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A decadência da Filosofia Moral (por Gustavo França)

Filosofia | 13/10/2015 | | IFE RIO

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Quando se fala em pensamento moral em nossos dias, sem dúvida, a primeira referência que nos vem à mente é o famigerado debate entre liberais e comunitaristas. Tanto um lado quanto o outro comportam uma gama variadíssima de autores com ideias bem díspares, mas dotadas de uma linha comum. Com honrosas exceções (como Alasdair MacIntyre (1929-) e Charles Taylor (1931-)), quando esses filósofos se referem a Ética ou a justiça, na verdade, não fazem mais do que reduzi-las a temas políticos. Arranjos institucionais do Estado, políticas de distribuição de renda, legitimação da interferência do poder público nas esferas individuais, esses temas e outros do mesmo naipe são a associação imediata quando alguém anuncia um debate moral. Não faltam autores que batizem de Ética dissertações sobre a mais equânime estrutura tributária de um país.

É extremamente preocupante o fato de acharmos que esse tipo de rasas considerações políticas (de que “Uma teoria da justiça”, de John Rawls (1921-2002), se tornou obra arquetípica) é verdadeira Filosofia Moral. Para entender o que eu digo, basta comparar essas obras contemporâneas com a “Ética a Nicômaco”, de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C), com a segunda parte da “Suma Teológica”, de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) (o mais profundo e completo tratado de Ética já escrito), ou com a “Fundamentação da metafísica dos costumes” e a “Metafísica dos costumes”, de Immanuel Kant (1724-1804), livros clássicos e pilares fundantes das normas eternas da conduta humana.

A causa do monumental abismo entre uns e outros é que esses últimos, de fato, tratam do fenômeno moral: seus fundamentos metafísicos, a constituição da pessoa humana e o valor das ações individuais, assuntos esquecidos na pseudoética dos nossos tempos. A Ética não pode lidar com problemas concretos de Política sem uma compreensão abrangente da vida e da ação humanas e de suas leis universais. Os próprios pressupostos que envolvem a atuação de um poder político, a fundamentação do Estado e de seu corpo jurídico só podem advir de uma investigação profunda acerca da sociabilidade humana e dos princípios transcendentais da organização da vida em comunidade.

Uma moral que não sabe responder sobre o dever de uma pessoa de socorrer um irmão necessitado mediante a esmola e o mandamento da solidariedade não tem condições de discorrer a sério sobre estrutura tributária e distribuição de renda. Ter a moral abdicado de prescrever a conduta individual, fincando bases na Metafísica e na Antropologia, e saltado diretamente para discutir contingências políticas de ocasião (agora vistas como flutuando no ar, já que desprovidas de seus princípios universais) é o que gera a predominância de chavões que brincam inadvertidamente com termos filosóficos, arrancados do contexto de um pensamento completo e, por isso, sem verdadeiro significado, como, por exemplo, a “sobreposição do justo sobre o bem” (como se isso não fosse um absurdo metafísico).

Há pouco tempo, tive que estudar, por motivos ligados à elaboração de minha monografia, a polêmica de Max Scheler (1874-1928) contra Kant. Chega a dar pena comparar esse verdadeiro debate filosófico com a tão badalada disputa entre Rawls e Nozick, por exemplo. Enquanto os primeiros se debruçam sobre os fundamentos últimos da ética, sobre os conceitos de lei, de bens, de fins, de valores e seu lugar na concepção da moralidade, além das distinções gnosiológicas entre forma e matéria, a priori e a posteriori, os últimos não conseguem ultrapassar uma picuinha sobre a distribuição dos bens econômicos de uma sociedade. O decréscimo na profundidade do pensamento moral é gritante.

Creio que poderíamos encontrar a origem disso na influência rousseauniana para a lamentável confusão entre ética pública e ética do Estado. Rousseau concebeu uma sociedade em que desapareceriam todas as instâncias intermediárias entre cada indivíduo e o poder público central, restando a vida social reduzida às decisões fundamentais de política pública. Não é preciso grande esforço imaginativo para vislumbrar aí a dissolução da sociedade no Estado (e o grande sonho de Rousseau, na verdade, era a dissolução do indivíduo no Estado), com o consequentemente redimensionamento da moral (dos planos da consciência íntima da pessoa humana e das articulações comunitárias naturais) para abranger simplesmente projetos de administração central de um povo.

Essa tendência está muito bem refletida, por exemplo, em Jürgen Habermas (1929-) e em suas ideias de “patriotismo constitucional” ou de “cultura política geral”, que representam um patrimônio “moral” comum a todos os indivíduos de uma coletividade, com uma existência apartada dos laços culturais e das instituições comunitárias produzidas por sua interação espontânea ao longo dos tempos. Ainda que, algumas vezes, ele e seus discípulos insistam expressamente que sua ética pública se difere de uma ética do Estado, sua noção de sociedade, sem que eles mesmos o percebam, é de uma sociedade sem sociedade, uma mera instância decisória das ações do aparelho de poder.

Concluindo, é preciso deixar claro que não estou afirmando que a Ética não trate ou não deva tratar de questões políticas. A Filosofia Política nasce da Filosofia Moral e só assim pode ser compreendida. O problema é que teorias políticas devem ser consequência de uma cosmovisão ética, capaz de justificá-las em todas as suas bases últimas, e jamais ideias solitárias lançadas ao vento, indiferentes a ela.

Se o que caracteriza definitivamente a Filosofia é a sua busca por aquilo que é universal e eterno, o que Rawls, Dworkin, Nozick, Habermas, Adela Cortina, Amartya Sen, Walzer, Kymlicka (que só fazem oferecer reflexões desprovidas de universalidade, incompreensíveis fora de pressupostos contextuais contemporâneos, pressupostos cristalizados dogmaticamente e escondidos em raciocínios que se afirmam independentes deles) nos trazem dificilmente pode ser considerado Filosofia Moral. Perto de Aristóteles, de Tomás, de Kant ou de Scheler, são, quando muito, comentaristas de bancada de telejornal. Se quisermos reconstruir uma sociedade sã, capaz de refletir sobre as misérias humanas e sobre os ideais morais, precisamos enxergar além de dificuldades pragmáticas de ocasião e lançar o nosso olhar sobre o horizonte do bem eterno, em cuja contemplação andaram metidos os pais da civilização.

Gustavo França é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista “Dicta& Contradicta”, do Instituto de Formação e Educação.

Publicado originalmente no site da revista Dicta& Contradicta, em 10 de Outubro de 2015. Disponível [online] em <http://www.dicta.com.br/a-decadencia-da-filosofia-moral/>. Último acesso em 13/10/2015.

 

O gênio de El Greco (por Renato José de Moraes)

Artes | 05/10/2015 | | IFE RIO

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Qualquer pessoa que tenha ido a Toledo, na Espanha, concordará que é uma cidade maravilhosa. Somente a Catedral seria suficiente para tornar o local obrigatório para qualquer turista, estudioso da arte ou homem culto, e é inesquecível passar horas contemplando aquelas paredes, imagens, pinturas e soluções arquitetônicas que fazem do edifício algo – não apenas pela sua destinação – sobrenatural. O resto da cidade também é admirável, com as ruas estreitas da época medieval, os bairros dos judeus e dos muçulmanos, as várias igrejas, o Alcázar, os palácios…

Tudo isso de fato impressiona. Porém, além disso, Toledo foi o local onde se desenvolveu a parte mais importante da carreira de um gênio: El Greco. O pintor nascido em Candia, na ilha de Creta, provavelmente no ano 1541, é um desses artistas que trazem novos rumos para seu ofício, estando muitas vezes à frente do seu tempo. Não que El Greco não tenha sido admirado pelos seus contemporâneos; ele o foi. Tanto que seu estúdio era grande e movimentado, com uma carga extraordinária de trabalho entre 1600 e 1608.

Porém, não conseguiu ser o pintor do Escorial, o palácio que estava sendo construído por Filipe II. A pintura que El Greco apresentou para que o rei visse seu trabalho, O martírio de São Maurício, era demasiado distinta do que o próprio pintor havia feito antes com maestria; era menos um quadro para fomentar a devoção, e mais para admirar e refletir a respeito. Parece que Filipe II gostou do trabalho – pelo qual pagou uma boa quantia –, pois o manteve em sua coleção; no entanto, não o empregou para o retábulo do Escorial, conforme seria o desejo do artista.

É uma pena que El Greco não tenha sido o responsável pelas pinturas do palácio real. Contudo, talvez isso tenha sido um bem, porque os pintores da corte deveriam exercer concomitantemente uma série de outras tarefas burocráticas, que atrapalhavam a produção artística. Foi o que se deu com Velásquez. Além de evitar essa dificuldade, El Greco pôde participar de um círculo culto e refinado de cidadãos toledanos, que o valorizavam e admiravam. Vários desses cidadãos foram os que encomendaram as obras do pintor, e dessa forma o sustentaram e tornaram possível que ele se desenvolvesse.

El Greco é o exemplo de artista que bebeu das influências de muitos mestres, especialmente italianos – ele admirava especialmente Ticiano, para ele o maior pintor da época, e também reverenciava Michelangelo e Rafael –, que ele soube conjugar com seu berço grego, marcado pela pintura de ícones e pelo estilo bizantino. Posteriormente, sem rejeitar esses predecessores, ele alcançará um estilo muito próprio, que será considerado por alguns críticos como extravagante e ridículo, mas que na realidade representava uma abertura de horizontes que será devidamente valorizada por grandes nomes modernos, como Picasso e Rainer Maria Rilke.

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No início de sua carreira em Toledo, por volta de 1577, El Greco recebeu duas encomendas: um retábulo para a igreja do mosteiro de São Domingos e um quadro para a sacristia da catedral, O despojamento de Cristo. Nessas obras, ele emprega um estilo romano, calcado em Michelangelo, que privilegia o desenho. Em certo sentido, ele muda da concepção que seria, até então, aparentemente a sua preferida: a de Ticiano, cuja marca distintiva seria primordialmente o uso das cores, que flutuam. O acerto dessas obras garantiu a entrada de El Greco no mundo de Toledo, e toda a Espanha passa a ver nele um pintor excepcional.

Nos anos seguintes, El Greco seguirá nessa trilha e produzirá obras inesquecíveis, especialmente para os que tenham a chance de vê-las ao vivo. Sua Imaculada Conceição, a Anunciação, as diversas representações dos apóstolos e dos santos, o Pentecostes, tudo isso modifica a arte europeia, em especial a religiosa. O fato de as pessoas pagarem para que o pintor as fizesse, e em muitos casos generosamente, mostra que a sociedade em que ele vivia não era especialmente fechada ou conservadora em termos artísticos, ao menos em comparação com os outros países do ocidente. Em 1614, o artista faleceu na cidade de que aprendeu a gostar.

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Toledo é uma cidade de sorte. Nos meus sonhos, parece um ótimo lugar para se morar. De manhã, ir à Catedral; trabalhar; no final da tarde, caminhar próximo do Tejo e comer em algum café ou restaurante. Passear no dia a dia pelas vielas medievais. De vez em quando, tornar a contemplar algumas das inúmeras obras que El Greco deixou por lá. Realmente, nada mal…

Bibliografia: SCHOLZ-HÄNSEL, Michael. El Greco. Köln: Taschen, 2014. 96 p.

* Renato José de Moraes é advogado e doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Publicado originalmente em <http://www.dicta.com.br/o-genio-de-el-greco/>

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Coordenador do IFE Campinas vence prêmio literário

Sem Categoria | 02/10/2015 | | IFE CAMPINAS

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O juiz André Gonçalves Fernandes, coordenador do IFE Campinas  venceu Prêmio de Literatura para Juízes com a crônica ‘Infidelidades Póstumas’

Foto: Divulgação

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Vencedores na categoria crônica, Robledo Matos Alves de Morais (à esq.), Patricia Pires e André Gonçalves Fernandes durante premiação

O juiz André Gonçalves Fernandes, colunista da página de Opinião do Correio Popular às quartas-feiras, foi um dos vencedores do Prêmio de Literatura para Juízes, concurso realizado em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e a Associação Paulista de Magistrados (Apamagis). O magistrado ficou em segundo lugar com a crônica ‘Infidelidades Póstumas’. “Para mim, é uma emoção muito grande porque, de certa maneira, reforça e nos estimula a gastar mais tempo no aprofundamento da literatura, história, filosofia entre outros ramos do saber, que vão me tornar uma melhor pessoa e, como reflexo, me ajudar a ser um juiz mais humano”, afirmou Fernandes.

A premiação aconteceu na Academia Paulista de Letras (APL), em São Paulo, e reuniu magistrados, escritores e autoridades. A abertura do evento foi conduzida pelo presidente da APL, Gabriel Chalita. Em seu discurso, ele declarou que a literatura nada mais é que a história dos sentimentos. “É a capacidade que o ser humano tem, de uma forma singela, de percorrer um pouco as vias das dores, das angustias e também das alegrias em forma de verso, poesia e prosa. E é muito gratificante ver quando os juízes saem do aspecto técnico do seu dia a dia, de suas sentenças, para se debruçarem em sentimentos”, declarou ao enfatizar que essa edição será a primeira de muitas. “Ninguém é um bom escritor se não for um bom leitor e o juiz reúne essas qualidades ao conseguir transferir as emoções por meio da palavra”, finalizou.

O presidente da Apamagis, Jayme de Oliveira, disse também que serão desenvolvidas outras atividades como essa, que possam gerar resultados positivos e de satisfação para os magistrados. “Fiquei muito honrado com a participação dos juízes”, finalizou

Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2015/09/entretenimento/correio_recomenda/383384-magistrado-de-campinas-vence-em-segundo-lugar-de-premio-literario.html

Lembrança de Bernanos (Gustavo Corção)

Literatura | 01/10/2015 | | IFE CAMPINAS

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Lembrança de Bernanos – Gustavo Corção

A Fernando Carneiro

O primeiro sentimento que me veio, quando Fernando Carneiro me comunicou por telefone a morte de Bernanos, foi uma falta enorme, instantânea, brusca, como se aquele homem que apenas encontrara meia dúzia de vezes, e que se achava perdido para mim, “somewhere in France”, estivesse ligado à minha vida com os vínculos de uma antiga amizade. E estava. Realmente, estava. Sem que eu mesmo o soubesse, Bernanos tinha deixado em mim a marca inapagável de um contato verdadeiramente humano. Um minuto antes da notícia, mal me lembrava de seu vulto, de sua voz, de suas bengalas, de sua cólera pronta e de sua prontíssima ternura. Agora, pondo o fone no gancho, eu sentia crescer em mim, por todos os lados, em torno, atrás, adiante, nas recordações e nas esperanças uma falta enorme.

Desenhava-se, com a nitidez das coisas duras que se partem, os contornos do buraco que acabara de me engolir um amigo. E eu via, ampliados e detalhados, o que deveriam ter sido os nossos poucos encontros – e o que não foram. A sensação crispada de uma frustração assaltava-me lembrando cada conversa nossa, cada gesto, cada tentativa de entendimento perfeito que se havia detido em nossos duros limites. Mesmo agora, poucos dias atrás, eu devia ter escrito uma carta – e não a escrevi. Devia ter enviado umas revistas em que nós o defendíamos e que certamente lhe dariam prazer – e não as enviei. Adiara a carta, protelara a remessa das revistas, calculando, como se costuma fazer entre vivos, que o tempo é ilimitado e a vida inextinguível.

A morte projeta uma luz rasante e crua que tem a esquisita propriedade de exaltar as minudências de um passado perdido, transformando a lembrança aparentemente mais clara e mais lisa numa paisagem lunar com suas montanhas e crateras. Que importância tem agora a carta que interrompi e que não enviarei hoje a um amigo distante que ainda pertence à orgulhosa aristocracia dos vivos? Nenhuma, evidentemente. Que importância tem o gesto de enfado com que hoje afasto a criança que me puxa pelas calças? Nenhuma, evidentemente. E o telefone que não toquei, e a mão que encolhi, e a visita que adiei? A vida é uma planície imensa mal varrida, cheia de quinquilharias inúteis: cacos de gestos, cacos de palavras, por aqui, por ali, dificultando os passos… quantas vezes temos vontade de proceder a uma sistemática eliminação de incômodos, e de por um pouco de ordem nesse chão cheio de escombros?

Chega então a morte, e de repente, no cemitério das lembranças truncadas, corre um frêmito de vida. E as lembranças aleijadas se levantam, e tudo na vida passada nos parece abortivo e irremediável. Quem poderia adivinhar que aquele desenho de criança, representando uma casinha no alto de um morro, com um sol ingenuamente dardejante por trás, seria contemplado com religioso temor, à luz da morte, por entre a névoa das lágrimas? A mãe do menino atropelado desculpa-se de ter posto fora os outros desenhos. O irmão do menino atropelado chora de ter comido na véspera o pedaço maior da sobremesa. E tudo isto, entre nós, os vivos, os orgulhosos vivos, que não sentiram o gosto dos abismos, parece ridículo, insensato, passageiro, porque entre nós parece estar definitivamente estabelecido que essas coisas miúdas são o lixo da vida.

O que no primeiro momento mais se chora no morto não é falta que se adivinha para amanhã ou depois: é a falta atroz que ele já faz no passado. É a decepção, é o sentimento agudo de uma frustração naquilo mesmo que mais solidamente nos parecia adjudicado. A falta que o morto irá fazer dia por dia, no futuro, essa, chegará a seu tempo envolta numa tristeza que, de certo modo, é boa e harmoniosa. Imaginamos facilmente encontros perfeitos, soluções perfeitas, se o morto estivesse ali. Ao contrário, a retrospecção, diante da morte, deixa-nos o gosto amargo dos encontros imperfeitos e das soluções imperfeitas. E o peso do nunca-mais nos oprime intoleravelmente.

Nós não precisamos corar da boa e humilde saudade de nossos mortos; nem precisamos pensar que a Fé e a Esperança nos proíbem as lágrimas da saudade. Mas o que não devemos permitir, de modo algum, é que se instale em nós esse primeiro dardo com que a notícia da morte nos fere.

Eu gostaria de dizer a quem tenha seus mortos, à mãe do menino atropelado, ao irmão que chora hoje pelo olho-grande de ontem, e aos outros, que têm seus mortos, que a tristeza de não ter dado o que devia ter sido dado tem uma solução perfeita.

O insulto que a morte nos causa não pode ser vencido pela Fé e pela Esperança, que são virtudes da peregrinação. A idéia de que o morto esteja no céu, e o consolo de esperar que lá o encontraremos, não basta entretanto para curar a ferida das faltas que ficaram para trás. Precisamos abraçar-nos à virtude que não passa, à Caridade, que é a única que vence a morte e que desconhece a separação entre o passado e o futuro. A solução perfeita desta tremenda sabatina da morte está na transferência das dívidas. Pague-se aos outros o que já não se pode pagar ao que morreu, e vem tudo a dar na mesma, e vem tudo se encontrar na mesma pirâmide de ofertas e donativos, o patrimônio da comunhão dos santos, de cuja distribuição Deus mesmo se encarrega. Valha-nos agora essa angústia passageira causada pelo invisível para que melhor sirvamos o visível, e assim o morto começa logo na eternidade o seu ofício de advogado dos vivos.

A falta que senti de Bernanos, brusca, instantânea, era dessa amarga espécie, feita de retrospecções. Não se tratava do buraco enorme, difícil de preencher. Não me lembrei de Bernanos escritor, de Bernanos grande, de Bernanos genial, senão mais tarde, no dia seguinte, lendo o jornal. Lembrei-me de Bernanos-Bernanos. No momento em que depus o fone no gancho, mal acabando de ouvir a voz perturbada de Carneiro, não me passou pela idéia escrever um artigo que começasse assim: “Calou-se uma grande voz…”. Não me ocorreu escrever artigo nenhum; e efetivamente não o escrevi; mas não me gabo disto, porque seria melhor ter escrito.

O que me surgiu pela frente, naquele instante, foi o decalque, o negativo absoluto da figura de Bernanos, viva, pessoal, única, para me cobrar as oportunidades perdidas. E andei longo tempo, sentindo do morto a saudade que não sentira do vivo, até conseguir alinhavar, para os outros, para o que desse e viesse, essa meia dúzia de páginas de recordações.

Foi numa tarde de domingo, há três ou quatro anos, que recebi pelo telefone o aviso — e até diria o apelo — do amigo Fernando Carneiro:

— Bernanos está aqui. Em casa de Murilo! Venha! Venha!

Larguei o jornal que estava lendo e expliquei à minha mulher a natureza e a procedência do recado, acrescentando que não me esperasse para o jantar. Desci a rua contente. Ia ver Bernanos.

Mas — levado pelo péssimo costume de discutir tudo comigo mesmo, e de analisar e esmiuçar as razões dos menores prazeres, arriscando-me a achar a razão perdendo o prazer, ou levado talvez pelo comodismo domingueiro que me censurava o abandono do jornal e da poltrona — pus-me logo a criticar esse desejo de ver Bernanos, essa fútil curiosidade, como se possa haver o que mereça ser visto num autor de livros. De fato, o que ele tinha de melhor estava-me ao alcance da mão, sem por a gravata e sem tomar o ônibus. Bastava tirar um volume da estante para ter Bernanos, a melhor parte de Bernanos. Bastava abrir Journal d’un Cure de Campagne ou Lettre aux Anglais, para receber, com segurança e conforto, as golfadas de gênio do escritor que ousou dizer o escândalo da verdade, e ousou sondar o escândalo da santidade.

Além disso, desde aquele tempo, embora não tanto como hoje, eu já tinha uma sadia aversão por essas reuniões de pessoas implacavelmente condenadas a só dizerem coisas interessantes. Gostava de visitar Murilo, aquele doente que a gente ia ver para sair confortado. Gostaria de conversar com Bernanos, se pudesse começar pela centésima vez. Mas a idéia daquele encontro arranjado e fugaz, que mal daria tempo para vencer as primeiras dificuldades do vocabulário, fazia crescer em mim o desejo de voltar atrás trocando Bernanos pelo livro e a caminhada pela poltrona.

Felizmente — digo-o hoje, depois de saber que Bernanos morreu — o meu discurso interior durou tanto quanto a caminhada e quando chegava à pessimista conclusão sobre o valor das conversas literárias, estava diante do portão da velha casa em que Murilo morava. E, fosse pela lei do quadrado da distância, fosse pela vitória da simplicidade sobre os retorcidos meandros de minha dialética, o fato é que entrei.

Anoitecia. O casarão, recuado da rua enfronhado entre as árvores de um velho jardim de outrora, parecia esconder-se dos indiscretos, como um fidalgo arruinado que disfarçasse a pobreza. O portão era pesado e rangia. Onde e quando empurrara eu assim, faz muito tempo, um portão pesado que rangia? Indecisamente, oscilando entre as calças curtas e o despontar do bigode, ora moço, ora menino, entrei pelo jardim a dentro, sem saber se era brinquedo ou chicote queimado ou encontro de namorada. Dois patos, graves e pachorrentos como duas tias velhas de muito antigamente, passaram falando qualquer coisa de mim — do menino travesso ou do moço galante — e desapareceram na sombra, continuando a conversa, cuáh-cuáh-cuáh …, num tom mexeriqueiro e confidencial.

Abriu-me a porta uma senhora idosa, alta e magra, que trazia um gato ao colo. Fez-me um sinal misterioso; exatamente o que deveria fazer se nós dois tivéssemos saído, naquele instante, duma estampa de livro de aventuras e crimes. Atravessei uma sala de estar espaçosa e mal iluminada, onde cinco ou seis pessoas de nacionalidades indecifráveis conversavam com cicios, como se conspirassem, entre a fumaça dos cigarros. Ao pé da escada um gato preto, que lambia um pires de leite, olhou-me com maldade e fugiu, pondo ao canto desse quadro, já sombrio, uma sinuosa pincelada negra.

Subi uma escada imensa que me deixou num corredor ainda mais escuro. No fundo, à direita, uma fresta de luz, uma porta, um retrato de Mozart: era o quarto de Murilo.

Nessa noite o quarto estava cheio. Perdi-me na confusão dos boas noites, uns em francês, outros em vernáculo, e foi só depois de me instalar numa cadeira ao canto, perto da porta, e depois de me aliviar da humilhante sensação de recém-chegado, que pude reparar em Bernanos.

Bernanos, no centro do quarto, sentado numa cadeira de braços, estava sendo torturado pelos quatro cavalos da amizade e da admiração. Parecia cansado e angustiado. Enquanto um senhor desconhecido, grego, rumáico ou tcheco, tentava em vão economizar Bernanos, Carneiro, do outro lado, sentado num tamborete baixo, procurava acender o misterioso pavio que fizesse explodir a mina da esperada e generosa indignação.

Bernanos pareceu-me uma montanha. Estava sendo explorado. Estava sendo escalado, percorrido, sondado por mineiros ávidos de novos filões. Ou então era um navio, um enorme e velho navio de muitas viagens, que tivesse encalhado ali em país exótico, com os porões abarrotados de tesouros…

Na rua choviscava. Bernanos, apoiado em suas bengalas, recusava-se a acompanhar Carneiro, queixando-se do cansaço, da angústia, da escada imensa que mal conseguira vencer com suas pernas entropiadas, e que descera depois, a força das bengalas, com o estrépito de um centauro doente. Carneiro bem sabia como ele estava doente, como sofria, e assim mesmo fizera-o falar diante daquelas pessoas. Que dissera ele? Que dissera ele àquelas pessoas? Que esperava Carneiro que ele pudesse dizer àquelas pessoas que lá o tinham ido escutar?

Mas Carneiro, esquivando-se às objurgatórias do artista inquieto de como falara, e do arauto preocupado com o que falara, puxou pelo menino escondido dentro do velho atleta, e levou-o dali, já docilmente, embora ainda a gemer, para um jantar no Recreio, sou les arbres.

Escolhemos porém a mesa na varanda, por causa da chuva, que crescera. Bernanos mal percebeu a falta das árvores. Sentado diante de mim, cotovelos fincados na mesa, capa impermeável aberta no peito, chapéu do mesmo pano, amassado, e posto de qualquer jeito no alto da cabeça, ele me parecia agora um recém-chegado de dolorosa peregrinação que ainda trouxesse no rosto a agonia dos naufrágios e o susto das emboscadas.

Ali estava George Bernanos. Agüentava a cabeça fatigada nas mãos, e os dedos entravam pelas carnes do rosto envelhecido, indo esmagar o olho esquerdo que tomava posições e proporções cômicas, enquanto o outro, livre da brutal trituração, guardava a serenidade e a candura de um olho azul de criança.

Ali estava George Bernanos. O autor de Sous le Soleil de Satan. O francês de verbo fustigante que viera ao Brasil “cuver as honte”. O bom cristão que, pelo menos, não tinha a pesar na consciência o crime de calar a justa indignação e a vergonha de fazer da mediocridade um estandarte e um voto.

Provocado por Carneiro, pôs-se a contar que passara toda a manhã em São Bento, que conversara muito com o Père Paul, que recebera a santa comunhão na capela… e logo, num salto brusco, pôs-se a rugir contra o barroco da igreja, e contra o especial estilo de cristandade inventado pelos portugueses. E enquanto ele falava, parecia-me ver no seu olho direito (porque o esquerdo, cada vez mais macerado, parecia prestes a saltar) o itinerário daquele peregrino. Não sei por que, se pela capa mal abotoada, ou pelo fato de ser um estrangeiro, voltava-me com persistência a idéia de que era um recém-chegado. “Quelqu’un qui vient d’arriver”. E que, depois de comer com pressa, vai continuar, agarrado às suas bengalas, a jornada apenas interrompida. Bernanos, não sei porque, não me deixava pensar em coisas quietas e estáveis: em família, em casa, em jardins. Ao contrário, o panorama que obscuramente corria por trás de suas palavras, eram quilhas erguidas nas ondas, ou eram cavalos fogosos com crinas ao vento, em planícies imensas vistas num relance, da janela de um trem, e longe, lá num horizonte de sonho, as montanhas roxas, como um renque de enormes hortênsias de pedra.

Mas, esse itinerário que eu via na transparência de seu olho, agora perdido num ponto do espaço, acima de nossas cabeças, era o da aventura nascida na infância, e continuada no obstinado menino que aquele hercúleo São Cristóvão carregava pelas águas. Ele diz que esse menino morreu: “Le plus mort des morts est le petit garçon que je fus…” Mas já contava com esse morto supervivo para o instante supremo, esse de que Carneiro me deu notícia há pouco pelo telefone: “… et pourtant, l’heure venue, c’est lui qui reprenda as place a la tête de ma vie, rassemblera mês pauvres années jusqu’a la dernière, et, comme um jeune chef ralliant ses veterans et la troupe em desordre, entrera le premier dans la Maison du Père”.

Bernanos continuava a falar. Ora exaltado, ora enternecido. Sua indignação, aliás, não é outra coisa senão a viril manifestação de sua infantil e inesgotável capacidade de se enternecer. Como poucos, ele sente os contrastes. Sente o claro-escuro do mundo. Adivinha a tragédia de seu tempo. E debate-se entre um mundo de traficantes, e um mundo de maravilhas.

Foi então que Fernando Carneiro, aproveitando um silêncio maior, e usando o quase privilégio seu de improvisar situações absurdas, perguntou:

— Bernanos, você gosta deste meu amigo?

Em condições ordinárias essa pergunta teria uma enorme banalidade ou uma chocante impropriedade. No caso, de absurda, tornou-se simples e natural. Em lugar de responder logo com amabilidade, ou de esquivar-se com um subterfúgio, Bernanos levou a sério a pergunta, e, detendo o discurso que ia recomeçar por cima de nossas cabeças, olhou-me demoradamente, e, por fim, com um sorriso franco e bom, declarou que gostava.

Nesse momento exato nós três, Bernanos, Carneiro e eu, poderíamos ter calças curtas e blusas à marinheira, porque, no fogo de uma amizade nova, tínhamos os corações limpos dos meninos de oito anos.

 

Publicado originalmente em: <http://www.formacaopolitica.com.br/artigos/lembranca-de-bernanos-gustavo-corcao/>

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Viagem de um ao mesmo lugar (G.K. Chesterton)

Literatura | 28/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Alguém que me pareceu ser um viajante, a julgar pelas aparências, aproximou-se de mim e indagou-me: “Qual é o caminho mais curto para se ir de um lugar ao mesmo lugar?”

O sol ocultava-se atrás de sua cabeça, de modo que não pude decifrar-lhe o rosto.

— Certamente, respondi, é permanecer no mesmo lugar.

— De modo algum, replicou. O caminho mais curto para se ir de um lugar ao mesmo lugar é dar volta ao mundo.

E foi-se.

White Wynd vivia com a família na Fazenda Branca, ao pé do rio. Ali mesmo nasceu, cresceu e contraiu casamento. A Fazenda era cercada pelo rio por três lados, como um castelo. No quarto havia estábulos e além dos estábulos uma horta, e além da horta um pomar, e além do pomar um muro baixo, e além do muro uma estrada, e além da estrada um pinheiral, e além do pinheiral um campo de trigo, e além o campo de montanhas furando o céu, e além… mas não devemos, a despeito da tentação, catalogar o mundo inteiro.White Wynd não conhecia outro lar senão o seu. O seu mundo estava confinado àquelas paredes. O céu era o telhado.

Tudo isso é que torna tão estranho o seu procedimento.

Nos últimos anos ele já raramente transpunha a soleira da porta. A indolência deixava-o inquieto e mal humorado. Vivia ansiando pelo próximo momento.

A esposa e os filhos, muito embora fossem ótimas pessoas, eram os que mais sofriam com as mudanças de seu temperamento. Mesmo para eles seu coração tornara-se árido e amargo. Recordava-se, confusamente, dos dias difíceis de luta pelo pão, quando, regressando à noite do trabalho, via sua casa brilhar como ouro, como se estivesse povoada de anjos. Mas a lembrança esfumava-se como um sonho.

Cada dia que passava sentia-se mais capaz de compreender outros lares, menos o seu. O seu era apenas uma casa. A nostalgia tomara conta dele, fechando-lhe os olhos e os ouvidos.

Alguma coisa, enfim, se passava dentro dele: um vulcão; um terremoto; um eclipse; uma aurora; um dilúvio; um apocalipse. Não será o apêlo a palavras grandiosas que nos desvendará o mistério de seu coração.

Muitas e muitas vezes a manhã surpreendera a pequena familia reunida na cosinha para a primeira refeição. Na última vez o pai, interrompendo o café, falou cismadoramente:

— Aquele campo verde, brilhando ao sol, como que me lembra um campo de meu próprio lar.

— Seu próprio lar? perguntou a esposa. Esse é o seu lar.

White Wynd ergueu-se e sua figura parecia cobrir toda a sala. Apanhou o chapéu e o bordão, cobertos de pó.

— Pai! exclamou um dos filhos. Aonde vai?

— Para casa.

— Como assim? Se esta é sua casa. Aonde vai, pai?

— Para a Fazenda Branca, ao pé do rio.

— Mas é esta!

Ele as olhava tranqüilamente quando a filha mais velha leu a verdade nos seus olhos.

— Oh! Ele está louco, gritou.

E enterrou o rosto nas mãos.

White Wynd falava calmamente.

— Você, acrescentou dirigindo-se à filha, você me lembra um pouco a minha primogênita… mas não tem o mesmo olhar dela, aquele olhar que era como uma benção depois do trabalho.

— Senhora, disse, voltando-se cortesmente para a esposa boquiaberta, agradeço-lhe a hospitalidade, mas receio que já haja abusado muito dela. E meu lar…

— Pai! Pai! responde-me. Não é este o seu lar?

O velho brandiu o bordão no ar.

— Os portais estão cobertos de teias de aranha e as paredes estão marcadas pelas chuvas. As portas dobram-me e as vigas esmagam-me. Só há ninharia, disputa e rancores atrás dessas rótulas onde tenho vivido há tanto tempo. Lá na casa onde nasci, longe do mundo, há pão e água, fogo e roupa, e todos os mistérios e artifícios do amor. Há descanso para os pés fatigados e rostos tranqüilos para repouso dos corações famintos.

— Onde? Onde?

— Na Fazenda Branca, ao pé do rio.

E atravessou a porta, o sol brilhando-lhe na face. E os moradores da Fazenda Branca olharam-se com espanto.

White Wynd, na ponte de madeira sobre o rio, sentiu o mundo a seus pés. Um grande vento veio-lhe ao encontro, do outro lado do céu (da terra de maravilhosos reverberos). Quem pode saber o que significa para o homem o efeito do primeiro vento soprando em campo aberto? Ele, pelo menos, sentia-se como se Deus houvesse puxado sua cabeça para trás e beijado-lhe a fronte.

Wynd gastara-se no repouso, sem saber que o remédio está no sol, no vento e no próprio corpo. Estava propenso a acreditar que usava agora a bota de sete léguas.

Ia para casa. A Fazenda Branca devia estar atrás de cada bosque e além de cada montanha. Procurava-a como procuramos o país das fadas, em cada volta do caminho. Só não a buscava numa direção, lá onde, a uma milha atrás, erguia-se a Fazenda Branca, fulgurando contra o céu brumoso da manhã.

Sentia-se como um gigante comparado com os dentes-de-leão e os grilos ao seu redor. É um velho costume nosso medir-nos pelas montanhas. Todo objeto pode ser infinitamente grande como infinitamente pequeno. E Wynd cresceu como um crucificado na sua incontida grandeza.

— Ó Deus, vós que me criastes e a todas as coisas, ouvi quatro cantos de louvor. Um por meus pés, que fizestes fortes e ligeiros sobre vossas margaridas; um por minha cabeça, que vós erguestes e coroastes acima dos quatro cantos do céu; um por meu coração, que fizestes igual ao coração dos anjos entoando a vossa glória. E um por aquela nuvenzinha pálida ao longe, sobre as colinas.

E White sentiu-se como um novo Adão recentemente criado. Era o senhor de todas as coisas, inclusive do sol e das estrelas.

Devia ser uma epopéia a história da viagem de White Wynd. Ele viveu esquecido e esmagado nas grandes cidades. Contudo não esmoreceu. Trabalhou nas pedreiras, nas docas de todos os países por onde passou. Viveu inúmeras existências, como uma alma errante. Até entre vagabundos, forçados, marinheiros e pescadores. Cada um contou-lhe o acontecimento decisivo de sua vida. Até o homem alto e magro, de olhos iguais a duas estrelas, estrelas de uma velha obstinação.

Mas ele nunca se desviou dos limites da terra. Uma tarde suave de verão, todavia, sucedeu-lhe a coisa mais estranha de toda a viagem. Esforçava-se penosamente para galgar uma enorme duna, que tudo ocultava, como se fosse a própria cúpula do mundo, quando, de súbito, invadiu-o uma sensação estranha. Olhou para trás a ver se descobria qualquer sinal de fronteira, pois a sua sensação era de quem acabasse de ingressar no país das fadas. Com o espírito abrasado por novos sentimentos, assaltado por lembranças confusas, marchou penosamente no topo da colina. O sol no ocaso raiava na sua glória universal. Entre ele e o sol, à altura dos campos, uma como nuvem branca surgiu ante seus olhos marejados. Não, não era uma nuvem. Era um palácio de mármore. Não, era a Fazenda Branca, ao pé do rio.

Chegara ao fim do mundo. Todo lugar na terra é o começo ou o fim, segundo o coração do homem. Eis a vantagem de se viver num planeta esférico.

Anoitecia. Toda a extensão da terra onde estava fundira-se em ouro. A relva transformara-se em fogo sob seus pés. White Wynd estava tão quieto que os pássaros pousaram no seu bordão.

A terra inteira na sua glória parecia rejubilar-se com a volta do homem pródigo, os pássaros reconheciam-no. A própria Natureza estava na posse do seu segredo, o homem que tinha viajado de um lugar para o mesmo lugar.

Apoiou-se com fadiga no cajado. E mais uma vez ergue a sua voz.

— Ó Deus, vós que me criastes e a todas as coisas, ouvi quatro cantos de louvor. Primeiro por meus pés, que estão feridos e vagarosos, agora que se aproximam de minha casa. Um por minha cabeça, que está dereada e encanecida, agora que a coroastes com o sol. Um por meu coração, porque lhe ensinastes na tristeza e na esperança sempre adiada, que é a estrada que faz a casa. E um pelas margaridas a meus pés.

Desceu a encosta da colina e penetrou no pinheiral. Os raios vermelhos e dourados do sol agonizante derramavam-se sobre as casas da fazenda e os galhos verdes das macieiras. Era agora o seu lar. Mas ele só ficou sendo o seu lar depois de o ter abandonado. Só agora que voltava de uma longa viagem. Era o Filho Pródigo.

Saiu do pinheiral e atravessou a estrada. Transpôs o muro baixo, errou através do pomar e da horta, passou pelos estábulos dos animais. E no pátio de pedra viu sua mulher puxando água.

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