O jardim de infância fenomenológico (por Heloísa Gusmão)

Filosofia | 08/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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Fato bem conhecido é que Husserl, quando trabalhava na elaboração de seu círculo fenomenológico, tinha a filósofa judia Edith Stein como assistente. Como ela lhe prestava este auxílio e os frutos deste trabalho para a edificação da filosofia de seu então mestre, no entanto, já não são coisas tão conhecidas. Uma das funções da discípula de Husserl era, com base nas “Investigações Lógicas” e no “Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica”, introduzir novos filósofos àquela corrente de pensamento que surgira. Seu disputado curso introdutório à fenomenologia (aulas preliminares para se frequentar os cursos do filósofo) logo passou, por gracejos, a ser chamado de “jardim de infância fenomenológico” e de fato a vasta obra de Stein se tornou uma maneira segura de compreender os pressupostos e desenvolvimentos dos principais problemas que preocupavam os filósofos do círculo de Gottinger: Husserl, Scheller, Heidegger, Reinach etc., pois uma característica de seus escritos primeiros é não desenvolver nenhuma investigação sem antes examinar exaustivamente um a um dos modos de se lidar com o problema proposto: talvez seja este um modo de tratar inclusive as questões filosóficas como fenômenos e evitar, assim, contradizer o próprio método de investigação.

Para nos introduzir à fenomenologia, Edith Stein constata que a filosofia da idade moderna se divide em dois campos: o campo da filosofia católica, que é a continuadora das grandes tradições escolásticas, e a filosofia que enfaticamente se denominava a si mesma como filosofia moderna, que começa com o Renascimento e culmina em Kant, com a característica principal de sistematicamente buscar o rompimento com as grandes tradições e, a partir de então, desenvolve-se toda em torno de uma série de interpretações sobre a doutrina kantiana. Até a transição do sec. XIX ao XX, estas duas áreas eram praticamente independentes uma da outra e quem não fosse católico não se atrevia a estudar São Tomás, bem como quem fosse católico não se preocupava minimamente com Kant.

É importante frisar aqui que as referências ao “catolicismo”, que fazem estes autores alemães da década de 20, como Edith, são entendidas não sob seu aspecto doutrinal estritamente teológico, tampouco sob a ótica de seus costumes acidentais próprios da religião, mas o cerne de nossa compreensão deve ser o conjunto de ideias filosóficas da tradição católica. Catolicismo aqui é principalmente compreendido sob seu aspecto de corrente filosófica nascente desde o encontro da cultura helenista com a judaico-cristã nos primeiros séculos, inebriada pelo contato com as ciências muçulmanas e com a filosofia aristotélica na Idade Média e transmitida quase que sem descontinuidades até o florescimento do tomismo do início do século passado, ou seja, somente quem rompeu de algum modo com este conjunto milenarmente definido, no decorrer dos três séculos de modernidade, pode ser entendido aqui como fora dos setores (filosóficos) católicos.

Somente com Husserl, talvez com Brentano, é que surgiu a ideia de que não era aceitável esta forma dúbia de se lidar com os problemas da filosofia. Stein costuma enfatizar que, nos setores não católicos, ninguém contribuíra mais para esta ideia que Husserl. Isto provavelmente por ele não se ter formado em nenhum dos dois campos da filosofia, pois era matemático. Formação que, somada ao estudo da psicologia de Brentano, deu-lhe o primeiro vislumbre do que fosse uma ciência de rigor, com a qual começou a pensar nas áreas de intersecção da filosofia perene com a filosofia moderna. Talvez o tenha feito por não se deixar guiar pela “tradição” ou pela “modernidade”, mas por certa suspensão de prejuízos a fim de se voltar aos problemas mesmos, tais quais lhe apareciam. Antes de tudo, em sua “Filosofia da Aritmética”, submeteu a esclarecimento filosófico os axiomas fundamentais da aritmética, o que o levou aos problemas que guiaram suas “Investigações Lógicas”. Nelas pode desenvolver seu método fenomenológico, sem ainda sistematizá-lo, coisa que faria apenas bem depois nas “Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica”. Este período de transição entre as Investigações e as Ideias é o qual Husserl conta com as constantes críticas de seus discípulos e, sobretudo, com a contribuição da tese de doutoramento de Stein sobre “O Problema da Empatia”, qual eu julgo ser um grande desenvolvimento da ideia de intersubjetividade que Husserl, até então (1916), não havia desenvolvido suficientemente, e que pode, no entanto, ser encarado como o problema central cujas conclusões decidem se a fenomenologia pertence ao idealismo transcendental ou a alguma espécie de realismo e como isto se dá. Deixemos, neste artigo, esta questão aberta para ser desenvolvida em outro tempo e voltemos nosso olhar às questões mais históricas e introdutórias desta escola ou deste método filosófico.

A fenomenologia é vista, sobretudo, como um método, cuja particularidade a diferencia de todo o resto em filosofia. O próprio nome, causa de incompreensões, já é algo que necessita de esclarecimento, pois ao método não interessam os “fenômenos” no sentido que até então se nomeavam, a saber, tão simplesmente “aquilo que aparece” como uma casca externa, aesthetica e perceptível primordialmente às faculdades sensíveis da alma. A captação de “fenômenos”, para Edith Stein, é justamente a captação última e objetiva das essências, ou seja, um ato em que a consciência originariamente intui para si o ser daquilo que intui (o que, em linguagem aristotélico-tomista, corresponderia à simples apreensão que o intelecto faz). Para se compreender o método, a filósofa indicava a leitura sistemática das Investigações e das Ideias de Husserl, mas, para mostrar qual era o espaço que o método de investigação radical vinha ocupando em relação à corrente escolástica e à corrente kantiana, ela destacava três pontos principais característicos: a objetividade do conhecimento, a intuição e o idealismo.

A ideia da verdade absoluta e o conhecimento objetivo são, segundo Edith, o grande mérito da fenomenologia sobre as correntes relativistas da filosofia moderna (a saber: o naturalismo, o psicologismo e o historicismo), que postulavam uma espécie de construção psicológica, histórica ou coisa que o valha, da verdade e do conhecimento. O método husserliano propõe, entretanto, que o objeto de conhecimento é algo a ser descoberto pelo espírito e não algo a ser por ele criado. Certo é que os kantianos reclamavam também para si este estatuto de objetividade do conhecimento, mas aos fenomenólogos cabia mostrar-lhes que, em última análise, os argumentos kantianos igualmente se fundavam sobre um psicologismo moderno.

Outra particularidade do método fenomenológico segundo Stein é seu caráter intuitivo. Temos aqui a ideia de que a filosofia não é uma ciência dedutiva, como as matemáticas, que deduzem suas proposições das leis da lógica, de axiomas, de princípios não passíveis de demonstração e de cadeias ininterruptas de provas: “O número das verdades filosóficas é infinito, e, por princípio, pode-se encontrar incessantemente novas verdades que, no entanto, não são deduzidas de verdades já conhecidas” (STEIN, Edith. “Was ist Phanomenologie?”). Não é caso, entretanto, de se tratar de uma ciência indutiva. O método próprio da filosofia, diferentemente do método das ciências naturais, não se vale de fatos proporcionados pela experiência empírica a fim de se alcançar verdades e leis universalmente válidas.

Indução e dedução são métodos auxiliares para a ciência filosófica, mas é próprio da ciência mais universal de todas possuir um procedimento que a diferencie de todas as outras. Este procedimento sui generis, utilizado desde que a filosofia é filosofia (vejamos, por exemplo, o método que Aristóteles usa na Metafísica, particularmente no livro Gamma), porém sistematizado por mérito da fenomenologia é o conhecimento intuitivo das verdades filosóficas, evidentes por serem em si mesmas certas e sem necessidade de serem deduzidas de anteriores, pois são contemplações espirituais (aos que já leram algum escrito teológico de Edith Stein, como a famosa “Ciência da Cruz”, aconselho que não confundam o que aqui é chamado de “contemplação espiritual” com o que ela e os místicos católicos chamam de intuição ou visão mística. Em certas oportunidades de sua obra, Edith Stein explica que estas contemplações espirituais tratadas na filosofia não são iluminações sobrenaturais concedidas por Deus – tais quais descritas por Santa Teresa D’Ávila no “Castelo Interior” etc. -, mas tão somente o modo natural, tão natural quanto a percepção sensível, com o qual o homem é dotado de capacidade de conhecer). A intuição, ou contemplação espiritual, é um ato da consciência pelo qual se apreende as verdades transcendentais, do mesmo modo como a percepção sensível é o ato pelo qual a consciência adquire conhecimento das realidades do mundo material.

Referi-me acima, como modo de facilitar a compreensão, à simples apreensão das faculdades superiores da alma, ou seja, usei linguagem tradicional da filosofia perene para explicar um ponto crucial da fenomenologia e, certamente, isto somado a tantos outros fatores, leva-nos a questionar se a fenomenologia não seria apenas uma “nova escolástica”. Esta era uma acusação muito comum e Husserl costumava afirmar que sequer havia lido São Tomás e, em risos, que se a escolástica se valia de seu método fenomenológico, tanto melhor para ela (!). Segundo Stein, a fenomenologia encontra mais pontos de enlace com Platão e com outra corrente católica pouco compreendida e, digamos, “não muito oficial” nos meios teológicos medievais, de orientação neoplatônica e bastante comum entre alguns pensadores franciscanos por volta da Alta Idade Média.

Já em relação à filosofia kantiana, apesar das diferenças radicais entre o método de Husserl e quaisquer que sejam as interpretações sobre o que é o método de Kant, há uma verdadeira impossibilidade de se compreender Husserl sem fazer constantes vinculações às correntes neokantianas. Edith Stein mostra que, com exceção das questões essenciais da filosofia, que criam óbvias possibilidades de se vincular quaisquer métodos e autores, o motivo da vinculação da escola fenomenológica à filosofia kantiana é o idealismo de Husserl. Em linhas muito gerais, podemos encontrar como denominador comum a ideia de que idealista é o sistema filosófico que admite que o mundo ou arealidade tem uma relação de dependência ontológica em relação ao sujeito, à “consciência” que conhece este mundo ou realidade. Como esta dependência se dá são ossos para outro ofício, mas o simples fato de, depois de todas as Investigações Lógicas, Husserl escrever no Ideias que “se suprimirmos a consciência, suprimiremos o mundo” fez dele causa de oposições por parte de alguns de seus alunos, sobretudo do círculo de Munich, sob orientação de Scheller. Agora Husserl era visto como mais um filósofo kantiano distante do realismo católico. No entanto, Edith Stein afirma que o idealismo deve ser visto, ao contrário do método fenomenológico, como uma convicção pessoal e não tanto como resultado de uma investigação fenomenológica e o próprio Husserl em seus cursos afirmava que “a fenomenologia não depende intimamente do idealismo”. As provas de que é possível uma fenomenologia realista que defenda a independência ontológica do mundo em relação à consciência que o conhece sem perder em nada o desenvolvimento do método são as obras de alguns próprios discípulos de Husserl, como por exemplo Reinach e Conrad-Martius.

A questão do idealismo ou realismo fenomenológico costumava ficar em aberto nos cursos introdutórios de Edith Stein, mesmo sendo fato que o idealismo de Husserl afeta não toda a sua obra, mas apenas algumas seções dela. Nas palavras da filósofa, “conhecer o espírito de Husserl requer um estudo contínuo durante anos; mas aquele que ler tão somente um capítulo das ‘Ideias’ ou uma só de suas ‘Investigações’, não ficará sem a impressão de que tem em suas mãos uma daquelas obras clássicas magistrais que inauguram uma nova época da história da filosofia”.

Nota: Este texto é baseado na leitura do artigo “Was ist Phanomenologie?” de Edith Stein, disponível em: http://philpapers.org/rec/STEWIP (acessado em 1/02/2015 às 22h30minh).

Heloísa Gusmão é graduanda em Filosofia pela UFPR e é membro do Instituto de Formação e Educação do Paraná (IFE-PR).

Fonte: http://www.dicta.com.br/o-jardim-de-infancia-fenomenologico/