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O jardim de infância fenomenológico (por Heloísa Gusmão)

Filosofia | 08/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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Fato bem conhecido é que Husserl, quando trabalhava na elaboração de seu círculo fenomenológico, tinha a filósofa judia Edith Stein como assistente. Como ela lhe prestava este auxílio e os frutos deste trabalho para a edificação da filosofia de seu então mestre, no entanto, já não são coisas tão conhecidas. Uma das funções da discípula de Husserl era, com base nas “Investigações Lógicas” e no “Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica”, introduzir novos filósofos àquela corrente de pensamento que surgira. Seu disputado curso introdutório à fenomenologia (aulas preliminares para se frequentar os cursos do filósofo) logo passou, por gracejos, a ser chamado de “jardim de infância fenomenológico” e de fato a vasta obra de Stein se tornou uma maneira segura de compreender os pressupostos e desenvolvimentos dos principais problemas que preocupavam os filósofos do círculo de Gottinger: Husserl, Scheller, Heidegger, Reinach etc., pois uma característica de seus escritos primeiros é não desenvolver nenhuma investigação sem antes examinar exaustivamente um a um dos modos de se lidar com o problema proposto: talvez seja este um modo de tratar inclusive as questões filosóficas como fenômenos e evitar, assim, contradizer o próprio método de investigação.

Para nos introduzir à fenomenologia, Edith Stein constata que a filosofia da idade moderna se divide em dois campos: o campo da filosofia católica, que é a continuadora das grandes tradições escolásticas, e a filosofia que enfaticamente se denominava a si mesma como filosofia moderna, que começa com o Renascimento e culmina em Kant, com a característica principal de sistematicamente buscar o rompimento com as grandes tradições e, a partir de então, desenvolve-se toda em torno de uma série de interpretações sobre a doutrina kantiana. Até a transição do sec. XIX ao XX, estas duas áreas eram praticamente independentes uma da outra e quem não fosse católico não se atrevia a estudar São Tomás, bem como quem fosse católico não se preocupava minimamente com Kant.

É importante frisar aqui que as referências ao “catolicismo”, que fazem estes autores alemães da década de 20, como Edith, são entendidas não sob seu aspecto doutrinal estritamente teológico, tampouco sob a ótica de seus costumes acidentais próprios da religião, mas o cerne de nossa compreensão deve ser o conjunto de ideias filosóficas da tradição católica. Catolicismo aqui é principalmente compreendido sob seu aspecto de corrente filosófica nascente desde o encontro da cultura helenista com a judaico-cristã nos primeiros séculos, inebriada pelo contato com as ciências muçulmanas e com a filosofia aristotélica na Idade Média e transmitida quase que sem descontinuidades até o florescimento do tomismo do início do século passado, ou seja, somente quem rompeu de algum modo com este conjunto milenarmente definido, no decorrer dos três séculos de modernidade, pode ser entendido aqui como fora dos setores (filosóficos) católicos.

Somente com Husserl, talvez com Brentano, é que surgiu a ideia de que não era aceitável esta forma dúbia de se lidar com os problemas da filosofia. Stein costuma enfatizar que, nos setores não católicos, ninguém contribuíra mais para esta ideia que Husserl. Isto provavelmente por ele não se ter formado em nenhum dos dois campos da filosofia, pois era matemático. Formação que, somada ao estudo da psicologia de Brentano, deu-lhe o primeiro vislumbre do que fosse uma ciência de rigor, com a qual começou a pensar nas áreas de intersecção da filosofia perene com a filosofia moderna. Talvez o tenha feito por não se deixar guiar pela “tradição” ou pela “modernidade”, mas por certa suspensão de prejuízos a fim de se voltar aos problemas mesmos, tais quais lhe apareciam. Antes de tudo, em sua “Filosofia da Aritmética”, submeteu a esclarecimento filosófico os axiomas fundamentais da aritmética, o que o levou aos problemas que guiaram suas “Investigações Lógicas”. Nelas pode desenvolver seu método fenomenológico, sem ainda sistematizá-lo, coisa que faria apenas bem depois nas “Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica”. Este período de transição entre as Investigações e as Ideias é o qual Husserl conta com as constantes críticas de seus discípulos e, sobretudo, com a contribuição da tese de doutoramento de Stein sobre “O Problema da Empatia”, qual eu julgo ser um grande desenvolvimento da ideia de intersubjetividade que Husserl, até então (1916), não havia desenvolvido suficientemente, e que pode, no entanto, ser encarado como o problema central cujas conclusões decidem se a fenomenologia pertence ao idealismo transcendental ou a alguma espécie de realismo e como isto se dá. Deixemos, neste artigo, esta questão aberta para ser desenvolvida em outro tempo e voltemos nosso olhar às questões mais históricas e introdutórias desta escola ou deste método filosófico.

A fenomenologia é vista, sobretudo, como um método, cuja particularidade a diferencia de todo o resto em filosofia. O próprio nome, causa de incompreensões, já é algo que necessita de esclarecimento, pois ao método não interessam os “fenômenos” no sentido que até então se nomeavam, a saber, tão simplesmente “aquilo que aparece” como uma casca externa, aesthetica e perceptível primordialmente às faculdades sensíveis da alma. A captação de “fenômenos”, para Edith Stein, é justamente a captação última e objetiva das essências, ou seja, um ato em que a consciência originariamente intui para si o ser daquilo que intui (o que, em linguagem aristotélico-tomista, corresponderia à simples apreensão que o intelecto faz). Para se compreender o método, a filósofa indicava a leitura sistemática das Investigações e das Ideias de Husserl, mas, para mostrar qual era o espaço que o método de investigação radical vinha ocupando em relação à corrente escolástica e à corrente kantiana, ela destacava três pontos principais característicos: a objetividade do conhecimento, a intuição e o idealismo.

A ideia da verdade absoluta e o conhecimento objetivo são, segundo Edith, o grande mérito da fenomenologia sobre as correntes relativistas da filosofia moderna (a saber: o naturalismo, o psicologismo e o historicismo), que postulavam uma espécie de construção psicológica, histórica ou coisa que o valha, da verdade e do conhecimento. O método husserliano propõe, entretanto, que o objeto de conhecimento é algo a ser descoberto pelo espírito e não algo a ser por ele criado. Certo é que os kantianos reclamavam também para si este estatuto de objetividade do conhecimento, mas aos fenomenólogos cabia mostrar-lhes que, em última análise, os argumentos kantianos igualmente se fundavam sobre um psicologismo moderno.

Outra particularidade do método fenomenológico segundo Stein é seu caráter intuitivo. Temos aqui a ideia de que a filosofia não é uma ciência dedutiva, como as matemáticas, que deduzem suas proposições das leis da lógica, de axiomas, de princípios não passíveis de demonstração e de cadeias ininterruptas de provas: “O número das verdades filosóficas é infinito, e, por princípio, pode-se encontrar incessantemente novas verdades que, no entanto, não são deduzidas de verdades já conhecidas” (STEIN, Edith. “Was ist Phanomenologie?”). Não é caso, entretanto, de se tratar de uma ciência indutiva. O método próprio da filosofia, diferentemente do método das ciências naturais, não se vale de fatos proporcionados pela experiência empírica a fim de se alcançar verdades e leis universalmente válidas.

Indução e dedução são métodos auxiliares para a ciência filosófica, mas é próprio da ciência mais universal de todas possuir um procedimento que a diferencie de todas as outras. Este procedimento sui generis, utilizado desde que a filosofia é filosofia (vejamos, por exemplo, o método que Aristóteles usa na Metafísica, particularmente no livro Gamma), porém sistematizado por mérito da fenomenologia é o conhecimento intuitivo das verdades filosóficas, evidentes por serem em si mesmas certas e sem necessidade de serem deduzidas de anteriores, pois são contemplações espirituais (aos que já leram algum escrito teológico de Edith Stein, como a famosa “Ciência da Cruz”, aconselho que não confundam o que aqui é chamado de “contemplação espiritual” com o que ela e os místicos católicos chamam de intuição ou visão mística. Em certas oportunidades de sua obra, Edith Stein explica que estas contemplações espirituais tratadas na filosofia não são iluminações sobrenaturais concedidas por Deus – tais quais descritas por Santa Teresa D’Ávila no “Castelo Interior” etc. -, mas tão somente o modo natural, tão natural quanto a percepção sensível, com o qual o homem é dotado de capacidade de conhecer). A intuição, ou contemplação espiritual, é um ato da consciência pelo qual se apreende as verdades transcendentais, do mesmo modo como a percepção sensível é o ato pelo qual a consciência adquire conhecimento das realidades do mundo material.

Referi-me acima, como modo de facilitar a compreensão, à simples apreensão das faculdades superiores da alma, ou seja, usei linguagem tradicional da filosofia perene para explicar um ponto crucial da fenomenologia e, certamente, isto somado a tantos outros fatores, leva-nos a questionar se a fenomenologia não seria apenas uma “nova escolástica”. Esta era uma acusação muito comum e Husserl costumava afirmar que sequer havia lido São Tomás e, em risos, que se a escolástica se valia de seu método fenomenológico, tanto melhor para ela (!). Segundo Stein, a fenomenologia encontra mais pontos de enlace com Platão e com outra corrente católica pouco compreendida e, digamos, “não muito oficial” nos meios teológicos medievais, de orientação neoplatônica e bastante comum entre alguns pensadores franciscanos por volta da Alta Idade Média.

Já em relação à filosofia kantiana, apesar das diferenças radicais entre o método de Husserl e quaisquer que sejam as interpretações sobre o que é o método de Kant, há uma verdadeira impossibilidade de se compreender Husserl sem fazer constantes vinculações às correntes neokantianas. Edith Stein mostra que, com exceção das questões essenciais da filosofia, que criam óbvias possibilidades de se vincular quaisquer métodos e autores, o motivo da vinculação da escola fenomenológica à filosofia kantiana é o idealismo de Husserl. Em linhas muito gerais, podemos encontrar como denominador comum a ideia de que idealista é o sistema filosófico que admite que o mundo ou arealidade tem uma relação de dependência ontológica em relação ao sujeito, à “consciência” que conhece este mundo ou realidade. Como esta dependência se dá são ossos para outro ofício, mas o simples fato de, depois de todas as Investigações Lógicas, Husserl escrever no Ideias que “se suprimirmos a consciência, suprimiremos o mundo” fez dele causa de oposições por parte de alguns de seus alunos, sobretudo do círculo de Munich, sob orientação de Scheller. Agora Husserl era visto como mais um filósofo kantiano distante do realismo católico. No entanto, Edith Stein afirma que o idealismo deve ser visto, ao contrário do método fenomenológico, como uma convicção pessoal e não tanto como resultado de uma investigação fenomenológica e o próprio Husserl em seus cursos afirmava que “a fenomenologia não depende intimamente do idealismo”. As provas de que é possível uma fenomenologia realista que defenda a independência ontológica do mundo em relação à consciência que o conhece sem perder em nada o desenvolvimento do método são as obras de alguns próprios discípulos de Husserl, como por exemplo Reinach e Conrad-Martius.

A questão do idealismo ou realismo fenomenológico costumava ficar em aberto nos cursos introdutórios de Edith Stein, mesmo sendo fato que o idealismo de Husserl afeta não toda a sua obra, mas apenas algumas seções dela. Nas palavras da filósofa, “conhecer o espírito de Husserl requer um estudo contínuo durante anos; mas aquele que ler tão somente um capítulo das ‘Ideias’ ou uma só de suas ‘Investigações’, não ficará sem a impressão de que tem em suas mãos uma daquelas obras clássicas magistrais que inauguram uma nova época da história da filosofia”.

Nota: Este texto é baseado na leitura do artigo “Was ist Phanomenologie?” de Edith Stein, disponível em: http://philpapers.org/rec/STEWIP (acessado em 1/02/2015 às 22h30minh).

Heloísa Gusmão é graduanda em Filosofia pela UFPR e é membro do Instituto de Formação e Educação do Paraná (IFE-PR).

Fonte: http://www.dicta.com.br/o-jardim-de-infancia-fenomenologico/

RESENHA: “A solidão dos realistas” [René Girard e Lucien Febvre] – por Martim Vasques da Cunha

Filosofia | 07/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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OProblemaDaIncredulidade-Lucien Febvre CoisasOcultas-Girard

Dados técnicos: René Girard. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. Tradução de Martha Gambini. Paz & Terra, 511 pp.; Lucien Febvre. O problema da incredulidade no século XIV – A religião de Rabelais. Tradução de Maria Lúcia Machado. Companhia das Letras, 513 pp.

Ah, a França. O que dizer deste país? O que ele nos deu? Como contribuiu para o tesouro da humanidade? Sabemos nos últimos meses que, pelo mundo da cultura nacional, se comemora o tal do “Ano da França”, uma forma de recordar o evento da Revolução Francesa, que pregava liberdade, fraternidade, igualdade e madame Guillotine. Mas a França também nos deu croissants, bistrôs, Godard, Truffaut, Rohmer, Bresson (o Henri-Cartier e o Robert), Emmanuelle Béart, Sophie Marceau – além de, claro, René Girard e Lucien Febvre.

Quel? Os dois últimos tiveram livros importantes publicados no Brasil – livros que, de certa maneira, mostraram uma nova forma de pensar em seus respectivos campos de conhecimento: a antropologia e a história.

Girard já é um velho conhecido da casa. Teórico do desejo mimético, em que descobrimos que não desejamos por nós mesmos e sim porque imitamos os desejos dos outros, i.e., de quem admiramos, invejamos, nos apaixonamos etc., ele começou como crítico literário de primeira categoria (com Mensonge romantique et verité romanesque, de 1962), partiu para os estudos antropológicos com o assustador A violência e o sagrado (1972) e, ao sintetizar as duas linhas de trabalho, adentrou a densa selva da hermenêutica bíblica. Em especial a do Novo Testamento, com descobertas surpreendentes sobre como a vinda de Cristo seria a revelação não só de Deus encarnado na Terra como também de toda a matriz de violência da cultura humana – as tais Coisas ocultas desde a fundação do mundo, título do livro de entrevistas que é publicado agora pela Paz & Terra e que, quando lançado na França em 1977, deu notoriedade ao pensamento girardiano.

Lucien Febvre é, junto com o historiador Marc Bloch, um dos pais dos Annales, a escola que mudou o paradigma da pesquisa historiográfica no Ocidente. Seus sucessores provam que a fórmula deu certo. Desde Fernand Braudel, que passou pelas plagas da Rive Gauche du Tietê (a conhecida USP), passando por Jacques LeGoff, até o nosso Sérgio Buarque de Holanda (especialmente em Visão do Paraíso), os Annales – o nome do grupo vem da criação, em 1929, de uma revista chamada Annales d’histoire économique et sociale – formaram uma nova perspectiva que vê a história não mais como uma sucessão de fatos dentro de um molde teórico pré-estabelecido, e sim como uma “história-problema”, que não admite soluções fáceis e que, sobretudo, abre outras possibilidades para compreender o presente do próprio historiador. O livro que resume todas essas tendências e as leva à perfeição – mas também ao seu impasse, como veremos a seguir – é O problema da incredulidade no século XVI – A religião de Rabelais (1948), e foi publicado com cinqüenta anos de atraso, em uma ação inusitada da Companhia das Letras, editora acostumada a lançar somente obras de quem está no hype internacional.

O que os dois livros têm em comum é o fato de que ambos os autores tentam, cada um a seu modo, lançar as novas bases para uma pesquisa que analise o fenômeno religioso fora de qualquer padrão dogmático ou institucional. Sem o saberem, fazem parte daquele seleto grupo que Eric Voegelin, em seu History of Political Ideas, chama de realistas espirituais. Trata-se de uma “tradição” subterrânea, que começa aproximadamente com Dante Alighieri e se estende até sujeitos díspares e heterodoxos como Thomas Hobbes, Jean Bodin, Blaise Pascal, Mestre Eckhart, chegando até Nietzsche, Kierkegaard, Dostoiévski e, nos últimos tempos, Alexander Soljenítsin. Descontentes com as instituições políticas e culturais que os circundam, estes realistas se distanciam intelectualmente delas e começam a observar o real além do pequeno “mundo simbólico” (cosmion) criado pelas circunstâncias, descobrindo outras formas de expressão que, muitas vezes, desagradam às mesmas pessoas que não estão preparadas, seja por ignorância, medo ou interesse, para ouvi-los de alguma forma.

Numa comparação entre Girard e Febvre, sem dúvida o primeiro ganha em termos de ousadia. Não por qualquer desrespeito religioso – pelo contrário, Girard mostra um verdadeiro temor e tremor quando toca nos assuntos do sagrado –, mas sim porque ele não tem medo de abordar a revelação do Evangelho até as últimas conseqüências – em especial, as conseqüências em relação ao comportamento humano. Antes disso, porém, Girard faz questão de mostrar suas descobertas dentro de uma moldura aparentemente racional e científica – uma forma de despistar os incautos e tirar sarro de seus companheiros de trabalho. Assim, Coisas ocultas desde a fundação do mundo é dividido em três partes distintas que se comunicam ironicamente entre si por terem um respectivo rival mimético. Na primeira parte, Antropologia Fundamental, temos Girard a brigar com Lévi-Strauss e seus epígonos, querendo provar a qualquer custo que os antropólogos não conseguem perceber o assassinato fundador que origina toda a cultura humana. Consegue o feito? Mais ou menos: Girard parece esconder o jogo para seus interlocutores (os psicanalistas Jean-Michel Oughourlian e Guy Lefort) e, entre uma crítica e outra, o livro simplesmente pára no ritmo de leitura, deixando o leitor sem saber se deve continuar ou não. Deve sim, pois a bomba será jogada na segunda parte, A Escritura Judaico-Cristã, onde Girard lança as bases de sua interpretação mimética do Novo Testamento – ou melhor, segundo ele, são os próprios Evangelhos que revelam isto. Para o francês, a vinda de Cristo denuncia o mecanismo mimético do mundo da violência, i.e., o nosso próprio mundo, e o resolve através da renúncia a qualquer espécie de ação que interfira na vontade de Deus: a de se mostrar como um poder que recusa a manutenção do desejo e que não é responsável por qualquer ato que o homem possa cometer contra si mesmo. Deus não tem culpa de nada; o ser humano mata porque quer esquecer que mata.

A tal “bomba” é a visão que Girard tem sobre o Cristianismo histórico, considerado por ele como uma versão deturpada de algo que, na falta de nome melhor, é chamado de “Cristianismo sacrifical”. De acordo com a sua leitura dos Evangelhos, a paixão de Cristo não teria sido um sacrifício. Jesus teria de morrer de qualquer maneira porque se continuasse a viver neste mundo (o da violência onde vivemos), seria obrigado a praticar algum ato terrível para permanecer nele. Contudo, antes que o leitor se apresse em julgar o raciocínio e chamá-lo logo de “herético”, devemos lembrá-lo que o termo “sacrifício” tem um sentido peculiar na obra de Girard; para ele, “sacrifício” é o resultado chocante do mecanismo mimético, o momento em que as disputas que destroem a sociedade chegam a um ápice que só será resolvido através da morte de um inocente – o “bode expiatório”. Dessa forma, como Cristo não é um “bode”, pois Ele é a única vítima na história humana que tinha plena consciência de seus atos, a Paixão não pode ser considerada um “sacrifício” lato sensu, simplesmente porque era a sua função, conforme a vontade do Pai, denunciar a violência da qual se funda a cultura do homem. (Para o alívio de muitos, Girard consideraria uma outra forma de ver a morte de Jesus como um “sacrifício diferenciado”, em um livro publicado anos depois, Um longo argumento do princípio ao fim. Uma maneira elegante de não deixar Jesus ser apenas uma peça de sua grande teoria sobre a antropologia mimética).

Estas breves pinceladas dão mostra de como Girard não tem medo do risco e da polêmica – características que são extrapoladas na terceira parte, Psicologia Interdividual, uma divertida discussão sobre o desejo moderno, obviamente usando Freud como contraponto. Aqui, o desejo tem uma estratégia própria, uma autonomia de estar sempre dois passos à frente do sujeito, e assim toma as mais diferentes formas, como hipnose, possessão, homossexualismo, sado-masoquismo, inveja – enfim, atitudes que são incentivadas pelos intelectuais pós-modernos e que marcam o cotidiano do nosso mundo contaminado de mimetismo.

Lucien Febvre não conhecia o desejo mimético de René Girard, mas ele começa o seu tratado sobre a religião de Rabelais com uma descrição deliciosa de como era o ambiente intelectual dos humanistas franceses do século XVI, repleto de rivalidades e de acusações mútuas. É claro que, antes de tudo, Febvre tem uma missão: a de provar que os grandes estudiosos da obra de François Rabelais, o autor de Gargântua e Pantagruel (1532-1554), em especial Abel Lefranc e Louis Thuasne, estavam errados ao anunciarem que o grande escritor da França era, afinal, um “ateu”. Consegue?

Chegou quase lá. A primeira parte de O problema da incredulidade é uma prova da força do método dos Annales: através de cartas, documentos, poemas, tratados médicos, sátiras, Febvre cruza os dados e chega à seguinte conclusão – a de que Rabelais nunca poderia ser ateu. E por dois motivos: o primeiro é que o grande escritor estava muito além do seu tempo e o segundo é que Rabelais, paradoxalmente, era uma amostra perfeita da devoção humanista que marcou aquela época de transição entre o fim da Idade Média e o início do Renascimento.

É na segunda parte do livro, quando Febvre mostra o contexto histórico, que as coisas começam a derrapar. Descobrimos que a pesquisa foi feita não para reabilitar Rabelais por si mesmo, mas sim para recolocar Erasmo de Roterdã, o autor de Elogio da loucura (1515) e grande amigo de Thomas More, no seu devido lugar de glória. Febvre é um admirador de Erasmo e, mais, identifica-se com suas posições humanistas sobre a religião. Considera-a como um fato que deve ser defendido na liberdade individual; e que Cristo não é uma pessoa com quem se possa estabelecer uma relação e sim uma simples filosofia do viver. Ora, Rabelais, que gostava do exagero das descrições e do corpo, podia se identificar com algumas dessas idéias; mas será que a sua grandeza literária se iguala a de Erasmo, o primeiro dos intelectuais ocidentais, um epígono que, por odiar os escolásticos em decadência, achava que toda a filosofia anterior, composta por gigantes então já reconhecidos como São Tomás, Santo Alberto Magno e Duns Scott era farinha do mesmo saco?

É claro que não. Erasmo é o fundador daquilo que Paul Johnson chama de “Terceira Força”, aparentemente imparcial em relação aos radicalismos da Reforma Protestante e da Contra-Reforma, mas que, no fundo, transforma-se também em um outro radicalismo, até mais perigoso, porque camuflado nas vestes da “tolerância” e da “pluralidade”. Febvre cai nessa armadilha direitinho – e o que temos é um livro que, apesar de ter a palavra “problema” no seu título, não o apresenta de forma alguma. Afinal, se, como o historiador afirma, a questão do século XVI era “crer ou não crer”, e a resposta é simplesmente a primeira opção, onde estaria o problema? Além disso, como afirmar que não existia a “incredulidade”? Antes do século XVI, Santo Anselmo e São Tomás já discorriam sobre o stultus, o estulto, o néscio, o insensato que, segundo o salmo 52, dizia em seu coração que Deus não existia e, por isso, fechava-se a toda e qualquer realidade transcendente. Isso não seria a atitude de um “incrédulo”? Eis o nó górdio de qualquer historiador que siga o método dos Annales: ele só se preocupa com o “impacto social” de uma idéia, não com o fato de que a tal idéia – no caso, a incredulidade – já poderia existir no íntimo de uma pessoa. A reverberação em massa da “não-crença” (que, muito tempo depois, chamaríamos de “ateísmo”) no tecido da sociedade ocidental aconteceria somente nos séculos XVIII e XIX, com o impacto da Revolução Francesa e o surgimento das ideologias positivistas e coletivistas.

Enfim, esta é a solidão dos realistas que tentam olhar além das paróquias do espírito. De um lado, René Girard que, enfrentando um grande risco, faz observações corretas sobre o mundo moderno, mas também pode cair na arapuca de ver tudo conforme a teoria do desejo mimético – inclusive o próprio Jesus Cristo. Do outro, Lucien Febvre, que resolve enquadrar um dos maiores escritores franceses na gavetinha particular desta peça de museu que se tornou Erasmo de Roterdã. O que fazer? Dançar um tango argentino? Talvez, mas, no caso desta resenha, prefiro beber uma boa taça de vinho e gritar a plenos pulmões: Vive la France!

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, mestre em Filosofia da Religião pela PUC-SP, doutorando em Filosofia pela USP e autor, entre outros, do livro Crise e Utopia: O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, Campinas, 2012).

Resenha publicada originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 4, Dez/2009. Disponível [online] neste link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-4/livros/

Imagens: reprodução das capas do livros da resenha.

Apresentação Núcleo de Filosofia

Filosofia | 21/04/2014 | | IFE CAMPINAS

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A Filosofia nasceu na Grécia Antiga entre os séculos VI e VII a.C. Buscava o saber, a realidade do mundo e da vida. De lá para cá a História da Filosofia conheceu muitos filósofos, desde seus grandes pais Sócrates, Platão e Aristóteles, passando por Santo Agostinho e Tomás de Aquino, até Immanuel Kant, Henri Bergson e outros.

Contudo, em nosso tempo, muito se perdeu daquilo que a Filosofia objetivava no início, isto é, o saber, a busca pela verdade, pela sabedoria, limitando-se muitas vezes a resenhar ou interpretar filósofos do passado sem um comprometimento com a realidade do passado e dos dias de hoje, fato que levou e leva muitas pessoas a olharem a Filosofia como não ligada à nossa vida, como se fosse algo à parte e sem utilidade. Por outro lado, houve também filósofos contemporâneos que não desistiram dessa busca e, pelo contrário, empreenderam-na de modo exemplar. O ideal pela busca do saber e da verdade não foi perdido com o tempo.

Nosso Núcleo de Filosofia objetiva esse ideal, sem ignorar a tradição filosófica, mas ao mesmo tempo sem um apego a filósofos do presente que desconectam a filosofia da vida real. Afinal, não faz sentido estudarmos se não tivermos como objetivo conhecer melhor o mundo e o que nele acontece. Do contrário, ficaremos em especulações descoladas da realidade.