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31ª Bienal de Artes de São Paulo: a Beleza existe?

Artes | 09/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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De 6 de setembro a 7 de dezembro acontece a 31ª edição da Bienal de Arte de São Paulo, com o sugestivo tema: “Como falar de coisas que não existem”. Caminhar pelos corredores do prédio do Parque do Ibirapuera é se deparar com a típica “arte niilista” do nosso século, repleta de feiura, desalento, desprezo e transgressão. Mais do que mero “mau gosto”, o evento é uma mostra da decadência cultural que nos cerca, com a consequente perda do senso ético e estético.

Para entender melhor esta questão, sugerimos o documentário “Por que a beleza importa?” dirigido pelo filósofo inglês Roger Scruton e veiculado pela BBC em 2009 (e já mencionado aqui no site).  Neste vídeo, Scruton analisa a importância da beleza na existência humana e mostra como esta percepção está sendo perdida em nossos dias:

Em qualquer tempo, entre 1750 e 1930, se se pedisse a qualquer pessoa educada para descrever o objetivo da poesia, da arte e da música, eles teriam respondido: a beleza. E se você perguntasse o motivo disto, aprenderia que a beleza é um valor tão importante quanto a verdade e a bondade. Então, no séc. XX, a beleza deixou de ser importante. A arte, gradativamente, se focou em perturbar e quebrar tabus morais. Não era beleza, mas originalidade, atingida por quaisquer meios e a qualquer custo moral, que ganhava os prêmios. Não somente a arte fez um culto à feiúra, como a arquitetura se tornou desalmada e estéril. E não foi somente o nosso entorno físico que se tornou feio: nossa linguagem, música e maneiras, estão cada vez mais rudes, auto centradas e ofensivas, como se a beleza e o bom gosto, não tivessem lugar em nossas vidas. Uma palavra é escrita em letras garrafais em todas estas coisas feias, e a palavra é: EGOISMO. “Meus lucros”, “meus desejos”, “meus prazeres”. E a arte não tem o que dizer em resposta, apenas: “sim, faça isso”! Penso que estamos perdendo a beleza e existe o perigo de que, com isso, percamos o sentido da vida.

Sou Roger Scruton, filósofo e escritor. Meu trabalho é fazer perguntas. e durante os últimos anos, venho fazendo perguntas sobre a beleza. A beleza tem sido essencial para a nossa civilização por mais de 2.000 anos. Em seu inicio, na Grécia antiga, a filosofia refletiu sobre a arte, música, arquitetura, e a vida cotidiana. Filósofos argumentaram que, através da percepção da beleza, moldamos o mundo como um lar. Também passamos a entender sua própria natureza, sua essência espiritual. Mas nosso mundo virou as costas para a beleza. E, por este fato, nos encontramos rodeados de feiúra e alienação. Quero persuadí-lo de que a beleza importa, de que não é somente algo subjetivo, mas uma necessidade universal do ser humano. Se ignoramos esta necessidade, nos encontramos em um deserto espiritual. Quero te mostrar a rota de fuga deste deserto. Este é um caminho que nos leva de volta ao lar”.

Vídeo: Por que a beleza importa? (Roger Scruton)

O fim da arte – por Roger Kimball

Artes | 26/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Montagem-Arte-KimballQuase todo mundo tem – ou diz ter – interesse pela arte. Afinal, a arte enobrece o espírito, eleva a mente e educa as emoções. Será mesmo? Na realidade, há uma tremenda ironia no modo como a nossa cultura investe – emocional, financeira e socialmente – na arte. Agimos como se fosse algo especial, importante, algo revigorante para o espírito; mas, quando examinamos a lista dos artistas célebres hoje, o que em geral encontramos está muito longe do espírito e com certeza é muito pouco revigorante.

É uma situação curiosa. Tradicionalmente, a meta das belas-artes consistia em produzir objetos belos. E a idéia de beleza vinha carregada de uma pesada bagagem metafísica platônica e cristã, que em alguns pontos era indiferente ou mesmo hostil à arte. Mas a arte sem beleza era considerada, se não uma verdadeira contradição em termos, ao menos uma arte frustrada.

Hoje, se por um lado muitos setores da arte mundial eliminaram o tradicional elo entre arte e beleza, por outro nada fizeram para descartar as prerrogativas sociais da arte. Com efeito, padecemos de um tipo peculiar de anestesia moral – como se o fato de algo ser arte tornasse automaticamente dispensável qualquer juízo moral. A lista de atrocidades é longa, bem conhecida e bastante ridícula. No final das contas, porém, o efeito disso tudo não foi nem um pouco divertido; foi um desastre cultural. Ao universalizar o espírito de contestação, o projeto das vanguardas transformou a prática da arte em um empreendimento puramente negativo, em que a arte ou é oposição, ou não é nada. E a celebridade substituiu as realizações estéticas como meta da arte.

Semelhante situação deixa-nos tentados a concordar com Lev Tolstói. Em uma famosa passagem do O que é arte?, Tolstói escreveu que “a arte foi tão pervertida na nossa sociedade que não apenas a arte ruim passou a ser considerada boa, mas se perdeu a própria percepção do que a arte realmente é”.

E isso foi na década de 1890. Imaginem só Tolstói passeando pelas galerias de arte de Chelsea, de Nova York, ou pela Tate Modern, de Londres. Suspeito que não julgaria Andy Warhol um grande artista, mas admiraria a sua sinceridade e agudeza – porque, como Warhol observou em 1987, “arte é aquilo que você consegue fazer passar por arte”.

Hoje em dia, o mundo da arte dá muito valor à novidade. Mas aí mesmo é que está a ironia: quase tudo o que se defende como “inovador” é essencialmente uma cansativa repetição de atitudes inauguradas por gente como Marcel Duchamp, criador do primeiro engradado-de-garrafas-obra-prima e da primeira fonte-urinol.

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É claro que nem tudo são más notícias no mundo da arte. Há hoje uma produção abundante de arte vigorosa e tecnicamente perfeita, só que raramente se encontra anunciada nas galerias de arte de Chelsea, festejada no New York Timesou exposta nos meios artísticos mais em voga. A arte séria dos dias de hoje tende a ser discreta e a ficar de lado, longe dos refletores.

Mas isso dificilmente teria bastado para alegrar Tolstói. De fato, apesar de ser fácil concordarmos com a sua afirmação de que a arte foi “pervertida”, conviria hesitarmos diante daquilo que ele considerava “realmente arte”. Tolstói era extremamente rígido quanto aos sentimentos que julgava aptos a serem transmitidos pela arte. A seu ver, as “elites” da sua própria sociedade, “por causa da descrença”, tinham favorecido uma arte “reduzida à transmissão dos sentimentos de vaidade, de tédio perante a vida e, principalmente, de luxúria”. Para Tolstói, a arte é “um órgão espiritual da vida humana”, o que soa muito reconfortante. Só que a sua concepção do que é legitimamente espiritual mostra-se tão estreita que exclui não apenas os Damien Hirsts da vida, mas praticamente a maioria dos grandes artistas do mundo.

Dentre a literatura da sua época, por exemplo, Tolstói parece ter aprovado alguns singelos contos e fábulas populares sobre camponeses, e não muito mais que isso. Abominava qualquer coisa que tocasse o mistério ou o simbolismo: Baudelaire (“egotismo cru erigido em teoria”) não passa no escrutínio, nem Verlaine (“licenciosidade frouxa”) ou Mallarmé (“desprovido de sentido”). Uma sonata de Beethoven para o piano “não é senão uma tentativa de arte malsucedida”, e a Nona Sinfonia é “sem dúvida alguma” um fracasso. Kipling e até Dante são igualmente reprovados, e assistir a Hamlet faz Tolstói contorcer-se. A arte, no seu ponto de vista, ou é uma serva que transmite algum tipo de pedagogia moral, ou está corrompida.

Essa atitude suspicaz está longe de ser uma exceção, pois tradicionalmente a atitude das pessoas com relação à arte e à beleza foi marcada tanto pela suspeita como pelo louvor. Existe uma preocupação recorrente de que as atrações da beleza podem levar-nos a deixar de lado o bem em favor de um bem. “Os olhos deleitam-se em formas belas de diversos tipos e em cores brilhantes e atraentes”, escreveu Agostinho para alertar sobre as tentações do prazer visual. “Não gostaria de que essas coisas tomassem posse da minha alma. Seja apenas Deus a possuí-la, Ele que as criou todas. Ele as fez todas muito boas, mas somente Ele é o meu Bem, não elas”.

A tradição platônica dentro do cristianismo confere à Beleza um significado ontológico, confiando-lhe a tarefa de revelar a unidade e a proporcionalidade daquilo que verdadeiramente é. A nossa apreensão da beleza mostra, pois, que reconhecemos uma realidade que nos transcende e nos submetemos a ela. No entanto, se a beleza pode usar a arte para exprimir a verdade, a arte também pode usar a beleza para criar sedutoras falsidades. Nas palavras de Jacques Maritain, a arte é capaz de fundar “um mundo à parte, fechado, limitado, absoluto”, um mundo autônomo que, ao menos por um instante, nos alivia do “incômodo de viver e decidir”. Em vez de dirigir a nossa atenção para além da beleza sensível, em direção à sua fonte supra-sensível, a arte pode deixar-nos fascinados com a presença aparentemente auto-suficiente da beleza; pode fingir que é ao invés de revelar.

Considerada um fim em si mesma, separadamente de Deus ou do ser, a beleza torna-se uma usurpadora, oferecendo não um antegozo da felicidade, mas umsubstituto dela criado pelos homens. “A arte é perigosa”, disse Iris Murdoch certa vez, “principalmente porque pode macaquear o espiritual para sutilmente disfarçá-lo e banalizá-lo”.

Isso ajuda a explicar por que o pensamento ocidental acerca da arte tendeu a oscilar entre a adulação e a suspeita profunda. “A beleza é o campo de batalha em que Deus e o diabo guerreiam pela alma do homem”, diz Dostoiévski pelos lábios Misha Karamázov. E essa batalha trava-se em um nível bastante profundo.

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Quando lamentamos o terrível estado em que a arte se encontra hoje – Tolstói não exagerou ao usar a palavra “pervertida” -, tendemos a voltar os olhos para a Renascença e vê-la como uma idade de ouro em que a arte e a religião estavam em harmonia e tudo corria bem no mundo. Para muitos pensadores tradicionais, porém, a Renascença foi justamente o começo dos problemas. Maritain, por exemplo, levanta a acusação de que “a Renascença haveria de enlouquecer o artista e fazer dele o mais miserável dos homens […], revelando-lhe a sua grandeza peculiar e soltando contra ele a besta selvagem da Beleza, que a Fé até então mantivera encadeada com a sua sedução e conduzira dócil atrás de si”.

Assim, junto com o despedaçamento do cosmos medieval e o florescimento do humanismo renascentista, “Arte, a pródiga, aspirava a tornar-se o fim último do homem, o seu Pão e o seu Vinho, o espelho consubstancial da Beleza beatífica”. Até que ponto podemos levar a sério essa retórica que funde as aspirações da arte e da religião? Não há dúvida de que há algo de hipérbole nela. Mas, como a maioria das hipérboles, dizer que o artista é um “segundo deus” é uma tentativa de fazer a linguagem exceder-se para exprimir algo que em si já é um excesso: a nascente autoconsciência do homem que pretende afirmar-se como ser autônomo e criativo.

Teremos de esperar pelo Romantismo e pelo florescimento do culto ao gênio para ver essa descoberta chegar ao auge. Mas a apoteose da criatividade artística começou muito antes do século XIX. Com o surgimento da perspectiva, sistematizada e popularizada no século XV por Alberti em seu tratado Da pintura, o artista ganhou uma nova consciência da sua liberdade e criatividade. Como mostrou Erwin Panofsky, a descoberta da perspectiva marcou não apenas a elevação da arte à categoria de ciência (um panorama que entusiasmou os artistas da Renascença), mas também “uma objetivação do subjetivo”, uma sujeição do mundo visível às regras da matemática.

Há uma curiosa correspondência interna entre a perspectiva e aquilo que pode ser considerado a atitude mental típica da Renascença: o processo de projetar um objeto em um plano de tal modo que a imagem resultante é determinada pela distância e pela localização de um “ponto de fuga” simbolizava, por assim dizer, a Weltanschauung de uma época que inseriu uma distância histórica – bastante semelhante à perspectiva – entre si e o passado clássico e reservou à mente humana um lugar “no centro do universo”, tal como a perspectiva reservava ao olho um lugar no centro da representação gráfica.

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Neste sentido, o aperfeiçoamento da perspectiva linear simbolizou não apenas o domínio de uma determinada técnica artística, mas implicou também uma nova atitude para com o mundo. Progressivamente, a natureza foi deixando de ser o livro de Deus sobre o destino humano para transformar-se me matéria-prima para as brincadeiras do artista divinizado.

À medida que nos aproximamos dos dias atuais, a associação do artista com Deus torna-se mais ostensiva e desavergonhada. Alexander Baumgarten, por exemplo, em meados do século XVIII, comparou o poeta a um deus e a sua criação a “um mundo”: “De maneira que, por analogia, tudo o que é evidente para os filósofos em relação ao mundo real, o mesmo deve-se pensar em relação a um poema”. E Lord Shaftsbury, que exerceu uma influência enorme sobre a estética do século XVIII, afirmou que o artista, ao usar a sua imaginação, torna-se um “um segundo deus, o justo Prometeu sob Júpiter”. É claro que, como Ernst Cassirer observou na sua glosa a Shaftsbury, “a diferença entre homem e Deus desaparece quando olhamos o homem não apenas tendo em vista os seus poderes formadores originais e imanentes; quando olhamos o homem não como criatura, mas como criador… É então que a sua verdadeira natureza prometeica vem à luz”.

“A sua verdadeira natureza prometeica…”: se nos tempos modernos o artista emerge como um segundo deus, a sua divindade tenderá a isolar-se da realidade a fim de abrir espaço para as fabricações da arte. Assim, o artista tende a aproximar-se do demoníaco, que Søren Kierkegaard definiu lucidamente como uma liberdade “que se fecha” para o bem. (“Eu próprio sou o Inferno”, declara o Satã de Milton em um instante de assustadora autoconsciência). Se “todo o trabalho do artista é fazer algo a partir do nada”, como disse Paul Valéry, então, incapaz de cumprir esta exigência, o artista se verá perambulando sozinho entre as sombras do mundo que abandonou a fim de salvaguardar a sua liberdade e a sua criatividade. A divinização abre caminho para a demonização. O impulso por trás dessa evolução tem as suas raízes na exigência de liberdade em um mundo em que a liberdade está cada vez mais eclipsada.

Há nisso tudo uma analogia implícita entre beleza e bem-aventurança. Quando entendida como um antegozo da bem-aventurança, a beleza ocupa o seu lugar em uma ordem ontológica integrada; como irradiação do ser, a beleza está subordinada ao que ela mesma revela. Mas, emancipada dessa ordem, a beleza ameaça deslocar a totalidade que antes iluminava, substituindo-a pela sua própria ordem.

Não precisamos de Nietzsche para nos dizer que a desintegração da visão de mundo platônico-cristã, iniciada já no final da Idade Média, é hoje um dado cultural. Também não é novidade que a configuração da modernidade – forjada em grande medida pela confiança do homem na razão e na tecnologia para recriar o mundo à sua imagem – tornou cada vez mais difícil de sustentar a visão tradicional que unia a beleza ao ser e à verdade, conferindo-lhe significado ontológico. A modernidade, herdeira do deslocamento cartesiano da verdade para o sujeito (“Cogito, ergo sum”), implica a autonomia da esfera estética e, portanto, o isolamento da beleza com relação ao ser e à verdade. Quando se faz da razão a medida da realidade, o aspecto ontológico da beleza torna-se meramente estético, pura questão de sentimento.

No final do seu livro Human Accomplishment (2004), Charles Murray afirma que “a religião é indispensável para impulsionar a realização da grande arte”. Tenho uma simpatia considerável pela intenção que está por trás dessa frase, mas a minha primeira resposta às suas afirmações sobre a necessidade da religião para a arte pode ser resumida naquela charge de Saul Steinberg, em que um minúsculo sim voa em direção a um MAS gigantesco. Murray fez o máximo para precisar a sua argumentação, explicando que por “religião” não entende freqüência à igreja ou mesmo teologia. Neste sentido, tem razão ao dizer que a Grécia clássica, embora secular (e até diríamos pagã) era, em certo sentido, um dínamo religioso a impulsionar a “contemplação madura” da “verdade, da beleza e da bondade”.

Tenho lá as minhas dúvidas: será tal contemplação necessariamente religiosa em algum sentido que não seja o de uma mera “menção honrosa”? Murray reconhece que a nossa cultura atual é agressivamente secular – nomes como Darwin, Marx, Freud e Einstein erguem-se como faróis no caminho da progressiva desilusão da humanidade consigo mesma – e sugere que o desengano moderno talvez venha a mostrar-se passageiro, um simples estágio no amadurecimento espiritual da humanidade. Segundo ele, o período situado entre o Iluminismo e o século XX talvez seja visto no futuro “como um tipo de adolescência da espécie”. Quem o poderá dizer? Kant pensava que a maturidade tinha vindo com o Iluminismo: segundo ele, o Iluminismo representava a maioridade do homem, o “abandono da sua imaturidade auto-infligida”, e por imaturidade queria dizer “a incapacidade de usar a própria inteligência sem a orientação de outrem”. O principal impedimento para a iluminação plena não era portanto intelectual, mas moral: consistia, ainda segundo o filósofo, em uma falta de coragem para encarar o mundo como realmente era.

Há muito a criticar no Iluminismo (assim como há muito a comemorar), mas o que me interessa aqui é apenas perguntar se a relação simbiôntica entre a grande arte e a religião é mesmo tão estreita como Murray sugere. Fra Angelico, um pintor profundamente religioso, foi um grande artista, mas também o foi Ticiano, homem notoriamente mundano. Bach foi uma alma piedosa e talvez o maior compositor que jamais existiu, mas, e quanto a Beethoven? Se era religioso, era-o em um sentido completamente diferente. Jane Austen seguia a religiosidade convencional da sua época na sua vida pessoal, mas os seus romances atingem a grandeza pela sua agudez e sabedoria mundanas. Tanto arte como religião são palavras valorativas; dizer que tal ou qual coisa é uma obra de arte é conferir-lhe uma aura de valor, e o mesmo acontece se dissermos que é religiosa. Mas esses dois serão o mesmo tipo de valor?

David Jones, poeta católico do século XX, natural do País de Gales, acertou ao sugerir que “não é possível esperar nenhuma arte integrada, bem difundida e que ao mesmo tempo mereça ser chamada de propriamente religiosa a não ser que haja enormes mudanças no caráter, orientação e natureza da nossa civilização” – mudanças que, penso, estariam na contramão do nosso engajamento em favor da democracia liberal. Jones pensa que seria bom se “o melhor das potências criadoras do homem” estivesse “diretamente a serviço do templo”, mas isso só pode acontecer “quando a própria época está impregnada dessa qualidade”. Não é, prossegue, uma questão de opções pessoais: o que é possível a um artista quanto à criação de arte religiosa “pouco ou nada tem a ver com a vontade ou os desejos deste ou daquele artista”. Mesmo que seja o mais piedoso dos pintores, não pode “transformar-se em um artista de outro período ou cultura”. Algumas coisas que eram possíveis na Idade Média, hoje já não o são.

A ameaça real à arte, ainda segundo ele, consiste na crescente submissão do mundo moderno à tecnocracia, a uma visão inteiramente instrumental da vida que não dá espaço para o que chama de o intransitivo – para a liberdade e o desinteresse tradicionalmente associados à experiência religiosa, de um lado, e à experiência estética, do outro.

Essa disjunção é crucial. Tanto o sacerdote como o artista podem ser enviados às catacumbas, mas trata-se de catacumbas distintas. A religião busca a perfeição da alma; a arte busca a perfeição de uma obra. Não existe uma arte particularmente católica, afirma Jones, tal como não existe “uma ciência hidráulica católica, um sistema vascular católico ou um triângulo eqüilátero católico”. W.H. Auden pensava da mesma maneira: “Não pode haver uma arte ‘cristã’, da mesma forma que não pode haver uma ciência cristã ou uma dieta cristã. Apenas pode haver um espírito cristão, segundo o qual um artista ou um cientista age ou não”.

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Vivemos em um tempo em que a arte está vinculada a todo o tipo de projetos extra-artísticos, desde a “política de gênero” até o esquerdismo raivoso dos neo-marxistas, pós-estruturalistas e de toda a fauna exótica que se congrega em torno do mundo da arte e da academia. A submissão da arte – e da vida cultural em geral – aos fins da política foi uma das grandes tragédias espirituais da nossa época. Entre muitas outras coisas, dificulta cada vez mais uma apreciação da arte naquilo que lhe é próprio, como algo que transmite o seu próprio tipo de descobertas e de alegrias. Os críticos – mesmo aqueles que procuram insistir na dimensão religiosa da arte – são forçados a lutar em favor das qualidades estéticas que só a arte pode proporcionar, e contra a tentativa de redução da arte a uma espécie de propaganda.

Ao mesmo tempo, perdemos algo de importante quando falta uma dimensão espiritual na nossa concepção de arte. Teríamos de concordar com Murray, se é isso que ele quis dizer quando afirmou que a religião, ou pelo menos uma atenção séria aos autênticos fins da vida humana, “é indispensável para impulsionar a realização da grande arte” . Ou seja: se a politização da estética representa uma grave ameaça à integridade da arte, isolar o estético das outras dimensões da vida representa uma ameaça de outro tipo. O princípio da “arte pela arte”, observou T. S. Eliot, “continua válido na medida em que pode ser compreendido como uma exortação ao artista para que se atenha ao seu métier; nunca foi nem poderá ser válido para o espectador, o ouvinte ou o leitor”.

Por volta do século XIX, fazia já bastante tempo que a arte se havia libertado dos fins ideológicos da religião; a crise espiritual da época, porém, carregou-a de fardos espirituais ainda maiores, fardos que continuam a ser sentidos ainda hoje. Nas palavras de Wallace Stevens, “uma vez abandonada a crença em Deus, a poesia torna-se a essência que assume o lugar dela como redentora da vida”.

A idéia de que a arte deveria servir de fonte de sustento espiritual – e talvez a mais importante dessas fontes – é uma idéia nascida no Romantismo e que continua a ecoar poderosamente nos dias de hoje. Ajuda a explicar, por exemplo, a aura especial que envolve a arte e os artistas, permitindo que poseurs como Andres Serrano, Bruce Nauman e Gilbert & George sejam tidos como artistas por pessoas que no entanto se mostram cordatas em outros temas.

Essa herança do Romantismo também já esteve presente, em diversas variantes, em boa parte da cultura de vanguarda. Passou-se já muito tempo desde que Dostoiévski disse: “Por incrível que pareça, chegará o dia em que os homens discutirão mais ferozmente sobre arte do que sobre Deus”. Se esse percurso significou ou não um progresso, talvez seja uma pergunta em aberto. A meu ver, Eliot estava certo ao depreciar os esforços que moralistas estéticos como Matthew Arnold e Walter Pater faziam para encontrar na arte um substituto para a religião, “a fim de preservarem as emoções sem as crenças que lhes estavam historicamente associadas”.

Isso – penso – está bem claro: sem fidelidade à beleza, a arte degenera em uma caricatura de si mesma; é a beleza que anima a experiência estética, tornando-a tão sedutora; mas a experiência estética em si degenera em um tipo de ídolo ou fetiche caso seja vista como um fim em si mesma, sem ser contrastada com os outros aspectos da vida.

Parece-me que há tantas oportunidades para a confusão quantas para a iluminação mútua no entrelaçamento das ambições da arte e da religião. Há muito o que lamentar na situação da arte e da cultura hoje: antes de mais nada, a falta de seriedade endossada pela ignorância das técnicas tradicionais. Mas, ao mesmo tempo, penso que a emancipação da arte com relação à religião é antes uma oportunidade do que um empecilho. Como notou Auden nas suas reflexões sobre cristianismo e arte: “Não é possível haver liberdade sem a possibilidade de abusar dela. A secularização da arte permitiu ao artista verdadeiramente talentoso desenvolver ao máximo os seus dons; mas também permitiu aos que têm pouco ou nenhum talento produzir uma vasta quantidade de lixo fraudulento ou vulgar”.

O triunfo do lixo não impede a promessa e as realizações do talento. O homem é um tipo de criatura que, por natureza, se deleita na arte e na experiência estética; e creio que é também, por natureza, um animal religioso: uma criatura que se torna aquilo que realmente é apenas quando reconhece aquilo que a transcende. Esses diferentes aspectos da humanidade freqüentemente cooperam entre si, mas prestaríamos um desserviço aos dois se ignorássemos ou esfumássemos as suas diferenças essenciais.

 

Artigo traduzido da revista First Things, junho/julho de 2008. Copyright © Roger Kimball e First Things, 2008. Todos os direitos desta tradução reservados aDicta&Contradicta.

Roger Kimball é crítico de arte e editor executivo do The New Criterion Magazine. Publicou, entre outros, os livros The Rape of the Masters: How Political Correctness Sabotages Art (Encounter Books, 2004), The Long March: How the Cultural Revolution of the 1960s Changed America (Encounter Books, 2000) eTenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher Education(HarperCollins, 1990). Uma versão anterior deste ensaio foi apresentada no American Enterprise Institute e publicada no livro recém-lançado Religion and the American Future (AEI Press, 2008).

Tradução de Cristian Clemente, licenciado em Letras pela FFLCH-USP.

Artigo publicado originalmente em português na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, nº 2, 2008.

Imagem desta postagem: montagem com uma pintura de Ticiano (Anunciação, 1522, óleo sobre madeira, Bréscia), no canto superior esquerdo; com um trabalho de Duchamp (A fonte, 1917), no canto superior direito; e de Fra Angelico (Anunciação, 1430-1432, Madrid, Museo do Prado), abaixo.

São João: Traços do barroco em Guignard – por Iura Breyner Botelho

Artes | 19/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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SãoJoão-Guignard

São João, de Guignard : óleo sobre tela – 1961

 

por Iura Breyner Botelho

São João é uma obra do pintor carioca Alberto da Veiga Guignard, nascido em Niterói/RJ em 1896 e falecido em Belo Horizonte/MG em 1962.  Sua temática gira em torno de uma paisagem imaginária inspirada na geografia montanhosa da Minas Gerais Histórica, com suas igrejas barrocas, morros, cachoeiras, neblinas, caminhos de terra, carros de boi, dias e noites de festejos populares e rezas, elementos estes que foram fonte de inspiração e encantamento para o artista e sua obra nos seus últimos dezessete anos de vida. Trata-se de uma tela de 49,5 por 39,9 cm, pintada a óleo em 1961, um pouco menos de um ano antes de seu falecimento em Belo Horizonte.

São João é uma obra vertical carregada de movimento em cada centímetro. Sua harmonia se dá pelo equilíbrio das direções espaciais para as quais as figuras apontam; ora para cima e para direita; ora para baixo e para esquerda, com algumas variantes contrárias de direções alternadas de forma que se tem a impressão de uma cascata ou escada em ziguezague, conforme o olhar é puxado predominantemente para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo.

Esta impressão de “deslocamento” do centro ótico da obra e a conseqüente assimetria observada nas disposições e relações de proporção entre as figuras pode nos remeter às influências do valores estéticos e espaciais do período barroco, em que esta perspectiva descentrada é predominante. Assim, pretende-se nesta análise sobre a obra, investigar a figura da elipse barroca e seus desdobramentos sob dois aspectos: o figurativo e o espacial. O primeiro refere-se às relações entre as figuras; o segundo ao espaço e a forma como é construído na obra.

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INTRODUÇÃO

São muitas e variadas as temáticas da obra de Guignard; retratos, paisagens reais, paisagens imaginárias, figurativas, botânicas, religiosas e histórico-imaginárias. Dentre elas a paisagístico-imaginária “São João” de 1961 foi escolhida como alvo desta análise, por conta de alguns fatores que talvez nos possam levar mais diretamente a pensar em termos de uma estética barroca como prelúdio das diversas estéticas posteriores, chamadas modernas, inclusive e especialmente no Brasil (DE SANT’ANNA, 2000).  Em primeiro lugar, pelo deslocamento do centro ótico do quadro, pela descentralização de algumas figuras, como a lua pálida no quadrante superior esquerdo, montanhas e nuvens em ziguezague de ambos os lados e na parte superior, assim como a assimetria das figuras como balões, ajuntamentos de povo, caminhos, morros, igrejas, túneis, ponte e rio. Depois, o aparente contraste nas proporções relativas entre as figuras:  igrejas quase no mesmo tamanho das montanhas; ajuntamentos de povo em festejo próximo a  palmeiras de copas muitas vezes menores que os balões em sobe e desce… Por fim, o contraste na intensidade das cores que se alternam entre o colorido vivíssimo dos balões queimando ou de alguns dos pontinhos populares, das palmeiras e do mato em volta das igrejas, do riacho, do céu noturno em torno da lua e os tons pastéis esbranquiçados mediando uma figura e outra.

Guignard era carioca de nascimento, viveu a sua primeira juventude estudando em Escolas de Belas Artes na Suíça e na Itália, tendo voltado ao Brasil após os falecimentos consecutivos de sua mãe e a única irmã, fixando residência na então Capital do país, a cidade do Rio de Janeiro.  Partiu em direção a Minas a pedido do então Governador do Estado, Juscelino Kubitschek, no intento de fundar a primeira instituição educacional voltada para as artes plásticas de Minas, a Escola Municipal de Belas Artes de Belo Horizonte, implantando ao mesmo tempo a primeira Exposição de Arte Moderna na capital mineira naquele ano.

Viveu Guignard naquela região nos dezessete anos subsequentes, tirando dali inspiração para uma variada série de obras de cunho paisagístico, entre rascunhos, desenhos, pinturas a óleo sobre tela ou sobre madeira, bem como desenhos e pinturas retratando pessoas com quem conviveu ou encontrou esporadicamente.

Da obra paisagística de Guignard, no quesito referente às questões estéticas e mais específicas, fala o artista plástico, pesquisador e crítico Carlos Zílio, herdeiro da linha estética do pintor por parte de Iberê Camargo. Zílio afirma que o mais importante da obra de Guignard está na diluição da figura e do fundo provocando uma dissolução do espaço formal e das pessoas retratadas em seus quadros (Zílio, 1982).  Este aspecto, se analisado pelo ponto de vista estilístico, não deixa de lembrar a questão do deslocamento da perspectiva tão característico na arte barroca que influenciou toda a concepção da arte moderna e contemporânea.

Guignard, sem deixar de ser um artista de seu tempo e dono de uma técnica inconteste, não ficou indiferente ao estilo barroco que impregnava (ontem como hoje e sempre) a cultura e as construções mineiras, as quais se adequam à paisagem como roupa feita sob medida. De formação clássica, mas com uma vivência profunda e pessoal dos movimentos modernos da arte europeia dos anos em que lá estudou, adquiriu e aprimorou um estilo próprio e inconfundível em seus desenhos, traçados e pinturas, que desde o início de seu restabelecimento no Brasil no ano de 1929 o tornaram conhecido e invejado no meio artístico e acadêmico.

SÃO JOÃO – 1961

“Movimento é, por assim dizer, arquitetura viva – viva no sentido de troca de localizações e assim como de troca de coesão. Esta arquitetura é criada pelos movimentos humanos e é constituída por trajetórias que traçam formas no espaço. Uma construção só pode se manter se suas partes tiverem uma proporção, a qual é fornecida por um certo equilíbrio do material do qual ela é construída.

Arquiteturas de sonhos podem negligenciar as leis do equilíbrio. Do mesmo modo, acontece com os movimentos de sonhos, mesmo assim, um fundamental senso de equilíbrio sempre permanecerá conosco, mesmo nas mais fantásticas aberrações da realidade  (LABAN, 1966, p. 5).”

São João é uma obra de pintura em óleo sobre tela de 49,5 x 39,9 cm cuja temática gira em torno de uma paisagem imaginária inspirada na região montanhosa de Minas, com suas cidades históricas, igrejas barrocas e festejos populares.

O quadro é vertical e carregado de movimento em cada centímetro. Sua harmonia se dá pelo equilíbrio das direções espaciais para as quais as figuras apontam; ora para cima e para direita; ora para baixo e para esquerda, com algumas variantes contrárias de direções alternadas de forma que se tem a impressão de uma cascata ou escada em ziguezague, conforme o olhar é puxado predominantemente para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo.

Suas cores: azul marinho e celeste (céu e rio); cinza rosáceo, laranja – ocre; amarelo; branco, tons cromados entre o marrom e cinza, verde bandeira (copas das árvores e palmeiras, bandeirinhas) e branco (igrejinhas, ponte, fumaça do trem, nuvens e lua). As figuras são variadíssimas mas estão compostas de maneira a relacionarem-se umas com as outras harmoniosamente, tendo como ponto comum as direções de onde procedem ou para onde apontam.

O plano, à primeira vista, parece chapado, como se todas as figuras se dispusessem igualmente no espaço sem a predominância que uma perspectiva geométrica clássica proporciona a umas figuras sobre as outras, mas isso é apenas uma ilusão. Se se observa com um pouco mais de atenção a obra, percebe-se em primeiro lugar uma significativa diferença de tamanho e proporção entre os homenzinhos e as igrejas, entre os trenzinhos e o “carro de boi” (à direita do trem), entre estes e as vias sobre as quais se apóiam – no caso o viaduto e a estrada de terra –, bem como entre as árvores, os rios, as montanhas e as nuvens e o céu.

Depois se nota também uma sutil gradação de proporções entre os picos dos morros e montanhas onde se fincam as igrejas, figuras estas que conduzem mais facilmente o nosso olhar para este movimento de ziguezague do canto inferior esquerdo para o superior direito, de modo que vão nos parecendo mais e mais distanciados à medida que “sobem” no espaço da tela.

Depois disso tudo os olhos já têm condições de perceber o jogo de perspectiva do quadro, que não se compõe com um único ponto de fuga em seu centro material, mas sim com vários, que se dispõem e se relacionam entre si como  elementos que sobem ou descem gradativamente em planos inclinados e alternados.

A Elipse e os valores estéticos barrocos

Sabe-se pela literatura crítica da obra de Guignard*[i] que esta ilusão de perspectiva dos planos inclinados em espiral foi inspirada primeiramente na perspectiva dos planos de fundo de alguns quadros renascentistas como o da Mona Lisa de Da Vinci e a Virgem das Rochas de Rafael. No entanto, a impressão de “deslocamento” do centro ótico da obra e a conseqüente assimetria observada na disposição e relações de proporção entre as figuras nos remete com mais força para as influências do valores estéticos e espaciais do período barroco.

Mas… que valores estéticos são estes? Para onde tais valores levaram os artistas de seu tempo e posteriores? Para onde levam o olhar do observador e do público?

Vejamos alguns artistas e suas obras, como Bernini, Borromini, delia Porta, Caravaggio e Dürer.  Estará o elemento “elipse” presente em todas e em cada uma das respectivas obras? Em Bernini a elipse é explícita, especialmente quando se pensa, por exemplo, nas colunas do Baldaquino da Catedral de São Pedro, mas também está, de maneira mais detalhada e menos escancarada no “êxtase de Santa Thereza”. Também encontramos a elipse “escancarada” na escada de Borromini e na Igreja “Il Gesú”, de Giacomo delia Porta, com suas volutas. Obras como “O Narciso” e “A deposição no túmulo” de Caravaggio sugerem uma perspectiva elíptica, para que se possa contemplar as figuras de um ponto de vista de quem olha de frente para elas. “O Rinoceronte”, obra de Dürer, está crivado de imagens elípticas, dando lhe uma aparência tridimensional e muito mais realista do que as figuras até então conhecidas sobre estas e outras espécies de animais selvagens ou exóticos.

As obras barrocas, tanto as européias quanto as brasileiras, estão carregadas do cientificismo racionalista da época. Esta questão levada ao campo dos estudos da perspectiva abriu uma gama de novos horizontes nas técnicas de desenho e pintura de então, que seriam por sua vez as ferramentas mais importantes para a construção de uma maneira realista de se fazer e de se ver o mundo representado nas obras de arte. Se num primeiro momento – na Itália e em outros países europeus – se formou um sentimento de repulsa por este tipo de ótica, por não corresponderem seus elementos com os ideais clássicos de proporção, equilíbrio e harmonia na representação, num momento seguinte elas constituem já o centro e a referência do fazer artístico em toda a Europa, ainda que de modos e estilos que variavam muito de país para país, de região para região.

Portanto, faziam parte da estética barroca e de todos os seus paradigmas, o realismo na representação, conquistado através de um deslocamento da perspectiva do centro físico do quadro para o centro “virtual”, isto é, “dramático-fictício” da obra. Além disso esta estética nova busca nas suas obras não só a aparência de equilíbrio pelo movimento, mas o movimento mesmo, que se equilibra pela oposição de seus vetores básicos.

Transportando este ideal para suas paisagens, também o Mestre Guignard conseguiu uma dupla e ao mesmo tempo dual impressão de realismo e fantasia em suas paisagens, à medida que, mantendo as proporções entre povoado e igrejas, estas e as montanhas, estas últimas e as nuvens, deixou a impressão de alguém que via tudo isso como que de uma janela de avião num horizonte distante e paralelo. Mais uma vez se manifesta uma característica barroca na obra de Guignard: a unidade dual; a ambigüidade revelada nas proporções entre os elementos de composição que dialogam entre si através destas pontes elípticas invisíveis que são as direções no espaço para as quais cada elemento aponta.

O Jogo Elíptico na forma e na composição espacial entre as figuras

As figuras, por si só, já sugerem movimento: o trenzinho Maria-fumaça na ponte, a cachoeira e o riacho, os balõezinhos subindo e descendo, as nuvens no céu e entre as montanhas, as bandeirinhas nos mastros, o carro de boi na estrada de terra (em baixo, à esquerda) e os ajuntamentos populares. As igrejinhas, os picos, montanhas e neblinas ao longe sugerem, por sua vez, um movimento mais sutil: o do observador, que parece contemplar a paisagem num momento durante um vôo distante. Além disso, se observarmos as disposições das figuras e as direções por elas apontadas ou das quais indicam a procedência, encontraremos um sem número de formas elípticas que as relaciona e interliga por todo o quadro.

A cachoeira e o riacho não correm, como se pode ver, em linhas retas (não seria natural, é claro); os balõezinhos não caem perpendicularmente, mas de forma oblíqua. Os rastros de fogo e fumaça por eles deixados desenham pequenas elipses rasgando a paisagem. Assim também, os ajuntamentos populares perfazem desenhos sinuosos e espiralados, dando a impressão de um contínuo movimento de ir e vir pelos caminhos e largos que cortam os morros em direção às igrejas. Também os morros e montanhas perfazem um movimento de subida em espiral e as nuvens e neblinas ora os recobrem, ora os revelam,  num incessante subir e descer em volta dos picos. Também os arcos da pequena ponte sob o trenzinho sugerem movimentos elípticos interrompidos nas suas bases sob a terra ou o rio.

Também no jogo de luzes e sombras – claros e escuros, bem como suas gradações – se revela a presença do elemento elíptico. Assim, a fumaça, a ponte iluminada, as bases escuras de terra que sustentam as igrejas bem como as nuvens que recobrem os montes, tudo vai também  se alternando na composição de claro-escuro, de forma perfeitamente harmônica, porém irregular.

A obra não é somente construída a partir de movimentos, mas também gera um movimento, porquanto praticamente obriga o observador a um “passeio sinuoso e pouco ordenado” pela paisagem.

Todos estes elementos dispostos como estão e inter-relacionados nesta obra conferem-lhe um poderoso sentido de unidade e harmonia, ao mesmo tempo em que revelam o seu caráter tri-dimensional.  A ponte, o riacho, os caminhos espiralados, os carros de boi em contraposição ao trenzinho passando sobre a ponte; assim como as igrejas, os festejos, os balões subindo e descendo, as nuvens e os picos semi-recobertos de neblina e por fim a própria lua que por hora aparece entre as nuvens – todas estas figuras – destacam-se e parecem “saltar” da tela, sem no entanto, saírem do lugar por um momento sequer. O que significa tudo isto?

Considerações finais

Isto significa que a realidade pode se apresentar ante os olhos do observador de formas diversíssimas: muitas vezes sob a aparência de uma combinação simétrica entre as figuras e os espaços que as circundam; muitas outras, escondida discretamente sob o véu de uma paisagem distorcida e assimétrica, onde os elementos fictícios, os representativos e realísticos se combinam e alternam de maneira absolutamente harmônica e equilibrada. Esta é uma idéia mestra dentro de todos os movimentos intelectuais e artísticos ou científicos da chamada Modernidade, desde a invenção da Imprensa até o final da Segunda Grande Guerra, mas também depois e até hoje.

As figuras e as linhas espiraladas conferem esta unidade à obra ao mesmo tempo em que fazem com que através de figuras ou paisagens fictícias ou mesmo abstratas, nos deparemos como num espelho diante da realidade que nos cerca. Não seria o ponto em comum entre as obras de ­­­­Caravaggio, Velasquez, Seurat, Van Gogh, Courbet, Mondrian, Picasso, Pollock, Much, Klimt, Dali e mesmo Duchamp?

É por isso que tantas vezes tem-se a impressão de se poder penetrar na obra, como um personagem a mais, ou de que a obra mesma interfere direta ou indiretamente na realidade que nos circunda, quando não em nós mesmos. Mesmo o belo na obra de arte tem sempre algo em si que incomoda e fere, talvez por ser maior que o próprio artista, que o observador, que o próprio homem: algo que o transcende e de certa forma o desnuda revelando-o na sua real proporção em relação ao Universo e aos outros homens. O nome deste processo de identificação que fere e cura ao mesmo tempo é CATARSE[ii].

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 2 – Mídia de exposição do artista – http://cubobranco-br.blogspot.com.br/2005/12/o-brasil-na-viso-de-guignard.html

 BIBLIOGRAFIA­

ANDRADE; Rodrigo Vivas.  Os salões municipais de belas artes e emergência da arte contemporânea em Belo Horizonte: 1960-1969;  IFCH – UNICAMP; 2008;

Modernismo: Desdobramentos Marcos Históricos (Tese de doutorado): Universidade Estadual de Campinas, IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; Institucional; Instituto Cultural Itaú; São Paulo; 1993;

AULICINO; Marcos Rodrigues. O distante próximo, o próximo distante: a elaboração de um espaço imaginário nas paisagens de Guignard: (Tese de doutorado): UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas; Instituto de Artes; Campinas, SP: 2007;

De SANT’ANNA, Affonso Romano. Barroco: do quadrado à elipse: Editora Rocco, SP; 2000;

CAMARGO, Pierina e ESTEVES, Rosa (Institucional); Viajando com Guignard: Prefeitura Municipal de Campinas e MACC – Museu de Arte Contemporânea de Campinas: 2001.

VIEIRA, Ivone Luzia. A Escola Guignard na cultura modernista de Minas: 1944-1962:  Pedro Leopoldo: CESA, 1988;

ZÍLIO, Carlos; A Modernidade em Guignard: EPI Empresas Petróleo Ipiranga, s.d.,  PUC – RJ, Rio de Janeiro, 1982;

NOTAS

[i] (*) – VIEIRA, Ivone Luzia – 1988; AULICINO, Marcos Rodrigues – 2007.

[ii] (**) – http://www.dicio.com.br/catarse/ –  Catarse: designação comum de purgação ou purificação. Refere-se à libertação do que é estranho a natureza do sujeito.
Estética. Teatro. Num espetáculo trágico, refere-se ao desenvolvimento de uma espécie de purgação de alguns sentimentos do público (como pavor ou compaixão).

Alberto Da Veiga Guignard – O Poeta Das Tintas

Artes | 18/08/2014 | | IFE CAMPINAS

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Fonte: http://www.pinturasemtela.com.br/alberto-da-veiga-guignard-pintor-brasileiro/

 

Alberto da Veiga Guignard, carioca de nascimento, viveu os anos mais importantes e produtivos de sua vida em Belo Horizonte, MG, com contínuas viagens às cidades históricas deste Estado. Foi mestre de importantes nomes da arte moderna brasileira como Iberê Camargo, Lygia Clark, Amilcar de Castro, Farnese de Andrade e outros.

Relevantes foram os fatores e acontecimentos que envolveram a permanência do artista na Capital e cidades históricas mineiras, para uma melhor e mais profunda compreensão da grandeza e singularidade de sua obra como um todo, mas especialmente no que tange à sua temática paisagística e religiosa. Entretanto, para além da experiência com o barroco mineiro, a obra de Guignard sofre viva influência dos anos de estudo na Europa em que pôde ver de perto tanto grandes obras clássicas como as modernas: da perspectiva de Da Vinci às “distorções” do Expressionismo Alemão de Munch.

Infelizmente, como acontece em tantas e tantas vezes, a obra deste excepcional artista só tem sido devidamente reconhecida nos últimos 25 anos. Mesmo artistas e críticos de seu tempo demoraram em degluti-lo e aceitar o caráter verdadeiramente moderno de sua obra, simplesmente por se fecharem em seus esquemas ideológico-valorativos parciais, não admitindo que outros modos criativos, outras formas e idéias pudessem caber no que “eles” haviam determinado e proclamado como “moderno no Brasil” – refiro-me especificamente aos chamados artistas, críticos e literários modernistas – logo “eles” que insistiram tanto em “libertar” as artes brasileiras das amarras formais dos  “modos parnasianos”: armaram outra “armadura” para quebrar a antiga…!

Um comentário de Marcos Rodrigues Aulicino em sua tese de doutorado utilizando-se de uma citação de Amilcar de Castro exemplifica e fundamenta a minha “crítica” da crítica moderna assim arriscada:

“Muitas vezes esta elaboração espacial de Guignard foi identificada com a autonomia da linguagem plástica alcançada pelo pintor, questão esta que problematizamos ao discutir a crítica dos anos 80 e 90 e a construção de um lugar “à margem” do modernismo oficial, reservada a este pintor, legitimando-o como verdadeiramente moderno, pois distante das filiações literárias. Em tal leitura algo da pintura de Guignard se perde, algo que está num conluio com a imaginação poética. Discutiremos nas paisagens “imaginantes” outras categorias interpretativas. ‘Olhar e ver a dança das cores  ritmo do mundo. Cor é emoção e pensamento descoberta e procura  certeza e espanto  fundamento e caminho.  E caminhar com as cores é testemunhar com o silêncio da luz. Cor não existe uma.  E muitas  quanto uma sustenta a outra  todas solidárias tramam intrigam  comprometem o tempo e o espaço no lugar  onde a beleza acabou de nascer verdade. E assim esse pintor poeta fundou.Ouro Preto em cor.  Grande Mestre (CASTRO, 1992, p.22-23).”

 A história deste grande artista foi permeada do início ao fim por tristes intervenções humanas que, qual tintas sombrias numa paisagem luminosa de verão, vão dando relevo e profundidade ao grande quadro que foi sua própria vida. Assim, se por um lado a vida imita a arte, não deixa de ser também verdade que a arte, mais do que a “imitação” da vida, é o fenômeno da sua recriação ou releitura pelo artista.

Por este prisma entendo estas mesmas tristes circunstâncias que a liberdade mal administrada de outros homens provocou na história de Guignard, como fatores decisivos para o seu amadurecimento pessoal e artístico – assim como o de sua obra como um todo – cunhando em sua personalidade – como também em sua obra – um caráter teimosamente autêntico e livre que em última instância fizeram dele o gênio incomparável, inovador e singularíssimo que foi.  Por outro lado, ainda, graças a este mergulho estilístico independente possibilitado por seu modo sereno e forte de enfrentar as contínuas adversidades,  é que sua obra, de tão singular que é, passa a ser também universal.

Guignard começou seu namoro com Minas bem antes de sua mudança para Belo Horizonte, conforme comenta Marcos Rodrigues Aulicino em sua tese de doutorado:

“Viajou para Minas Gerais em 1941, perfazendo o circuito modernista pelas cidades históricas, além de Paraná, interior do Rio de Janeiro e São Paulo, atendendo aos objetivos do prêmio. Em 39 já havia ido para Sabará e Ouro Preto, registrando uma série de paisagens da arquitetura colonial e o seu entorno. (AULICINO; Marcos Rodrigues, “O próximo distante, o distante próximo”, CAMPINAS, UNICAMP – IFCH – 2007)”.

Com a Exposição Moderna de 1944, talvez, pela primeira vez a produção de Belo Horizonte tenha conseguido alguma visibilidade fora das fronteiras de Minas Gerais. A partir deste momento  e principalmente nos governos municipais seguintes ao de Juscelino, Guignard passou a ser implacavelmente perseguido por seus opositores, liderados pelo arquiteto e desenhista Aníbal de Mattos, acadêmico, bem como pelos dois sucessores de Juscelino na prefeitura de Belo Horizonte, cujas visões e tendências em termos de apoio às artes eram também acadêmicas e tradicionalistas.  Quem relata com detalhes este período é o jornalista e escritor Frederico Morais, em seu livro Alberto da Veiga Guignard (Editora Monteiro Soares Editores e Livreiros,1979).

Carlos Zílio foi aluno do artista Iberê Camargo e hoje é artista plástico, pesquisador e crítico.  É pesquisador e estudioso da obra de Guignard, sob o foco de sua inserção no contexto da arte moderna como um todo, sem perder de vista as suas próprias especificidades técnicas e criativas, levando em conta as especificidades do ambiente intelectual e artístico da Capital Mineira, no qual estava profundamente imerso nos seus últmos 18 anos. Zílio afirma que o mais importante da obra de Guignard está na diluição da figura e do fundo provocando uma dissolução do espaço formal e das pessoas retratadas em seus quadros. Este autor está mais preocupado com as questões estéticas e territorializadas da arte em Guignard, do que, propriamente em questões de caráter biográfico.  Assim sendo nos oferece uma análise mais aprofundada de sua obra paisagística partindo do ponto de vista estético e sígnico no contexto da arte moderna brasileira.

Considerando-se que, do ponto de vista da sociologia, a arte é um sistema de comunicação inter-humana (ARAGÃO, Solange; Comunicante-comunicado-comunicando: método de estudo de obras de arte; II Encontro de História da Arte, IFCH-Unicamp, 27 a 29 de Março de 2006, Campinas, SP), artista, obra e público devem ser levados em conta e inter-relacionados entre si quando o objeto de estudo é qualquer um desses três elementos.

A história da Arte tem por premissa a importância de se transmitir e conservar a memória dos fenômenos artísticos com seus sujeitos e objetos, situando-os no contexto da civilização. Portanto, em seus estudos e investigações, interessa sobremodo o valor de um objeto artístico, não medido em cifras monetárias, mas enquanto objeto de significação e representação, que faz dele produto e mensagem ao mesmo tempo, remetendo-o diretamente à  sua origem e destino: o artista, espelho e síntese do homem de seu tempo. Interessa o valor do objeto artístico enquanto vestígio e reflexo do homem enquanto ser singular e universal que é; o homem histórico e antropológico.

Neste sentido a obra de Guignard, ainda tão pouco explorada por nossas instituições artísticas e educacionais, pode oferecer um novo prisma no que tange a uma identidade genuinamente brasileira (ainda que diversa e não excludente em relação a tantas outras manifestações artísticas nacionais) no painel artístico pictórico moderno nacional. Esta identidade, retratada nas imagens que reúnem o povo, as festas, a religiosidade e a paisagem montanhosa típica das regiões históricas de Minas, tem hoje o poder de lançar o “contemplador” num estado de aspiração ou desejo de um tempo-espaço que partindo daquele experimentado em tais lugares (Minas histórica/ Minas montanhosa) o transcende, à medida que se reconstrói idealmente na sua imaginação poética.

Mas… que importância teve Guignard  para o seu tempo? Que importância tem para o nosso, bem como às gerações futuras do nosso Brasil culturalmente despedaçado? Guignard tem para o homem de todos os tempos e especialmente para o homem brasileiro, a importância da direção para onde aponta o seu olhar contemplativo: o desejo do ser humano de plenitude, de harmonia com o meio, de felicidade; a importância da integração harmoniosa entre homem e paisagem, homem e contexto histórico social, homem e espiritualidade.

Por Iura Breyner Botelho – Pós graduação em História das Artes – Crítica e Teoria – FPA – Faculdade Paulista de Artes – 2012. Iura Breyner Botelho é colaboradora do IFE Campinas.