Arquivo da tag: Ocidente

image_pdfimage_print

The Rise of Early Modern Science (resenha)

Sem Categoria | 17/12/2014 | |

image_pdfimage_print

The rise of early

The Rise of Early Modern Science: 

Islam, China, and the West

Toby E. Huff

Cambridge: Cambridge University Press, 2003,

409pages. $18.95 paperback (ISBN0-521-49833-3).

 

Este estudo examina a longa questão posta acerca dos motivos pelos quais a ciência moderna surgiu e se desenvolveu no Ocidente e não nas civilizações islâmica e chinesa, apesar do fato que estas civilizações fossem cientificamente mais avançadas à época. Para explicar essa virada científica e civilizacional, Huff explora os contextos culturais – religioso, legal, filosófico e institucional – nos quais a ciência era praticada no Oriente Médio, na China e no Ocidente. Ele descobre, por meio da investigação da história do direito e da revolução cultural europeia dos séculos XII e XIII, as principais pistas que conduziram às razões pelas quais um ethos científico surgiu no Ocidente, criando as condições favoráveis para um exclusivo boom da moderna ciência somente na Europa e, depois, na América. Esta tese central conduz o leitor para novas e intrigantes ideias sobre o conceito legal e a teoria moral da corporação, o qual é única no mundo ocidental e que fomentou o advento dos conceitos de espaço coletivo, de universitas e de livre investigação racional.

Resenha por Scott B. Noegel, Ph.D. Universidade de Washington, Seattle

Tradução de Beatriz Resende

Revisão de André Fernandes

O intrigante estudo de Huff em sociologia histórica e comparativa visa responder uma questão debatida há tempos: as razões pelas quais uma revolução científica ocorreu no início da Europa moderna no século XIII, apesar do fato de as civilizações islâmica e chinesa serem tecnologicamente muito superiores à época. Os astrônomos muçulmanos al-Tusi e Ibn-Shatir, por exemplo, tinham desprezado a astronomia ptolomaica em favor de um modelo matemático que antecipou o de Copérnico (embora o modelo islâmico não fosse heliocêntrico).

Similarmente, deram-se os avanços islâmicos na área da ótica, que em muito superaram os do Ocidente antes de 1300. A China também era tecnologicamente mais avançada do que o Ocidente, especialmente em matemática, mas assim como a ciência islâmica, não conseguiu progredir de forma significativa depois do século XIV. Ao aprofundar as obras de Max Weber, Thomas Kuhn, Joseph Needham, Robert Merton e, seu próprio mentor, Benjamin Nelson, Toby Huff aborda a questão dos motivos pelos quais o Ocidente, e não o Oriente, deu origem à revolução científica, estabelecendo os contextos legal, social, filosófico e teológico das respectivas culturas.

É de especial interesse para Huff a forma como os valores culturais subjacentes e a dinâmica de cada sociedade serviram para inibir ou catalisar o avanço científico. Huff observa: “Então, eu argumentaria que, na medida em que podemos falar de uma instituição específica da ciência, seus agentes normativos são derivados de um ambiente cultural muito mais amplo e, acima de tudo, apoiam-se em pressuposições religiosas e legais que antecedem em longa data o surgimento da ciência moderna no século XVII” (p. 25).

Fundamental na análise de Huff é o papel das crenças medievais em contribuir para a transformação das instituições jurídicas europeias nos séculos XII e XIII. Aqui, Huff dá crédito ao surgimento de corporações autônomas pelo advento de investigações racionais autônomas. A corporação que Huff destaca como sendo a mais importante desses avanços é a universidade. Na visão de Huff, é exclusivamente a universidade que incentivou a busca por verdades universais e que preparou o cenário para transformações.

Consequentemente, o formato corporativo das universidades europeias com sua certificação corporativa do conhecimento, em última análise, serviu para promover uma visão de mundo universalista de verdades racionais que transcendem o indivíduo. Huff afirma: “Enquanto os sistemas jurídicos ocidentais haviam adotado a razão e a consciência em adição à ideia da lei natural como fim último para aceitar ou rejeitar uma prática jurídica específica ou um princípio, a lei islâmica optou pela tradição e pelo consenso acadêmico” (p. 133).

Continua Huff: “Por essa razão, a filosofia e os trabalhos científicos gregos foram incluídos e incorporados no currículo universitário. De fato, alguns diriam que foi a herança grega do pensamento intelectual, sobretudo seu compromisso com o diálogo racional e com a tomada de decisão por meio da lógica e da argumentação, que determinou, daí por diante, o caminho para o desenvolvimento intelectual no Ocidente” (p. 133).

Por outro lado, Huff argumenta que a civilização islâmica sofria de uma incapacidade de conciliar a investigação racional com sua teologia. Sua ênfase na “lei sagrada” shari’a, “estabeleceu de uma vez por todas os padrões de conduta e de gestão adequada dos assuntos humanos para todos os muçulmanos” (p. 67). A ciência e a filosofia grega eram toleradas apenas na medida em que serviram para ressaltar a concepção da natureza e das relações humanas segundo o Alcorão.

O pensamento jurídico, filosófico e teológico autônomos eram desaprovados. Huff expressa-o da seguinte forma: “Inovação, em questões religiosas, era equivalente a heresia” (p.117). Consequentemente, as instituições jurídicas e educacionais que surgiram no início da civilização ocidental não apareceram no Oriente islâmico. Além disso, o foco educacional das madrassas era na lei islâmica e na lógica; as ciências permaneceram nas mãos dos instrutores particulares. Assim, não houve certificação corporativa do conhecimento, apenas a certificação de instrutores individuais.

Embora Huff admita que a China era mais avançada do que o Ocidente em matemática, ele também dá um passo adiante ao separar “ciência” da “tecnologia” (e, de fato, estes empreendimentos eram diferenciados até o século XX) e ao caracterizar o avanço matemático chinês como um progresso na tecnologia. Isso lhe permite manter o seu argumento de que a civilização chinesa não avançou cientificamente. Os fatores responsáveis pelo declínio no progresso científico chinês, de acordo com Huff, eram um tanto diferentes daqueles do mundo islâmico.

“Enquanto os chineses reconheceram um tipo de direito positivo promulgado pelos homens, seu maior compromisso é com o li, com os ritos sagrados do passado, e esse compromisso está enraizado em poderosas pressuposições interligadas” (p. 263). Além disso, enquanto o governo chinês exerceu esforços para inibir a investigações racionais, originais e autônomas, o avanço científico chinês foi igualmente prejudicado pela falta de um sistema euclidiano de provas, bem como os avanços correspondentes da astronomia.

De acordo com Huff, a civilização chinesa também sofria de uma inacessibilidade à ciência e à filosofia grega e de uma disposição intelectual para modos de pensar que preferia explorar as relações entre os pares de opostos à determinação de suas causas. “Ao invés de avançar em direção a modos mecânicos e causais de pensar que reconheciam as forças naturais impessoais, o impulso chinês foi sempre para a criação de uma visão de mundo harmoniosa que ligasse todas as forças e elementos em uma harmonia cósmica centrada no homem” (p.299). Adicionalmente, e de certa forma, como consequência, o governo chinês colocou ênfase na manutenção de uma administração ordenada e efetiva.

“Ao mesmo tempo, o pensamento chinês enfatizava a importância de preservar as tradições exemplares que refletiam a realização harmoniosa do Tao, através da responsabilidade coletiva. Enquanto todas as pessoas são chamadas a viver uma vida exemplar, o imperador e seus funcionários têm a obrigação primordial de ordenar corretamente suas condutas (e assuntos de Estado), para facilitar a ordenação correta do mundo social em harmonia com a natureza” (p. 271).

Assim, conclui Huff: “O problema com a ciência chinesa não se dava fundamentalmente pelo fato de ser tecnologicamente falha, mas que as autoridades chinesas nem criavam nem toleravam instituições de ensino superior independentes, dentro das quais estudiosos imparciais podiam ir em busca de suas inspirações” (318 p.). Portanto, ao contrário do Ocidente, que tolerava investigação racional independente, o mundo nascente da investigação científica islâmica e chinesa foi inerentemente preparado para o declínio.

Embora este trabalho contribua, principalmente, para a nossa compreensão do quão poderosas as dinâmicas sociais, intelectuais e teológicas são para determinar o ethos e o avanço científico de uma civilização, por outro lado, também merece um comentário crítico. Acima de tudo, a temática mais importante é a questão iminente proposta pela tese de Huff, isto é, se aceitarmos a resposta abundante e convincente de Huff do porquê a ciência islâmica e chinesa estagnou após o século XIII, também devemos perguntar como as civilizações islâmica e chinesa ascenderam à superioridade tecnológica e científica antes de 1300.

Se as civilizações islâmica e chinesa não estavam legal, intelectual e teologicamente propensas ao avanço, como elas avançaram primeiro? A abordagem evolucionária de Huff no que diz respeito ao avanço científico é igualmente problemática em alguns ponto. Seu tratamento do avanço científico ocidental, por exemplo, baseia-se na noção de que a história da ciência é de alguma forma uma progressão linear e estática.

Certamente, isso é um paradigma demasiado simplista, que trai as “poderosas suposições interligadas” (p. 263) da época de Huff, e que negligencia momentos históricos periódicos de regressão científica, como a rejeição dos humanistas do currículo escolástico em favor dos textos da antiguidade clássica.

Além disso, a chamada “revolução científica” dos anos 1600 apareceu na época, não como um estágio evolutivo de uma cadeia sempre progressiva de acontecimentos, mas como uma reação automática a um longo período de repressão e declínio. No entanto, a abordagem de Huff aos avanços científicos islâmicos e chineses assume uma posição oposta e sugere que vejamos as instituições e as teologias islâmicas e chinesas como imutáveis.

Por exemplo, Huff argumenta que as madrassas não poderiam se tornar corporações, porque elas estavam legalmente obrigadas às intenções de seus fundadores. Porém, historicamente, este não é o caso, pois as intenções dos fundadores institucionais islâmicos poderia ser, e muitas vezes eram, suplantados pelas necessidades dos contemporâneos da instituição (como demonstra a leitura através de estudos sobre os primeiros fatwas).

Similarmente, a discussão de Huff do pensamento chinês aparece, às vezes, tendenciosamente seletiva. Por exemplo, o trabalho não presta atenção às lutas frequentes e informativas entre facções, como os budistas e confucionistas. Tal tratamento monolítico dos sistemas de crenças islâmicas e chinesas obscurece as correntes intelectuais multifacetadas e muitas vezes significantes que fundamentam a sua tese.

Consequentemente, embora não intencional, percebe-se, nas generalizações frequentes de Huff, noções latentes de incontestável superioridade cultural. Da mesma forma, e isso volta ao tratamento de Huff do avanço científico como linearmente progressivo, a questão que este trabalho tenta responder tem como premissa um otimismo científico evidente e um pressuposto de que o avanço cultural pode ser avaliado ou medido pela produção científica de uma civilização, o que nem sempre é verdadeiro.

No entanto, não se pode deixar de ficar impressionado com a enorme amplitude e o exímio domínio da literatura primária e secundária de Huff. Sempre bem argumentada e documentada em detalhe, este livro demonstra a utilidade de uma perspectiva holística para explicar a dinâmica da mudança cultural e científica. Eu recomendo este trabalho para estudantes universitários avançados interessados em se engajar nas difíceis questões que enfrenta o sociólogo da ciência.

O Islã e o Ocidente – por Roger Scruton

Sem Categoria | 05/12/2014 | |

image_pdfimage_print

1024px-Houseraidiraqaug2007Assistimos aos conflitos no Iraque e na Síria, onde um grupo de jihadistas, bem organizados militarmente, financiados internacionalmente e liderados por Abu Bakr al Baghdadi, pretende ocupar o vácuo de poder deixado pela saída dos EUA e criar um “califado islâmico” denominado ISIS (Islamic State in Iraq and Syria), sob o império da lei da sharia.

As imagens transmitidas pelo mundo inteiro (http://edition.cnn.com/2014/06/12/world/meast/who-is-the-isis/) mostram um ambiente de guerra civil, terrorismo em sua forma mais acabada, perseguição impiedosa a curdos e cristãos, execuções sumárias, fome, miséria, destruição, medo, enfim, um quadro de horror civilizacional que, no mundo ocidental, goza, hoje, do mais profundo repúdio, ao menos no ambiente da retórica política, porque parte de uma cosmovisão própria fundada em valores e ideias que jamais foram trabalhados pela tradição da racionalidade filosófica do mundo árabe, se é que pode se dizer que exista uma tradição a respeito.

No presente artigo, publicado em nossa revista (Dicta&Contradicta 03) e denominado “O Islã e o Ocidente”, Roger Scruton analisa boa parte daquela cosmovisão ocidental, no afã de reforçá-la e demonstrar a perenidade de muitas de suas proposições axiológicas, mas, sobretudo, afirma que nunca se chega a verdadeiros entendimentos sobre diversas questões à base de rebaixar as próprias convicções.

É preciso entendê-las, apurá-las e deixá-las claras, a fim de que quem as defenda continue gozando do prestígio alheio. Do contrário, se está disposto a traí-las em nome de uma “contemporização” politicamente correta, não só perde o direito de ser respeitado, como passa a ser alvo do escárnio alheio. É isso o que está em jogo, na órbita da delimitação de um rol de valores civilizacionais, entre o Islã e o Ocidente, porque saber distingui-los é, no fundo, chamar cada coisa pelo seu devido nome, ou seja, por aquilo que ela realmente é.

 

O Islã e o Ocidente

por Roger Scruton

O Ocidente hoje está envolto num conflito violento e dilatado contra as forças do radicalismo islâmico. Esta luta é sumamente difícil, tanto pela dedicação do nosso inimigo à sua causa, como – talvez principalmente – pela enorme desconjunção cultural por que passaram Europa e América desde o fim da guerra do Vietnã. Em termos simples, os cidadãos do Ocidente perderam o seu apetite por guerras estrangeiras; perderam a esperança de conquistar qualquer vitória que não fosse temporária; perderam a confiança no seu modo de vida. De fato, não têm mais certeza sobre as exigências que esse modo de vida lhes faz.

Ao mesmo tempo, viram-se diante de um novo oponente, um oponente que crê que o modo de vida ocidental é profundamente defeituoso e que talvez seja mesmo uma ofensa a Deus. Num “acesso de desatenção”, as sociedades ocidentais permitiram que esse oponente ganhasse espaço no seu próprio seio; nalguns casos – como a França, o Reino Unido e a Holanda -, em guetos que apenas mantêm relações tênues e hostis com a ordem política que os circunda.

E tanto na Europa como na América há um crescente desejo de apaziguamento: uma contrição pública habitual; uma aceitação, ainda que pesarosa, dos editos censuradores dos mulás; e um consequente passo em direção ao repúdio do nosso patrimônio religioso e cultural. Há vinte anos, seria inconcebível que o arcebispo de Canterbury pronunciasse um discurso em favor da incorporação da lei religiosa islâmica (a shariá) ao sistema legal inglês. Hoje, contudo, muitas pessoas julgam essa uma proposta razoável, talvez um avanço rumo à uma contemporização pacífica.

Tudo isso indica que nós ocidentais estamos à beira de um perigoso período de concessão, em que as conquistas legítimas da nossa própria cultura serão ignoradas ou subestimadas na tentativa de provar as nossas intenções pacíficas. Demorará um pouco até que se permita à verdade desempenhar o seu importantíssimo papel de emendar os nossos erros presentes e preparar caminho para os futuros. Isto quer dizer que nos é mais necessário que nunca estar familiarizados com a verdade e ter uma compreensão clara e objetiva daquilo que está em jogo.

É meu desejo, portanto, listar algumas das características-chave do nosso patrimônio ocidental, que devem ser compreendidas e defendidas no atual confronto. Cada uma delas está em contraste e, possivelmente, em conflito, com a visão islâmica tradicional da sociedade, e cada uma delas desempenhou um papel fundamental na criação do mundo moderno.

A beligerância islâmica brota do fato de a sua cultura não ter lugar seguro nesse mundo e da conseguinte busca de refúgio em preceitos e valores divergentes do modo de vida ocidental. Isto não significa que devemos repudiar ou renunciar aos traços distintivos da nossa civilização, como muitos gostariam que fizéssemos. Ao contrário, significa que devemos estar ainda mais vigilantes na sua defesa.

A primeira das características que tenho em mente é a cidadania. O consenso entre as nações ocidentais de que a lei é legitimada pelo consentimento daqueles que a devem acatar. Esse consentimento é dado por meio de um processo político de que cada cidadão participa, criando e seguindo a lei. O direito e dever da participação é o que chamamos de “cidadania”, e a diferença entre as comunidades políticas e as religiosas resumem-se ao fato de que as primeiras são formadas por cidadãos, ao passo que as últimas são formadas por indivíduos que “se submeteram” (e eis o significado principal da palavra islã).

Se quisermos uma definição simples do que é o Ocidente hoje, seria acertado escolher o conceito de cidadania como o nosso ponto de partida. De fato, é o que os milhões de migrantes vagando pelo mundo procuram: um ordenamento que garanta segurança e liberdade em troca de consentimento.

A sociedade islâmica tradicional, em contrapartida, vê a lei como um sistema de mandamentos e recomendações estabelecidos por Deus. Esses editos não podem sofrer emendas ainda que a sua aplicação em casos particulares possa envolver uma argumentação baseada na jurisprudência. A lei, conforme o Islã a entende, exige a nossa obediência e o seu autor é Deus. O que é o oposto do conceito de lei que nós ocidentais herdamos. A lei é para nós uma garantia das nossas liberdades. Não é feita por Deus, mas pelo homem, segundo o instinto de justiça inerente à condição humana. Não é um sistema de mandamentos divinos, mas o resíduo de acordos humanos.

Isso é particularmente claro para os cidadãos britânicos e americanos, que desfrutam do benefício inestimável da common law – um sistema que não foi imposto por algum poder soberano, mas construído nas cortes, que tentavam fazer justiça em litígios individuais. A lei do Ocidente é, portanto, um sistema construído de baixo para cima, que fala ao soberano com o mesmo tom de voz com que fala ao cidadão. Enfatiza que é a justiça, e não o poder, que prevalecerá. Daí o porquê de ser evidente desde a Idade Média que a lei, ainda que dependa do soberano para ser implementada, pode depor o mesmo soberano caso ele tente desafiá-la.

À medida que a nossa lei desenvolveu-se, permitiu a privatização da religião de grande parte da moral. Para nós, por exemplo, uma lei que castigue o adultério não é apenas absurda, mas também opressiva. Desaprovamos o adultério, mas também pensamos não ser assunto da lei punir um pecado simplesmente por ele ser pecado. Na shariá, porém, não há distinção entre moral e lei. Ambas vêm de Deus, e são impostas por autoridades religiosas obedientes à vontade revelada d’Ele. A dureza da situação é em certa medida mitigada pela tradição que prevê tanto as recomendações como as obrigações dentro da lei sagrada. Todavia, a shariá não comporta a privatização da moral e, menos ainda, dos aspectos religiosos da vida.

Claro, a maioria dos muçulmanos não vive sobre a shariá. Apenas alguns locais isolados – Irã, Arábia Saudita e Afeganistão, por exemplo – tentam fazê-la valer à força. Noutros lugares, foram adotados códigos civis e penais do Ocidente, na esteira de uma tradição iniciada nos começos do século XIX pelos otomanos. Mas essa aceitação da civilização ocidental pelos estados muçulmanos tem os seus perigos.

Ela desperta inevitavelmente o pensamento de que a lei dos poderes seculares não seria uma lei real; de que, de fato, tal lei não teria qualquer autoridade real e seria mesmo um tipo de blasfêmia. Sayyid Qutb, antigo líder da Fraternidade Muçulmana, defendia exatamente esta ideia na sua obra seminal, Milestones. De fato, é fácil justificar rebeliões contra os poderes seculares quando a lei é vista como uma usurpação da autoridade divina.

Assim, desde as suas origens o Islã encontrou dificuldades para aceitar que a humanidade necessita de qualquer lei ou qualquer governo que não os revelados no Corão. Daí o grande cisma que seguiu à morte de Maomé, separando os xiitas dos sunitas. Do ponto de vista do governo secular, as questões acerca da sucessão ao poder, tais como a que dividiu esses dois grupos, são resolvidas pela mesma constituição que governa o funcionamento diário da lei.

Noutras palavras, são em última análise uma questão de acordo humano. Mas uma comunidade que crê ser governada por Deus, de acordo com os termos postos pelo seu profeta, vê-se diante de um problema real quando o mensageiro morre: quem assume o poder e como? O fato de os governantes das comunidades islâmicas correrem um risco de assassinato acima da média não é alheio a essa questão.

Os sultões de Istambul, por exemplo, cercavam-se de uma guarda pessoal composta de janízaros selecionados dentre os seus súditos cristãos precisamente porque não confiavam em que algum muçulmano fosse perder a oportunidade de retificar qualquer insulto a Deus representado pela pessoa de um reles governante mortal. O próprio Corão toca esse ponto, na Sura 3, versículo 64, ordenando judeus e cristãos a não aceitar quaisquer deuses que não o único Deus e também a não aceitar qualquer senhor (ârbâbân) dentre os seus iguais.

Em poucas palavras, a cidadania e a lei secular caminham de mãos dadas. Somos todos participantes do processo de criação das leis; por isso podemos ver uns aos outros como cidadãos livres, cujos direitos devem ser respeitados e cuja vida privada é da nossa própria conta. O que possibilitou a privatização da religião nas sociedades ocidentais e o desenvolvimento de ordens políticas nas quais os deveres do cidadão predominam sobre os escrúpulos religiosos. Explicar como isso é possível mostra-se uma questão profunda e difícil de teoria política; o fato de isso ser possível é provado pelo testemunho inapelável da civilização ocidental.

* * *

Isso me leva à segunda característica que julgo ser central na identidade da civilização européia: a nacionalidade. Nenhum ordenamento político pode atingir a estabilidade se não convocar uma lealdade compartilhada, uma “primeira pessoa do plural” que distinga aqueles que compartilham os benefícios e as cargas da cidadania daqueles que estão fora do aprisco. A necessidade dessa lealdade compartilhada fica evidente nos tempos de guerra, mas é igualmente necessária nos tempos de paz, caso as pessoas queiram que a sua cidadania defina as obrigações públicas.

A lealdade à nação põe de lado a lealdade à família, ao clã e à fé; põe o foco do sentimento patriótico do cidadão não numa pessoa ou num grupo, mas em um país. Esse país é definido por um território, e também por uma história, por uma cultura e uma lei que tornaram o território nosso. A nacionalidade consiste em terra mais a narrativa da sua posse.

Foi esta forma de lealdade territorial que permitiu às pessoas nas sociedades ocidentais existirem lado a lado, respeitando mutuamente os seus direitos de cidadão, apesar das diferenças radicais de fé e da ausência de laços familiares, afetivos ou de qualquer costume local de longa data que sustentasse a solidariedade entre elas.

A lealdade à nação é desconhecida em muitas partes do globo e, especialmente, nos lugares onde o islamismo arraigou-se. Às vezes, por exemplo, a Somália é definida como um “estado que falhou” por não possuir um governo central capaz de tomar decisões em nome de todo o seu povo ou de impor qualquer tipo de ordenamento legal. O verdadeiro problema da Somália, no entanto, não é  ser um estado que falhou, mas sim uma nação que falhou. Nunca desenvolveu o tipo de ordenamento secular, territorial e baseado na lei que possibilita que um país se estabeleça como estado-nação e não meramente como uma assembleia de tribos e famílias em competição.

O mesmo vale para muitos outros lugares onde nascem islamitas. Mesmo quando, como no caso do Paquistão, tais países funcionam como estados, sempre subsistem neles falhas como nação. Não obtiveram sucesso em criar o tipo de lealdade que permite a pessoas de diferentes credos, afinidades e clãs viver pacificamente lado a lado e, também, lutar lado a lado por sua terra natal. A história recente desses países leva-nos a perguntar se não há um autêntico e profundo conflito entre a concepção islâmica de comunidade e as concepções que nos conduziram até a nossa ideia de governo nacional. Talvez a ideia de estado-nação seja de fato uma ideia anti-islâmica.

Esta observação, claro, tem muito a ver com a situação do Oriente Médio hoje, em que vemos os resquícios de um grande império islâmico divididos em estados-nação. Com poucas exceções, essa divisão é resultado da demarcação de fronteiras por potências do Ocidente, especialmente França e Grã-Bretanha por meio do acordo Sykes-Picot de 1916. Não devíamos ficar surpresos, portanto, com o fato de o Iraque possuir uma história tão artificial para um estado-nação, dado que só esporadicamente é que foi um estado e que nunca foi uma nação.

Pode até ser que curdos, sunitas e xiitas cheguem a reconhecer-se mutuamente como iraquianos. Mas essa identidade nacional seria frágil e gretada; no primeiro conflito que surgisse, os três grupos iriam definir-se como contrários uns aos outros. Somente os curdos parecem ter desenvolvido uma autêntica identidade nacional, que é oposta ao estado em que estão inseridos. Os xiitas, por sua vez, prestam lealdade inicialmente à religião e, nos momentos de turbulência, veem a terra natal do xiismo – o Irã – como modelo.

* * *

É verdade que nem todos os estados nacionais formados a partir dos restos do Império Otomano são tão arbitrários quanto o Iraque. A Turquia, o filé mignon do Império, teve sucesso em recriar-se como um autêntico estado-nação – não sem antes massacrar ou expulsar as suas minorias não turcas. Desde meados do século XIX, o Líbano e o Egito gozam de uma espécie de semi-identidade nacional sob a proteção do Ocidente.

E, claro, Israel estabeleceu-se com uma forma de governo nacional inteiramente ocidental sobre um território que é alvo de disputas precisamente por isso. Estes exemplos, contudo, não são suficientes para diminuir a suspeita de que o Islã não vê com bons olhos a ideia de lealdade à nação e muito menos a ideia de que, em momentos de crise, são os vínculos nacionais, não os espirituais, que devem prevalecer.

Vejamos o caso da Turquia. Atatürk criou o estado nacional turco pela imposição de uma constituição secular; pela adoção de um sistema legal baseado nos modelos francês e belga; proibindo as vestes muçulmanas; expulsando os tradicionais mestres da lei islâmica (ulemá) dos cargos públicos; tirando as palavras de origem árabe do turco e adotando o alfabeto ocidental, de maneira a arrancar a língua dos seus antecedentes culturais.

Consequência dessas mudanças revolucionárias foi o sucesso em lançar para segundo plano o conflito entre o islã e o estado secular. E por muito tempo parece que houve uma tolerância estável de um para com o outro. Hoje, porém, o conflito irrompe novamente por toda a parte: os secularistas tentaram invalidar o governo do partido islâmico (o AKP) que ganhou as eleições com uma votação massiva. Já o governo tentou processar os secularistas por terrorismo num julgamento de legalidade bastante duvidosa.

O Líbano, para darmos outro exemplo, deve a sua condição única no mundo árabe a uma antiga maioria cristã e à duradoura aliança entre maronitas e drusos contra o sultão otomano. A sua atual fragilidade é em grande medida culpa dos islamitas do hezbollah, que se uniram à Síria e ao Irã e que rejeitam o Líbano como uma entidade nacional a que se deva qualquer lealdade. Também o Egito apenas sobreviveu como estado-nação por ter tomado medidas radicais contra a Fraternidade Muçulmana e por ter levado à frente uma herança política e legal que provavelmente seria rejeitada por sua população muçulmana – mas não pela minoria cristã copta – em qualquer plebiscito. Já Israel foi condenado por seus vizinhos a viver num permanente estado de sítio.

* * *

A terceira característica central da civilização ocidental é o cristianismo. Não tenho qualquer dúvida de que os muitos séculos de predomínio cristão na Europa lançaram as bases da lealdade à nação como um tipo de lealdade acima da que é devida ao credo e à família e sobre a qual pôde erguer-se um ordenamento de cidadania. Pode parecer paradoxal apontar a religião como a maior força por trás de um governo secular, mas devemos lembrar as circunstâncias peculiares pelas quais o cristianismo entrou no mundo.

Os judeus da Judéia do século I eram uma comunidade fechada, unida por uma apertada teia de legalismos religiosos, mas governada desde Roma por uma lei que não fazia referência a qualquer Deus e que oferecia um ideal de cidadania a que todo o súdito livre do Império poderia aspirar.

Jesus viu-se em conflito com o legalismo dos seus colegas judeus e simpatizou com a ideia de um governo secular. Daí a famosa frase na parábola sobre o dinheiro dos impostos: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Depois da sua morte, a fé cristã foi moldada por Paulo tendo em vista comunidades dentro do Império Romano que buscavam apenas liberdade de culto, sem intenções de desafiar o poder secular.

Essa ideia de dupla lealdade continuou após Constantino e foi endossada no século V pelo Papa Gelásio na doutrina das duas espadas dadas à humanidade para o seu governo: uma que guarda o corpo político e outra que guarda a alma individual. Essa ratificação da lei secular pela Igreja primitiva foi responsável pelos desenvolvimentos seguintes na Europa, desde a Reforma e o Iluminismo até a lei puramente territorial que predomina no Ocidente hoje.

Durante os primeiros séculos do islamismo, vários filósofos tentaram desenvolver a teoria do estado perfeito, mas a religião era sempre o seu ponto central. Al-Fârâbî, um sábio do século X, chegou mesmo a tentar reformular a República de Platão de acordo com o pensamento islâmico, sendo o profeta o rei-filósofo. Quando tal discussão cessou, no tempo de Ibn Taymiyya no século XIV, estava evidente que o Islã voltara as costas ao governo secular e tornara-se então incapaz de desenvolver qualquer coisa remotamente similar a um vínculo nacional oposto ao religioso.

De fato, o mais importante advogado do nacionalismo árabe dos últimos tempos, Michel Aflaq, não era muçulmano, mas um cristão ortodoxo nascido na Síria, educado na França e falecido no Iraque, desiludido com o Baath, partido que ajudara a fundar. Se a lealdade à nação surgiu no mundo muçulmano ultimamente, foi apesar do Islã que surgiu – e não por causa dele. E não deveria causar espanto o fato de essas lealdades serem particularmente frágeis e rebeldes, como nos casos das tentativas palestinas de ganhar coesão nacional e da complicada história do Paquistão.

* * *

O cristianismo é algumas vezes descrito como a síntese entre a metafísica judia e os ideais gregos de liberdade política. Sem dúvida que há verdade nessa afirmação, dado o contexto histórico do seu surgimento. E talvez seja a contribuição grega para o cristianismo a responsável pela quarta característica central que acredito valer a pena enfatizar numa comparação entre o Ocidente e o Islã: a ironia. Há já umas marcas de ironia na Bíblia hebraica, marcas essas que são mais fortes no Talmude.

Mas há um novo tipo de ironia nos juízos e nas parábolas de Jesus, uma ironia que vê o espetáculo da loucura humana e nos mostra uma maneira “des-torcida” de conviver com ela. Um exemplo significativo é o veredito de Jesus no caso da mulher apanhada em adultério. “Aquele que não tiver pecado”, diz, “que atire a primeira pedra”. Noutras palavras: “Vamos: vocês não queriam ter feito o que ela fez e já não o fizeram nos seus corações?” Já sugeriram que esse episódio foi uma interpolação tardia – uma das muitas que os primeiros cristãos tomaram do estoque de sabedoria tradicionalmente atribuída a Jesus após a sua morte.

Ainda que isso seja verdade, só prova que a religião cristã fez da ironia parte central da sua mensagem. Essa ironia é compartilhada por grandes poetas sufi, especialmente Rumî e Hafiz, mas parece ser largamente desconhecida pelas escolas islâmicas que formam a alma dos islamitas. A religião que ensinam é incapaz de se ver a partir de fora e não pode ser criticada e muito menos alvo de risos – como diversas vezes testemunhamos recentemente.

Isso fica ainda mais claro quando lembramos aquilo que estimulou o juízo irônico de Jesus. A morte por apedrejamento ainda é uma punição para o adultério comum em muitas partes do mundo. E em muitas comunidades islâmicas as mulheres são tratadas como prostitutas assim que pisam fora da linha que os homens traçaram para o seu comportamento. O sexo, um assunto impossível de ser discutido sem uma medida de ironia, é, pois, um tema doloroso entre os muçulmanos, especialmente quando confrontados – e inevitavelmente são – pela moral laxa e pela confusão libidinosa das sociedades ocidentais.

Os mulás veem-se incapazes de pensar nas mulheres como seres sexuais e incapazes também de pensar muito tempo sobre qualquer outra coisa. O resultado disso é a enorme tensão que emerge nas comunidades muçulmanas dentro das cidades ocidentais, com os rapazes desfrutando das liberdades que os envolvem e as moças escondidas e aterrorizadas, a não ser que façam o mesmo.

O finado Richard Rorty via na ironia um estado de espírito intimamente ligado à visão de mundo pós-moderna [1]. É abrir mão do juízo ao mesmo tempo em que se busca um tipo de consenso, um acordo comum de não julgar. Parece-me, contudo, que a ironia, embora afete o nosso estado de espírito, pode ser mais bem compreendida como uma virtude, uma disposição voltada para a realização prática e o sucesso moral.

Se eu fosse arriscar uma definição para essa virtude, diria que é o hábito de reconhecer a alteridade em tudo, inclusive em si mesmo. Não importa quão convencido alguém possa estar da justiça das suas ações e da verdade das suas ideias: deve olhá-las como as ações e as ideias de outra pessoa e reformulá-las de acordo com o que vir. Definida dessa maneira, a ironia mostra-se bastante diferente do sarcasmo. É um modo de aceitação, não de rejeição, que funciona em dois sentidos: pela ironia aprendo a aceitar tanto o outro a quem observo como a mim, o observador. Com todo o respeito a Rorty, a ironia não está livre de julgamentos. Ela simplesmente admite que aquele que julga também é julgado e julgado por si mesmo.

* * *

A ironia está intimamente relacionada com a quinta característica notável da civilização ocidental: a autocrítica. É quase natural para nós querer ouvir a voz dos nossos oponentes assim que fazemos uma afirmação. O método antagônico de deliberação é ratificado pelo nosso sistema legal, pelas nossas formas de educação e pelos sistemas políticos que construímos para negociar os nossos interesses e resolver os nossos conflitos.

Pensemos em críticos mordazes da civilização ocidental, como o falecido Edward Said e o onipresente Noam Chomsky. Said falava de maneira intransigente e às vezes venenosa em nome do mundo islâmico contra aquilo que via como a última forma do imperialismo ocidental. E, por isso, foi recompensado com uma cátedra numa prestigiosa universidade e com inúmeras ocasiões de manifestar-se publicamente na América e em todo o mundo ocidental.

As recompensas para Chomsky foram mais ou menos as mesmas. Penso que esse hábito de recompensar os nossos críticos é peculiar à civilização ocidental. O único problema é que, nas nossas universidades, hoje ele foi levado tão a sério que só há recompensas para os críticos. Distribuem-se prêmios à esquerda do espectro político para alimentar a principal emoção daqueles que os conferem, a saber: que a autocrítica nos trará segurança e que todas as ameaças vêm de nós mesmos e do nosso desejo de defender as nossas posses.

O hábito de autocrítica criou outro ponto fulcral da civilização ocidental: a representação. Nós ocidentais, especialmente os anglófonos, somos herdeiros do hábito de longa data de associarmo-nos livremente, o que leva a nos juntarmos em clubes, negócios, movimentos sociais e fundações educacionais. Esse gênio associativo foi particularmente notado por Tocqueville durante as suas jornadas pela América e é facilitado por uma extensão encontrada unicamente na common law – a equidade e as leis de trust – que permite às pessoas juntar recursos e administrá-los sem a necessidade de pedir permissão a qualquer instância superior.

Esse hábito associativo caminha de mãos dadas com a tradição de representação. Quando formamos um clube ou uma sociedade de caráter público vamos apontar comissários que a representem. As decisões desses comissários passam, pois, a comprometer todos os membros, que não podem rejeitá-las sem sair do clube. Assim, um indivíduo isolado é capaz de falar por todo um grupo e, ao fazê-lo, compromete todo o grupo a aceitar as decisões feitas em seu nome.

Para nós, não há nada de estranho nesse fenômeno, que afetou e afeta de maneira inestimável as nossas instituições políticas, educacionais, econômicas e desportivas. Afetou também o governo das nossas instituições religiosas, católicas e protestantes. De fato, foram os teólogos protestantes do século XIX os primeiros a desenvolver plenamente a teoria da corporação como uma ideia moral. Sabemos que a hierarquia da nossa igreja – batista, episcopaliana ou católica – tem o poder de tomar decisões em nosso nome e pode dialogar com instituições de todo o mundo para assegurar o espaço de que necessitamos para realizar o nosso culto.

Em contrapartida, as associações assumem uma forma muito diferente nas sociedades islâmicas tradicionais. Clubes e sociedades entre estranhos são raros e a unidade social básica não é a associação livre, mas a família. Sob a lei islâmica, as empresas não gozam de um suporte legal sofisticado; Malise Ruthven e outros já afirmaram que o conceito de pessoa jurídica não tem equivalente na shariá [2].

O mesmo vale para outras formas de associação. As entidades beneficentes, por exemplo, organizam-se de uma forma completamente distinta da ocidental: não são propriedades possuídas em conjunto para prestar ajuda aos demais, mas sim uma propriedade que foi “parada” (waqf) por motivos religiosos. Por isso, todas as entidades públicas, inclusive escolas e hospitais, são submetidas à mesquita e governadas por princípios religiosos.

Por sua vez, a mesquita não é uma pessoa jurídica. Também não existe uma entidade que possa ser chamada de “a mesquita” no mesmo sentido em que nos referimos à igreja: como uma entidade cujas decisões afetam todos os seus membros, que pode negociar em nome deles e que pode ser levada a juízo por conta dos seus erros e abusos.

Como consequência dessa longa tradição de associar-se apenas sob a égide da mesquita ou da família, as comunidades islâmicas não têm o conceito de porta-voz [3]. Quando conflitos sérios irrompem entre as minorias islâmicas no Ocidente e o mundo ao seu redor, é difícil, quando não impossível, negociar com a comunidade muçulmana, já que não há ninguém que fale por ela ou que lhe conseguirá impor qualquer decisão.

Se por acaso houver quem dê um passo à frente para falar, os membros da comunidade sentir-se-ão livres para aceitar ou rejeitar as suas decisões a seu gosto. O mesmo problema se dá no Afeganistão, no Paquistão e noutros países compostos de muçulmanos radicais. A pessoa que tenta falar em nome de um grupo dissidente muitas vezes o faz por iniciativa própria e sem nenhum procedimento que legitime a sua atuação. Muito provavelmente, caso ela concorde com a solução para um dado problema, será assassinada ou, em todo o caso, rejeitada pelos membros radicais do grupo do qual ele se imagina porta-voz.

Esse ponto leva-me a refletir mais uma vez sobre a ideia de cidadania. Uma razão importante para a estabilidade e paz das sociedades baseadas na cidadania é que os indivíduos em tal sociedade estão completamente protegidos pelos seus direitos. Estão isolados dos seus vizinhos em esferas de soberania privada onde tomam decisões sozinhos. E, em consequência disso, uma sociedade de cidadãos pode estabelecer boas relações e criar vínculos entre estranhos.

Não é preciso que você conheça o seu colega cidadão para afirmar os seus direitos diante dele ou os seus deveres para com ele; além do mais, o fato de ele ser um estranho não muda a disposição de ambos de morrer pelo território que abriga os dois e as leis de que gozam. Essa característica marcante dos estados-nação é sustentada pelos hábitos a que me referi: autocrítica, representação e vida associativa, hábitos que não são encontrados nas sociedades islâmicas tradicionais.

O que os movimentos islâmicos prometem aos seus seguidores não é a cidadania, mas a “fraternidade” – ikhwân -, algo ao mesmo tempo mais cálido, próximo e satisfatório do ponto de vista metafísico. No entanto, quanto mais próxima e cálida é uma relação, menos ela se espalhará. A fraternidade é seletiva e exclusiva; não pode expandir muito sem que se exponha à rejeição violenta e repentina. Daí o provérbio árabe: “Eu e o meu irmão contra o meu primo; eu e o meu primo contra o mundo”.

Uma associação entre irmãos não é uma nova entidade, não é uma corporação que pode negociar em nome dos seus membros. Ela subsiste como uma realidade essencialmente plural – de fato, ikhwân é simplesmente o plural de akh, “irmão” – e denota uma assembleia de pessoas com as mesmas ideias unidas por um fim comum, não uma instituição que possa se arrogar qualquer poder sobre elas.

Esse fato possui importantes repercussões políticas. Por exemplo, o sucessor de Nasser na presidência do Egito, Anwar Sadat, reservou no Parlamento algumas cadeiras para a Fraternidade Muçulmana. As tais cadeiras foram ocupadas imediatamente por aqueles que o presidente julgava aptos para tanto, mas que foram rejeitados pela Fraternidade real, que continuou com as suas atividades violentas, culminando no assassinato do próprio Sadat. Em termos simples: irmãos não recebem ordens, mas trabalham juntos, como uma família, até discutirem e brigarem.

Isso me traz a última das diferenças vitais entre o Ocidente e o Islã. Vivemos numa sociedade de estranhos que se associam rapidamente e toleram as diferenças uns dos outros. Contudo, não temos uma sociedade de conformidade vigilante. Ela faz as poucas exigências públicas que não estão contempladas pela lei secular e permite às pessoas moverem-se com rapidez de um grupo para outro, de um relacionamento para outro, de uma religião, empresa, maneira de viver, para outra. E tudo com certa facilidade.

Trata-se de uma sociedade com uma criatividade infinita para formar as instituições e associações que permitam às pessoas conviver com as diferenças e permanecer em paz umas com as outras, sem a necessidade de intimidade, fraternidade ou lealdade ao clã. Não quero dizer que isso é bom, mas é a maneira que as coisas são, e um subproduto inevitável do conceito de cidadania que descrevi aqui.

O que torna possível a vida assim? A resposta é simples: a bebida. Aquilo que o Corão promete no Céu, mas nega na terra é o lubrificante necessário para o dínamo ocidental. Podemos ver isso claramente nos Estados Unidos, onde os coquetéis imediatamente quebram o gelo entre estranhos e animam toda a reunião, estimulando um desejo coletivo para que as pessoas que instantes atrás eram perfeitas desconhecidas entrem em acordo rapidamente.

Esse costume de ir diretamente ao ponto depende, claro, de muitos aspectos da nossa cultura além da bebida, mas a bebida é fundamental e todos aqueles que estudaram o fenômeno persuadiram-se de que, apesar de todo o custo do alcoolismo, dos acidentes de carro e dos lares destruídos, é em grande parte por causa da bebida que, no fim das contas, somos tão bem sucedidos.

Evidentemente, as sociedades islâmicas têm a sua própria maneira de criar associações com rapidez: o narguilé, a casa de café e a tradicional casa de banho, que Lady Mary Wortley Montague louvou por criar entre as mulheres uma solidariedade sem equivalente no mundo cristão. Mas essas formas de associação são também formas de retirada, um passo para trás com relação aos negócios do governo numa postura de resignação pacífica. A bebida tem um efeito diferente: une estranhos num estado de agressão controlado, capazes e desejosos de falar sobre qualquer assunto que surgir na conversa.

* * *

As características que elenquei não apenas explicam a especificidade da civilização ocidental; elas também explicam o seu sucesso em navegar as enormes mudanças ocasionadas pelo avanço da ciência e da tecnologia, bem como a estabilidade política e o caráter democrático dos seus estados-nação. Essas características também distinguem a civilização ocidental das nações islâmicas que geram terroristas. E ajudam a explicar o grande ressentimento desses terroristas que não conseguem superar com os seus recursos morais e religiosos a fácil competência com que os cidadãos da Europa e da América lidam com o mundo moderno.

Se as coisas são assim, como poderíamos defender o Ocidente do terrorismo? Sugerirei uma resposta breve a essa questão. Em primeiro lugar, devemos ter claro o que estamos e o que não estamos defendendo. Nós não estamos defendendo a nossa riqueza ou o nosso território; não é isso que está em jogo. Nós estamos defendendo o nosso patrimônio político e cultural, composto das sete características que destaquei aqui.

Em segundo lugar, devemos ter claro que não podemos superar o ressentimento sentindo-nos culpados ou punindo a nós mesmos. A fraqueza instiga, uma vez que alerta o inimigo para a possibilidade de destruir você. Devemos, portanto, estar preparados para afirmar as nossas coisas e para expressar a nossa determinação de nos mantermos apegados a elas. Dito isto, temos de reconhecer que é o ressentimento, não a inveja, que move o terrorista.

A inveja é o desejo de possuir o que os outros têm; ressentimento é o desejo de destruí-lo. Como lidar com o ressentimento? Eis a grande questão que tão poucos líderes da humanidade foram capazes de responder. Os cristãos, porém, são os felizes herdeiros da maior tentativa de respondê-la, que foi a de Jesus, apoiado na longa tradição judaica que remonta à Torá, e que foi expressa em termos similares pelo seu contemporâneo, o Rabino Hillel.

Você supera o ressentimento perdoando-o. O espírito de perdão não é uma auto-acusação; é fazer um dom ao outro. E é neste ponto, parece-me, que tomamos a direção errada nas últimas décadas. A ilusão de que nós somos os culpados, de que nós devemos confessar as nossas faltas e aderir à causa do nosso inimigo apenas expõe-nos a um ódio mais intenso. A verdade é que a culpa não é nossa; que o ódio dos nossos inimigos por nós é completamente injustificado; e que a inimizade implacável deles não será desarmada por batermos no peito.

Admitir essa verdade, porém, acarreta uma desvantagem. Ela nos faz parecer impotentes. Mas não o somos. Há dois recursos de que podemos nos valer para a nossa defesa: um é público e outro é privado. Na esfera pública, podemos decidir proteger as coisas boas que herdamos. Isso significa não fazer concessões àqueles que desejam trocar a cidadania pela submissão, a nacionalidade pela conformidade religiosa, a lei secular pela shariá, o patrimônio judaico-cristão pelo Islã, a ironia pela solenidade, a autocrítica pelo dogmatismo, e o alegre beber por uma abstinência censurante. Devemos desprezar todos os que exigem tais mudanças e convidá-los a viver onde a forma política que preferem já esteja estabelecida. E devemos reagir à sua violência com toda força necessária para contê-la.

Na esfera privada, porém, os cristãos devem seguir o caminho que Jesus lhes apontou: olhar com sobriedade e espírito de perdão para as feridas que recebemos e mostrar, com o nosso exemplo, que essas feridas não fazem nada senão desacreditar aquele que as infligiu. Eis a parte difícil da tarefa: difícil de fazer, difícil de aceitar, difícil de recomendar aos outros. Contudo, é a que está ao nosso alcance e, numa batalha com coisas tão grandes em jogo, é uma tarefa em que não podemos falhar.

Artigo traduzido da revista Azure, no. 35, 5769/2009. © Roger Scruton, 2009. Todos os direitos dessa tradução reservados a Dicta&Contradicta. Roger Scruton é filósofo, escritor e publicista. Atualmente, leciona Filosofia no Institute for the Psychological Sciences, em Arlington, no estado americano da Virginia. Este ensaio é a versão revista de uma palestra proferida no Ethics and Public Policy Center (Washington) como parte do programa para a defesa da liberdade americana.

Tradução de Cristian Clemente.

NOTAS:

[1] Richard Rorty, Contingency, Irony, Solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

[2] Malise Ruthven, Islam in the World. Oxford: Oxford University Press, 2000.

[3] Há uma exceção importante para essa regra no ismaelismo, que encontrou um representante e um porta-voz na pessoa de Aga Khan.

Do enigma ao mistério – por Bruno Tolentino

Literatura | 27/10/2014 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

edicao1_txt1

Este texto é a edição das três últimas aulas de Bruno Tolentino, dadas nos dias 8, 15 e 22 de maio de 2007, feita por Guilherme Malzoni Rabello.

I.

Como sempre, a vida é muito surpreendente. Quando menos se espera, ela dá uma volta: às vezes nos assusta e às vezes nos maravilha, mas o fato é que sempre nos tira do lugar.

Confesso que eu não esperava absolutamente nada da recente visita do papa ao Brasil, ao menos nada mais que um sinal como os que ele nos vem dando abundantemente. Mas não foi isso o que tivemos. A verdade é que a presença deste pontífice subitamente solucionou a minha vida, completamente: eu desisti de morrer. Talvez agora tenham que consultar a esse respeito, no sentido de que a morte nunca teve maior importância nas contas que fiz com a vida: se a festa está acabando, muito bem, vamos acabá-la da melhor maneira possível. Em todo o caso, até agora isso não tinha grande realidade, como de resto tudo aquilo que fiz: o esforço de escrever, de entender, de ser menos indigno da condição humana. Mas a presença do papa subitamente trouxe uma coisa nova com a qual eu, aos quase setenta anos, ainda não me havia defrontado.

A primeira coisa que ele nos deixou foi um chamado à reflexão, ao silêncio. Nós, que vivemos num mundo tão conturbado, em situações tão conturbadas, temos todas as razões para buscar um cantinho, um momento de calma, mas praticamente não o fazemos nunca. Estamos sempre muito ocupados em ter idéias, respostas e tudo o mais. Eu passava os olhos pelos jornais, tentava fazer como todo mundo, mas não era isso que me acontecia. O que me acontecia era a clara impressão de que o Santo Espírito tinha vindo ao Brasil e aproveitado opapamobile para passear por aí.

Não houve nada de dramático nessa visita. Simplesmente tive a sensação de que o tempo todo alguma coisa – e eu mesmo – estava sendo renovada. Tanto assim que disse aos médicos: “Olha, vamos acabar com esse negócio de cura, de remédios e tudo o mais. Isso fica por conta de quem me fez”, e assim já há três dias que não me furam, não me levam daqui para lá… Mas a minha pergunta é, muito claramente, a seguinte: será que o santo pontífice não estava simplesmente nos dizendo “Foi-nos dada uma Revelação, alguma coisa nos foi revelada”? Cada um o vê até certo ponto, mas praticamente nenhum de nós vive à altura disso, não respondemos a este chamado constante. “O que é homem para que te interesses por ele?”

A grande escritora portuguesa Sophia de Mello Brayner Andersen diz numa passagem sensacional, mas também das menos notadas, que o amor nos vem de vez em quando; duas, três vezes somos chamados a amar alguém; falamos nesse primeiro amor, nesse amor individualizado, não sei se se pode dizer erótico; diria, este amar uma vez ou outra. Mas existe também, no final das contas, uma outra presença, uma outra visita que vem todo santo dia, que é a santidade, o chamado à santidade, essa velhinha, esta velhota chata que vem e bate à nossa porta.

Vem disposta a ser recebida, mas todo santo dia damos um jeito de inventar uma desculpa para não a receber. Por acaso não quero ser santo? É claro que quero, quero o melhor para mim, o melhor para a humanidade toda; mas começo amanhã, porque agora… Todo santo dia inventamos uma nova “maravilha” que é preciso fazer antes (às vezes, os grandes mestres realmente inventam coisas belíssimas: grandes quadros, o teto da Capela Sistina, os sonetos de Shakespeare, a Montanha mágica, o Don Quijote)… E o resultado é que todo mundo está sempre muito ocupado e a velha vai ter que voltar no dia seguinte.

Por fim, a gente já nem se chateia com a insistência dela, mas vai simplesmente adiando e adiando. Temos de resolver como organizar o país, como vamos fazer uma literatura fabulosa, se vamos fazer etanol de milho ou de beterraba… E, com tanta coisa séria para fazer, lá vem essa velha e não sabemos direito o que ela quer. Não nos pergunta nada: aliás, distingue-se justamente pela sua insignificância – e é esta insignificância, no final das contas, a única coisa pela qual teremos de responder. Teremos de responder, pura e simplesmente, por aquilo que fizemos dessa visita incômoda.

Como complemento, há também umas palavras de Giussani, que dizia simplesmente: “Os homens levam a sério o trabalho, o amor, a família, os filhos, vai ver até a santidade. Levam mil coisas a sério, mas não parecem ter tempo livre para levar a sério a vida”. Levar a sério a vida é uma coisa muito curiosa: significa que você não pode jogar fora um só segundo dela, pois é um tesouro que lhe foi dado, que lhe é dado e que volta a lhe ser dado todo santo dia.

Estas duas coisas completam-se: a visita da santidade e a pergunta “mas será que levo a vida a sério?” Foi em torno delas que se criou toda uma coisa extraordinária, que foi a cultura do Ocidente. Construímos toda a assim chamada civilização em torno deste problema do ser[1].

Seria necessário observar aqui que, a cada vez que damos nome a alguma coisa, é porque esta coisa já não tem tanta significação: a partir do momento em que começamos a ficar conscientes de uma percepção, temos a tendência de substituí-la por um conceito. No caso do conceito de “civilização”, esse processo é muito notório, porque se trata de algo muito nobre: Quem é contra a civilização? Somos todos a favor dela. E da santidade também, e da vida também. Só que todo mundo está muito ocupado…

O perigo é justamente nos interessarmos demasiado pelas construções conceituais que fazemos do significado profundo e misterioso das coisas. Se o homem não passa de uma travessia entre o enigma e o mistério, então precisamos tomar muito cuidado em como definimos isso, porque neste intervalo está tudo aquilo que somos, incluída essa maravilhosa civilização de que temos toda a razão de nos orgulhar.

Isto me leva a pensar que, no que diz respeito àquilo que tanto valorizamos como “civilização”, quem tem a última palavra talvez seja São Boaventura, quando nos recorda que somos apenas um primeiro rascunho do ser. Levanta-se sobretudo a grande interrogação que o Evangelho nos deixa: o que será esse rascunho quando for passado a limpo? O que será o corpo glorioso? Quando Cristo se aproxima dos discípulos de noite, andando sobre as águas, diz-lhes: “Não temais, sou eu”. Santa Teresa de Ávila sublinha esse “sou eu”, não tanto o “não temais”: aqui Cristo nos dá uma indicação do que vem a ser esse perceber sem ver, esse enigma do ser que, uma vez revelado, nos levará ao mistério. Realmente, não teremos ido muito longe se tivermos saído de um enigma para cair num mistério…, mas temos a promessa de que veremos, não em um espelho, e sim frente a frente. E nesse momento entenderemos alguma coisa.

Para qualquer religião, seria uma heresia sugerir que nos dias da visita do papa ao Brasil tivemos essa experiência de “ver frente a frente”, ou pelo menos umantipasto da coisa. Mas não consigo deixar de ter essa impressão. Ou despiorei muito, ou então realmente aconteceu alguma coisa de diferente. Inclino-me mais para esta última versão, porque tenho uma noção muito clara de não ter despiorado tanto assim; infelizmente, não posso dizer: “mas eu agora, finalmente…”. Agora, finalmente, me peguei do lado de cá e eles do lado de lá, mas continuo a ser o mesmo palhaço que vejo todo santo dia.

Isso tudo me aconteceu e tive a impressão de que estão todos enganados, que não vou morrer coisa nenhuma, que não precisam se preocupar com isso: “Pode tirar esses berloques todos porque já está tudo resolvido. E quem resolveu não fui eu nem o senhor. A não ser que seja o Senhor com ‘s’ grande”.

Por isso, proponho-me agora, sobretudo, recordar como foi que cheguei a várias conclusões durante a minha vida, como foi que elas me vieram, por que algumas coisas me tiraram do sério, e de que maneira tudo isso me fez concluir que era necessário fazer uma contribuição cultural – lá vem essa palavra outra vez -, civilizacional, aqui no Brasil. Tenho muito interesse em deixar bem sublinhada a necessidade de escolhermos entre a linguagem profunda que a poesia nos empresta, e essa outra que, no final das contas, quando não é uma doxologia, quando não é a história de um maravilhamento, é simplesmente a arte de abençoar supermercados…

Talvez possamos entender assim o que eu quero dizer por “mundo-como-Idéia”, e em que medida vale a pena cuidar desse ponto de vista, dessa maneira de encarar a realidade simplesmente como uma Idéia ou, alternativamente, reconhecer que a vida é metafísica. Porque, no final das contas, continua a ser um ponto de vista, e talvez um punhado de palha – como diz São Tomás – seja mais importante do que todo o resto [2]. Temos muito o que defender, aqui no Brasil, contra a atual tendência ao bestialógico e ao despudor dos neurônios, e isso é muito importante; mas, mais importante ainda é não descobrirmos, na véspera da morte, que passamos a vida inteira abençoando supermercados…

II.

Não tenho a pretensão de ensinar alguma coisa no tempo que me resta. O que me parece entendimento, o que me pareceu entendimento, deve-se simplesmente a uma educação que recebi como quem recebe o ar que respira, sem saber muito bem de onde vem e por que está respirando aquilo. Mas tenho muito a recordar e tenho certas coisas que preciso dizer antes de calar a boca de vez. Essas coisas são cada vez mais claras para mim e precisam ser ditas, porque ninguém vai dizê-las se eu não puder falar. Neste mundo de supermercado, ficarão atrás do etanol, da queda de sei lá qual bolsa de valores… Podem não ter importância nenhuma, mas têm uma razão de ser: lembro-me delas com muita clareza, sei o que são.

Os primeiros poemas que escrevi em 1956 não têm praticamente interesse nenhum, a não ser o da data, do momento. Sempre achei que havia um certo exagero quando as pessoas diziam: “Não, não jogue fora, é um bom poema”. Publiquei, deixei publicado, mas foi só depois que comecei a entender que estava fazendo poesia, e que não havia jeito senão fazer poesia. Dona Cecília Meireles sempre me perguntava: “Poeta, o que temos de novo?”, e eu não entendia nada: Primeiro, que poeta é este? Segundo, o que é essa tal novidade, essa coisa que tinha que continuar a levar para frente?

Há várias passagens em minha vida que não termino de entender. Em 1973, por exemplo, eu já havia criado essa personagem chamada Katharina, que era simplesmente uma freira mal comportada. Nessa época, o Cristo não era coisa que me importunasse de modo algum: eu estava em Oxford e tinha mais o que fazer. Até que, em agosto daquele ano, escrevi toda a série do livro que corresponde à leitura que a Katharina faz do Evangelho 3. Não queria escrever nada daquilo; o primeiro poema, sobretudo, O segredo, apareceu-me inteirinho, sem que eu tivesse que mexer em nada. É aquele que diz:

O Cristo não é
um belo episódio
da história ou da fé:

 nem o clavicórdio
nos dedos da luz,
nem o monocórdio

chamado da Cruz.
O crucificado
chamado Jesus

é o encontro marcado
entre a solidão
e o significado

 do teu coração:
de um lado teu medo,
teu ódio, teu não;

do outro o segredo
com seu cofre aberto,
onde teu degredo,

onde teu deserto,
vão morrer, mas vão
morrer muito perto
da ressurreição.

Chamar isso de experiência mística – essa palavra que sempre me pareceu besta: “Mística”, por quê? O que é isso exatamente? – é dar uma importância muito grande às coisas, mas permanece o mistério: por que fui escrever este poema, que certamente não está abaixo dos outros, assim de repente?

Em Oxford, discutia-se muito tudo isso, e as melhores cabeças tinham preocupações de ordem religiosa, até porque precisavam definir-se de algum modo. O poeta que mais me impressionava, Wystan Auden, era um poeta religioso, e ninguém mencionava esse fato; também o melhor poeta inglês vivo, Geoffrey Hill, é um poeta eminentemente religioso – aliás, praticamente não é outra coisa.

Mas, graças a Deus, não posso calcular mais nada; tenho que me ater apenas ao essencial, à velhinha que vem bater à porta todo dia. E a tudo o que ela acha da cultura, ou seja, do que eu criei. Esses pensamentos me visitam o tempo todo, e não posso deixar de mencioná-los. Posso muito bem deixar de dar aulas, posso muito bem deixar de ensinar as pessoas a pensar ou de explicar o significado desta ou daquela poesia aqui ou na Inglaterra; sei um mundo de coisas das quais me pergunto para que servem, mas nada disso precisa ir senão para a lata de lixo. O que sobra é o significado que a poesia dá a certas cenas, alguma coisa que faz o mistério da poesia e da vida e as amarra numa coisa só. Daí nasce o poema, de uma forma única e que não se cansa de me deixar perplexo.

III.

Já me foi observado que, se O mundo como Idéia é uma versão, digamos, ensaística de uma intenção, A imitação do amanhecer seria a versão romanceada[4]; de qualquer maneira, são a culminação da minha obra, de um modo de pensar e de ver as coisas. Seria impossível escrever apenas um deles: quando eu estava entregue ao ato de ser perfeitamente insano escrevendo A imitação do amanhecer, O mundo como Idéia já se ia formando em minha cabeça. O primeiro era o livro que eu sempre quis escrever; o segundo, o livro que fui obrigado a escrever. O mundo como Idéia não era um projeto: eu precisava escrever o livro para entender o que estava fazendo.

Isto porque a poesia é a linguagem fundamental, a linguagem de todos os tempos. Não se pode imaginar, por exemplo, os Salmos escritos em prosa, como seria impossível no caso da Divina comédia, de Os Lusíadas etc. Goethe escreveu excelentes romances, mas jamais teria escrito o Fausto senão em verso. Se a linguagem fundamental vai ser tentada, seu máximo grau sempre foi e sempre será a linguagem da poesia. Nunca poderei repetir isto o suficiente: o nosso mundo se afastará cada vez mais da realidade quanto mais quiser precisar as coisas, quantificar a realidade, ao invés de ouvir essa voz profunda, que será sempre uma viagem do enigma ao mistério – uma travessia que parece não levar a lugar nenhum, mas na verdade está subindo, levando-nos cada vez mais à compreensão da realidade.

Como já disse, a compreensão das coisas só pode ser compreensão de Deus, porque, se não o for, será apenas uma inauguração de supermercado. Se este enigma não me interessa em si, então apenas me interessa quantificá-lo; e se a vida não é metafísica, é uma mera quantificação, um empilhamento que não faz nenhum sentido. Ou seja, a vida ou é metafísica, ou não é nada.

O problema todo começa quando percebemos que o mundo moderno cada vez mais se parece com um nada – e faz questão de se parecer com isso. Há um esforço enorme, no qual se servem as idéias, se servem as cosmogonias e cosmologias, para mostrar que na verdade o ser humano não passa de um mero empilhamento de dados. A conseqüência será colocar o homem abaixo do nível animal, quando muito no de um animal.

Gostamos de dizer que a empreitada da modernidade teve um grande sucesso, mas o que é exatamente esse sucesso? Quase nada, eu diria. Pode-se dizer que hoje foi um dia de grande sucesso para mim, porque não podia falar, ia morrer, mas o progresso da Medicina fez com que estivesse aqui podendo pronunciar-me. Ficamos muito agradecidos, é claro, mas, na verdade, se isso realmente é uma vantagem para o ser humano, é também um dom de Deus.

Às vezes temos percepções espantosas de que a realidade é dom de Deus. São momentos que chamo de epifanias – na verdade, simplesmente uso o termo para essa súbita aparição do ser em sua plenitude. É algo muito difícil de explicar, mas recentemente, por exemplo, eu estava andando numa das ruas mais prosaicas de São Paulo, a tal Cardoso de Almeida. Não sou paulista, fui conhecer a Cardoso de Almeida recentemente e quase a contragosto. Até que um dia estava andando nessa rua, entre um ônibus e duas árvores completamente empoeiradas, e subitamente aquilo tudo me causou um grande espanto. Foi um maravilhamento que não se explicava nem justificava de maneira alguma, mas é como se aquele enigma que você é o obrigasse a espantar-se e ficar profundamente emocionado.

É essa dimensão metafísica da vida que transfigura tudo. Temos a impressão que tudo existe apenas porque Deus está respirando e, se Ele parasse de respirar, tudo se desfaria em poeira. Na verdade, tudo é poeira mesmo, mas, nesses momentos, como que numa respiração de Deus, todo aquele pó se transforma em brilho – que às vezes é percebido, às vezes não. Isso é o momento de epifania. É o maravilhoso no que tem de mais awesome – a palavra awe em inglês significa ao mesmo tempo “espanto” e “terror” -, como se eu visse pela primeira vez aquela rua e aquele ônibus na Cardoso de Almeida. Em A imitação do amanhecer, com uma brincadeira – coisa que aliás nunca está longe do meu modo de escrever e de pensar -, exprimo esse maravilhamento nos seguintes termos:

Ora (direis), anjos de luz! Ah, mas leitor,
se nunca te encontraste, não com um ser abstrato,
mas com algum corpo aceso como os olhos do gato,
que sabes do fenômeno de que aqui falo? O amor
para ti alguma vez foi susto? Entre o terror
e o maravilhamento, algum dia o retrato
da perfeição te olhou? Vá lá, vamos supor
que é ainda o mesmo corpo, tátil ainda ao tato:
há nele um súbito perfume inesperado,
e é inútil, é impossível não perceber que alguém
á mal cabe num corpo; eu o conhecia bem
e nunca havia dantes sentido que ao meu lado
pairava aquele aroma de um mundo ignorado…
Não, leitor, certas coisas chegam de muito além
(I, 67)

Diante de uma epifania, que pode acontecer em qualquer canto e a qualquer momento, procuramos refugiar-nos de mil maneiras, porque, quando isso acontece, é um verdadeiro terror. Rilke dizia que “todo anjo é terrível”:

Pois o belo é apenas
o começo do terrível, que ainda a custo
[podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele,
[impassível, desdenha
destruir-nos. Todo Anjo é terrível . [5]

Confrontado com este dom, que é ao mesmo tempo um dom e um desafio, a criatura pode conceber mil maneiras de viver o mundo, e a vida, que normalmente é tediosa, cinzenta, sem graça, até que se ilumina. São esses grandes momentos da nossa vida – que podem durar apenas alguns segundos – que abrem as brechas e nos fazem ver, para além da superfície, a real reverberação que constitui o ser. Mas o terror de Deus, o terror da Beleza é de tal ordem que nós queremos recuar. O fato de a vida ser metafísica nos obriga a fazer alguma coisa, mas é sempre altamente insuficiente para conter aquele temor e tremor, como diz Kierkegaard. Nós continuamos nus diante dessa realidade; quer escolhamos ver ou fechar os olhos, perceberemos que as coisas nos chegam “de muito além”.

O que a poesia e Deus têm em comum é justamente isto. A grande arte e a divindade possuem essa capacidade de divinizar a vida, de mostrar que não há outro modo de compreensão da realidade. A conclusão é sempre incômoda, mas todas as outras são ainda piores: estamos aqui numa constante saudade de Deus, saudosos da plenitude. E a grande arte é exatamente isto: o esforço da criatura por guardar na memória aqueles momentos de epifania, nos quais ela se aproxima ao máximo do mistério da criação.

O mundo moderno quer criar uma espécie de antídoto para essa ameaça que é Deus e a Beleza, e o resultado não poderá ser outro que não a feiúra e a negação de absolutamente tudo. Vamos então conceber o nosso mundo como horroroso para podermos dar-nos ao luxo de acreditar que temos uma defesa, um escafandro contra aquela súbita surpresa, aquele temor e tremor de acordar diante daquilo que realmente somos. E então passaremos o tempo empilhando latas no supermercado e tentando fazer disto arte.

A necessidade de escrever O mundo como Idéia, que surgiu aos poucos entre 59 e 66 e gradualmente foi tomando forma, é simplesmente a urgência de me defender dessa condição de lata em supermercado, da linguagem reducionista, para buscar a grande abertura – e reclamar de tudo que não seja isto. A Montanha mágica, por exemplo, é a mesma coisa: no momento em que um continente inteiro parece caber num sanatório dos Alpes Suíços, Thomas Mann vai criar essa extraordinária metáfora do mal como doença.

O que me propus fazer em O mundo como Idéia foi também uma tarefa muito séria, que não era simplesmente tentar descrever alguma coisa, mas expressar a percepção de que aquilo que dá sentido à realidade vinha sendo roído pelas beiradas pelo sorrisinho dos Voltaire da vida. Quem me deu essa imagem foi Saint John-Perse, que morava nos Estados Unidos, quando lhe perguntei por que ele não voltava para a França. Ele me levou então à biblioteca do Congresso americano e, no meio daquelas estátuas todas, disse-me: “Vou explicar: Olhe só, qual é o grego que está ali? Platão. E o espanhol? Góngora; poderia ter sido Cervantes, mas é Góngora. O italiano é o Dante, claro. E ali, olhe quem representa a França, o que a França virou: o sorrisinho do Voltaire! Nós somos representados por isso!”

Na época, fiquei estarrecido, mas depois ficou claro que essa coisa toda só servia mesmo para arrumar sinecura para débil mental na USP. Porque foi nisso que deu: na Rive Gauche du Tietê. Nessa fábrica de opiniões ocupadíssima com a última teoria bocó para a falta de sentido do universo. Se eu não tivesse nada que ver com isso, iria pentear macacos, arrumar coisa melhor para fazer. Mas não: este é o meu povo, e eu sei que não era assim. Então, aproveitando a proximidade da Maria Antônia com a Rua Augusta, e a semelhança entre “correr atrás da Bolsa” e “ficar rodando bolsinha”, disse simplesmente assim:

Oh, Maria Antônia augusta,
quanto custou, quanto custa
teu fricoteio ao Brasil?
Mas quem te vê, quem te viu.
Tu, que já foste um canil
rábido em nome da luta,
hoje não passas do til
no bundão da velha puta,
a puta que não pariu!

O poema foi considerado um acinte. Diziam-me: “Isso não se faz, Tolentino”. Mas o que não se faz é prestar-se a dar inspiração para essas coisas!

IV.

Se a hipótese de que a vida é metafísica nos é familiar e aceitável, se tudo aquilo que fazemos é memória de Deus e a Ele se dirige, então resta a pergunta: Por que fazer seja o que for, por que não ficar em contemplação perpétua? A resposta mais lisonjeira seria pretender  justamente que todos os nossos atos fossem louvores a Deus, como quem não tivesse nada para fazer e ficasse a tarde toda louvando a Deus. Mas não é assim e não precisa ser assim, porque gradualmente essa realidade de estarmos saudosos da plenitude vai aparecendo, seja quando estamos ocupados com pequenos atos, seja quando enfrentamos atos totalmente megalômanos. Não há necessariamente que haver uma intenção deliberada, é sempre perfeitamente possível que se busque um ato de beleza instintivamente.

Quando eu me pus a escrever O mundo como Idéia, tinha diante de mim apenas algumas questões atormentando a minha cabeça. Com o passar do tempo, fui percebendo aos poucos que cada vez mais ia ficando claro para mim esse abandono da linguagem transcendente e a noção de que aquilo nos iria deixar num péssimo estado, que iríamos perder muito. Depois ficou claro que não perderíamos muito: perderíamos tudo. É como se eu estivesse dentro de um nevoeiro e, conforme ele se desfizesse, eu começasse a perceber certos contornos, certas formas – ou o que se chama de poesia.

Gradualmente, esse problema foi-se tornando uma visão de mundo, eu tendo que me defender desse mundo, desse pavor de constatar que havia um modo de deformar a realidade sob a desculpa de que aquilo seria mais real que o real. Todos os dias estava cercado de alguma explicação, de maneira que eu não sabia muito bem para que servia todo o meu esforço; mas tinha muito claro para quenão servia, e que aquilo que me cercava era uma grande bobagem. E assim começou a criar-se uma obra poética.

Qual não foi o meu susto quando, bem mais adiante, já nos anos 90, voltei ao Brasil e encontrei um país que havia dissolvido e praticamente proibido a linguagem poética. Nesse intervalo eu havia feito poesia em outras línguas, de acordo com o lugar onde vivia, o modo como vivia etc., mas nunca imaginei que pudesse encontrar um país do qual a cultura tivesse sido banida – aquela maluqueira de dizerem que o Caetano Veloso era o maior poeta do Brasil: espera lá, até segunda ordem ainda é o Carlos Drummond de Andrade! -.
É um susto muito grande para quem havia passado trinta anos na civilização e sabia muito bem que, embora houvesse um negócio chamado The Rolling Stones, isso não impedira a Inglaterra de ter a grande poesia que tinha, a grande música que tinha e tudo o mais.

Perguntavam-me o que estava fazendo aqui, por que não ia embora, mas não é nada disso: não posso aceitar que esse país agora tenha virado uma Escola de Samba. E quando penso que Noel Rosa era chamado de “o Poeta da Vila”, inclusive pelo Manuel Bandeira e pelo Villa-Lobos… Ele realmente era muito poético e fazia aqueles sambas de que muito nos orgulhávamos, mas daí a confundir isso com poesia – era uma maluqueira tão grande que não podia ocorrer a ninguém.

Pois bem, voltei e descobri que nesse intervalo o intelectual se havia transformado em in-telecoteco-ctual e que estávamos todos escravizados à estupidez, como numa espécie de Lei Áurea ao contrário. Os cariocas, especialmente, sempre valorizaram muito o nosso “Poeta da Vila”, mas era o poeta de uma segunda linguagem, que nunca foi confundida com cultura; era simplesmente a nossa realidade, em toda a sua complexidade, que nos tornava não só ricos, mas felizes de tê-la.

A partir do golpe de 64, porém, justamente quando me fui embora, começou a idéia de que precisávamos “fazer a revolução”, de que não havia necessidade de cultura. Era preciso revolucionar tudo. Quando comecei a organizar O mundo como Idéia, sobretudo a série de ensaios da parte inicial, defrontei-me com toda essa questão em termos de profundidade metafísica. Já na primeira parte propriamente dita, “Lição de modelagem”, era natural que começasse com a idéia do espectro. É justamente um mundo espectral o que encontramos sempre que nos afastamos da realidade, da profunda realidade metafísica.

Curiosamente, vou-me dando conta de que esse mundo de sombras corresponde perfeitamente à ciência dos números. Há todo um aspecto demoníaco na transformação do mundo-como-tal em mundo-como-Idéia, baseada toda ela numa concepção numérica. Tanto assim, que, em 1933, Kurt Gödel faz os seus dois teoremas da incompletude e demonstra que não há modo de quantificar a realidade de tal maneira que ela venha toda a caber toda em algum tipo de formulação.

Justamente no mesmo ano em que Gödel demonstra seus teoremas, Hitler torna-se o Führer e a barbárie toda começa. Ou seja, não estamos realmente em plena vertigem, mas, pelo contrário, estamos-nos iludindo a respeito da possibilidade de falsificar alguma coisa que não poderemos nunca atingir. Ao mesmo tempo em que aparece a tensão com a realidade, este questionar-se a si mesmo sobre como saber de maneira mais precisa as questões fundamentais, como faz Kurt Gödel, ocorre o momento máximo de barbárie. Começa aquele horror sinistro que vai levar um dos povos mais desenvolvidos do Ocidente, o povo de Goethe, de Schiller, a dedicar-se a colocar gente dentro do forno para acabar com um outro povo inteiro, e tudo em nome de uma boçalidade completa e total!

Essa realidade também vai influenciar-me de maneira fundamental porque, vinte anos depois, quando eu for começar a escrever, é natural que haja um sentimento de ordem – afinal de contas, todos sabíamos quanto tinha custado para que a razão predominasse, para que a luz predominasse sobre a treva. Quando digo razão, isso não significa racionalismo: o racionalismo é a doença da razão, como muito bem o definiu o papa Pio X. É-se racionalista na medida em que não se é capaz de usar a razão para compreender que não se entendeu, para saber que a realidade é maior que aquilo que se pode definir.

Quando eu me proponho expressar essa realidade na esteira de uma verdadeira hecatombe, a simbologia da luz sobre a treva – que não é nenhuma novidade -, terá um papel decisivo. A luta entre o bem e o mal simbolizada – se se quiser usar esse termo – nesse confronto entre a escuridão e a luz vai se tornar, no meu pensamento, um elemento de novidade. Descubro a metáfora dessa luz deliqüescente – e daí o meu particular interesse pela pintura -: essa luz que desmaia, em que a percepção humana não tem total noção da clareza das coisas, não consegue anular a treva. Aparece, então, a noção de luz pensada e dessa luz que treme, que, do meu ponto de vista, é talvez a metáfora mais exata para a condição humana.

   Canto, filho da luz da zona ardente,
coisas que vi a luz, sempre estrangeira,
tecer no ar e inevitavelmente
ir baixando com modos de rendeira
   ao tear deste mundo. A vida inteira
vi me escapar a luz do sol cadente,
e é essa rosa de sangue na fogueira
que agora arranco às dúvidas da mente.
   mente o intelecto que se esquece dela.
Se a pura luz de leste se desdiz,
a cada ocaso há no final feliz
   dos números da mente a bagatela
de uma luz de mentira. Contra ela
fui tecendo este meu canto de aprendiz. [6]

É essa necessidade de aceitar que tudo aquilo que nós amamos está sempre a ponto de se pôr como o sol, está tingido por essa luz de ocaso que não é menos bela por sê-lo – ao contrário, talvez até seja mais bela, mais doce, mais dolorosa por isso. Não existe triunfo nenhum no formalismo que nos propõe a ciência do número, o mundo como Idéia. Nesse nosso mundo, a idéia pode tentar substituir, sem jamais conseguir fazê-lo, essa luz que treme e que é o único momento de verdade do ser. Teremos que renunciar aos sonhos alucinantes do intelecto se quisermos perceber alguma coisa desse mundo que se esvai, que perdemos e que é bonito justamente porque o perdemos.

V.

Atualmente, encontramo-nos em uma situação particular: somos chamados a pensar a condição cultural da humanidade de uma maneira como não o havíamos sido desde a Primeira Guerra Mundial. De forma cada vez mais surpreendente, inclusive para mim, eu vejo que toda essa questão do mundo moderno cabe cada vez mais na moldura traçada pelo papa Pio X na encíclica Pascendi Dominici gregis, “Apascentando o rebanho de Deus”, na qual este homem de uma inteligência brilhante conseguiu definir o inefável, que aliás tinha todo interesse em continuar a ser nebuloso. O modernismo não é nada além disso: o nebuloso tentando passar-se por inefável. Antes de poder criticar, o que papa Pio X fez foi um enorme esforço de entendimento daquele monstrengo que se estava formando. O quadro que traçou seria completado mais tarde com outro livro fundamental para compreender o século XX, que é La trahison des clercs, de Julien Benda [7]. Com estes dois trabalhos, temos os pilares a partir dos quais podemos entender o mundo moderno

É necessário, sobretudo, encaixar o Brasil nesse panorama: que visão de Ocidente nos tínhamos proposto a nós mesmos, e com que resultados a havíamos imaginado e participado dela como última província do Ocidente – última no sentido de a mais distante, mas nem por isso a menos significativa. Aquilo que nós produzimos de mais profundamente nacional, que não é a anta nem o saci, o aspecto folclórico das coisas, mas algo que faz com que todo mundo perceba uma realidade completamente nacional. Paradoxalmente, nós não fizemos como os europeus: ao invés de estarmos a nos perguntar o que valíamos, simplesmente fizemos algo. Por exemplo, houve um momento em que todos os brasileiros perceberam exatamente que “é doce morrer no mar”.

Essa sensibilidade, brasileira e só brasileira, esteve presente em tudo. Não é superior, não é inferior, mas é indispensável para o nosso modo de ser. Em nenhum momento será tão impressionante e tão tipicamente nacional quanto nas Bachianas de Villa-Lobos e nos poemas de Manuel Bandeira e Cecília Meireles, por exemplo. É como dizia Clarice Lispector: “Bem, se Machado foi possível, o Brasil é possível”.

Joaquim Maria Machado de Assis é a expressão suprema da inteligência e da sensibilidade brasileiras, ele que era um crioulinho que descia o Morro do Livramento para vender doces, descalço porque não tinha sapatos. Esse homem consegue ser indiscutivelmente o maior escritor, o maior pensador e certamente o maior romancista que América Latina já havia tido até então. Se isso foi possível, fica claro que a jabuticaba não é a única coisa boa que nasce no Brasil e não tem em nenhum outro lugar. Quando a América Latina produz o escritor que vai impressionar toda a Europa, Jorge Luis Borges, que nasceu em 1899, Machado de Assis, que nasceu em 1839, já o tinha precedido de muitas décadas.

Pois bem, se somos um aglomerado de macacos, somos uns macacos muito precoces, e só vamos começar a ter uma noção do que realmente somos nos anos de 1930, algo como 125 anos depois da chegada, aqui, da corte de Dona Maria. Mas como foi possível que os argentinos, que tinham por trás toda a extraordinária tradição de Cervantes, Fray Luis de León, Góngora, tenham demorado tanto tempo para ter um Borges, enquanto nós, que não tínhamos quase nada – descendíamos de uma espécie de Albânia Atlântica -, conseguimos precedê-los com a genialidade de Machado?

Nós não saímos in the pole position. Tínhamos Camões, realmente um poeta caolho que escrevia muito bem, que é um grande poeta para nós que sabemos ler português, mas que não teve eco nenhum na Europa e não é uma voz, estritamente falando, européia. Porque Portugal olha para o mar e, quando começa a olhar mais longe, logo lhe aparece o Brasil. Aparece essa confusão, essa coisa inexplicável espremida between the devil and the deep blue sea.Somos essa coisa imensa, toda desconjuntada, entre o mar profundo e a selva, mas nesse meio surge um pretinho que faz quatro dos grandes romances do século XIX. Há um grande mistério nisso tudo.

Se o homem é uma travessia do enigma ao mistério, então somos um exemplo perfeito disso, que começará a ser questionado na década de 30. Tia Lúcia Miguel Pereira publicou Machado de Assis em 1934; Dr. Gilberto Freyre havia publicadoCasa grande & senzala e concebido um entendimento magnífico e único do Brasil, e Dr. Sergio Buarque de Holanda fez Raízes do Brasil. São três livros importantíssimos naquele momento, que são como que pontos de interrogação. A essa altura, tínhamos apenas cinqüenta anos de projeto nacional, e cada um dos três nos trouxe uma resposta complementar para a pergunta: “O que somos? O que tivemos?”

Eu tive uma sorte enorme de crescer em meio a essas pessoas. Dr. Gilberto vivia no Recife, mas quando vinha ao Rio de Janeiro freqüentava a casa de minha tia Maria Clara, e um garotinho ali no canto ouvia tudo. Dr. Sérgio morava no Pacaembu, em São Paulo, de maneira que era mais fácil vê-lo; ele era uma das pessoas que mais entendiam de literatura anglo-americana, o que também o tornava muito interessante. Enfim, eram pessoas que eu via e cuja conversa ouvia, como também Dr. Afonso Arinos, Gustavo Capanema – e não me pareciam nada macacos, não eram nada primitivos. Cecília Meireles, fui conhecê-la em 1949, quando aquela estátua entrou lá em casa – uma versão positiva do visitante de pedra do final de Don Giovanni, mas que não vinha trazer a danação, muito pelo contrário! O Manuel [8] sempre viveu por lá, ele era um celibatário que comia sempre na casa dos amigos e teve, pasmem, seu primeiro rádio, que também tocava discos, aos setenta anos, em 1956.

Crescendo num ambiente assim, nunca me passou pela cabeça que eu procedesse, como dizem hoje, de um país subdesenvolvido, emergente. Nunca ouvi falar nada disso, e se me dissessem que o Brasil era um país emergente quando garoto, era capaz de confundir com detergente. Muito cedo queriam me mandar para Europa, e eu não entendia. Para que, se a Europa inteira vinha para cá? Tinha o Krajcberg, o Dr. Carpeaux, Vilém Flusser etc. Eu não conseguia entender esse sentimento de inferioridade, que já estava começando a entrar na moda. Para mim, europeu tinha muito a ver com barbárie.

Aliás, por sinal, qual não foi a minha surpresa quando decidi informar-me sobre a cultura russa, que estava muito na moda graças a toda aquela pompa de “a Rússia é o futuro do mundo”. Nunca acreditei muito nisso, mas resolvi ir ver o que era o tal comunismo, essa fórmula para a salvação da humanidade em que ninguém tinha pensado até então. E a minha surpresa foi chegar em São Petersburgo, que na época se chamava Leningrado, devido a um celerado que passou por aí, e descobrir qual era o terceiro poeta mais lido naquele país. O mais lido de todos era Pushkin, claro; o segundo era o poeta nacional da Escócia, Robert Burns. E o terceiro? Era… Tomás Antônio Gonzaga! Eles tinham uma sociedade inteira, a terceira sociedade lírica da Rússia, que se reunia, estudava e declamava todo o mês a Marília de Dirceu!

Vamos começar tudo outra vez: essa turma, ou estava ameaçando o resto do mundo com a bomba atômica, ou estava lendo a Marília de Dirceu! Levei anos para compreender a realidade cultural russa, que era tão esquisita que, embora eles dançassem maravilhosamente e fizessem todas aquelas maravilhas, de Pushkin a Tolstoi a Dostoievski, liam A Marília de Dirceu nas horas vagas… Já no Brasil só mineiro a lê, e um pouco por obrigação.

Assim, aos poucos, fui descobrindo vários vestígios dessa esquisitíssima qualidade brasileira – uma coisa difusa, particular, em nada metida a sebo. Brasileiro pede desculpas por estar ali, para não parecer muito mal-educado, mas depois “vai cuidar da sua vida” porque “nóis fumo e não encontremo ninguém”. Não era necessário, naqueles anos antes do gramscismo, querer que Fidel Castro e Che Guevara nos ensinassem como fazer o Brasil, criar essa condição de “é preciso fazer um novo país”.

VI.

Toda esta meditação sobre o Brasil e sobre o Ocidente cabe perfeitamente na moldura que esboçamos: de um lado, a Pascendi; do outro, o livro de Julien Benda.

Em 1905, o que papa Pio X faz com a sua encíclica é inaugurar uma análise do modernismo. Ele precisava saber o que era tudo aquilo que estava acontecendo, definir primeiro o que era o modernismo, para depois poder dizer o que aquilo significava e para onde provavelmente iria nos levar. Porque o modernismo se propunha como uma grande novidade, como uma grande beleza, mas não mostrava a cara e não podia mostrá-la porque, afinal, não se entendia a si mesmo. Tocou então à Santa Madre Igreja procurar saber o que era aquilo para poder ter uma opinião a respeito.

O modernismo não sabe o que quer, ou antes, define-se por aquilo que não quer. Não quer essa velharia toda que está por aí, precisa acabar com tudo para construir um mundo novo, um mundo moderno, e para isso vamos todos ser modernistas. Mas o que exatamente vem a ser este mundo tão maravilhoso e moderno, ninguém o explica. E o esforço da Pascendi vai exatamente nesta direção, a de entender o que é e o que quer o modernismo.

Logo em seguida, dez anos depois, irrompe a primeira guerra mundial e começa a mostrar o que a Encíclica estava dizendo. Trinta anos depois, Adolf Hitler já está construindo seus campos de concentração e o Gulag está sendo criado. O mundo moderno estava sendo construído ali, diante dos nossos olhos.

Hoje, infelizmente, sabemos muito bem que mundo moderno é este, para onde ele nos leva, e que o ideal dos ideais é o bebê de proveta. Hoje em dia, qualquer coisa é a famigerada liberdade, que ninguém definiu exatamente enquanto furava os olhos dos outros. Os pogroms, os massacres, os horrores todos, sempre em nome do mundo como Idéia, de uma certa idéia do mundo que passaria a ser o nosso objetivo. “Nós vamos construir um mundo tão maravilhoso que você poderá nascer com uma cara e morrer com outra, basta colocar um pouco de botox aqui, outro tanto ali, e você vai ficar uma maravilha… Ninguém terá doença nenhuma, mas até chegar lá vamos matar quem estiver no meio”…

Quando o papa percebeu que o que ele tinha escrito estava pura e simplesmente acontecendo, tomou um grande susto, pois talvez não quisesse ter tanta razão. Daí a trinta anos o mundo está em pânico, e a metade que não está em pânico está desfilando o mundo moderno. Nesse momento, os intelectuais entram num beco sem saída, e é justamente disto que o livro A traição dos intelectuais vai nos advertir. O intelectual deixa de ser responsável para ter razão haja o que houver: precisa construir um mundo formidável, embora a cada meia dúzia de cabeças se encontre uma fórmula diferente. Os nazistas, os comunistas, os fascistas estão todos prontos para brigar, para acabar no filme do Kubrick, Dr. Strangelove, no sujeito que adora bomba, ama a bomba atômica.

Naquele momento, todo mundo achava que estava fazendo uma coisa maravilhosa; podia-se estar de um lado ou de outro, mas todos, naquele momento, construíam a modernidade, o resto era velharia. Quando se chegou à catástrofe do anos 40, não havia mais tempo para pensar no que fora dito, pois tudo agora parecia irrelevante, e o máximo que os intelectuais concebiam era a possibilidade de não terem estado de todo certos. Então, de erro em erro, começaram a corrigir essa visão de mundo, esse mundo-como-Idéia, e propor a cada vez uma nova deformidade, convencidos de que era algo de primeira qualidade.

Esse é o modus operandi do modernismo: não estar nunca satisfeito com aquilo que se acabou de fazer, pois não era nunca aquilo que se tinha em mente, eraquase. “Vamos tentar mais uma vez, diz-se, e se for preciso matar algumas pessoas, enfim, não há outro jeito”… Resultado: acaba-se entrando numa esquizofrenia extraordinária e vai-se ficando cada vez mais moderno na medida em que se tem menos certeza das coisas, até chegar ao chamado niilismo. “Ficamos todos por aqui, não somos nada, tudo é nada, viva o nada”, e pronto!

Mas não pára por aí. Agora é preciso buscar uma maneira de que esse nada seja menos nada, ou um pouco mais nada que o nada. De nada em nada, começa a canonização dos jogos mentais. Quando cheguei à França, em 1964, havia lá um livro extraordinário que já prenunciava tudo isso: Le degré zéro de l’écriture, “O grau zero da escrita”, de Roland Barthes. Com o passar do tempo, apelidei aquilo de Le degré zéro de l’imposture, mas achei que ainda era muito enobrecedor, e, como as palavras écriture, imposture e épluchure têm mais ou menos o mesmo som, finalmente cheguei a Le degré zéro de épluchure, “O grau zero da casca de banana”, como se o macaco pegasse a banana e jogasse a fruta fora porque acabou de descobrir a casca. Um país inteiro, que já deu Baudelaire, Racine, Villon, até Voltaire com aquele beicinho, uma das grandes culturas do mundo, de repente descobre a casca de banana e lança-se inteiro naquele estado de adoração do nada.

Não demoraria muito até que nascesse daí toda uma escola: a do Deleuze, da Kristeva, do Derrida-ou-desce. A partir de então, passa a ser proibido pensar, e os franceses vão ocupar-se da perfumaria intelectual que eles andam espalhando pelo mundo. Eles levam o relativismo a um ponto tal que só mesmo rindo, mas quando se percebem os resultados de tudo isso, vê-se que não é nem um pouco engraçado.

Ao longo destes cem anos, pois, o mundo foi concordando com o papa Pio X, foi ilustrando a Pascendi. Como não lhe agrada nada concordar com ela – só faltava agora concordar com um papa! -, propõe-se inventar outra moda, outra deformação. O mundo-como-Idéia faz das tripas coração para não concordar com a Igreja, que afinal é coisa de velha e que ninguém mais quer.

O grande esforço não é tanto definir o mundo-como-Idéia, porque pode ser mil coisas, mas saber qual é o processo que faz com que uma pessoa prefira aquilo que projeta em lugar daquilo que é chamado a observar. Qual foi esse caminho dentro da vida intelectual do século XX, como chegamos ao grau zero da casca de banana, como se deu esse Derrida-ou-desce.

Esse processo não dificulta apenas o presente, mas abole o passado. Se você define um futuro que vê como ideal e para o qual quer tender, isso vai tornar o seu presente muito complicado porque, para chegar até lá, precisará lidar com todas as confusões do dia de hoje que não se ajustam a essa idéia de futuro que criou. Por isso, o seu presente será muito conflituoso; no entanto, conseguimos viver em meio a conflitos, é próprio do ser humano enfrentar os paradoxos do dia-a-dia.

O pior não é que essa idéia o impede de viver as coisas como são, mas que o obriga a destruir o seu passado. Para poder manter essa visão de presente que você anuncia em nome do futuro, tudo o que foi precisa tornar-se suspeito. Passa a ser sua missão destruir as possibilidades de contar com esse passado como ajuda. Ora, todos nós temos um passado, uma memória, alguma coisa de que nos lembramos muito bem; um tesouro qualquer de que não queremos abrir mão com tanta facilidade. Mas será necessário jogar tudo isso fora para ter um presente “limpo” em nome do futuro, ou da idéia de um futuro que vem por aí.

Você joga fora o passado e passa a viver num presente que é um deserto, em nome dessa idéia de futuro que, quase com certeza, não chegará nunca. E essa promessa que você tem é uma coisa extremamente adaptável: pode chamá-la de niilismo ou do que quiser, mas o fato é que ela trará consigo um ódio a tudo o que existe. “Ah, mas isso são velharias”, “Ah, mas isso é de ontem”, “Ah, mas isso não se usa mais”, é o que mais se ouve hoje em dia. Esse drama é o que eu chamo o mundo-como-Idéia: você não pode mais ter um presente, um passado e um futuro, só pode ter aquilo que fizer agora: é uma idolatria, é uma apostasia e é uma pirraça com a vida.

O homem vai-se tornando assim um autômato, uma máquina, e a sua vida passa a não ter sentido nenhum. Como disse, essa postura vai aparecer na filosofia, na literatura, na legislação e em praticamente todos os aspectos. O que papa Pio X nos advertiu foi exatamente disso, dessa urgência de não ter um passado, dessa vontade humana de criar alguma coisa de tão novo que não viesse de canto nenhum. Não é muito diferente do que se vem conseguindo com a promessa de que os embriões nos vão curar de tudo, os embriões que não vão mais nascer estarão aí para garantir nosso futuro. Essa espécie de pesadelo não estaria aí sem a proposição do mundo-como-Idéia, de alguma coisa melhor que você pode conseguir jogando fora tudo o que tinha.

Com isso, convido-os a preparar as suas dúvidas. Ter dúvidas significa ter um passado. Não tenham tantas certezas assim, perguntem-se se aquilo que lhes é vendido hoje como a verdade realmente vem de alguma coisa, se aquilo tem raízes dentro do seu modo de imaginar. Se conseguirem fazer isso, valerá muito mais a pena que qualquer outra coisa.

Cada um deverá perguntar-se, ter um passado de que não se lembra mais muito bem, que não sabe muito bem como julgar, de que não sabe com clareza que valor tem para si; mas algum valor tem, e você não deve querer trocá-lo por coisa alguma. Se vocês não fizerem isto, ficarão apenas ouvindo este velhote cacarejar feito uma galinha choca e não vão perceber que essa liberdade está dentro de vocês, de cada um. E essa liberdade passa pela defesa encarniçada daquilo que vocês já têm, e que não pode ser trocado por nada que lhes seja prometido para amanhã. Troquemos as nossas certezas por diversas perplexidades, e aí nós vamos, quem sabe, nos entender.

Quem esteve presente nessas aulas do Bruno, lembra-se do esforço hercúleo que fez para pronunciar as palavras. Doze horas depois da última palestra, foi internado com uma grave crise hepática; ainda viria a recuperar completamente a consciência e a ter perto de si as pessoas que lhe eram próximas, mas já não saiu do hospital até a manhã do dia 27 de junho, quando faleceu.

Bruno Tolentino (1940-2007) publicou As Horas de Katharina (prêmio Jabuti 1995), A balada do cárcere (prêmio Cruz de Souza 1996 e Abgar Renault 1997),O mundo como Idéia (prêmio Jabuti 2003) e A imitação do amanhecer (prêmio Jabuti 2007).

Guilherme Malzoni Rabello é Engenheiro Naval pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Presidente do IFE.

__________________________

NOTAS:

[1]Classicamente, entende-se a santidade como a plenitude do ser, do ser-homem (n. do e.).

[2]No final da vida, em 1273, depois de uma experiência mística cujos detalhes nunca revelou, Tomás de Aquino quis queimar todos os seus escritos. Foi impedido de fazê-lo pelo secretário, frei Reginaldo, que lhe perguntou o porquê daquilo. A resposta de Tomás foi: “Não posso mais. Tudo o que escrevi me parece palha perto do que vi” (n. do e.).

[3] Poemas 128-142 de As horas de Katharina (São Paulo: Cia. das Letras, 1994);  o poema O segredo encerra a série (n. do e.).

[4] O Mundo como Idéia (São Paulo: Globo, 2002); A Imitação do Amanhecer(São Paulo: Globo, 2006).

[5]“Denn das Schöne ist nichts / als des Schrecklichen Anfang, den wir noch grade ertragen, / und wir bewundern es so, weil es gelassen verschmäht, / uns zu zerstören. Ein jeder Engel ist schrecklich” (Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, “Primeira Elegia”; n. do e.).

[6] “A imitação da música”, em O mundo como Idéia, I.

[7]Publicado no Brasil como A traição dos intelectuais, trad. Paulo Neves (São Paulo: 2007, Ed. Peixoto Neto).

Texto originalmente publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, nº 1, Jun/2008.