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Próximo Diálogos CCFT: “Logos and Christianism” (11/04, 14h00) com Gianfranco Basti (Ph.D.)

Diálogos CCFT | 07/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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A5-Dialogos-Abril-2014

Neste sábado, 11 de Abril às 14h00, haverá o próximo seminário dos Diálogos CCFT em parceria com o IFE CAMPINAS, cujo tema é “Logos and Christianism“, ministrado pelo Prof. Gianfranco Basti (Ph.D.), da Itália.

— Inscrições e mais informações neste link: http://bertato.wix.com/ccft

Lembramos que universitários têm desconto: peçam desconto na hora da inscrição.

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RESENHA: “A solidão dos realistas” [René Girard e Lucien Febvre] – por Martim Vasques da Cunha

Filosofia | 07/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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OProblemaDaIncredulidade-Lucien Febvre CoisasOcultas-Girard

Dados técnicos: René Girard. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. Tradução de Martha Gambini. Paz & Terra, 511 pp.; Lucien Febvre. O problema da incredulidade no século XIV – A religião de Rabelais. Tradução de Maria Lúcia Machado. Companhia das Letras, 513 pp.

Ah, a França. O que dizer deste país? O que ele nos deu? Como contribuiu para o tesouro da humanidade? Sabemos nos últimos meses que, pelo mundo da cultura nacional, se comemora o tal do “Ano da França”, uma forma de recordar o evento da Revolução Francesa, que pregava liberdade, fraternidade, igualdade e madame Guillotine. Mas a França também nos deu croissants, bistrôs, Godard, Truffaut, Rohmer, Bresson (o Henri-Cartier e o Robert), Emmanuelle Béart, Sophie Marceau – além de, claro, René Girard e Lucien Febvre.

Quel? Os dois últimos tiveram livros importantes publicados no Brasil – livros que, de certa maneira, mostraram uma nova forma de pensar em seus respectivos campos de conhecimento: a antropologia e a história.

Girard já é um velho conhecido da casa. Teórico do desejo mimético, em que descobrimos que não desejamos por nós mesmos e sim porque imitamos os desejos dos outros, i.e., de quem admiramos, invejamos, nos apaixonamos etc., ele começou como crítico literário de primeira categoria (com Mensonge romantique et verité romanesque, de 1962), partiu para os estudos antropológicos com o assustador A violência e o sagrado (1972) e, ao sintetizar as duas linhas de trabalho, adentrou a densa selva da hermenêutica bíblica. Em especial a do Novo Testamento, com descobertas surpreendentes sobre como a vinda de Cristo seria a revelação não só de Deus encarnado na Terra como também de toda a matriz de violência da cultura humana – as tais Coisas ocultas desde a fundação do mundo, título do livro de entrevistas que é publicado agora pela Paz & Terra e que, quando lançado na França em 1977, deu notoriedade ao pensamento girardiano.

Lucien Febvre é, junto com o historiador Marc Bloch, um dos pais dos Annales, a escola que mudou o paradigma da pesquisa historiográfica no Ocidente. Seus sucessores provam que a fórmula deu certo. Desde Fernand Braudel, que passou pelas plagas da Rive Gauche du Tietê (a conhecida USP), passando por Jacques LeGoff, até o nosso Sérgio Buarque de Holanda (especialmente em Visão do Paraíso), os Annales – o nome do grupo vem da criação, em 1929, de uma revista chamada Annales d’histoire économique et sociale – formaram uma nova perspectiva que vê a história não mais como uma sucessão de fatos dentro de um molde teórico pré-estabelecido, e sim como uma “história-problema”, que não admite soluções fáceis e que, sobretudo, abre outras possibilidades para compreender o presente do próprio historiador. O livro que resume todas essas tendências e as leva à perfeição – mas também ao seu impasse, como veremos a seguir – é O problema da incredulidade no século XVI – A religião de Rabelais (1948), e foi publicado com cinqüenta anos de atraso, em uma ação inusitada da Companhia das Letras, editora acostumada a lançar somente obras de quem está no hype internacional.

O que os dois livros têm em comum é o fato de que ambos os autores tentam, cada um a seu modo, lançar as novas bases para uma pesquisa que analise o fenômeno religioso fora de qualquer padrão dogmático ou institucional. Sem o saberem, fazem parte daquele seleto grupo que Eric Voegelin, em seu History of Political Ideas, chama de realistas espirituais. Trata-se de uma “tradição” subterrânea, que começa aproximadamente com Dante Alighieri e se estende até sujeitos díspares e heterodoxos como Thomas Hobbes, Jean Bodin, Blaise Pascal, Mestre Eckhart, chegando até Nietzsche, Kierkegaard, Dostoiévski e, nos últimos tempos, Alexander Soljenítsin. Descontentes com as instituições políticas e culturais que os circundam, estes realistas se distanciam intelectualmente delas e começam a observar o real além do pequeno “mundo simbólico” (cosmion) criado pelas circunstâncias, descobrindo outras formas de expressão que, muitas vezes, desagradam às mesmas pessoas que não estão preparadas, seja por ignorância, medo ou interesse, para ouvi-los de alguma forma.

Numa comparação entre Girard e Febvre, sem dúvida o primeiro ganha em termos de ousadia. Não por qualquer desrespeito religioso – pelo contrário, Girard mostra um verdadeiro temor e tremor quando toca nos assuntos do sagrado –, mas sim porque ele não tem medo de abordar a revelação do Evangelho até as últimas conseqüências – em especial, as conseqüências em relação ao comportamento humano. Antes disso, porém, Girard faz questão de mostrar suas descobertas dentro de uma moldura aparentemente racional e científica – uma forma de despistar os incautos e tirar sarro de seus companheiros de trabalho. Assim, Coisas ocultas desde a fundação do mundo é dividido em três partes distintas que se comunicam ironicamente entre si por terem um respectivo rival mimético. Na primeira parte, Antropologia Fundamental, temos Girard a brigar com Lévi-Strauss e seus epígonos, querendo provar a qualquer custo que os antropólogos não conseguem perceber o assassinato fundador que origina toda a cultura humana. Consegue o feito? Mais ou menos: Girard parece esconder o jogo para seus interlocutores (os psicanalistas Jean-Michel Oughourlian e Guy Lefort) e, entre uma crítica e outra, o livro simplesmente pára no ritmo de leitura, deixando o leitor sem saber se deve continuar ou não. Deve sim, pois a bomba será jogada na segunda parte, A Escritura Judaico-Cristã, onde Girard lança as bases de sua interpretação mimética do Novo Testamento – ou melhor, segundo ele, são os próprios Evangelhos que revelam isto. Para o francês, a vinda de Cristo denuncia o mecanismo mimético do mundo da violência, i.e., o nosso próprio mundo, e o resolve através da renúncia a qualquer espécie de ação que interfira na vontade de Deus: a de se mostrar como um poder que recusa a manutenção do desejo e que não é responsável por qualquer ato que o homem possa cometer contra si mesmo. Deus não tem culpa de nada; o ser humano mata porque quer esquecer que mata.

A tal “bomba” é a visão que Girard tem sobre o Cristianismo histórico, considerado por ele como uma versão deturpada de algo que, na falta de nome melhor, é chamado de “Cristianismo sacrifical”. De acordo com a sua leitura dos Evangelhos, a paixão de Cristo não teria sido um sacrifício. Jesus teria de morrer de qualquer maneira porque se continuasse a viver neste mundo (o da violência onde vivemos), seria obrigado a praticar algum ato terrível para permanecer nele. Contudo, antes que o leitor se apresse em julgar o raciocínio e chamá-lo logo de “herético”, devemos lembrá-lo que o termo “sacrifício” tem um sentido peculiar na obra de Girard; para ele, “sacrifício” é o resultado chocante do mecanismo mimético, o momento em que as disputas que destroem a sociedade chegam a um ápice que só será resolvido através da morte de um inocente – o “bode expiatório”. Dessa forma, como Cristo não é um “bode”, pois Ele é a única vítima na história humana que tinha plena consciência de seus atos, a Paixão não pode ser considerada um “sacrifício” lato sensu, simplesmente porque era a sua função, conforme a vontade do Pai, denunciar a violência da qual se funda a cultura do homem. (Para o alívio de muitos, Girard consideraria uma outra forma de ver a morte de Jesus como um “sacrifício diferenciado”, em um livro publicado anos depois, Um longo argumento do princípio ao fim. Uma maneira elegante de não deixar Jesus ser apenas uma peça de sua grande teoria sobre a antropologia mimética).

Estas breves pinceladas dão mostra de como Girard não tem medo do risco e da polêmica – características que são extrapoladas na terceira parte, Psicologia Interdividual, uma divertida discussão sobre o desejo moderno, obviamente usando Freud como contraponto. Aqui, o desejo tem uma estratégia própria, uma autonomia de estar sempre dois passos à frente do sujeito, e assim toma as mais diferentes formas, como hipnose, possessão, homossexualismo, sado-masoquismo, inveja – enfim, atitudes que são incentivadas pelos intelectuais pós-modernos e que marcam o cotidiano do nosso mundo contaminado de mimetismo.

Lucien Febvre não conhecia o desejo mimético de René Girard, mas ele começa o seu tratado sobre a religião de Rabelais com uma descrição deliciosa de como era o ambiente intelectual dos humanistas franceses do século XVI, repleto de rivalidades e de acusações mútuas. É claro que, antes de tudo, Febvre tem uma missão: a de provar que os grandes estudiosos da obra de François Rabelais, o autor de Gargântua e Pantagruel (1532-1554), em especial Abel Lefranc e Louis Thuasne, estavam errados ao anunciarem que o grande escritor da França era, afinal, um “ateu”. Consegue?

Chegou quase lá. A primeira parte de O problema da incredulidade é uma prova da força do método dos Annales: através de cartas, documentos, poemas, tratados médicos, sátiras, Febvre cruza os dados e chega à seguinte conclusão – a de que Rabelais nunca poderia ser ateu. E por dois motivos: o primeiro é que o grande escritor estava muito além do seu tempo e o segundo é que Rabelais, paradoxalmente, era uma amostra perfeita da devoção humanista que marcou aquela época de transição entre o fim da Idade Média e o início do Renascimento.

É na segunda parte do livro, quando Febvre mostra o contexto histórico, que as coisas começam a derrapar. Descobrimos que a pesquisa foi feita não para reabilitar Rabelais por si mesmo, mas sim para recolocar Erasmo de Roterdã, o autor de Elogio da loucura (1515) e grande amigo de Thomas More, no seu devido lugar de glória. Febvre é um admirador de Erasmo e, mais, identifica-se com suas posições humanistas sobre a religião. Considera-a como um fato que deve ser defendido na liberdade individual; e que Cristo não é uma pessoa com quem se possa estabelecer uma relação e sim uma simples filosofia do viver. Ora, Rabelais, que gostava do exagero das descrições e do corpo, podia se identificar com algumas dessas idéias; mas será que a sua grandeza literária se iguala a de Erasmo, o primeiro dos intelectuais ocidentais, um epígono que, por odiar os escolásticos em decadência, achava que toda a filosofia anterior, composta por gigantes então já reconhecidos como São Tomás, Santo Alberto Magno e Duns Scott era farinha do mesmo saco?

É claro que não. Erasmo é o fundador daquilo que Paul Johnson chama de “Terceira Força”, aparentemente imparcial em relação aos radicalismos da Reforma Protestante e da Contra-Reforma, mas que, no fundo, transforma-se também em um outro radicalismo, até mais perigoso, porque camuflado nas vestes da “tolerância” e da “pluralidade”. Febvre cai nessa armadilha direitinho – e o que temos é um livro que, apesar de ter a palavra “problema” no seu título, não o apresenta de forma alguma. Afinal, se, como o historiador afirma, a questão do século XVI era “crer ou não crer”, e a resposta é simplesmente a primeira opção, onde estaria o problema? Além disso, como afirmar que não existia a “incredulidade”? Antes do século XVI, Santo Anselmo e São Tomás já discorriam sobre o stultus, o estulto, o néscio, o insensato que, segundo o salmo 52, dizia em seu coração que Deus não existia e, por isso, fechava-se a toda e qualquer realidade transcendente. Isso não seria a atitude de um “incrédulo”? Eis o nó górdio de qualquer historiador que siga o método dos Annales: ele só se preocupa com o “impacto social” de uma idéia, não com o fato de que a tal idéia – no caso, a incredulidade – já poderia existir no íntimo de uma pessoa. A reverberação em massa da “não-crença” (que, muito tempo depois, chamaríamos de “ateísmo”) no tecido da sociedade ocidental aconteceria somente nos séculos XVIII e XIX, com o impacto da Revolução Francesa e o surgimento das ideologias positivistas e coletivistas.

Enfim, esta é a solidão dos realistas que tentam olhar além das paróquias do espírito. De um lado, René Girard que, enfrentando um grande risco, faz observações corretas sobre o mundo moderno, mas também pode cair na arapuca de ver tudo conforme a teoria do desejo mimético – inclusive o próprio Jesus Cristo. Do outro, Lucien Febvre, que resolve enquadrar um dos maiores escritores franceses na gavetinha particular desta peça de museu que se tornou Erasmo de Roterdã. O que fazer? Dançar um tango argentino? Talvez, mas, no caso desta resenha, prefiro beber uma boa taça de vinho e gritar a plenos pulmões: Vive la France!

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, mestre em Filosofia da Religião pela PUC-SP, doutorando em Filosofia pela USP e autor, entre outros, do livro Crise e Utopia: O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, Campinas, 2012).

Resenha publicada originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 4, Dez/2009. Disponível [online] neste link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-4/livros/

Imagens: reprodução das capas do livros da resenha.

Walt nos Bastidores de Mary Poppins: Educar com experiências inesquecíveis (por Pablo González Blasco)

Cinema | 02/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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“Saving Mr. Banks” (2013). Diretor: John Lee Hancock. Emma Thompson, Tom Hanks, Colin Farrell, Paul Giamatti, Jason Schwartzman, Bradley Whitford, Annie Rose Buckley, Ruth Wilson 125 min.

saving_mr_banks     Assisti o filme, faz já alguns meses. Fascinou-me. Ainda sob o impacto das emoções, mandei uma mensagem para os meu irmãos, que moram na Europa. “Um filme encantador. Para os que éramos crianças nos anos 60. Um despertador de vivências”. Recebi reposta, quase imediata, de um deles: “A tua sobrinha foi assistir ontem com as amigas –todas na casa dos 20 anos- e adorou”.

Lembrei da teoria do meu pai –muitas vezes comprovada na prática – de que há filmes, ou melhor, trilhas sonoras, que encantam as crianças (com perdão da minha sobrinha) mesmo que nunca o tenham visto antes. De fato, quando os primeiros netos chegaram e ele tinha, vez por outra, que ficar de babá junto com a minha mãe, colocava-lhes o CD de “The Sound of Music” (A Noviça Rebelde)…. e as crianças sorriam placidamente, ficavam calmas, serenas. Aproveitando o ensinamento, eu mesmo ofereci de presente –nessas festas de aniversário de um ano, que nunca sei o que dar, sempre é um dilema- não a música, mas o filme em DVD. Não uma vez, várias, muitas até. E parece –pelo retorno que tenho- que a estratégia continua funcionando.

saving_mr_bansk_1     Mr. Banks não é a Noviça Rebelde, mas o outro musical que a Julie Andrews estreou na década de 60: “Mary Poppins”. Ou melhor, como o título anuncia, os bastidores do filme, a gestação desse grande sucesso infantil….que seduz aos adultos. Faltou-me tempo, depois de ver o filme, de buscar e assistir novamente Mary Poppins. Conhecer as entrelinhas, e a difícil negociação de Walt Disney para que a escritora australiana lhe vendesse os direitos da encantadora babá mágica –foram 20 longos anos- fez me pensar que, quando assisti por primeira vez com 9 anos, não tinha captado o recado principal. Na verdade, captei o que interessava naquele momento. A música que grudava na memória, os limpadores de chaminés dançando, os remédios que provocavam levitações desafiando a lei da gravidade, e o sorriso impactante de Mary Poppins que tinha soluções para tudo. Soluções que tirava de uma bolsa peculiar, elástica como o coração de uma mãe, onde se encontravam todos os recursos para as necessidades próprias e as alheias.

Seria possível alinhavar alguns comentários sobre o filme, e os motivos que levaram P. Travis a criar Mary Poppins, como expediente para reconciliar-se com os seus fantasmas da infância. Fantasmas que não são exclusivos, porque Walt Disney tinha também os dele. Em ambos os casos, a arte –a escrita, a criação- é o remédio, o modo de entender. E isto sim, já é um bom recado para os nossos desassossegos. Quando escrevemos e damos vazão ao mundo interior na criação artística –que pode ser própria, ou emprestada de outros que têm reconhecido talento- chegamos a compreender as vivências que nos rodeiam. Conversamos com nossas emoções –alegrias, frustrações, expectativas, desânimos- quando as tornamos explícitas. E desse modo nos conhecemos, nos construímos, curamos as chagas da alma. “Nós contamos histórias –diz a personagem de Walt Disney- é isso que fazemos”. O que poderia interpretar-se como: nos arrumamos a nós mesmos através das histórias que contamos.

saving_mr_banks_2     Nosso mundo é rápido, frenético, em tempo real. Não temos tempo para nada, e não parece que queiramos mudar o panorama. Carecemos de serenidade para escrever –aqueles saudosos diários das nossas avós!- , para saborear as próprias emoções, degustando-as da mão da arte, domesticando-as ao ritmo sereno da reflexão que decanta em palavras. “Para que poetas em tempo de indigência?” –exclamava Holderlin. Sempre que tropeço com esta frase, pergunto-me se a indigência não será justamente a causa da falta de poesia, e não o empecilho para que os poetas floresçam.

Mas a verdade é que a proposta do filme não é um convite a grandes mergulhos psicológicos. Melhor é relaxar e se dispor a assistir um agradabilíssimo espetáculo de duas horas, num mano-a-mano sublime: uma Emma Thompson extraordinária e Tom Hanks que incarna Walt Disney com perfeição. Tive ocasião de assistir novamente com um grupo de amigos, algumas semanas depois. Afinal, promovi-o tanto, que era necessário estar presente na sessão conjunta. Sem reflexões psicológicas mas, novamente, experimentando o despertar das vivências, agora alavancadas pelos comentários e pela satisfação que pude comprovar à minha volta.

saving_mr_banks_3     São vivências que surgem ao compasso das canções que cantarolávamos quando criança. No colégio, entre os amigos, ou na família, muitas vezes lideradas pela minha mãe que tinha uma linda voz de soprano. Naquela época, me dizia muito mais a melodia do Chim Chimney ou doSupercalifragilisticexpialidocious do que Madama Butterfly ou La Boheme. Mesmo assim, tomei nota pois imaginei que o tal de Puccini era uma personagem importante….como vim comprovar e apreciar, muitíssimo, anos depois.

Aquilo que se planta na infância, dura sempre. Floresce com o tempo, no decorrer da vida que encadeia os acontecimentos e nos faz evocar as raízes. E daqui brota a reflexão mais séria que o filme me acendeu: o que vão evocar os que não tiveram infância, ou passaram por ela sem cultivá-la? Entendemos que quem cultiva a infância nunca é o interessado mas aqueles que lhe nutrem e educam. Pais, professores, familiares, vizinhos. O tempo de indigência que não permite poetas, converte-se hoje na indigência de tempo: ninguém tem tempo para nada, muito menos para os outros, para cultivar pessoas, tarefa artesanal que requer paciência de ourives.

saving_mr_banks_5     A minha inevitável relação com o mundo da educação tem me levado a frequentar as leituras nessa área. Não lembro exatamente onde –provavelmente em mais de um autor- deparei-me com uma consideração relevante para o tema que nos ocupa. Somente o ser humano tem infância. Os outros animais, depois que são desmamados e ganham independência dos progenitores, estão já prontos para se reproduzirem. O ser humano dispõe de um longo período – a infância- antes de tornar-se apto para ser pai ou mãe. São anos de crescimento biológico, psicológico, afetivo. E também intelectual e moral. Mas, são, sobre tudo, anos de acumular vivências, de aprofundar raízes. Não há dúvida de que o desenvolvimento intelectual e de aptidões tem se fomentado muito. O déficit –pela aparente indigência de tempo que leva a um investimento equivocado de recursos- recai sobre o capítulo das vivências.

As crianças se beneficiam de modernos métodos de ensino, aprendem várias línguas, meia dúzia de esportes, um sem fim de atividades paralelas, ocupadíssimos como um executivo mirim que cursa vários MBA, preparando-se para uma vida….que não está vivendo…e que talvez venha a viver algum dia, mas sem raízes. Vale lembrar que o alemão Froebel, inventor do Kindergarten (jardim da infância), tinha em mente justamente o contrário: colocar, literalmente, cada criança num pedaço de jardim para que o cultive. O objetivo não é aprender a ler, a escrever, e ser um poliglota. Trata-se de entrar em contato com a natureza, o que implica cultivar a terra, caçar insetos, sujar-se de lama, ver as nuvens no céu. É preciso dar tempo ao tempo, sem a ansiedade de acelerar o curriculum, entulhando conhecimentos.

Uma vida cabal se consegue vivendo com plenitude e apropriadamente cada etapa da vida: sem atalhos que acabarão rendendo problemas posteriores. Não se estica a criança para que cresça: nem física, nem intelectualmente. Este último aspecto está um pouco abafado por uma má entendida educação precoce. Os homens tem um período de latência, grande, longo: a infância. Não se pode encurtar esse tempo –que é onde se descobre o mundo- sem pagar as consequências. Vivências, experiências compartilhadas com os formadores, desenvolver a capacidade de contemplar, de surpreender-se. Enfim, uma educação estética, artística, vital.

saving_mr_banks_4     O progresso tecnológico –que traz inegáveis benefícios- entranha também sérios riscos quando não se ensina a usá-lo convenientemente. Vem à minha cabeça a compulsão fotográfica. Todo o mundo faz fotos de tudo, a toda hora. Nos locais turísticos, nas filas que entopem os museus, nas paisagens de consagrada beleza, e até no quotidiano catalisado pelo festival visual que oferece o Facebook. O registro fotográfico sempre foi uma tentativa de congelar uma vivência, um momento que merece ser registrado porque carrega um sem fim de lembranças, de emoções, de carinho comum. Dai a foto, uma tentativa de eternizar o contingente. Hoje porém, é tanta a sofreguidão com que se dispara a câmara embutida no celular –e maior a rapidez em deletar a imagem que não ficou boa- que mal se encontra espaço para viver o momento. Quer dizer: registram-se momentos não vividos, ou vive-se para registrar o vazio. Guardam-se as fotos –que dificilmente se contemplam- mas ninguém armazena as vivências….simplesmente porque elas não aconteceram. As muitas fotos impedem as pessoas de viver o momento. São as árvores que não deixam ver o bosque. É aquela música que cantava o Julio Iglesias: “ de tanto correr pela vida, me esqueci de viver”.

Indigência de tempo, que impede a educação pausada, artesanal, o compartilhar as vivências. Indigência de vivências que se supre, erradamente, com toneladas de fotos, com ótima resolução em megapixels mas desbotadas de vitalismo. Indigência de poesia, de arte, que decanta na miséria que todo ser humano carrega.

Educar –diz outro dos autores que frequento nas minha leituras- é proporcionar experiências inesquecíveis. Eu, felizmente, tive muitas na infância e sou imensamente grato por isso. Tanto que deixei plasmada a minha gratidão por escrito várias vezes. Lembro, por exemplo, de um breve capitulo de um livro, que intitulei: filme-família, uma festa a ser reconquistada.

Neste momento tenho o livro diante e copio, porque é difícil dar o recado com menos palavras: “Começa o filme. Mamãe já falou tanto deste filme…É, porque o filme-família nunca é desconhecido para todos. Sempre alguém já o viu – faz muitos anos!!, diz- e o recomenda porque…bem, porque é bonito, é ótimo. Não sabe dizer por que é bonito; lembra da sensação que teve quando assistiu. Será parecida com a nossa que o vemos por primeira vez? Não, não é. São o entorno, os sentimentos, as expectativas, o filme enfim, que se gravam fotograficamente no álbum das lembranças entranháveis e que o tempo realça, sem amarelá-las, tornando-as gigantes. O tempo é um ampliador genial das emoções. O filme-família é isso, o evento que marca, que se registra nos sentimentos, que pede “replay”… quando os anos passam. Mas “replay” familiar; se não, perde o encanto. Não se revê um filme-família a modo de lembrança pessoal, para mim. Há que revê-lo para os outros, com os outros. As sensações dos outros -da família- despertam em nós as vibrações antigas do evento de outrora”

Os bastidores de Mary Poppins levaram-me até os meus próprios bastidores, as experiências inesquecíveis. Um privilégio que desejo a muitos. Um desafio para os que têm de educar as mulheres e os homens que conduzirão o nosso mundo nas próximas décadas. Se tiverem bastidores com experiências inesquecíveis, podemos ter a esperança de que o mundo será melhor do que este que nos toca viver.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2014/07/24/walt-nos-bastidores-de-mary-poppins-educar-com-experiencias-inesqueciveis/

Professor por opção (por Fabio Florence¹ e Guilherme Melo de Freitas²)

Educação | 31/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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800px-Math_lecture_at_TKK_LOUSA-byTungstenJá dizia a piada: “Qual a diferença entre um professor e um palhaço?” A resposta é taxativa: “É que o palhaço não corrige provas!”.

Além dessas tiradas de humor – que, diga-se de passagem, são bastante engraçadas! -, o sujeito que se vê na situação de professor, cedo ou tarde, irá se deparar com a clássica pergunta: “Você trabalha ou só dá aulas?”.

Por essas e outras, fica patente que a profissão de professor não é valorizada atualmente.

Nesse sentido, não surpreende que grande parte dos docentes não exerça seu ofício devido uma escolha, mas sim porque as circunstâncias da vida o conduziram – a despeito dele – a tal profissão: “na falta de coisa melhor”, começa-se dando umas aulas para completar a renda; o tempo é preenchido, aparecem mais aulas, e, após alguns anos, já não é mais possível se inserir em outra área. Ou, tendo se aposentado, passado por uma frustração profissional, a pessoa enxerga como única alternativa dar algumas aulas, “para não ficar parada”, enfim, para “ganhar um dinheirinho”…

Diante desse panorama, é difícil encontrar sujeitos que tenham optado voluntariamente pela carreira de docente. Mesmo assim, apesar dos pesares, ainda existem jovens que, tendo o futuro pela frente, e diferentes possibilidades em vista, decidem – em sã consciência! – trilhar sua trajetória profissional na sala de aula.

A pergunta que surge é: por que fazem isso?

Certamente, a motivação não é financeira: afinal, no nosso país, quem decide ser professor – salvo as exceções que confirmam a regra – tem clareza sobre as dificuldades econômicas que terá que enfrentar.

Também não é uma motivação relacionada ao prestígio. O “orgulho de ser docente” não anda em moda na atualidade – isto é, não há “admiração social” pela profissão, como existia há algumas décadas atrás, o que fornecia um considerável status àqueles que se dedicavam ao ensino.

Descrevendo esse cenário, lembramos uma dessas “dinâmicas de planejamento do ano escolar”, quando o coordenador pediu que os professores pensassem em uma música que pudesse ilustrar bem o momento em que alguém decide seguir a profissão de docente. Um dos presentes não titubeou e soltou imediatamente um antigo sucesso de Raulzito: “Eu vou ficar… Ficar, com certeza, maluco beleza!”

Afinal, cabe perguntar: jovens que decidem voluntariamente ser professores não seriam uns “loucos”, “pessoas esquisitas”, “perdidas na vida”?

E aqui respondemos: definitivamente, não! É possível sim optar razoavelmente pela docência. E, na maioria das vezes, a motivação para essa escolha está ligada a dois tipos de experiências vitais.

A primeira é a de quem já teve a oportunidade de ensinar. Um exemplo é um universitário que cursava química e desistiu de trabalhar em empresas, depois de dar uma aula e ouvir de um aluno a “frase mágica”: “Ah, agora entendi!”. Essa alegria que brota da experiência de ensinar outra pessoa é um primeiro fator de motivação para a opção pela docência.

A outra experiência vital está relacionada ao fato de se ter aprendido algo valioso. Só deseja realmente ensinar quem aprendeu algo que vale a pena ser transmitido. E, nesse aspecto, temos muita carência: afinal, infelizmente, não são comuns os professores que gostam de estudar, e que demonstram um sincero fascínio por aquilo que ensinam. Talvez, se houvesse mais esses “apaixonados”, também haveria muitos outros jovens que se inspirariam com a profissão de docente.

Como diria de modo lapidar o pensador Étienne Gilson: “A educação é uma conseqüência derivada da busca desinteressada de tudo aquilo que deveria ser desejado e amado por si mesmo. Se um ser humano busca a beleza para ‘adquirir educação’, perderá tanto a beleza como a educação, mas se busca contemplar a beleza por si mesma, alcançará tanto a beleza como a educação. Buscai primeiro a verdade e a beleza, e a educação lhe será dada por acréscimo”.

Fabio Florence¹ e Guilherme Melo de Freitas²

¹ (florenceunicamp@gmail.com), 29 anos, mestre pela Unicamp, professor de filosofia do Colégio Etapa.

² (gmelo.freitas@gmail.com), 27 anos, mestre pela USP, professor de sociologia da Escola Estadual Prof. João Lourenço Rodrigues.

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, 18/04/2014, Página A2 – Opinião.

Imagem: Lousa quádrupla na Helsinki University of Technology, 2005. Foto em domínio público disponível neste link.

 

Dom Quixote e a superação da melancolia (por Renato José de Moraes)

Literatura | 26/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha é um clássico autêntico. Segundo as sempre discutíveis normas de “leituras obrigatórias para se chamar culto”, a obra de Cervantes costuma estar entre as primeiras leituras exigidas. No entanto, referir-se a uma “obrigação de ler” quando falamos do Quixote soa estranho, pois fruir do livro de Cervantes é antes um enorme prazer, uma autêntica dádiva! O mesmo não acontece com a maioria dos livros chamados “canônicos”, muitos dos quais têm o dom de enfadar e afastar da leitura as vítimas que se julgam obrigadas a enfrentá-los (não vamos citar exemplos, para evitar ferir suscetibilidades…).

Cabe então perguntar: por que Dom Quixote é um livro tão bom? Qual a razão de ser sempre contemporâneo a nós, muito mais do que a quase totalidade dos livros recém-lançados? Como Cervantes tornou a sua criação um dos livros mais importantes e deliciosos de todos os tempos?

Responder a essa pergunta não é fácil. A apreciação da grande arte dificilmente pode ser traduzida em palavras ou raciocínios. Antes, experimentamos que algo é grandioso e excepcional, mas não sabemos explicar exatamente o porquê. Há um mistério da arte, que tocamos de maneira especial ao examinar um livro como Dom Quixote. Apesar dessa dificuldade, vamos tentar traçar algumas considerações que nos ajudem a desfrutar dessa leitura, ao mesmo tempo em que buscamos desvendar parte desse mistério próprio da arte.

Comecemos com a vida de Cervantes. Sua personalidade formou-se em um ambiente peculiar – a Espanha do final do século XVI e início do século XVII -, durante uma vida cheia de percalços e aventuras, elementos todos que se refletirão em sua obra. Assim, é importante conhecer algo da vida do criador, de modo especial os eventos marcantes, que nos esclarecerão aspectos do seu livro.

Miguel de Cervantes y Saavedra nasceu, provavelmente, em 29 de setembro de 1547, em Alcalá de Henares, uma cidade de Castela. Sua família não tinha lá muitos meios econômicos, e seu pai, um modesto cirurgião, chegou a ser preso por dívidas. Em 1569, publicou a sua primeira poesia, e nesse mesmo ano foi para a Itália, fugindo por haver ferido em duelo um fidalgo (embora não seja certa essa atribuição, pois há quem argumente que se trataria de um homônimo).

Pouco depois, em 7 de outubro de 1571, participou da batalha naval de Lepanto, destacando-se pelo heroísmo. Nesse evento singular, por ele mesmo descrito como “a mais alta ocasião que viram os séculos passados, os presentes, e que não esperam ver os vindouros”, teve a mão ferida em combate.

Em 1575, quando voltava para a Espanha, seu barco foi capturado por corsários turcos, que o levaram cativo para Argel, onde passaria cinco anos. Neste período, tentou fugir quatro vezes, sempre levando seus companheiros; capturado todas as vezes, sempre assumiu diante das autoridades turcas a responsabilidade pelas tentativas de fuga. Decidiu-se deportá-lo para Constantinopla, de onde a fuga seria impossível. No dia 19 de setembro de 1580, quando já estava no navio “com duas correntes e um grilhão”, dois padres trinitários trouxeram a quantia exigida pelo seu resgate e o libertaram.

Ao voltar à Espanha, Cervantes relacionou-se com uma mulher casada, com a qual teve uma filha, Isabel. Em 1584, casa-se com Catalina de Salazar y Palacios, jovem de 22 anos. No ano seguinte, publicou La Galatea, uma novela pastoril. Durante esses anos, trabalhou como provedor de mantimentos para as galeras reais, e foi acusado – tudo indica que injustamente – de haver vendido trigo sem autorização, o que acarretou em sua primeira prisão, em 1592. Seria preso novamente em 1597, por não pagamento de dívidas, em conseqüência da quebra do banqueiro junto ao qual depositara quantias relacionadas com o seu trabalho. Foi nesses três meses de cárcere que começou a escrever o Don Quijote de la Mancha

A primeira parte deste livro foi publicada em 1604, e seu sucesso foi grande e imediato; no entanto, não acabaram aí as dificuldades na vida do nosso herói. Em 1605, uma pessoa foi morta em frente à sua casa em Valladolid, e esse fato levou-o novamente à prisão por uns poucos dias, sendo depois comprovada a sua inocência. E não faltaram falatórios suspicazes sobre a moralidade do seu lar, no qual também moravam as suas irmãs.

A partir de 1613, impulsionados pelo sucesso de Dom Quixote, foram publicados outros livros de Cervantes, sendo o último o já póstumo Persiles y Segismunda (1617). O êxito literário que encontrou junto ao público não trouxe consigo o reconhecimento das suas excepcionais qualidades de escritor pelos seus “colegas de profissão” (afinal, dizem que “é a inveja que move o mundo”…). Numa época em que os livros eram caros e os direitos autorais oscilavam entre míseros e inexistentes, a remuneração de um autor dependia essencialmente de mecenas, a que tinha acesso por meio dos seus pares; e o resultado foi que Cervantes encontrou na miséria uma companheira constante dos seus anos.

Morreu em Madri, em 22 de abril de 1616, e foi enterrado em um convento de freiras trinitárias, entre as quais talvez estivesse a sua filha Isabel de Saavedra. As monjas mudaram-se pouco depois para outro convento, e com isso perdeu-se o rastro do seu túmulo. Por isso, não é possível hoje identificar os seus restos.

Esses poucos dados da vida de Cervantes servem para mostrar um aspecto um tanto surpreendente: a antítese entre uma existência cheia de desilusões e dificuldades, e uma obra com um fundo alegre e otimista.

Realmente, Cervantes nada tem de atormentado, mas mostra-se alguém que cresce diante das dificuldades sem se deixar abater por elas. Mais ainda, parece que o sofrimento torna o seu humor mais aguçado e verdadeiro, porque não esquecia a realidade da aflição e da desgraça. Em certo sentido, podemos aplicar a ele os versos de Manuel Bandeira, tão distantes do modo de pensar hedonista e burguês:

Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

Nesse mesmo sentido, impressiona a serenidade com que escreve sobre a morte que se avizinha, em uma dedicatória na qual cita uns versos então bem conhecidos:

Puesto ya el pie en el estribo,
con las ansias de la muerte,
gran señor, ésta te escribo.

“Ontem deram-me a extrema-unção, e hoje escrevo esta; o tempo é breve, as ânsias crescem, as esperanças mínguam, e com tudo isso levo a vida com o desejo que tenho de viver […]. Mas se está decretado que tenha de a perder, cumpra-se a vontade dos céus”.

Um livro como o Dom Quixote só podia ser produzido por alguém com essa têmpera. As dificuldades da vida não foram capazes de criar nele o desespero ou a amargura – tão característicos de uma época de vitalidade mais frágil, como a nossa -, mas serviram de fundamento para uma construção artística otimista e admirável. Penso que a maioria de nós, se tivéssemos passado pela metade do que sofreu Cervantes, se encerraria provavelmente em um quarto escuro, remoendo as próprias amarguras e refletindo sobre como o mundo é injusto e como todos são infelizes. Já o nosso autor relevou – melhor ainda, assimilou – tudo isso e o plasmou no Quixote.

Por mais interpretações negativas que se tenham formulado sobre esta obra (“sublimação do fracasso”, “sarcasmo amargo”), por mais que tenham tentado descobrir nela amargura e supostas “tragédias”, o Dom Quixote é inegavelmente um livro humorístico, e mais, de um humor leve e amável. Essa opinião, sustentada por Martín de Riquer no admirável estudo Cervantes y el “Quijote”, também encontra guarida no Prólogo do livro, em que Cervantes põe na boca de um amigo imaginário estas palavras:

“Procurai também que, ao ler vossa história, o melancólico seja movido ao riso, o risonho ria mais, o simples não se canse, o discreto se admire da imaginação, o grave não a despreze e o prudente não a deixe de louvar”.

 

Não há dúvida que Cervantes foi bem sucedido ao seguir esse conselho, pois “quem não ri ao ler o Dom Quixote, ou não entendeu o romance, ou não possui a capacidade de rir” (Martín de Riquer).

Esse humor surge já da finalidade primeira do livro, que é “derribar a máquina mal-fundada dos livros de cavalaria, detestados por tantos e louvados por muitos mais” (Prólogo). Os romances de cavalaria – os best-sellers da época – enchiam a cabeça dos leitores com narrativas inverossímeis e de baixa qualidade artística. Foi o que aconteceu com Dom Quixote, que

 

“enfrascou-se tanto na sua leitura que passava as noites lendo de claro em claro, e os dias de turvo em turvo; e assim, do pouco dormir e do muito ler, secou-se-lhe o cérebro, de maneira que veio a perder o juízo”.

 

Por outro lado, o romance “não é uma sátira da cavalaria ou dos ideais cavaleirescos, […] mas a paródia de um gênero literário muito em voga durante o século XVI. O Quixote não é, como creram alguns românticos, uma burla do heroísmo e do idealismo nobre, mas sim a burla de uma espécie de livros que, por seus exageros extremos e sua falta de medida, punham em ridículo o heróico e o ideal” (Martín de Riquer).

Cervantes não tem um espírito cético ou irônico – como o encontramos em Machado de Assis ou em Montaigne -, mas um olhar compreensivo e terno para com o ser humano. Por isso, há diversos momentos de nobreza em seu livro, muitas vezes em personagens secundárias; aliás, não podemos esquecer que o próprio autor foi heróico inúmeras vezes, de modo especial em Lepanto e no seu cativeiro em Argel.

Sendo a sua intenção desmoralizar os livros de cavalaria, Cervantes fez muito mais do que isso: como acontece freqüentemente com os grandes escritores, sua obra acaba sendo muito melhor do que a encomenda. Dom Quixote e Sancho Pança formam uma dupla que passa por aventuras que nos emocionam, elevam e divertem. O diálogo entre os dois é fundamental para o bom desenvolvimento do romance, e o autor introduz nele inúmeras pérolas de sabedoria, sempre com graça e oportunidade. Assim, o Dom Quixote nos leva a refletir sobre a vida, a honra, a nobreza, a fidelidade, o idealismo, ao mesmo tempo que a estória do cavaleiro e do seu escudeiro se desenrola à medida que encontram personagens secundárias muito bem construídas: nobres, fazendeiros, hospedeiros, mulheres da vida, letrados, barbeiros, e assim por diante.

Temos diálogos e aventuras em justa medida, com os episódios ligando-se com naturalidade e enriquecendo-se mutuamente. Aqui vemos que Cervantes é escritor de qualidades excepcionais, que sabe contar maravilhosamente histórias simples. A sua prosa é de uma leveza, de uma fluidez, de uma plasticidade e expressividade praticamente insuperáveis. Embora encontremos muitas páginas admiráveis em outras obras suas, especialmente nas Novelas ejemplares, poucas atingiram a qualidade do seu escrito mais famoso.

Otto Maria Carpeaux, no sugestivo “Ensaio de análise em profundidade”, lembra-nos de que “a literatura universal chega ao cume na criação daquelas personagens típicas, representantes simbólicas da humanidade”. Aqui encontramos novamente uma pista da grandiosidade do Quixote, símbolo de toda a humanidade (juntamente com seu fiel escudeiro…). Na sua loucura, considerava-se um cavaleiro andante chamado a vencer gigantes, salvar princesas, desfazer todo gênero de agravos, “granjear fama e renome eternos”. No entanto, a verdade é que se debatia com moinhos de vento, chamava de elmo a bacia de um barbeiro, era espancado com uma freqüência muito maior que a desejável… Enfim, havia uma enorme distância entre o que pensava de si e a realidade dos seus “feitos”, e isso é parte fundamental da sua loucura.

Somos forçados a reconhecer humildemente que todos temos muito dessa loucura. Julgamo-nos heróis, sábios, nobres e importantes, mas acabamos deparando-nos com a realidade da nossa mediocridade, mesquinhez, covardia e comodismo. Muitas vezes custa-nos aceitá-lo, e reagimos como o nobre cavaleiro, que atribuía a maior parte das suas desgraças à inveja de “encantadores e magos”.

Ao mesmo tempo, a loucura ajuda-nos a buscar metas mais altas, que os “prudentes” consideram tolas, mas que dão sentido aos nossos esforços. Somos bem menos do que pensamos, mas… que seria de nós sem os sonhos? Sem ideais, a vida do homem não vale nada, e o Dom Quixote lembra-nos disto. A loucura de Alonso Quijano, o bom, fez dele o Dom Quixote de La Mancha; e graças a isso –
entre muitas surras, situações ridículas e decepções -, o cavaleiro realizou também grandes feitos, ajudando a consertar a vida de boa parte das pessoas que o rodeavam. Podemos colocar na boca do Cavaleiro da Triste Figura aquilo que Fernando Pessoa atribuía a Dom Sebastião de Portugal:

 

Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

 

Haveria muito mais que falar sobre esse livro. Mas terminemos agradecendo a Cervantes por nos ter dado o seu Dom Quixote. Este, florescendo em um terreno marcado por contratempos e tristezas, mostra-nos que o seu autor soube superá-las; que, se era um grande escritor, soube ser um ser humano ainda maior.

 

Renato José de Moraes é Mestre pela Faculdade de Direito da USP e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS).

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 2, Dez/2008. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-2/dom-quixote-e-a-superacao-da-melancolia/