que a União Soviética acaba, quando já não se considera comunista, o comunismo passa a não ter mais nenhuma “realização histórica” e o marxismo também se reduz a uma ideologia. A crítica que fez a todas as outras ideologias volta-se contra ele mesmo, que se torna uma ideologia entre tantas outras. Já não pode certificar a própria realidade porque, como o seu único critério de verdade é a práxis, a atuação histórica, no momento em que é desmentido pela história decai para uma posição totalmente questionável.

 

A vacilante ideologia da globalização

Dizíamos que os anos 80 são movidos pelo desencanto, pela ânsia de enriquecimento e pela euforia de mercado. Ou seja, movem-se por uma nova ideologia, a ideologia da globalização. Não foi somente o ano de 1968 que gerou utopias, igualmente o fez o ano de 1989. Por exemplo, aquela que o filósofo americano Francis Fukuyama chamou, em 1992, deThe End of History and the Last Man: ou seja, a idéia de que, com o fim do comunismo, a história acabou; o mundo já não seria bipolar, mas unipolar, uno, baseado todo ele no modelo americano, controlado por uma única economia global. Este foi o sonho, o mito de inícios dos anos 90.

É a idéia, enfim, de que não temos mais razão para conflitos, de que as guerras não têm mais sentido, de que a humanidade se encaminha para a uniformidade e, portanto, para a paz. Tudo isso era, em todo o caso, sugerido pelo que acontecia na política, porque aquele foi um período feliz, especialmente para a América Latina, uma vez que todas as ditaduras – ou quase todas – foram caindo uma após outra como castelos de cartas.

No plano religioso, a “teologia da revolução” torna-se “teologia do diálogo”. Esta é outra transição interessante, pois se passa do ideal da violência para o do diálogo, que é levado ao ponto de afirmar que, no fundo, todas as religiões são iguais. O mundo é uno e, portanto, todas as religiões veneram a mesma coisa… Graças a essa tendência, a religiosidade vai-se superficializando para uma espécie de New Age. Como sabem, a década de 90 é a do New Age: a religiosidade já não tem fronteiras, une os homens para além da diversidade das Igrejas e dos credos, etc. Tudo isso leva ao declínio da política e à idéia de que o fator que realmente importa é o econômico – a globalização -, juntamente com o religioso, sob a forma de uma religiosidade do tipo New Age.

Diante disso, o 11 de setembro de 2001 certamente representou a crise do período pós-1989. De modo repentino, passou-se de uma espécie de condição de conciliação ecumênica, de “diálogo”, ao maniqueísmo mais brutal e decidido. O mundo subitamente voltou a colorir-se de preto e branco: o Ocidente contra o Oriente, contra o Islã que agora aparece como totalmente negativo, como a fonte de todo o mal; mas ainda em nome de uma globalização que já não era pacífica, mas devia ser imposta à força, se necessário. A democracia já não se exportava em conjunto com o mercado, exportava-se da maneira dura, à base de canhões.

Mas era já uma globalização em crise. Todos conhecemos a obra de Samuel Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, de 1996, que representa uma resposta a Fukuyama, e sabemos da sua importância. Não é verdade que o mundo é uno, diz ele: está dividido em grandes civilizações inconciliáveis entre si, em grandes civilizações históricas que voltam à tona de tempos em tempos e tendem a estar em conflito umas com as outras.

Esse texto de Huntington era extremamente crítico com relação às teses de Fukuyama. Foi escrito em 1996, mas se tornaria atual em 2001. Examina os limites do poder americano frente ao renascimento da Ásia, ou melhor, da China e da Índia, das grandes civilizações históricas. O autor faz uma análise muito interessante: uma vez que a globalização favorece o poder econômico de grandes zonas da terra que foram excluídas da riqueza, aquelas zonas inevitavelmente redescobriram as suas identidades culturais e religiosas ancestrais e passaram a orgulhar-se das suas próprias tradições culturais e religiosas. Redescobriram assim a sua identidade, em antítese às outras identidades.

A globalização favoreceria, portanto, o pluralismo das potências civilizadas, resultado que não era previsto pela análise de Fukuyama. E não só não favoreceria a unidade, mas, pelo contrário, favoreceria o renascimento do prestígio das grandes potências históricas, que tinham sido niveladas no embate entre Leste e Oeste, entre comunismo e capitalismo. Na sua divisão, Huntington se refere particularmente ao Ocidente cristão, mas sem incluir a América Latina, pois para ele o “Ocidente cristão” é o majoritariamente protestante. A América Latina, diz ele, faz parte de um cristianismo, digamos, sui generis.

O último elo das ideologias de 89 a cair é a idéia do mercado global, que constitui o problema dos dias atuais. A atual crise do sistema financeiro americano, de 2008, põe-nos novamente cara a cara com o primado do político, aquele fator que tinha sido esquecido. Acabou-se a era do mercantilismo: agora, todos gritam que o mercado deve ser submetido a regras e todos almejam a “economia real” contra a tal “economia financeira” que reinou inconteste durante todos estes anos.

Ao mesmo tempo, percebemos que também a visão economicista da ideologia da globalização produziu um deserto da vida, uma destruição das relações pessoais. É nesta perspectiva que as reflexões dos pensadores comunitários americanos se tornam importantes – penso em MacIntyre ou em Charles Taylor como representantes desta corrente que indubitavelmente é importante. Na Europa, é dominante a figura de Jürgen Habermas, o expoente da “inteligência democrática” européia, que nos últimos anos – mais precisamente depois de 2001 – volta a perguntar-se sobre a importância da dimensão religiosa para recriar entre as pessoas uma solidariedade que a secularização maciça desses anos dissolveu de maneira impiedosa…

A partir disto, este crítico laico iluminista iniciou um diálogo de enorme interesse com o então cardeal Ratzinger, dando origem a um debate que continua até hoje. Na Itália, por exemplo, as teses de Habermas são muito discutidas, sobretudo nos ambientes laicos, porque apanharam o laicismo italiano de surpresa. Afinal, foi do mais importante expoente da inteligência progressista européia que veio uma provocação de altíssimo nível: o pensamento laico democrático atual não pode deixar de considerar a dimensão religiosa, a fim de ser capaz de reconstituir os vínculos de solidariedade que estão por trás da prática democrática hoje…

 

Conclusão

Em resumo: que aconteceu de 1968 a 1989 e até 2008? Passamos da utopia coletivista a um individualismo exasperado, e depois à consciência de que tanto um quanto o outro são ideologias. É ideologia o marxismo, é ideologia a idéia de que a globalização traz o paraíso a terra. Tudo não passa de ideologia. Na realidade prática, são necessários tanto o Estado como o mercado; são necessárias tanto a nação como a realidade supranacional, tanto a laicidade como a abertura para a dimensão religiosa, tanto a fé quanto a razão. Esta é a compreensão realista, que considera as diferenças e ao mesmo tempo trabalha para trazê-las a uma possível harmonia.

Mas há uma reductio ad unum das ideologias que não se sustenta. Um modelo é ideológico precisamente quando pretende simplificar a realidade, reduzindo-a à unidade. A realidade não é una: vive de tensões que têm de ser contidas para que não se tornem conflitivas, para que não explodam. Isso vale para as suas diversas formas, desde classes sociais e religiões até as nações e os estados. Por isso, pede sempre uma “política” em sentido amplo, política que é a arte, não apenas do possível, mas a arte de criar relações tranqüilas entre as diversas entidades contrapostas.

Isto vale também para a teologia, a qual, com excessiva freqüência, andou a reboque da sede de poder das ideologias que se alternaram ao longo dos últimos trinta anos. Nos anos 70, em muitas partes do mundo, fez-se uma “teologia da revolução” que, no fundo, ia atrás do poder – do “poder dos oprimidos”, sim, mas na realidade também de um outro poder muito bem determinado. Nos anos 80 e 90, passou a ser a “teologia New Age“, a do diálogo fácil, como se o mundo já estivesse às portas do Éden e tudo fosse simples. E de 2001 para cá tornou-se “teologia da identidade”, como na Europa, onde se fala agora com muita desenvoltura do “Ocidente cristão”, como se o cristianismo não fosse mundial, como se tantas partes do mundo fora do Ocidente não fossem católicas. Nesta ótica, não seriam cristãs a América Latina, as Filipinas, parte do Vietnã e da Coréia, grande parte da África… O “Ocidente cristão” significa a parte rica do mundo, isto é, somente o Canadá, os Estados Unidos e a Europa.

É evidente que aqui há um uso ideológico: quando a fé não interessa, é “privatizada”, e quando interessa é “propagandizada” em função do adversário. Isso não passa de uma instrumentalização, a que a teologia não se deveria prestar. O cristianismo corresponde às exigências do tempo sem, no entanto, conformar-se a ele. Deve levar em consideração a época histórica, as alternâncias de poder, as novas orientações, mas isso não significa conformar-se ao poder do momento. É necessário levar em conta os poderes, mas também a transcendência em relação a eles. Caso contrário, como o demonstra o percurso de 1968 a 2001, a fé condena-se a perseguir as ideologias do momento. Aquelas que a história, ao voltar as páginas, descartará como desatualizadas.

 

Perguntas

O materialismo, a crise da metafísica, da espiritualidade, da moralidade…, parecem ter crescido mesmo depois da queda do marxismo. Podemos dizer que o marxismo político, econômico, etc. caiu, mas o marxismo cultural permanece e até ganhou mais força?

Essa pergunta levanta um problema interessante: se o marxismo continua apesar dos pesares a ter certo peso no plano cultural, é evidente que traduz ou responde de alguma maneira a problemas reais. Para que determinada atitude cultural, política, religiosa…, responda adequadamente ao marxismo, é necessário que responda a esses problemas. Não basta simplesmente dizer que o marxismo está errado – o que é verdade -, mas depois não ter em conta que milhares de pessoas julgaram encontrar nele a solução para os seus problemas. Uma posição que queira ser antitética, oposta, ao marxismo, deve mesmo assim dar-se conta dos problemas históricos, sociais, reais a que o marxismo, ainda que de maneira errada, tentou dar solução. Caso contrário, diz-se: “Errou , e…” Não, as coisas não são tão simples assim. Afinal, o problema das tensões sociais, o problema de uma maior eqüidade, etc., são problemas reais.

Considerem o documento em que a Congregação para a Doutrina da Fé criticou de maneira impecável a Teologia da Libertação. Pois bem, nesse mesmo documento, se for lido com atenção, encontra-se toda uma série de pontos em que o mesmo organismo diz ser preciso enfrentar as exigências de justiça oriundas daqueles setores da população que, mais do que outros, puseram as suas esperanças na utopia marxista. Ou seja, a crítica à Teologia da Libertação deve ser acompanhada de um relançamento da Doutrina social da Igreja. Caso contrário, desenvolve-se apenas a parte negativa, quando o que falta é muitas vezes a parte positiva.

 

Hoje temos, de um lado, o extremismo islâmico, e do outro o “extremismo consumista”, tanto no Ocidente como nos países egressos do marxismo. No caso do Islã, o perigo parece ser o de uma cultura dirigida para o extremismo, ou pelo menos de uma cultura que o facilita; já o que caracteriza o consumismo é a falta de cultura, ou uma cultura apenas internética e superficial.

Eu diria que o consumismo e o extremismo islâmico, como diz, certamente merecem ser considerados as duas faces de uma mesma moeda. Porque é do deserto que nasce a reação fundamentalista: quanto mais uma sociedade é árida, tanto mais o fascínio do integralismo fundamentalista encontra eco ali.

No que diz respeito a muito dos islâmicos europeus, são com freqüência os filhos daqueles que vieram para a Europa a fim de trabalhar e inserir-se na sociedade ocidental que encontram na mensagem fundamentalista um sentido para a vida, em contraste com o deserto das nossas cidades em que já não lhes é oferecida nenhuma mensagem espiritual de tipo algum. Como a secularização esvaziou totalmente as almas, a mensagem fundamentalista representa para estes filhos de imigrantes um encontro com as suas raízes, um retorno à dimensão comunitária, uma redescoberta dessa relação com o divino que já não lhes é oferecida de outra maneira. Portanto, o fundamentalismo do tipo que amadurece na Europa é uma reação à secularização, àquilo a que chamamos consumismo, e que na realidade quer dizer, em última análise, a destruição da alma. Quando sobram apenas os corpos, as almas – por assim dizer – já não têm vida.

 

Um dos grandes problemas, que me parece que os europeus também têm, mas aqui me dá a impressão de ser mais dramático, é o do aburguesamento da juventude, no sentido de um fechamento cada vez mais individualista diante de uma realidade social em que a solidariedade é, no entanto, uma exigência gritante. Gostaria de que você falasse um pouco mais sobre o que significa esse “burguês em estado puro”, no conceito de Augusto del Noce.

Antes de mais nada, desejo prevenir um equívoco: não pretendo fazer polêmica contra a burguesia, porque isto não faria sentido. Todos aqui, até certo ponto, pertencemos à classe burguesa; não é esta a questão que interessa, não se trata de fazer aqui uma análise de tipo sociológico.

O que caracteriza o “burguês em estado puro” é que perdeu completamente os ideais da vida. Esta foi, de alguma maneira, a tragédia do fim do comunismo. O comunismo não foi uma tragédia apenas quando era poderoso; foi também uma tragédia quando desabou porque, ao desabar, arrastou consigo todos os ideais. Como todos estavam concentrados nessa ideologia, o fim dela trouxe consigo o fim de todos eles. Este é o grande paradoxo do fim do comunismo!

Isto se observa muito bem em toda a minha geração, a geração de 68. Esta geração lutou, esperou, fracassou, e qual é o resultado hoje? Quem tem agora cinqüenta, sessenta anos, é via de regra um homem totalmente desencantado, que não crê mais em nada. Os ideais em que esperou nos anos de sua juventude faliram e o resultado é a falência de todas as esperanças. E é esta geração, muitas vezes, que está ensinando nas cátedras das escolas. Já não consegue transmitir nenhuma esperança aos jovens porque carrega consigo apenas a desilusão da falência dos próprios ideais. Não pensa que, como os seus ideais faliram, precisa experimentar outros. Pensa que aqueles ideais eram os únicos, e como faliram, que já não há esperança alguma. Este é o seu drama – e por isso repito que o comunismo foi uma tragédia não somente enquanto estava no poder, mas que também criou uma tragédia ao cair, porque levou consigo toda a capacidade de esperar por uma mudança.

O resultado é o “burguês em estado puro”, ou seja, a pessoa que agora vive unicamente da dimensão imediata da vida. Entre milhões de jovens europeus de hoje, qual é a percepção imediata da vida? Limita-se a um medo instintivo da morte, a uma instintividade imediata, que substancialmente quer dizer Eros vivido de maneira naturalística, e à possibilidade de ter sucesso na vida a qualquer custo e sem muito escrúpulo. Essa instintividade imediata foi o que sobrou – e não há mais nada.

 

O que fazer, como professores universitários, diante dessa situação, além de observá-la e lastimá-la?

O que fazer…? Diria que, diante disto, a Universidade tem antes de mais nada uma responsabilidade educativa. Porque a maneira como se transmite uma matéria não é nunca algo neutro, é sempre uma maneira de você se encontrar com jovens que desejam aprender, conhecer. Você não se limita a ensinar-lhes uma disciplina, você lhes ensina um modo de enfrentar essa disciplina, um modo de relacionar-se com a vida através dessa disciplina. É tudo isto que está contido no ensino: não se trata apenas de uma série de informações sobre uma determinada matéria, mas da maneira como essa matéria será exercida, compreendida, relacionada com a própria existência e depois com a realidade da vida em geral. Nisto há uma dimensão ideal, ética, moral, e em última análise religiosa, que quem se limita a fazer de “informador” simplesmente já não compreende.

 

Recordo-me de uma frase que, como professor, sempre me impressionou muitíssimo. É de Olivier Clément, que, com palavras talvez um pouco injustas, mas tocantes, dizia: “Vocês, professores, continuam a ensinar do jeito que sempre ensinaram e os vossos alunos continuam a suicidar-se cada vez mais”. O que percebemos é que quase todos os professores concordam em princípio com essa afirmação, mas pouquíssimos são capazes de aplicá-la na prática; não querem limitar-se a ser meros “retransmissores de informação” ou, pior ainda, “transmissores de vazio”, mas acabam tornando-se exatamente isso.

Este processo de formação do “burguês em estado puro” – equivalente na prática ao que se costuma chamar “processo de secularização” – atingiu todas as principais figuras sociais. Hoje costumamos falar de “crise de valores”, e esta frase tornou-se tão comum que passou a ser banal. “A nossa sociedade não vai bem porque existe uma crise de valores”. Mas os valores, em si, não dizem nada! Os valores só são reais quando estão encarnados, e dentro de uma sociedade os valores são encarnados pelas figuras sociais.

Quais são as principais figuras sociais que já não representam valores? São as figuras eminentes. Pensem na figura do médico: até há trinta ou quarenta anos – na Europa pelo menos, não sei como será aqui -, ser médico não era apenas uma profissão, era também uma vocação. O médico podia ser chamado a qualquer hora, estava sempre a serviço do doente. Hoje, para nós, tornou-se um burocrata. É alguém que se limita a escrever receitas e a mandar-nos para o hospital. É médico apenas para ganhar dinheiro, não mais por uma vocação; esqueceu-se totalmente da dimensão pessoal do relacionamento com o paciente, que antes estava no próprio centro da prática médica.

O mesmo ocorre com outras figuras sociais: o político, antigamente, era alguém que vivia por uma paixão ideal, representava o povo, ao passo que hoje é um burocrata muitas vezes sem relacionamento algum com os eleitores; responde apenas ao poder do alto, não mais ao poder que vem de baixo. Mesmo os sacerdotes transformaram-se muitas vezes em burocratas: o sacerdote era aquele que cuidava das almas, ao passo que hoje muitas vezes é alguém que precisa fazer mil coisas de caráter burocrático. E a mesma coisa vale para os professores: antigamente, também esta era uma vocação; hoje, o professor é um “informador” técnico, alguém que se limita a transmitir informações. Assim, as principais figuras sociais transformaram-se em figuras burocráticas; secularização quer dizer também burocratização, ou seja, a exclusão do elemento pessoal.

Portanto, o médico, o professor, o sacerdote, as principais figuras sociais que encarnavam os ideais, não o fazem mais. Do ponto de vista dos jovens, que precisam de figuras com as quais possam identificar-se, este é o verdadeiro problema ético da crise de valores. Porque, para um jovem, um valor encarna-se em uma pessoa: em um professor, em um padre, em um médico…, em alguém que se dedique aos outros. A redução dessa dimensão vocacional é a causa da crise moral dos nossos dias. Porque a moral somente é possível em um processo de identificação com alguém que encarne um ideal. É graças ao fascínio de uma personalidade que atrai pela sua idealidade que seguimos um ideal. Por isso, dizia que Ernesto Che Guevara se transformou no falso Cristo de milhões de jovens, porque ali, no meio do deserto em que estavam, podiam vislumbrar um ideal encarnado. Encarnado de maneira errônea, mas encarnado.

A ausência dessas personalidades é que constitui o grande problema dos nossos dias. É o que vemos também no nível educacional. Um educador só é realmente educador se essa for a sua vocação.

Vocare, “chamar”, implica que se responde a alguém. Você, educador, responde ao rapaz, ao jovem que está ali na sua frente; não pode perder o interesse por ele, não pode simplesmente dar-lhe aquelas quatro informações e, depois, ele que “se vire”… De algum modo, a existência desse jovem universitário encontra-se com a sua vida, e aquilo que você lhe dá e lhe comunica é importante para ele. A maneira pela qual se comunica é importante. A maneira, porque a personalidade está no estilo, no modo pelo qual se comunica alguma coisa, mesmo que se trate uma fórmula abstrata de matemática. É o modo como você vai ao encontro do estudante, como se preocupa em saber se ele compreendeu – se compreendeu de verdade! -, como o quer ajudar. Só assim emerge a paixão da educação e, portanto, do relacionamento que se tem de pessoa para pessoa. O elemento pessoal é o que faz a diferença!

 

Parece-me evidente que, se Che Guevara acabou assumindo um papel, digamos, “Cristo-símile”, evidentemente foi porque o verdadeiro Cristo não foi mostrado na sua integralidade. Houve, portanto, uma deficiência dos cristãos nessa tarefa. Qual é a nossa responsabilidade, e quais foram as nossas falhas, como professores universitários e como cristãos, para que a situação chegasse ao ponto a que chegou? E o que pode a Universidade fazer como estrutura para resgatar valores para o século XXI, que não serão apenas do século XXI, mas de todos os séculos futuros?

Concordo inteiramente com o que você dizia, ou seja, que se o Che Guevara assumiu o lugar de Cristo para milhares de jovens, foi porque o verdadeiro Cristo, na sua figura e na sua realidade, já não estava claro. Aliás, em muitos casos estava totalmente ausente… Poder-se-ia escrever um livro sobre a passagem de Cristo a Guevara, como Guevara tomou o lugar de Cristo no coração de milhares de rapazes na América Latina, levando-os depois às armas, levando-os a um destino terrível.

Li recentemente um livro de um teólogo bastante famoso que continua a dizer que Che Guevara convidava a amar os homens. Ma Santo Dio! Insomma… Quanta ingenuidade há nisso! Guevara queria ser um militante marxista-leninista perfeitamente ortodoxo, era extremamente duro na observância das regras da militância marxista, a ponto de ser cruel. Era duro consigo e impiedoso com os que estavam sob o seu comando. Para dizer o que dizia esse teólogo, é preciso sofrer de uma miopia absoluta!

E esse é o drama por trás do que você dizia: que a Igreja não foi capaz de propor Cristo como o verdadeiro tipo de homem e de ideal na integralidade dos fatores da vida, não para “o lado de lá”, mas para “o lado de cá”. Para a vida real, para a vida social…, para a solução dos problemas reais.

Em relação à Universidade, você perguntava – como docente cristão – qual é a nossa responsabilidade. Ela consiste, acima de tudo, em comunicar um ideal, não uma utopia. Porque nestes anos muitos confundiram os ideais com as utopias. Os ideais, já vimos, encarnam-se na existência do dia-a-dia, realizam-se no dia-a-dia, sem jamais atingirem a perfeição na sua realização histórica. Isto, porém, nada subtrai à energia e à paixão com que se procura comunicá-los e traduzi-los no concreto da existência, até os mínimos detalhes. Até chegarem a traduzir-se em paixão que se empenha no social e no político, paixão por uma mudança efetiva, para que a sociedade possa construir condições para o aprimoramento real da vida dos homens, sobretudo daqueles que têm mais necessidades.

Isto não é um “pauperismo”, diga-se de passagem; esta é a solidariedade que surge da fé como uma dinâmica própria. O marxismo apropriou-se da categoria de “pobre”, mas até prova em contrário a atenção aos pobres sempre foi uma expressão da dinâmica cristã da existência. Não nos esqueçamos disso, porque em caso contrário daremos ao marxismo uma dimensão que na verdade nasce da fé cristã. É conceder demais ao marxismo dizer que o problema dos pobres diz respeito só aos marxistas. A paixão pela justiça e pela realidade nasce propriamente de uma fé cristã encarnada – mesmo lembrando-nos de que os pobres sempre existirão, como diz Cristo, o que significa que a utopia nunca se realizará. Porque o que está em jogo é a condivisão da realidade da vida, de pessoa para pessoa, não a realização de um reino perfeito.

Será tão difícil assim distinguir entre os ideais que se declinam na história, por um lado, e as utopias pelo outro? Essa foi a grande confusão cultural destes anos: dizer que os ideais cristãos, que eram ideais de solidariedade e de justiça, nascidos da graça da fé e não de um projeto social, não podem nunca traduzir-se em um reino perfeito. Ora, o cristianismo realmente não propõe nenhuma teologia política! A teologia política é o sonho de que a política seja a realização da teologia; mas nenhuma política, nenhuma!, pode jamais realizar o teológico! Simplesmente não é possível! Daí não se deduz, porém, nem o desinteresse perante o sofrimento alheio, nem o fim dos ideais cristãos.

 

O filósofo Jacques Maritain propunha o Humanismo Integral, o “humanismo cristão”, como uma resposta frente ao marxismo. O senhor acredita, depois de o mundo ter passado pelo marxismo, depois de passar pelo capitalismo, que esse humanismo cristão não seria algo capaz de tapar as lacunas que apontava?

Se o “Humanismo Integral” seria a resposta? Dito assim, parece-me antes que seria uma nova ideologia. Maritain, naqueles anos, fez uma proposta ousada – é importante essa obra de 1936 -, e dizia muitas coisas verdadeiras. Mas não é que o cristão realize o humanismo de forma integral. Penso que é antes a fé que tem de encarnar-se, e que ela traz em si uma paixão integral por tudo o que é humano, e não censura nenhum fator do humano, nem os belos, nem os feios. Que ela tudo acolhe e tudo redime, não por obra das mãos do cristão – um mísero pecador como todos -, mas por obra de um Outro que através dele se exprime e se realiza na história. Por isso, diria que o cristianismo, quando é a consciência de Cristo que opera através de você, se exprime como paixão pela integralidade do humano.

“Integralidade do humano” quer dizer das necessidades mais simples às mais complexas; quer dizer a cultura, a política, as condições de vida, a família etc. etc. Quer dizer a relação entre homem e mulher, a relação com o estudo. Tudo vem revestido dessa presença que muda o coração dos homens, e provoca neles a esperança de uma mudança que se transforma em experiência. Há esperança na mudança, porque é uma mudança real, que acontece. E a vida que muda transforma-se no testemunho de um novo modo de agir dentro da sociedade, de uma modalidade nova de ser dentro do mundo.

Não é uma utopia, é o testemunho de humanidade renovada o que muda o mundo. A pequena Teresa de Calcutá era uma nulidade do ponto de vista político, mas aquela pequena mulher mudou a vida de centenas de milhares de pessoas. Sinal de esperança para os deserdados da terra, figura moral que deu a muitos a esperança de que, neste mundo de deserto, se pode viver com uma humanidade diferente, impregnada de ideal até às vísceras da carne.

 

Massimo Borghesi é professor titular de Filosofia Moral na Universidade de Perugia, de Ética e Teologia Filosófica na Universidade São Boaventura e de Hermenêutica e Filosofia da Cultura na Universidade Urbaniana de Roma; tem estudado especialmente o tema das raízes culturais da crise do pensamento moderno e das suas implicações políticas. É autor de diversos livros, ainda inéditos no Brasil, entre os quais os mais recentes são Il soggetto assente. Educazione e scuola tra memoria e nichilismo, Castel Bolognese, 2005 (trad. espanhola, Madrid, 2005);Secolarizzazione e nichilismo. Cristianesimo e cultura contemporanea, Siena, 2005 (trad. espanhola, Madrid, 2007);L’era dello Spirito. Secolarizzazione ed escatologia moderna, Roma, 2008. É o editor de Caro collega ed amico. Lettere di Etienne Gilson ad Augusto del Noce, Siena, 2008, com a correspondência entre os dois autores.

 

Tradução de Juliana Di Lollo, licenciada em Letras pela FFLCH-USP.

 


 

[1] Na Itália, assim como a cor vermelha é associada à esquerda e ao socialismo, a negra é associada à direita e ao fascismo (N. do E.).

[2] O principal grupo terrorista da esquerda italiana nos anos 70 (N. do E.).

[3] Augusto del Noce (1910-1989) foi um dos mais importantes filósofos políticos italianos do século XX. É um dos grandes estudiosos da crise do marxismo e do secularismo, e das suas relações com as raízes do pensamento moderno (N. do E.).

Publicado originalmente em: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-2/o-mundo-apos-a-crise-das-utopias/

Perspectiva de gênero: seu perigo e alcance (por Jutta Burggraf)

Política e Sociologia | 01/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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“O gênero é uma construção cultural; por isso não é nem resultado causal do sexo, nem tão aparentemente fixo como o sexo. Ao teorizar que o gênero é uma construção radicalmente independente do sexo, o próprio gênero chega a ser um artifício livre de ataduras; em consequência, homem e masculino poderiam significar tanto um corpo feminino como um masculino; mulher e feminino tanto um corpo masculino como um feminino.” (1).

Estas palavras, que poderiam parecer saídas de um livro de ficção científica que vaticina uma séria perda do senso comum no ser humano, não são outra coisa senão um extrato do livro “Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity” (“O Problema do Gênero: o Feminismo e a Subversão da Identidade”) da feminista radical Judith Butler, que vem servido há vários anos como livro de texto em diversos programas de estudos femininos em universidades norte americanas de prestígio, onde a perspectiva de gênero vem sendo amplamente promovida.

Enquanto  muitas pessoas poderiam continuar considerando o termo ‘gênero’ como simplesmente uma forma cortês de dizer ‘sexo’ para evitar o sentido secundário que ‘sexo’ tem em inglês. E que, portanto, ‘gênero’ se refira a seres humanos masculinos e femininos, existem outros que há muitos anos decidiram difundir toda uma “nova perspectiva” do termo. Esta perspectiva, para surpresa de muitos, refere-se ao termo gênero como “papéis socialmente construídos”.

A IV Conferencia Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em setembro de 1995 em Pequim (1.2), foi o cenário escolhido pelos promotores da nova perspectiva para lançar uma forte campanha de persuasão e difusão. É por isso que desde esse momento a “perspectiva de gênero” vem se filtrando em diferentes âmbitos não apenas nos países industrializados, como também nos países em vias de desenvolvimento.

Definição do termo gênero

Precisamente na cúpula de Pequim, muitos delegados participantes que ignoravam esta “nova perspectiva” do termo em questão, solicitaram a seus principais promotores uma definição clara que pudesse esclarecer o debate. Deste modo a cúpula da conferência da ONU emitiu a seguinte definição:

“O gênero se refere às relações entre mulheres e homens baseadas em papéis definidos socialmente que se refiram a um ou outro sexo”.

Esta definição criou confusão entre os delegados da Conferência, muitos dos quais solicitaram uma descrição mais explícita do termo, pressentindo que pudesse estar mascarando a promoção de certas ideias sobre as orientações e identidades homossexuais, entre outras coisas. Nessa altura, Bella Abzug, ex-congressista dos Estados Unidos, interveio para completar a nova interpretação do termo
“gênero”:

“O sentido do termo ‘gênero’ evoluiu, diferenciando-se da palavra ‘sexo’ para expressar a realidade de que a situação e os papéis da mulher e do homem são construções sociais sujeitas a mudança”.

topicFicava claro, portanto, que os partidários da perspectiva de gênero propunham algo tão temerário como, por exemplo, que “não existe um homem natural ou uma mulher natural, que não há um conjunto de características ou uma conduta exclusiva de um só sexo, nem sequer na a vida psíquica” (2). Deste modo, “a inexistência de uma essência feminina ou masculina nos permite rejeitar a suposta ‘superioridade’ de um ou outro sexo, e questionar que haja uma forma ‘natural’ de sexualidade humana” (3).

Perante tal situação, muitos delegados questionaram o termo assim como sua inclusão no documento. No entanto, a ex-deputada Abzug argumentou acirradamente em seu favor:

“O conceito de ‘gênero’ está encravado no discurso social, político e legal contemporâneo. Foi integrado à planificação conceitual, à linguagem, aos documentos e programas dos sistemas das Nações Unidas. As atuais tentativas de vários Estados Membro de apagar o termo ‘gênero’ da Plataforma de Ação e substitui-lo por ‘sexo’ é uma tentativa insultante e degradante de revogar as conquistas das mulheres, de intimidar-nos e de bloquear o progresso futuro”.

A obsessão de Bella Abzug por incluir o termo em Pequim chamou a atenção de muitos delegados. No entanto o assombro e desconcerto foram maiores assim que um dos participantes difundiu alguns textos empregados pelas feministas de gênero, professoras de reconhecidos Colleges e Universidades dos Estados Unidos. De acordo com a lista de leituras obtida pelo delegado, as “feministas de gênero” defendem e difundem as seguintes definições:

  • “Hegemonia ou hegemônico”: Ideias ou conceitos aceitos universalmente como naturais, mas que na realidade são construções sociais.
  • “Desconstrução”: a tarefa de denunciar as ideias e a linguagem hegemônicas (isto é, aceitas universalmente como naturais), com o objetivo de convencer as pessoas de que suas percepções da realidade são construções sociais.
  • “Patriarcado”, “Patriarcal”: Institucionalização do controle masculino sobre a mulher, os filhos e a sociedade, que perpetua a posição de subordinada da mulher.
  • “Perversidade polimorfa”, “sexualmente polimorfo”: Os homens e as mulheres não sentem atração por pessoas do sexo oposto por natureza, mas sim por um condicionamento da sociedade. Deste modo, o desejo sexual pode dirigir-se a qualquer um dos sexos.
  • “Heterossexualidade obrigatória”: as pessoas são forçadas a pensar que o mundo está dividido em dois sexos que se atraem sexualmente um ao outro.
  • “Preferência ou orientação sexual”: Existem diversas formas de sexualidade, que incluem homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis – como equivalentes à heterossexualidade.
  • “Homofobia”: Temor a relações com pessoas do mesmo sexo; pessoas com preconceitos contra os homossexuais. O termo se baseia na noção de que o preconceito contra os homossexuais tem suas raízes na exaltação das tendências homossexuais.

Estas definições foram tomadas do material obrigatório do curso “Re-Imagem do Gênero” ministrado num prestigiosa faculdade norte-americana. Do mesmo modo, as afirmações seguintes correspondem à bibliografia obrigatória do citado curso:

“A teoria feminista já não pode permitir-se o luxo de simplesmente proclamar uma tolerância do ‘lesbianismo’ como ‘estilo alternativo de vida’ ou fazer alusão e mostrar as lésbicas. Atrasou-se demais uma crítica feminista da orientação heterossexual obrigatória da mulher” (4).

“Uma estratégia apropriada e viável do direito ao aborto é a de informar toda mulher de que a penetração heterossexual é uma violação, seja qual for sua experiência subjetiva contrária”. (5)

As afirmações citadas poderiam parecer suficientemente reveladoras sobre a perigosa agenda dos promotores desta “perspectiva”. Há, no entanto outros postulados que as “feministas de gênero” propagam cada vez com mais força:

“Cada criança atribui a si mesma uma ou outra categoria baseada na forma e tamanho de seus órgãos genitais. Uma vez feita essa atribuição, nós nos transformamos no que a cultura pensa que cada um é – feminina ou masculino-. Embora muitos acreditem que o homem e a mulher são a expressão natural de um plano genético, o gênero é produto da cultura e o pensamento humano, uma construção social que cria a ‘verdadeira natureza’ de todo indivíduo”. (6)

Deste modo, para as “feministas de gênero”, o conceito “implica pertencer a uma classe, e a classe pressupõe uma desigualdade. A luta por desconstruir o gênero levará muito mais rapidamente à meta”. (7)

O feminismo de gênero

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Mas em que consiste o “feminismo de gênero” e qual é a diferença com o comumente conhecido feminismo? Para entender mais em profundidade o debate em torno do “termo gênero”, vale a pena responder a esta pregunta.

O termo “feministas de gênero” foi cunhado pela primeira vez por Christina Hoff Sommers em seu livro “Who Stole Feminism?” (“Quem roubou o Feminismo?”), com o objetivo de diferenciar o feminismo de ideologia radical surgido no final dos anos 60, do anterior movimento feminista de igualdade. Eis aqui as suas palavras:

“O feminismo de ‘equidade’ é simplesmente a crença na igualdade legal e moral dos sexos. Uma feminista de equidade quer para a mulher o que quer para todos: tratamento justo, ausência de discriminação. Pelo contrário, o feminismo de ‘gênero’ é uma ideologia que pretende abarcar tudo, segundo a qual a mulher está presa num sistema patriarcal opressivo. A feminista de equidade acredita que as coisas melhoraram muito para a mulher; a feminista de ‘gênero’ em geral pensa que pioraram. Com frequência vê sinais de patriarcado e pensa que a situação tende a piorar. O que carece de base na realidade. A situação nunca esteve melhor para a mulher, que hoje compõe 55% dos estudantes universitários, enquanto a diferença salarial continua diminuindo”. (8)

Aparentemente esse “feminismo de gênero” teve forte presença na Cúpula de Pequim. É o que afirma Dale O’Leary, autora de numerosos ensaios sobre a mulher e participante na Conferência de Pequim, garantindo que durante todas as jornadas de trabalho, as mulheres que se identificaram como feministas defendiam persistentemente a inclusão da “perspectiva de gênero” no texto, definindo “gênero” como ‘papéis socialmente construídos’ utilizando essa palavra em lugar de ‘mulher’ ou de masculino e feminino. De fato, todas as pessoas familiarizadas com os objetivos do “feminismo de gênero”, reconheceram imediatamente a conexão entre a mencionada ideologia e o anteprojeto do “Programa Espanhol de Ação” de 27 de fevereiro que incluía propostas aparentemente inocentes e termos particularmente ambíguos (8.1).

Neo Marxismo

Com palavras de Dale O’Leary, a teoria do “feminismo de gênero” se baseia numa interpretação neomarxista da história. Começa com a afirmação de Marx de que toda a história é uma luta de classes, de opressor contra oprimido, numa batalha que se resolverá só quando os oprimidos se conscientizem de sua situação, unam-se em revolução e imponham uma ditadura dos oprimidos. A sociedade será totalmente reconstruída e emergirá a sociedade sem classes, livre de conflitos, que garantirá a paz e prosperidade utópicas para todos.

O’Leary diz ainda que foi Frederick Engels quem assentou as bases da união entre o marxismo e o feminismo. Para comprovar, cita o livro “Origem da Família, Propriedade e Estado”, escrito pelo pensador alemão em 1884 onde afirma:

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“O primeiro antagonismo de classes da história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher unidos em matrimônio monogâmico, e a primeira opressão de uma classe por outra, com a do sexo feminino pelo masculino”. (9)

Segundo O’Leary, os marxistas clássicos acreditavam que o sistema de classes desapareceria uma vez que se eliminasse a propriedade privada, se facilitasse o divórcio, se aceitasse a ilegitimidade, se forçasse a entrada da mulher no mercado de trabalho laboral, se colocasse as crianças em instituições de cuidado diário e se eliminasse a religião. No entanto, para as “feministas de gênero”, os marxistas fracassaram por concentrar-se em soluções econômicas sem atacar diretamente a família, que era a verdadeira causa das classes.

Nesse sentido, a feminista Shulamith Firestone afirma a necessidade de destruir a diferença de classes, mais ainda, a diferença de sexos:

“Assegurar a eliminação das classes sexuais requer que a classe subjugada (as mulheres) una-se em revolução e se aposse do controle da reprodução; se restitua à mulher a propriedade sobre sus próprios corpos, como também o controle feminino da fertilidade humana, incluindo tanto as novas tecnologias como todas as instituições sociais de nascimento e cuidado de crianças. Assim como a meta final da revolução socialista era não apenas acabar com o privilégio da classe econômica, mas também com a própria distinção entre classes econômicas, a meta definitiva da revolução feminista deve ser igualmente – ao contrário do primeiro movimento feminista – não apenas acabar com o privilégio masculino, mas também com a própria diferença de sexos: as diferenças genitais entre os seres humanos já não importariam culturalmente”. (10)

Quando a natureza atrapalha

Está claro, então, que nesta nova “perspectiva de gênero”, a realidade da natureza incomoda, atrapalha e, portanto, deve desaparecer. A este respeito, a própria Shulamith Firestone disse:

O ‘natural’ não é necessariamente um valor ‘humano’ . A humanidade começou a superar a natureza; já não podemos mais justificar a continuação de um sistema discriminatório de classes por sexos em razão das suas origens na natureza. Com efeito, pela simples razão de pragmatismo começa a parecer que devemos nos livrar dele “. (11)

adão e eva2Para os defensores apaixonados da “nova perspectiva”, não se devem fazer distinções porque qualquer diferença é suspeita, má, ofensiva. Eles dizem ainda que toda diferença entre o homem e a mulher é construção social e, portanto, tem que ser mudada. Procuram estabelecer a plena igualdade entre homens e mulheres, independentemente das diferenças naturais entre os dois, especialmente diferenças sexuais; ainda mais, relativizam a noção de sexo de modo que, segundo eles, não haveria dois sexos, mas sim muitas “orientações sexuais”.

Assim, os mencionados promotores do “gênero” não viram melhor opção que declarar guerra à natureza e às opções da mulher. De acordo com O’Leary, as “feministas de gênero” frequentemente denigrem o respeito pela mulher com a mesma veemência com que atacam a falta de respeito, porque para elas o “inimigo” é a diferença.

No entanto, é evidente que nem toda diferença é má nem muito menos irreal. Tanto o homem como a mulher têm suas próprias particularidades naturais que devem ser postas ao serviço do outro, para se chegar a um enriquecimento mútuo. Claro que isto não significa que os recursos pessoais da feminilidade sejam menores que os da  masculinidade; significa simplesmente que são diferentes. Neste sentido, se aceitamos o fato de que homem e mulher são diferentes, uma diferença estatística entre homens e mulheres que participem em uma atividade concreta poderia ser mais que uma demonstração de discriminação, o simples reflexo dessas diferenças naturais entre homem e mulher.

Apesar disso, perante a evidência de que estas diferenças são naturais, os propagandistas da “nova perspectiva” não questionam suas colocações, antes atacam o conceito de natureza.

Além disso, consideram que as diferenças de “gênero”, que segundo eles existem por construção social, forçam a mulher a ser dependente do homem e, portanto, a liberdade para as mulheres consistirá, não em atuar sem restrições injustas, mas em libertar-se de “papéis de gênero socialmente construídos.” Nesse sentido, Ann Ferguson e Nancy Folbre afirmam:

“As feministas devem encontrar formas de apoio para que a mulher identifique seus interesses com a mulher, mais do que com os seus deveres pessoais para com o homem no contexto da família. Isso requer o estabelecimento de uma cultura feminista revolucionária, auto definida da mulher, que possa sustentá-la, ideológica e materialmente “fora do patriarcado.” As redes de suporte contra-hegemônicas cultural e material podem fornecer substitutos mulher-identificados da produção sexo-afetiva patriarcal que proporcionem às mulheres maior controle sobre seus corpos, seu tempo de trabalho e seu senso de si mesmas “. (12)

Para esta finalidade, Ferguson e Folbre projetaram quatro áreas-chave de “ataque”:

  1. Solicitar apoio financeiro oficial para cuidar das crianças e dos direitos reprodutivos.
  2. Exigir a liberdade sexual, incluindo o direito de preferência sexual (direitos dos homossexuais).
  3. O controle feminista da produção ideológica e cultural. É importante porque a produção cultural afeta faz finalidades pessoais, o sentido de si mesma, as redes sociais e a produção de redes de criação e afeto, amizade e parentesco social.
  4. Estabelecer ajuda mútua: sistemas de apoio econômico para a mulher, a partir de redes de identificação única com a mulher, até juntas de mulheres nos sindicatos que lutem pelos interesses femininos no trabalho assalariado. (13)
Uma boa desculpa: A mulher

200px-Womanpower_logo Depois de rever a peculiar “agenda feminista”, Dale O’Leary evidencia que a finalidade de cada ponto da mesma não é melhorar a situação da mulher, mas separar a mulher do homem e destruir a identificação de seus interesses com os de suas famílias. Além disso, acrescenta a especialista, o interesse primordial do feminismo radical nunca foi diretamente melhorar a situação das mulheres nem aumentar a sua liberdade. Pelo contrário, para as feministas radicais ativas, pequenas melhorias podem dificultar a revolução de classe sexo/gênero.

Esta afirmação é confirmada pela feminista Heidi Hartmann que radicalmente afirma:

“A questão da mulher nunca foi a ‘questão feminista’. Esta se dirige às causas da desigualdade sexual entre homens e mulheres, da dominação masculina sobre as mulheres.” (14)

Não surpreendentemente, durante a Conferência de Pequim, a delegada canadense Valerie Raymond expressou seu compromisso em que a cúpula da mulher fosse abordada paradoxalmente “não como uma ‘conferência da mulher’, mas uma conferência na qual todos os temas fossem enfocados sob uma ‘ótica de gênero ‘.”

É o que diz O’Leary, a “nova perspectiva” visa impulsionar a agenda homossexual/lesbiana/bissexual/transexual, e não os interesses das mulheres comuns e correntes.

Papéis socialmente construídos

Para tratar este ponto, tomemos a definição de “gênero” registrada em um folheto que as partidárias desta opinião distribuíram na Reunião do PrepCom (Comitê Preparatório de Pequim).

Gênero se refere aos papéis e responsabilidades da mulher e do homens que são determinados socialmente. O gênero está relacionado à forma como somos vistos e se espera que pensemos e atuemos como mulheres e homens pela forma como a sociedade está organizada, não por nossas diferenças biológicas.

Vale explicitar que o termo “papel” distorce a discussão. Na sequência do estudo O’Leary, o “papel” é definido principalmente como: parte de uma produção teatral em que uma pessoa especialmente vestida e maquiada, desempenha um papel de acordo com um roteiro escrito. O uso do termo “papel” ou da frase: ‘papeis desempenhados’ transmite necessariamente a sensação de algo artificial que se impõe à pessoa.

Quando “papel” é substituído por outro termo – como vocação – , torna-se claro como o termo “papel” afeta nossa percepção de identidade. Vocação envolve algo autêntico, não artificial, uma chamada para ser o que somos. Nós respondemos ao nosso chamado para realizar a nossa natureza ou desenvolver nossos talentos e habilidades inatos. Nesse sentido, por exemplo, O’Leary destaca a vocação feminina para a maternidade, pois a maternidade não é um ‘papel’. Quando uma mãe concebe uma criança, esta começou um relacionamento de vida com outro ser humano. Esta relação define a mulher, atribui a ela certas responsabilidades e afeta quase todos os aspectos de sua vida. Ela não está representando o papel de mãe; ela é uma mãe. Cultura e tradição certamente influenciam a maneira pela qual as mulheres cumprem as responsabilidades da maternidade, mas não criam mães, esclarece O’Leary.

No entanto, os promotores da “perspectiva de gênero” insistem que qualquer relação ou atividade dos seres humanos é o resultado de uma “construção social” que dá ao homem uma posição superior na sociedade e à mulher uma inferior. Neste ponto de vista, a promoção da mulher exige que se liberte toda a sociedade desta “construção social”, de modo que o homem e a mulher sejam iguais.

Para isso, as “feministas de gênero” apontam para a necessidade urgente de “desconstruir estes papéis socialmente construídos”, que, segundo eles, podem ser divididos em três categorias principais:

  1. Masculinidade e Feminilidade. Consideram que os homens e mulheres adultos são construções sociais; que na verdade o ser humano nasce sexualmente neutro e, em seguida, é socializado em homem ou mulher. Essa socialização, dizem eles, afeta negativamente e de forma injusta as mulheres. Por isso, as feministas propõem depurar a educação e os meios de comunicação de todo estereótipo ou imagem específica de gênero, para que as crianças possam crescer sem serem expostas a trabalhos “ sexo–específicos”.
  2. As relações de família: pai, mãe, marido e mulher. As feministas não só pretendem que se substituam estes termos “gêneros-específicos” por palavras “gênero neutro”, mas ainda aspiram que não haja diferenças no comportamento ou responsabilidade entre homem e a mulher na família. Segundo Dale O’Lary, esta é a categoria de “papéis socialmente construídos” a que as feministas atribuem maior importância, porque elas acreditam que a experiência das relações “sexo-específicas” na família são a principal causa do sistema de classes “sexo / gênero”.
  3. Ocupações ou profissões. O terceiro tipo de “papéis socialmente construídos” inclui as ocupações que uma sociedade atribui a um ou outro sexo.

Embora as três categorias de “construção social” já poderiam ser suficientes, o repertório das “feministas do gênero” inclui mais uma: a reprodução humana, dizem elas, também é determinada socialmente. A este respeito, Heidi Hartmann diz:

“A maneira como se propaga a espécie é determinada socialmente. Se as pessoas são biologicamente sexualmente polimorfas e a sociedade estivesse organizada de forma a permitir igualmente todas as formas de expressão sexual, a reprodução seria resultado só de alguns encontros sexuais: os heterossexuais. A estrita divisão de trabalho por sexos, uma invenção social comum a toda a sociedade conhecida, cria dois gêneros muito separados e a necessidade de que o homem e a mulher se unam por razões econômicas. Contribui assim a direcionar suas exigências sexuais em direção à conduta heterossexual garantindo assim a reprodução biológica. Em sociedades mais imaginativas a reprodução biológica poderia ser assegurada com outras técnicas. (15)

O objetivo: desconstruir a sociedade

Fica claro, portanto, que o objetivo dos promotores da “perspectiva de gênero”, fortemente presente em Pequim, é chegar a uma sociedade sem classes de sexo. Para fazer isso, eles propõem desconstruir a linguagem, as relações familiares, a reprodução, a sexualidade, a educação, a  religião, a cultura, entre outras coisas. A este respeito, o material de trabalho do curso Re-Imagem do  Gênero, tem a seguinte redação:

revolucion_libertaria2“O gênero implica classe, e a classe pressupõe desigualdade. Lutar para desconstruir o gênero levará muito mais rapidamente para a meta. Bem, é uma cultura patriarcal e o gênero parece ser básico para o patriarcado. Afinal, os homens não gozariam do privilégio masculino se não houvesse homens. E as mulheres não seriam oprimidas, se não existisse uma coisa como ‘a mulher’. Acabar com o gênero é acabar com o patriarcado, como também com as muitas injustiças perpetradas em nome da desigualdade entre os gêneros”. (16)

Nesse sentido, Susan Moller Okin escreve um artigo no qual se lança a prognosticar o que para ela seria o “sonhado futuro sem gêneros”.

“Não haveria suposições sobre papéis masculinos e femininos; dar à luz seria conceitualmente tão distante da criação dos filhos, que seria motivo de surpresa que homens e mulheres não fossem igualmente responsáveis por áreas domésticas, ou que as crianças passassem mais tempo com um dos pais do que com outro. Seria um futuro em que homens e mulheres participariam em número aproximadamente igual em todas as esferas da vida, desde o cuidado das crianças até o cargo político de mais alto nível, incluindo os mais variados tipos de trabalho assalariado. Se quisermos salvar a menor lealdade para com nossos ideais democráticos, é essencial distanciar-nos do gênero. Parece inegável que a dissolução dos papéis de gênero contribuirá para promover a justiça em toda a nossa sociedade, fazer da família um lugar muito mais apto para que as crianças desenvolvam um senso de justiça”. (17)

 Para este fim, elas também propõem a “desconstrução da educação”, tal como se lê no discurso da Presidente da Islândia, Vigdis Finnbogadóttir, em uma conferência preparatória para a Conferência de Pequim, organizado pelo Conselho Europeu em Fevereiro de 1995. Para ela, assim como para todos os outros defensores da “perspectiva de gênero”, urge desconstruir não só a família, mas também a educação. As meninas devem ser orientadas para áreas não tradicionais, sem expô-las a imagem da mulher como esposa ou mãe, ou envolvê-las em atividades femininas tradicionais.

“A educação é uma estratégia importante para mudar os preconceitos sobre os papéis de homens e mulheres na sociedade. A perspectiva do ‘gênero’ deve ser integrada nos programas. Devem ser removidos os estereótipos em livros didáticos e sensibilizar os professores nesta matéria, a fim de assegurar que as crianças façam uma escolha profissional informada, e não com base em tradições cheias de preconceitos sobre ‘gênero’ (18).

Primeiro alvo: a família

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“O fim da família biológica também irá eliminar a necessidade de repressão sexual. A homossexualidade masculina, lesbianismo e sexo extraconjugal já não se verão mais na forma liberal como opções alternativas fora do âmbito da regulação estatal. Em vez disso, até as categorias de homossexualidade e heterossexualidade serão abandonadas: a própria ‘instituição das relações sexuais’ em que homens e mulheres desempenham um papel bem definido desaparecerá. A humanidade poderia finalmente voltar à sua sexualidade polimorficamente natural”. (19)

Estas palavras de Alison Jagger, autora de vários livros usados em programas de estudos sobre a mulher em universidades norte-americanas mostram claramente a hostilidade das “feministas de gênero” com relação a família.

“A igualdade feminista radical significa não apenas a igualdade perante a lei e nem mesmo igual satisfação das necessidades básicas, mas sim que as mulheres como os homens não tenham que dar à luz. A destruição da família biológica que Freud nunca imaginou, permitirá o surgimento de novos homens e mulheres, diferentes de todos que  que já existiram “. (20)

Aparentemente, a principal razão para a rejeição feminista da família é que, para elas, esta instituição básica da sociedade “cria e apoia o sistema de classes sexo/gênero”. Assim explica Christine Riddiough, colaborador da revista publicada pela instituição internacional anti-vida “Catholics for a Free Choice” (“Católicas pelo Direito de Decidir”):

“A família nos dá as primeiras lições de ideologia de classe dominante e também fornece legitimidade às outras instituições da sociedade civil. Nossas famílias são as  que nos ensinam primeiro a religião, a ser bons cidadãos. Tão completa é a hegemonia da classe dominante na família, que somos ensinados que esta encarna a ordem natural das coisas. Baseia-se nomeadamente, em uma relação entre o homem e a mulher que reprime a sexualidade, especialmente a sexualidade feminina”. (21)

Para aqueles com uma visão marxista das diferenças de classes como a causa dos problemas, diz O’Leary, “diferente” é sempre ‘desigual’ e ‘desigual’ é sempre “opressor”. Neste sentido, as “feministas de gênero” consideram que, quando a mulher cuida de seus filhos em casa e o marido trabalha fora de casa, as responsabilidades são diferentes e, portanto, não igualitárias. Em seguida, veem esta “desigualdade” no lar como causa de “desigualdade” na vida pública, já que a mulher, cujo principal interesse seria o lar, nem sempre teria o tempo e energia para se dedicar à vida pública. Por isso afirmam:

“Nós acreditamos que nenhuma mulher deve ter esta opção. Nenhuma mulher deveria ser autorizada a ficar em casa para cuidar de seus filhos. A sociedade deve ser totalmente diferente. As mulheres não devem ter essa escolha, porque se essa opção existe, demasiadas mulheres decidirão por ela”. (22)

Além disso, as “feministas de gênero” insistem na desconstrução da família não só porque segundo elas escraviza as mulheres, mas porque condiciona socialmente as crianças para aceitar a família, o casamento e a maternidade como algo natural. A este respeito, Nancy Chodorow diz:

“Se nosso objetivo é acabar com a divisão sexual do trabalho em que a mulher se faz maternal, devemos em primeiro lugar compreender os mecanismos que a causam. Este é o ponto no qual se deve intervir. Qualquer estratégia para a mudança, cujo objetivo abarque a liberação das restrições impostas por uma desigual organização social por gêneros, deve levar em conta a necessidade de uma reorganização fundamental do cuidado dos filhos, que deve ser compartilhado igualmente entre homens e mulheres”. (23)

Fica claro que para os defensores do “gênero” as responsabilidades das mulheres na família são supostamente inimigas da realização da mulher. O ambiente privado é considerado secundário e menos importante; família e trabalho doméstico são vistos como “carga” que afeta negativamente o “projeto profissional” das mulheres.

Este ataque declarado contra a família, no entanto, contrasta fortemente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU em 1948. No artigo 16 desta, as Nações Unidas defendem com ênfase a família e o casamento:

       1- Homens e mulheres, a partir da idade de casar têm o direito, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião, de casar e constituir família; e desfrutarão direitos iguais quanto ao casamento, durante o casamento e em caso de dissolução do casamento.

      2- Somente com o livre e pleno consentimento dos futuros esposos se poderá contrair o matrimônio.

        3- A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

No entanto, os arquitetos da nova “perspectiva de gênero” presente na cúpula da mulher colocaram à margem todas essas premissas e, em vez disso apontaram para a necessidade de “desconstrução” da família, do casamento, da maternidade, e da própria feminilidade para que o mundo possa ser livre.

admiravel mundo novoEm contrapartida, os representantes das principais nações comprometidas com a defesa da vida e dos valores familiares que participaram em Pequim, levantaram suas vozes contra esse tipo de propostas, especialmente ao descobrir que o documento da cúpula eliminava arbitrariamente do vocabulário do programa as palavras “esposa”, “marido”, “mãe”, “pai”. Ante tal fato, Barbara Ledeen, diretora do Fórum de Mulheres Independentes, uma organização de defesa da mulher amplamente reconhecida nos Estados Unidos, disse:

“O documento é inspirado pelas teorias feministas ultrarradicais, de velho cunho conflitivo, e representa um ataque direto aos valores da família, casamento e feminilidade “.

O Papa João Paulo II, por sua vez, pouco antes da Conferência de Pequim, já tinha insistido em apontar a estreita relação entre a mulher e a família. Durante a sua reunião com Gertrude Mongella, Secretária Geral da Conferência das Mulheres antes da Cúpula Mundial, disse:

“Não há resposta aos temas sobre a mulher, que possa ignorar o papel da mulher na família. A fim de respeitar esta ordem natural, é necessário opor-se à ideia errada de que a função da maternidade é opressiva para a mulher “.

Infelizmente, a proposta do Conselho Europeu para a Plataforma de Ação de Pequim foi completamente alheia a essas diretrizes.

 É tempo de deixar claro que os estereótipos de gênero estão desatualizados: os homens não são apenas os machos que sustentam a família nem as mulheres apenas esposas e mães. Não se deve subestimar a influência psicológica negativa de mostrar estereótipos femininos”. (24)

Dada essa postura, O’Leary escreve no seu relatório que, embora seja verdade que as mulheres não devem mostrar-se somente como esposas e mães, muitas sim são esposas e mães, e, portanto, uma imagem positiva das mulheres que se dedicam apenas ao trabalho no lar não tem nada de errado. No entanto, o objetivo da perspectiva de ‘gênero’ não é representar autenticamente a vida da mulher, mas criar um estereótipo inverso, segundo o qual as mulheres que sejam “apenas” esposas e mães nunca apareceriam sob uma luz favorável.

Saúde e direitos sexuais reprodutivos

Na mesma linha, as “feministas de gênero” incluem como parte essencial de sua agenda a promoção da “livre escolha” ou “direito de decidir” em matéria de reprodução e estilo de vida. De acordo com O’Leary, “livre escolha reprodutiva” é a expressão chave para se referir ao aborto a pedido; ao passo que “estilo de vida” tem o objetivo de promover a homossexualidade, o lesbianismo, outras formas de sexualidade, dentro ou fora do casamento. Por exemplo, os representantes do Conselho Europeu, em Pequim lançaram a seguinte proposta:

“As vozes dasinsatisfeitos_com_dilma mulheres jovens devem ser ouvidas, uma vez que a vida sexual não gira apenas ao redor do casamento. Isso leva ao aspecto  do direito de ser diferente, seja em termos de estilo de vida: a escolha de viver com a família ou sozinha com ou sem filhos ou de preferências sexuais. Devem se reconhecer os direitos reprodutivos da mulher lésbica”. (25)

Estes “direitos” das lésbicas, também incluem o “direito” de casais lésbicas conceberem filhos através de inseminação artificial, e para adotar legalmente os filhos de suas parceiras.

Mas os defensores do “gênero” têm não apenas essas propostas, mas também defendem o “direito à saúde”, que com toda a honestidade, afasta-se completamente da verdadeira saúde dos seres humanos. Na verdade, ignorando o direito de todo ser humano à vida, propõe um direito à saúde, que inclui o direito à saúde sexual e reprodutiva. Paradoxalmente, essa “saúde reprodutiva” inclui o aborto e, portanto, a “morte” de seres humanos ainda não nascidos.

Não surpreendentemente, as “feministas do gênero” são fortes aliadas dos Ambientalistas e “Populacionistas” (ou defensores do controle da natalidade). De acordo com O’Leary, embora as três ideologias não coincidam em todos os seus aspectos, têm em comum o projeto do aborto. Por um lado, os ambientalistas e “populacionistas” consideram essencial para o sucesso de suas agendas, o rigoroso controle de fertilidade e para isso estão dispostos a usar a “perspectiva de gênero”. A seguinte citação da Division for the  Advance of Women (Divisão para o Avanço das Mulheres) proposta numa reunião organizada em consulta com o Fundo de População das Nações Unidas revela o pensamento daqueles interessados primariamente em que haja cada vez menos gente que veja o “gênero”:aborto_i

Para serem eficazes a longo prazo, os programas de planejamento familiar devem procurar não só reduzir a fertilidade dentro dos papéis de gênero existentes, mas também alterando os papéis de gênero, a fim de reduzir a fertilidade”. (26)

Assim, os “novos direitos” propostos pelas “feministas do gênero” não se reduzem simplesmente aos direitos de “saúde reprodutiva” que, como já mencionamos, mas promovem o aborto de ser humano por nascer, mas além disso exigem o “direito” a determinar a própria identidade sexual. Num folheto distribuído durante a Conferência de Pequim, a ONG “International Gay and Lesbian Human Rights Comision” (Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas) exigiu este direito nos seguintes termos:

“Nós, abaixo assinados, convidamos os Estados-Membros a reconhecer o direito de determinar a própria identidade sexual, o direito de controlar o próprio corpo, particularmente no estabelecimento de relações íntimas, e o direito de escolher, se necessário, quando e com quem gerar e criar filhos, como elementos fundamentais de todos os direitos humanos de toda mulher, independentemente da sua orientação sexual”.

 Isto é ainda mais preocupante se levarmos em conta que para as “feministas de gênero” existem cinco sexos. Rebecca J. Cook, professora de Direito na Universidade de Toronto e editora do relatório oficial da ONU em Pequim, aponta na mesma linha de seus companheiros de batalha, que os gêneros masculino e feminino, seriam uma “construção da realidade social” e devem ser abolidos. Embora pareça incrível, o documento produzido pela feminista canadense afirma que “os sexos não são mais dois, mas são cinco”, e, portanto, não deveria falar sobre homens e mulheres, mas “as mulheres heterossexuais, mulheres homossexuais, homens heterossexuais, gays e bissexuais”.

A “liberdade” dos proponentes do “gênero” para afirmar a existência de cinco sexos, contrasta com todas as provas científicas existentes segundo as quais só há duas opções a partir do ponto de vista genético: ou se é um homem ou uma mulher, e não há absolutamente nada, cientificamente falando, que esteja no meio.

Ataque à religião

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Enquanto as “feministas de gênero” promovem a “desconstrução” da família, da educação e da cultura como solução para todos os problemas, põem especial ênfase na “desconstrução” da religião, que, segundo dizem, é a principal causa da opressão da mulher. Muitas ONGs credenciadas junto à ONU tem-se empenhado em criticar aqueles que eles chamam de “fundamentalistas” (cristãos católicos, evangélicos e ortodoxos, judeus e muçulmanos, ou qualquer um que se recuse a ajustar as doutrinas de sua religião com a agenda do “feminismo de gênero “). Um vídeo promovendo o Fórum das ONGs sobre a Conferência de Pequim, produzido por Judith Lasch diz:

 “Nada tem feito mais para constranger a mulher que os credos e ensinamentos religiosos.”

Da mesma forma, o relatório da Reunião de Estratégias Globais para a Mulher contém numerosas referências ao fundamentalismo e à necessidade de contrariar os seus alegados ataques sobre os direitos das mulheres.

“Todas as formas de fundamentalismo, seja ele político, religioso ou cultural, exclui a mulher das normas de direitos humanos internacionalmente aceitos, e a transformam em alvos de extrema violência. A eliminação destas práticas é preocupação da comunidade internacional.”

Por outro lado, o relatório da reunião preparatória para a Conferência de Pequim, organizado pelo Conselho Europeu em Fevereiro de 1995, inclui numerosos ataques à religião.

“O surgimento de todas as formas de fundamentalismo religioso é visto como uma ameaça particular para o gozo pelas mulheres de seus direitos humanos e sua plena participação na tomada de decisões em todos os níveis da sociedade”. (27)

“Deve-se capacitar as próprias mulheres, e dar-lhes a oportunidade de determinar o que as suas culturas, religiões e costumes significam para elas”. (28)

Vale ressaltar que para o “feminismo de gênero”, a religião é uma invenção humana e as principais religiões foram inventadas por homens para oprimir as mulheres. Por isso, as feministas radicais postulam a re-imagem de Deus como Sophia: A sabedoria feminina. Nesse sentido, as “teólogas do feminismo de gênero” propõem descobrir e adorar não a Deus, mas a Deusa. Por exemplo, Carol Christ, que se autodenomina “teóloga feminista de gênero” afirma o seguinte:

“Uma mulher que se faça eco à declaração dramática de Ntosake Shange:” ‘. Encontrei a Deus em mim mesma e o amei ferozmente está dizendo:  O poder feminino é forte e criativo. Está dizendo que o princípio divino, o poder salvador e sustentador, está nela mesma e já não mais verá o homem ou a figura masculina como um salvador”. (29)

Igualmente estranhas são as palavras de Elisabeth Schussler Fiorenza, outra “teóloga feminista de gênero” que nega radicalmente a possibilidade da Revelação, como lemos na seguinte citação:

“Os textos bíblicos não são a revelação de inspiração verbal nem de princípios doutrinais, mas formulações históricas. Da mesma forma, a teoria feminista insiste em que todos os textos são produto de uma cultura e historia patriarcal e androcêntrica”. (30)

Além disso, Joanne Carlson Brown e Carole R. Bohn, também teólogas autointituladas “escola feminista de gênero” atacam diretamente o Cristianismo como propulsor do abuso infantil:

“O cristianismo é uma teologia abusiva que glorifica o sofrimento. É possível assombrar-se que haja muito abuso na sociedade moderna, quando a imagem teológica dominante da cultura é ‘abuso divino do filho’ de Deus Pai que exige e efetua o sofrimento e a morte de seu próprio filho? Se o Cristianismo é para ser libertador dos oprimidos, deve primeiro livrar-se dessa teologia”. (31)

Portanto, os proprietários da “nova perspectiva” promovem o ataque frontal ao cristianismo e toda figura que o represente. Em 1994, Rhonde Copelon e Berta Esperanza Hernandez elaboraram um panfleto para uma série de sessões de trabalho da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento no Cairo. O folheto atacava diretamente o Vaticano por opor-se à sua agenda que, entre outras coisas, inclui o “direito à saúde reprodutiva” e, consequentemente, o aborto.

“Este reclamar dos direitos humanos elementares está enfrentando a oposição de todos os tipos de fundamentalistas religiosos, com o Vaticano como um líder na organização de oposição religiosa à saúde e direitos reprodutivos, incluindo até os serviços de planejamento familiar”. (32)

Em contraste com todas essas posturas de ataque e agressão à religião, à Igreja, particularmente ao Vaticano, são os pontos de vista da maioria das mulheres do mundo que, conforme relatado por O’Leary defendem suas tradições religiosas como a melhor proteção dos direitos e a dignidade das mulheres. Mulheres católicas, evangélicas, ortodoxas e mulheres judias agradecem, em particular, os ensinamentos de suas crenças sobre casamento, família, sexualidade e respeito pela vida humana.

O Vaticano, por sua vez, afirmou nos meses anteriores a Pequim o perigo da tendência do texto proposto pela ONU (33), de que se deixe de lado  o direito das mulheres à liberdade de consciência e de religião nas instituições de ensino.

Conclusão

Nas palavras de Dale O’Leary, o “feminismo de gênero” é um sistema fechado contra o qual não há nenhuma maneira de discutir. Você não pode apelar para a natureza, ou a razão, à experiência ou às opiniões e desejos de mulheres reais, porque de acordo com as “feministas do gênero” tudo isso é “socialmente construído”. Não importa quanta evidência se acumule contra suas ideias; elas vão continuar a insistir que é simplesmente mais uma prova da conspiração patriarcal massiva contra as mulheres.

No entanto, existem muitas pessoas que talvez por falta de informação, ainda não estão conscientes da nova proposta e dos perigosos alcances da mesma. Vale a pena, pois conhecer esta “perspectiva de gênero” que, segundo informações fidedignas, está atualmente não só ganhando força nos países desenvolvidos, mas, aparentemente, também começou a infiltrar-se em outras mídias. Basta rever alguns materiais educativos, veiculados não só nas escolas, mas também em universidades de prestígio.

No entanto, nos Estados Unidos o “feminismo de gênero” conseguiu colocar-se no centro da corrente cultural norte-americana. Prestigiadas universidades e faculdades difundem abertamente essa perspectiva. Além disso, muitas séries de televisão americanas fazem a sua parte para espalhar a seguinte mensagem: identidade sexual pode “desconstruir-se” e masculinidade e feminilidade não são mais que “papéis de gênero construídos socialmente”.

Considerando-se que o avanço das tecnologias conseguiu que estes programas com toda a nova “perspectiva de gênero” cheguem diariamente aos países em vias de desenvolvimento, principalmente através da televisão por cabo, sem excluir as muitas outras formas de mídia em nosso tempo, isto nos coloca ante um novo desafio que temos de enfrentar o mais cedo possível para evitar as consequências graves que já está ocasionando no Primeiro Mundo. Especialmente quando, nas palavras de O’Leary, a “desconstrução” da família e o ataque à religião, à tradição e aos valores culturais que as “feministas de gênero” promovem nos países em desenvolvimento, afeta o mundo inteiro.

Notas

[1] Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, Routledge, New York, 1990, p. 6.

[1.2] Veja-se, no texto final desta conferência (http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declaracao_beijing.pdf), a título de exemplo, o ponto 24 da ”pauta de compromisso” e o ponto 96 da ”plataforma de ação”.  Acesso em 03.06.15.

[2] veja-se o trabalho de Cristina Delgado, Reporte sobre la Conferencia Regional de Mar de Plata, Argentina, onde recolhe diversas citações de “feministas de gênero”.

[3] Ibidem

[4] Adrienne Rich, “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence”, Blood, Bread and Poetry, p. 27.

[5] Ibidem, p. 70.

[6] Lucy Gilber y Paula Wesbster, “The Dangers of Feminity”, Gender Differences: Sociology of Biology?, p. 41.

[7] Gender Outlaw, p. 115.

[8] Entrevista a Christina Hoff Sommers en Faith and Freedom, 1994, p. 2.

[8.1] A propósito: http://www.acidigital.com/noticias/ideologia-de-genero-prejudica-educacao-espanhola-adverte-perito-60361/. Acesso em 03.06.15.

[9] Frederick Engels, The Origin of the Family, Property and the State, International Publishers, New York, 1972, pp. 65-66.

[10] Shulamith Firestone, The Dialectic of Sex, Bantam Books, New York, 1970, p. 12.

[11] Ibidem, p. 10.

[12] Ann Ferguson & Nancy Folbre, “The Unhappy Marriage of Patriarch and Capitalism”, Women and Revolution, p. 80.

[13] Ibidem

[14] Heidi Harmann, “The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism”, Women and Revolution, South End Press, Boston, 1981, p. 5.

[15] Ibidem, p. 16.

[16] Gender Outlaw, p. 115.

[17] Susan Moller Okin, “Change the Family, Change the World”, Utne Reader, Marzo/Abril, 1990, p. 75.

[18] Council of Europe, “Equality and Democracy: Utopia or Challenge?”, Palais de l’Europe, Strausbourg, Febrero 9-11, 1995, p. 38.

[19] Alison Jagger, “Political Philosophies of Womens Liberation”, Feminism and Philosophy, Littlefield, Adams & Co., Totowa, New Jersey, 1977, p. 13.

[20] Idem ibidem, p. 14.

[21] Christine Riddiough, “Socialism, Feminism and Gay/Lesbian Liberation”, Women and Revolution, p. 80.

[22] Christina Hoff Sommers, Who Stole Feminism?, Simon & Shuster, New York, 1994, p. 257.

[23] Nancy Chodorow, The Reproduction of Mothering, U. of CA Press, Berkeley, 1978, p. 215.

[24] Council of Europe, “Equality and Democracy: Utopia of Challenge?”, Palais delEurope, Strausbourg, Febrero 9-11, 1995.

[25] Ibidem, p. 25.

[26] “Gender Perspective in Family Planning Programs”, Division for the Advancement of Women.

[27] Council of Europe, “Equality and Democracy: Utopia of Challenge?”, Palais delEurope, Strausbourg, Febrero 9-11, 1995, p. 13.

[28] Ibidem, p. 16.

[29] Carol Christ, Womanspirit Rising, p. 277.

[30] Elisabeth Schussler Fiorenza, In Memory of Her, Crossroad, New York, 1987, p. 15.

[31] Joanne Carlson Brown and Carole R. Bohn, Christianity, Patriarchy, and Abuse: A Feminist Critique, p. 26.

[32] Rondhe Copelon y Berta Esperanza Hernández, Sexual and Reproductive Rights and Health as Human Rights: Concepts and Strategies; An Introduction for Activitists, Human

[33] Recentemente, o papa Francisco reafirmou que a ideologia de gênero é uma “colonização ideológica, um erro da mente humana”. Veja em: http://www.acidigital.com/noticias/ideologia-de-genero-e-um-erro-da-mente-humana-assinala-o-papa-88036/ e http://www.acidigital.com/noticias/papa-francisco-a-ideologia-de-genero-e-contraria-ao-plano-de-deus-10716/. Acesso em 03.06.15.

 

Jutta Burggraf  é Doutora em Filosofia pela Universidade de Navarra

Tradução: Cristina Murano

Revisão final: André Gonçalves Fernandes

 

Fonte: http://www.notivida.com.ar/Articulos/Genero/Perspectiva%20de%20Genero,%20peligros%20y%20alcances.html

Breves apontamentos sobre Trabalho e Ética

Sem Categoria | 01/12/2014 | |

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"Power house mechanic working on steam pump" (Lewis Hine, 1920).

Na história da filosofia moral, o trabalho nunca foi estudado de uma forma abrangente, de maneira que não se pode afirmar que exista uma ética do trabalho propriamente dita. No pensamento clássico, o trabalho aparece sempre atrelado à satisfação de umas necessidades básicas, como uma espécie de atividade própria de escravos e não de homens livres no afã de busca da “vida boa” aristotélica.

O homem moderno vê o trabalho como produto, propriedade, forma de conseguir recursos econômicos e meio de prestígio social. O trabalho, do ponto relacional (e, consequentemente, sob o ângulo ético), fica como que na penumbra do conhecimento, quando não na obscuridade. Evidente que as circunstâncias históricas influenciaram notavelmente na consideração ética do trabalho, a ponto deste ser considerado, atualmente, um direito e um dever.

A sociedade organiza-se em torno do trabalho, sem desprezar quaisquer um deles, porque os mais básicos continuam sendo considerados os mais necessários, ainda que não gozem de uma retribuição econômica à altura de sua importância social. Por exemplo, a sadia incorporação da mulher no campo do trabalho fez com que se revalorizassem as tarefas do lar, de molde que muitos homens resolveram compartilhar ou mesmo assumir a responsabilidade daqueles encargos.

Um maior desenvolvimento cultural e técnico acarreta, como efeito, uma maior dependência do trabalho, tanto que a matéria prima, sem trabalho agregado, tem muito pouco valor num mundo cada vez mais tecnificado.

Este breve ensaio, produzido a partir de uma monografia de graduação acadêmica na disciplina de Direito do Trabalho e contemplado com um prêmio editorial, pretende centrar-se nos problemas éticos que emanam do sentido objetivo do trabalho, entendido como o produto e as relações laborais que nele se entrelaçam, e, outrossim, meio de manifestação concreta da superioridade e da transcendência do homem sobre a natureza, além de verdadeira fonte de vivência da solidariedade para com os demais.

Por fim, dedico estas linhas ao saudoso professor Amauri Mascaro Nascimento, com quem aprendi, nas arcadas do Largo de São Francisco, que, para não se trabalhar nenhum dia na vida, basta escolher precisamente um tipo de trabalho: o trabalho do qual se goste.

 

I – TRABALHO: DIMENSÃO REAL

A expressão “trabalho” tem uma origem remota e seu significado tem mudado consideravelmente ao longo da história. Assim, não é muito útil uma análise etimológica, ainda que se deva saber que a expressão decorra do nome dado a um instrumento de tortura romano. Hoje, o significado desta palavra é variado e convém fazer uma reflexão sobre a realidade. O trabalho tornou-se, nos últimos três séculos, a referência básica para a compreensão da estrutura social e, no âmbito do marxismo, da atividade política, o que, às vezes, reduz o entendimento do trabalho a uma perspectiva ideológica exclusivamente.

Descritivamente, o trabalho está ligado com uma ação humana, mas nem toda ação humana resulta num trabalho, como, por exemplo, o ato de comer, ainda que o cozinheiro, em seu ofício de preparação da comida, realize um trabalho. O trabalho, à luz do que pensamos, exige uma atividade inteligente e livre do homem e, considerando que o homem vive em sociedade, as ações realizadas para a organização da pluralidade humana, ao contrário do mel fabricado instintivamente pelas abelhas numa colmeia, também são formas de trabalho: política, legislação e educação.

Analogamente, jogar tênis, xadrez ou futebol não será considerado trabalho se a pessoa faz isso por puro entretenimento. Mas se a pessoa for tenista, enxadrista ou futebolista, ou seja, se estiver exercendo uma profissão, passa a ser um trabalho. Eis uma palavra intimamente relacionada com a noção real de trabalho: profissão. Ousaríamos dizer que o trabalho alcança sua própria significação quando ele qualifica-se como um trabalho profissional.

Logo, em nossa concepção de trabalho, cremos ser importante não somente olhar o indivíduo com estas ou aquelas competências ou habilidades operacionais e encarregado destas ou daquelas metas de eficiência, como costuma ser nas sociedades capitalistas, mas vê-lo como um todo, como alguém inserido na sociedade humana.

Compreender o trabalho como uma profissão, significa não só compreendê-lo em sua raiz, nas faculdades operativas do homem, mas desde o contexto social. Uma atividade humana seria reputada como trabalho profissional quando fosse exercida no seio social, ou seja, enquanto se inscrevesse num conjunto de funções sociais por meio das quais a mesma sociedade constitui-se e desenvolve-se.

Na sociedade contemporânea, o trabalho não produz diretamente os meios para se viver. Esta relação é mediada pelo conjunto social, que acolhe a atividade de cada um e, conjuntamente, produz os bens que reparte em forma de salário e benefícios trabalhistas e previdenciários: eis o atributo que eleva uma atividade à categoria de trabalho profissional, inclusive o trabalho doméstico, que voltou a ser revalorizado com a saudável entrada da mulher no mercado de trabalho, porquanto goza de muitos daqueles benefícios.

Contudo, se o caráter profissional do trabalho é absolutizado, o trabalho resulta funcionalizado no conjunto da obra social, de maneira que a pessoa fica, nesse aspecto, absorvida pela coletividade. O indivíduo vira um número, uma matrícula ou um registro. Este aspecto fundamental não pode ser ignorado ao se apreciar a realidade.

A perspectiva coletivista é fortemente reducionista, mas pensamos ser igualmente inadequado tratar a questão do trabalho desde uma perspectiva meramente metafísica, isto é, desde a pura essência do homem que, inevitavelmente, considera o homem como um ser uno. Para que a justiça social impere na realidade do trabalho, é necessária uma apreciação cuidadosa da pluralidade humana, como peculiar pluralidade de indivíduos únicos, ou seja, de pessoas dotadas de uma dignidade intrínseca, constituindo-se cada uma delas um todo de sentido: não se resumem a umas peças substituíveis da máquina produtiva social.

Preferimos compará-las com os músicos de uma orquestra sinfônica. Cada um tem um rol de qualidades e talentos individuais e únicos que, somados e bem regidos pela batuta do maestro, produzem um som harmônico e apreciável aos ouvidos. Nossa percepção, certamente, causa um algum pavor ao capitalismo e ao marxismo, por não ser simpática ou politicamente correta, já que ambos têm, em comum, uma visão economicista da realidade do trabalho, cuja matriz filosófica remonta a um certo materialismo ainda reinante. Mas a realidade posta nem sempre é a realidade que queremos.

 

II – SENTIDO DO TRABALHO

O exercício de uma profissão, seja um ofício eminentemente manual ou intelectual, ocupa a maior parte do dia-a-dia das pessoas. É um campo fértil para a busca de nossas realizações pessoais e profissionais, onde desenvolvemos nossos talentos e aprimoramos nossa experiência pessoal.

Aprendemos que o homem foi feito para trabalhar, assim como a ave para voar antes do tropeço adâmico. De acordo. Mas, trabalhar para quê? Que fim buscamos no desempenho de nossas profissões? O primeiro milhão, prestígio, rede de contatos, sustento familiar, acesso a bens materiais, poupança, responsabilidade social, fama, estabilidade econômica, diversão? Há uma finalidade intrínseca ao trabalho?

Certa vez, alguém questionou alguns pedreiros a respeito do que faziam. Um respondeu, resignadamente, que quebrava pedras. O outro, num tom mais sério, disse que tirava dali o sustento para sua família. O último, envolto num ar contemplativo, falou que estava construindo uma catedral. E para nós? O que significa o trabalho? Buscar o significado de alguma coisa quer dizer colocá-lo numa relação intrínseca com uma “fonte de sentido”. Quando uma realidade é considerada significativa por si mesma, as demais assumem sua significação por conexão a ela.

Por exemplo, quando se considera importante, por si só, o dinheiro (a fonte de sentido), qualquer atividade torna-se significativa na medida em que se consegue mostrar sua conexão com o dinheiro. Até que essa conexão não se efetive, o indivíduo segue reclamando um “para quê”. A fonte de sentido autêntica tem que ser algo com a qualidade de ser valioso em si mesmo e não em função de outra coisa, ou seja, não há de ser um valor relativo, mas absoluto. O único bem absoluto da realidade é a pessoa humana como tal, isto é, enquanto um ser dotado de inteligência e vontade e não como mero instrumento para se empregar em outros fins.

Compreender cabalmente uma realidade é, assim, conectá-la com o ser humano enquanto tal. Qualquer que seja a resposta, no caso da dimensão do trabalho humano, é necessário estabelecer uma ideia clara e suficiente para orientar a prática concreta e que alcance a dimensão produtiva da atividade laborativa e também a dimensão imanente do homem. A natureza, de pronto, não proporciona um número de bens materiais suficientes para todos. O homem deve trabalhar para que possa fazer render, a partir daquilo que a natureza oferece, tudo o que necessita. Assim, o trabalho se apresenta como uma fecunda relação entre ambos: homem e bens.

Em sua acepção imediata, o trabalho é a atividade humana produtiva, ou seja, geradora de uma gama de bens materiais e que se realiza com o fim de se ganhar a vida. Nessa ótica, o trabalho é um esforço humano necessário para algo necessário. Um esforço que tem um caráter de meio e não de fim em si mesmo. Desta maneira, compreende-se o posto do trabalho na vida humana. Justamente porque o trabalho é preciso, deve evitar-se o risco de convertê-lo num valor absoluto. A pessoa deixa de trabalhar para viver e passa a viver para trabalhar: o trabalho é visto como uma espécie de jogo ou esporte, uma atividade que, ainda que exija algum esforço, é prazerosa em si mesma.

Se, por um lado, esta visão de trabalho otimizaria o esforço a ela inerente, tornando-o mais produtivo, por outro, é superficial e inconsistente, porque se baseia numa postura ilusória, dado que ignora a verdadeira realidade e a autêntica dureza do trabalho, decorrente não tanto do esforço nele empregado, mas da necessidade de fazê-lo, com ou sem vontade, essa inseparável medida contida na natureza humana. Não se trabalha por gosto, ainda que se possa trabalhar com gosto.

Ambas as dimensões, a produtiva e a imanente, devem ser corretamente dosadas. Quando uma delas é privilegiada, a outra resta diminuída ou mesmo negada: é a regra atual. Se a pessoa é vista apenas no enfoque produtivista, a realização humana é resumida na produção de bens e mais bens.

Ainda que se rejeite qualquer ideia de verdade acerca da natureza humana, a filosofia moral expulsa pela porta retorna pelo vão da janela: o homem que produz seria o modelo de realização humana. Os que não produzem ou que não atuem diretamente em atividades produtivas seriam uns seres cuja existência é parasitária e inútil: comporiam, injustamente, uma espécie de legado da miséria humana e tomariam parte das “periferias existenciais” de nossas sociedades. Essa é uma realidade profundamente iníqua e tremendamente atual.

 

III – TRABALHO: EVOLUÇÃO

Antes da Idade Moderna, o trabalho era considerado uma atividade por meio da qual o homem dominava a natureza para atender as inúmeras necessidades de sua vida biológica. Tinha dois aspectos: o encontro entre homem e natureza e a capacidade de produzir bens materiais a partir dessa confluência.

O primeiro aspecto dava à noção de trabalho um matiz negativo, já que a natureza se mostrava inerte e resistente ao domínio humano, vencível apenas com o esforço próprio, ao contrário do segundo, de viés claramente positivo. Não é a toa que ambos os aspectos – esforço e eficiência – refletiram-se no idioma: “trabalhar” tem um sentido de enfrentamento penoso e “produzir” lembra uma condição de eficiência.

Naquela época, o primeiro aspecto prevaleceu e ressoa até hoje. Qualificar alguma atividade como “trabalhosa”, supõe uma dificuldade dolorosa. Mas, ao se atribuir uma conotação marcadamente negativa ao “trabalhoso”, podemos sugerir uma falsa identificação entre o negativo e o trabalhoso, sobretudo a partir de uma lógica hedonista.

Para os gregos, a atividade propriamente humana era a vida da polis, tanto que, para Aristóteles, o exercício das virtudes dentro desta perspectiva vital – a vida política e os destinos da cidade – asseguraria a felicidade do homem. Em contraste com essa atividade própria do homem, livre e pública, estava a atividade interna de cada família, impulsionada por necessidades biológicas exclusivamente.

Aqueles que ali viviam, a mulher, os filhos e os escravos não tinham uma vida propriamente humana, porque sua atividade não era livre e não manifestavam a singularidade de seu ser, dado que se concentravam totalmente na atenção da economia doméstica. Evidente que esta perspectiva da ideia de trabalho carregava uma conotação negativa, enquanto impedia o exercício da atividade própria do homem. Contudo, a primazia do sentido de esforço deixa o campo do pensamento para dar lugar, a partir do século XVII, para o sentido de eficiência: a produtividade.

O fator determinante desta inversão foi a mudança de perspectiva que surge na filosofia teórica. O advento de novas ciências com forte matiz prático, substituindo-se a pura admiração da natureza por uma intervenção experimental planificada, provocou a primazia da ação sobre a contemplação para se chegar a um conhecimento verdadeiro.

Não haveria mais espaço para um olhar atento e contemplativo com o fim de se atingir a verdade das coisas em si mesmas, mas somente para uma intervenção ativa que obrigasse “as coisas” à entrega de seus “mais profundos segredos”. Surgia, então, uma atitude investigativa de dúvida, centrada numa visão “dominadora” da natureza, como se ela fosse, desde sempre, inimiga do homem. “Donos e possuidores da natureza”, profetizava Descartes.

Se a ótica da admiração tem algo de juvenil, a ótica da dúvida sistemática tem algo de envelhecido. A primeira confia na realidade; a segunda desconfia por princípio, ou seja, tem medo e isso induz no observador um estado de espírito defensivo. O conhecimento certo, mais do que dado pela realidade, nessa cosmovisão gnoseológica, tem que ser arrancado à força e, logo, não traz a gratidão, mas uma sensação de vitória conquistada (“os triunfos da ciência”: profecia realizada). Nessa postura cognitiva, não há lugar para o mistério. A realidade tem que ser perseguida até que se “renda” e confesse o que sabe…

E a mudança não foi só do método de conhecimento da realidade, mas do telos deste: a verdade das coisas, seu sentido e alcance dão lugar para a certeza, algo diverso, consistente na intensidade com que a vontade adere a uma proposição formulada pela mente. Logo, o método de conhecimento – e não a realidade – passa a ser o fiel garantidor da certeza, como se a receita adequada garantisse o sucesso gastronômico de um prato.

Hoje, o modelo da ação humana está em agregar um novo conhecimento intimamente unido à prática, seja como fundamento deste conhecimento, seja pelas possibilidades de domínio da natureza que se abrem. Estes serão os fatores que determinarão a primazia da produtividade, tornada possível pelo maquinismo técnico subsequente às novas ciências experimentais recém nascidas.

Se, no século XVII, este quadro é mais uma perspectiva que uma realidade, foi mais que o suficiente para o advento de uma nova mentalidade acerca do trabalho, predominante até hoje e simbolizado pela propaganda de uma famosa montadora alemã de carros, “Vorsprung durch Technik”: primazia através da tecnologia, em tradução livre.

 

IV – TRABALHO: DIMENSÃO HISTORICISTA

A concepção produtivista do trabalho, concebida no século XVII, não implantou seus objetivos imediatamente. A partir de então, o trabalho físico tornou-se mais duro e as condições de trabalho mais desumanas que os séculos precedentes, tanto que o processo que culmina com a aparição do proletariado não guarda solução de continuidade com o trabalho humano nos séculos anteriores.

Em princípio, tais circunstâncias aparecem como um “preço” que deveria se pagar para a implementação da nova imagem do mundo e das perspectivas de domínio que se abriam ao homem, o qual toma consciência da eficácia de seu poder finalmente, ainda que ao custo de vidas humanas ceifadas por uma mortalidade precoce e decorrente das péssimas condições de trabalho. Muitas dessas vidas sequer chegaram à adolescência existencial.

O sentido do trabalho passa a ser o desenvolvimento do poder humano de transformar a natureza e, sobretudo, de produzir, ou seja, a ação produtiva não receberá sua legitimidade a partir de um fim distinto, mas será sempre vista a partir de si mesma e sempre com um viés autorreferente.

Como consequência, o modo do homem entender sua vida em sociedade transforma-se completamente. Ao privilegiar-se a atividade estritamente produtiva, os cidadãos proeminentes passam a ser aqueles que produzem e produzem cada vez mais. Ao passo que aqueles que se dedicam às atividades mais nobres, segundo a filosofia antiga, como professores, políticos, juízes e legisladores, são degredados da vida social.

Chegam a ser denominados no século XVIII, por Adam Smith, como “elementos passivos” da sociedade. Recentemente, o presidente da maior companhia de produção de aço nacional chegou a afirmar que “um futuro próspero ao Brasil passaria pelo fechamento de metade das faculdades de Direito, já que engenheiros produzem riquezas e os advogados as destrõem”. Sem dúvida, uma toupeira, tanto num caso como noutro, seria capaz de algo mais propositivo.

A ideia de sociedade humana altera-se completamente: já não é mais uma pluralidade de pessoas que participam de uma visão comum de mundo e que sustentam uma tradição em comum, mas um conjunto de elementos produtivos que estão unificados pelas correlações devidas exclusivamente à organização do trabalho. Assim, a sociedade será, sobretudo, uma comunidade de trabalho. A consciência de que o mundo se configura a partir da ação humana vai tomando mais feição ao longo do século XVIII e o que, no início, apresentava-se como uma simples inversão de perspectiva, vai se esgueirando para outros níveis de compreensão do homem.

O século XVIII também lança as bases do idealismo transcendental de Kant, Schelling e Fichte que, somado ao economicismo de Adam Smith, fez com que Hegel elaborasse a primeira grande filosofia moral do trabalho, no sentido mais amplo: seu intento era o de reaver as dimensões da ação humana, segundo a visão aristotélica, pois já antevia a alienação que o trabalho produziria na pessoa humana, segundo a importância dada ao produto de sua ação para o próprio homem.

Nessa perspectiva, as realizações da atividade humana já não são vistas como mero produto do trabalho humano, mas como manifestação do espírito, entendido como totalidade histórica, ao qual o homem deve sua existência determinada: cada homem é filho de seu tempo, isto é, é um produto de uma mentalidade, de uns costumes e de uma educação essencialmente históricos.

A postura hegeliana exerceu influência decisiva em Marx, que a aplicou no âmbito da atividade laboral, entendida como a intervenção do homem na natureza e como a única realidade configuradora real do mundo. Qualquer outra dimensão da existência humana foi reduzida a epifenômenos das relações de produção. Para Marx, a História é o fazer-se do homem pelo homem, por meio do trabalho. E o homem é o fruto do ventre da História, o produto de um processo no qual o fator determinante é a satisfação das necessidades imediatas por meio da atuação na natureza.

Se Hegel e Marx têm o mérito da descoberta de aspectos ignorados e do enfrentamento de problemas novos, por outro lado, os limites de suas perspectivas são preocupantes, não só pelo fato de as terem elevado a um critério absoluto da realidade acerca da existência humana, mas por terem reduzido as outras dimensões a meras derivações de seus postulados teóricos.

Nessa linha, a pessoa humana fica completamente dissolvida na coletividade, sem espaço para a concretude do indivíduo, o qual só pode ser reconhecido em função de suas funções sociais. A ideia de natureza humana perde qualquer sentido e o mundo torna-se o reino da faticidade neutra, simplesmente referida ao domínio econômico e produtivo do homem. Se tudo flui, é inútil tentar pensar numa natureza humana permanente e que resulte influente para a ação humana. Desenvolvimento histórico no lugar de verdades perenes e história como resultante de conflito dialético de forças antagônicas: dois erros somados que não resultam num acerto.

 

V – TRABALHO: FONTE DE LIBERDADE

Iluminado pelas ideias de Hegel e Marx, a humanidade sofreu um forte impacto. A mudança inicial tem lugar no fato de que o homem, ao invés de sentir-se num mundo estável, começa a pensar que suas bases estão sempre mudando: por evolução da técnica, os bens que construiu e que configuram seu mundo – desde cidades, casas, leis, relações sociais até a caneta e o creme de barbear – são constantemente substituídos por outros melhores. E, numa velocidade cada vez maior, ainda que tal fenômeno já existisse, mas sem que fosse sensível no espaço de uma vida inteira.

Essa capacidade de melhoramento técnico perdura até hoje e numa rapidez cada vez mais crescente. A durabilidade de um produto já não é uma qualidade desejada, já que seria um obstáculo à renovação e à inovação. O mundo continua sendo moldado por processos tecnológicos que nos proporcionam outros objetos e que praticamente ficam obsoletos enquanto os novos estão sendo elaborados.

Não se questiona as inúmeras vantagens que a tecnificação da vida tem proporcionado à vida humana: ninguém quer mais receber um relógio de bolso de presente de aniversário. Mas nos tornamos adoradores do trabalho produtivo, mesmo que, às vezes, ele seja o portador de novos medos que invadem o homem ante as potenciais capacidades destrutivas ou manipuladoras das técnicas nele embutidas.

Quando a técnica eleva-se à condição de configuradora do mundo, a pergunta é elementar: uma realidade forjada exclusivamente pelo trabalho é uma realidade verdadeiramente humana? O louvor desenfreado ao trabalho não pode levar-nos a uma nova realidade que se volte contra o próprio homem, preso nessa laboriosidade sem descanso e sem contemplação junto a alguma transcendência?

Não se propõe aqui um novo bucolismo. Pensamos que o domínio da técnica criou uma mentalidade de constante mudança e progresso sempre para melhor, tornando-se a depositária das esperanças da humanidade, quando as realidades estáveis de nossa existência deveriam sê-lo.

E, como efeito indireto, ascende a postura prática de que o novo é sempre bom e o antigo é sempre ruim: a categoria do “best seller” dá bem conta, no âmbito da literatura, que outrora nos brindou com um Shakespeare e com um Machado, que as criações têm uma vigência bem reduzida, à semelhança dos jornais. A música também foi atacada pelo mesmo fenômeno do metabolismo total: consumo durante alguns meses e, ao fim, uma composição fica antiquada para que outra ocupe seu posto.

Essa ideia tem o valor positivo de mostrar algumas características reais da condição humana, até então desconhecidas. Mas estas têm a limitação de sua parcialidade, pois enxergam o homem apenas sob uma perspectiva e quando inspiram uma organização humana, queremos dizer, quando alcançam uma vigência prática, a parcialidade converte-se em falso e maltrata a própria realidade humana.

Diante dessas e de outras coisas novas do mundo do trabalho, é conveniente evitar o erro de que as mudanças são fruto de uma ação cega e determinista da História, cuja raiz remota está no fatalismo grego (basta lembrar a relação do grego com seus deuses), segundo o qual as coisas sucedem-se inexoravelmente, independentemente do agir livre do homem. Esse buraco negro filosófico atraiu muitas e boas mentes para um labirinto de Creta, pois elimina, por completo, a liberdade humana.

O fator decisivo e o árbitro destas (e de outras) mudanças é (e sempre será) o homem, na condição de verdadeiro protagonista de seu trabalho. Mas as reorganizações e inovações no mundo do trabalho devem buscar uma valoração fora do âmbito que lhe é próprio, ou seja, devem servir ao crescimento da pessoa, da família, da sociedade e da humanidade.

Interpretações de cunho mecanicista ou economicista, ainda que influentes nos dias de hoje, resultam superadas diante da realidade: banalização do repouso semanal, dilema familiar no trabalho da mulher, exploração do trabalho infantil, injusta discriminação do trabalho da mulher e do imigrante, inverno demográfico provocado pelos fluxos migratórios campo-cidade, entre outros exemplos.

O homem entrega-se à aventura da transformação das coisas pelo trabalho para satisfazer suas carências materiais, mas deve fazê-lo seguindo um impulso que o impele sempre para além dos resultados alcançados, em busca do aspecto transcendente que corresponda às suas exigências interiores mais profundas. Nesse sentido, afora o contexto execrável da máxima nazista, o trabalho liberta (Arbeit macht frei).

 

VI – TRABALHO: VISÃO ONIPOTENTE

Uma sociedade moldada pela visão onipotente do trabalho tem dois atributos negativos. O primeiro é o consumismo desenfreado, entendido como uma sociedade em que as realidades que a constituem já não são mais objetos estáveis destinados a um uso duradouro: são objetos para o imediato consumo. Aqui e agora. A pouca durabilidade das coisas não se deve a defeitos intrínsecos de sua elaboração, mas decorre como efeito do sistema de primazia do trabalho. A renovação constante dos objetos torna-se uma determinante de um sistema focado pela perfeição material crescente.

Essa situação dá lugar a um tipo de pessoa cada vez mais cheio de necessidades. Aliás, a propaganda afinou-se com o sistema produtivo de tal maneira que transforma os caprichos de ontem nas necessidades do amanhã e, ademais, envolve a pessoa de tal forma que pareça que sua vida esteja desprovida de sentido: consumo, logo, existo. A sociedade de consumo dá a luz a seres perenemente insatisfeitos e cheios de vazio existencial.

A par das necessidades crescentes, induz-se no homem uma atitude de confiança no domínio total dos processos naturais, desde o de melhoramento da produtividade agrícola até o de combate das limitações e dores que nos afligem diariamente, como a depressão, o mal do homem moderno: em todos os casos, a solução, nessa ótica, passará, necessária e exclusivamente, pela via do domínio técnico-científico exclusivamente.

A primazia da ação sobre a contemplação traduz-se na preponderância de uma atitude intervencionista, sem que, muitas das vezes, haja uma busca do sentido destes fenômenos naturais. Em nenhum âmbito vital, vê-se tão claramente o equívoco desta mentalidade que no campo da reação diante da dor.

Desde sempre o homem tratou de encontrar legitimamente uma maneira de mitigar suas dores. Mas essa busca não era um obstáculo para, concomitantemente, procurar-se um sentido para essa mesma dor. Atualmente, a dor é fator desencadeante da ação do homem para eliminá-la a qualquer custo. A dor, em si mesma, deixou de ser um enigma ligado ao mistério próprio do homem e passou a ser vista como uma perturbação biológica merecedora de tratamento científico pelos profissionais da área.

Certamente, essa postura conduziu a Medicina a progressos incomensuráveis para a humanidade, mas deixou o homem literalmente indefeso ante uma dor invencível, como a dor pela perda de um ente querido. O recurso a psicofármacos, em casos em que o exercício de virtudes seria mais eficaz e os casos cada vez mais comuns de suicídios por causas mínimas, tem a raiz comum na unilateral e insana confiança do homem no domínio total da natureza.

A sociedade de consumo é uma sociedade destemperada, que confia cada vez mais no auxílio dos artefatos elaborados pelo homem e, consequentemente, aparta-se do cultivo daquelas dimensões vitais em que a ciência aplicada pode prestar menor grau de socorro. Se o desenvolvimento científico é válido, principalmente para a superação das limitações materiais da vida humana, quando ela configura uma sociedade de maneira decisiva, os corretivos necessários são muito mais poderosos e, não raro, dolorosos.

O segundo atributo negativo da visão onipotente do trabalho está na complexidade do processo de produção de bens, cada vez mais sofisticados. A fragmentação deste processo requer que cada um dos intervenientes realize somente uma parte mínima, desconhecendo, na prática, aquilo que fazem os demais que também atuam no mesmo processo. Tal fato poderia ajudar a formar uma consciência de trabalho em equipe, mas, na prática, isso não existe, pois suporia que cada um dos atores do processo de produção conhecesse o todo e entendesse seu sentido.

O fracionamento do trabalho não é devido apenas à própria complexidade do produto pretendido, mas também como imperativo de produtividade. Nisto coincidem as análises de Adam Smith e de Marx: a produtividade deve-se muito mais à divisão do trabalho que ao trabalho propriamente dito. A primazia absoluta do trabalho na consideração de uma concepção social acaba por reduzir a mesma sociedade humana a uma mera organização laboral, onde a convivência é articulada, artificialmente, de maneira que as pessoas possam convergir suas faculdades apenas no labor e para produzir mais e melhor.

Seria uma espécie de visão antropológica mecanicista que faz da política uma técnica e da sociedade um edifício, na qual cada um de seus elementos é alheio ao conjunto, estando integrados em razão de fatores extrínsecos somente. Um edifício assentado sobre o erro de se considerar o homem somente um ser destinado ao trabalho. Um edifício prestes a tombar e sem qualquer ponto de apoio sólido: um problema que nem Arquimedes resolveria.

 

VII – TRABALHO: NOVA ÉTICA

A perspectiva que devemos adotar para o tratamento ético do trabalho não pode ser meramente mecânica ou econômica, pois, em primeiro lugar, não nos interessa a articulação das forças físicas que, indubitavelmente, estão sempre envolvidas no trabalho humano. Tampouco, na mesma ordem, não é relevante a produtividade e as correlações devidas ou requeridas para uma maior eficácia dos processos de produção de bens.

O tratamento ético reclama uma perspectiva a partir da humanidade do homem, ou seja, interessa-nos colocar de manifesto de que modo a humanidade do homem está engendrada nas atividades denominadas de trabalho e, por conseguinte, de que modo os diversos aspectos destas atividades são matéria de interpelação ética para a liberdade humana.

Assim, frente às inúmeras correntes filosóficas baseadas na produtividade do homem, os princípios antropológicos para uma ética do trabalho devem passar necessariamente pelo postulado da abertura do homem à transcendência. Do contrário, as peculiaridades da pessoa humana volatilizam-se e não se consegue fundamentar adequadamente nem a dignidade absoluta do homem, nem sua realidade transcendente em face da natureza da qual também faz parte.

Logo, o trabalho não pode ser resumido à uma simples mercadoria exposta a quem oferecer maior paga, nem à uma força anônima e cega ou a um mero instrumento de produção. O trabalho é uma atividade da pessoa. Com efeito, o trabalho procede, de modo imediato, da pessoa, a qual exerce e aplica nele uma parte das capacidades inscritas na sua natureza. O homem, com seu trabalho, desenvolve a face da sociedade e presta serviços aos outros: em suma, humaniza-o.

No trabalho, comprometem-se a inteligência e a vontade do homem. Não é um impulso instintivo, mas algo intencional, específico do ser humano e decorrente de uma vocação natural. Em sentido próprio, só homem trabalha. Os animais e as máquinas só o fazem por analogia. Precisamente, por ser atividade intencional da pessoa humana, o trabalho é uma coisa digna, seja qual for o trabalho realizado.

O trabalho pode ser avaliado pela produtividade, pela eficiência, por outros critérios de valor econômico ou mesmo pelo prestígio social, mas, para além destas valorizações, o trabalho tem uma dignidade intrínseca e o primeiro fundamento do valor do trabalho é o próprio homem, seu sujeito. O homem, ao trabalhar, não só modifica a realidade, como transforma a si mesmo ao ter consciência do que realiza e deseja. Ou seja, a atividade laborativa não só procede do homem como para ele também se ordena: aprende, desenvolve suas faculdades físicas e intelectuais e supera-se. Tal aperfeiçoamento, se for bem compreendido, é mais importante que as riquezas por ele geradas a partir do trabalho.

O trabalho tem um duplo sentido: o objetivo, mediante o qual o homem expressa seu domínio sobre a realidade posta e o subjetivo, decorrente do agir humano enquanto ser dinâmico, capaz de levar a cabo várias ações que pertencem ao processo do trabalho, condensadas em sua vocação pessoal.

O trabalho objetivo constitui o aspecto contingente da atividade do homem, que varia incessantemente em suas formas segundo a evolução da técnica. O trabalho subjetivo configura a dimensão estável do homem, porque não depende daquilo que o homem realiza concretamente ou do gênero de atividade que exerce, mas somente de sua dignidade de ser pessoal.

Tal distinção tem o mérito de sublinhar corretamente o fundamento último do valor do trabalho, à vista do problema de uma organização social, fomentada pelo trabalho, que respeite os direitos do homem, sem que se redunde numa ideia mecanicista ou economicista dos processos de trabalho. O trabalho, portador de uma intrínseca dimensão social, possibilita o aperfeiçoamento da pessoa ou a deterioração de sua humanidade, motivo pelo qual a dimensão subjetiva deve preceder à objetiva. O valor primordial do trabalho pertence ao próprio homem, autor e destinatário de sua atividade. O trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho.

Ao contrário da retórica marxista, o trabalho não é alienante pelo fato de ser executado sob a regência de outro, mediante a contraprestação em dinheiro. O trabalho é alienante quando impede a realização humana de quem trabalha, privando-o naquilo que é e no que está chamado a ser.

Ao cabo, vimos que uma filosofia moral para o trabalho deve necessariamente passar pela configuração do trabalho humano como instrumento de condução do sujeito humano, individual e coletivamente, rumo à sua perfectibilidade como pessoa. Dessa forma, o trabalho servirá para que o homem alcance o sentido de sua existência e a plenitude de uma vida propriamente humana, qualificando o trabalho, como efeito, com a verdadeira dignidade que merece.

por André Fernandes (IFE Campinas)