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Arte e imaginação

Opinião Pública | 28/11/2014 | | IFE CAMPINAS

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Para alguns pode soar estranho um seminário cultural dedicado ao tema da imaginação. É comum associarmos a imaginação ao universo infantil, com seus super-heróis e personagens da Disney. Mas foi esta a proposta do Instituto de Formação e Educação – IFE e da Academia Campinense de Letras, no encontro ocorrido no último dia 08 de novembro, na sede desta última. Com o tema “Por que a imaginação importa?”, durante mais de três horas os presentes puderam refletir sobre o importante papel da imaginação na formação humana e os impactos do seu esquecimento na cultura atual.

Segundo Aristóteles, a imaginação é a mediadora fundamental entre o pensamento e a realidade. Só podemos pensar as coisas existentes por meio de imagens. Nossos sentidos (visão, audição, tato, olfato etc.), que em conjunto formam a percepção, captam fragmentos da realidade formando imagens, que, por sua vez, compõe o que chamamos de memória. A memória é, assim, o registro da imaginação. Por isso, o que não está na nossa imaginação (e na nossa memória), não existe para nós, pois é ela que nos revela as possibilidades do real.

Nossa imaginação é alimentada o tempo todo, mesmo que não estejamos conscientes disso. Tudo aquilo que vemos, ouvimos, tocamos, enfim, tudo o que experimentamos direta ou indiretamente do mundo, de alguma maneira fica registrado em nossa memória e passa a compor o nosso mundo interior. E é a partir destas imagens que concebemos a realidade e com ela nos relacionamos, formando aquele conjunto de idéias, valores e símbolos que orientam as nossas ações. Por isso, a importância de cultivar a imaginação, escolhendo, na medida do possível, a que vamos nos expor, para bem formar a nossa memória e, por fim, a nossa própria personalidade.

Infelizmente, a cultura tecnológica e materialista em que vivemos relega à imaginação um papel irrelevante. Com uma visão estritamente científica, restringe a percepção da realidade aos seus aspectos quantitativos, ao que se pode medir por critérios racionais-empíricos.  Tudo o que está além do âmbito restrito da ciência é considerado irreal e irracional. Em consequência, a imaginação perde o seu lugar como um elemento essencial da cognição e da ação humana na realidade, passando a ser considerada apenas uma fuga do real, uma mera diversão, um entretenimento.

Por sua vez, este abandono da dimensão imaginativa faz com que fiquemos “esmagados pela literalidade das coisas”, para usar uma expressão citada pelo professor Roberto Mallet.  A realidade se apresenta somente pelo que nos atinge de forma literal e imediata, fazendo crer que tudo o que extrapola esta literalidade é irreal, é fuga, é delírio. Assim, quem quer, por exemplo, saber o que é uma flor deve consultar um livro de botânica e se dar por satisfeito. Os poetas podem dizer coisas lindas sobre as flores, mas poemas são tidos apenas como exercícios lingüísticos, meras metáforas, que nada dizem sobre a essência de uma flor.

Há, por assim dizer, uma percepção desencantada do mundo, pois a ciência, embora nos permita descobrir aspectos importantes da realidade, não nos permite perceber justamente o que lhe é essencial. O resultado deste desencantamento é a perda do sentido da própria realidade, pois o que dá sentido às coisas é o que transcende o seu aspecto meramente material e técnico. O que dá sentido a uma flor, para ficarmos no mesmo exemplo, não é a descrição do seu funcionamento, muito menos a sua utilidade. O que lhe dá sentido é o mistério do seu ser flor, algo que jamais pode ser captado pelo método científico, mas que é tão real quanto o que a ciência pode explicar.

Cultivar a imaginação, portanto, ao contrário do que pode parecer, é ampliar nossa percepção para ir ao encontro da realidade mesma, um encontro que é também um encantamento. Este é um dos principais papéis das artes, conduzir-nos de volta à realidade das coisas, livres da intenção cotidiana de transformá-las ou utilizá-las para qualquer fim, mas tão-somente convidando-nos a contemplá-las em seu mistério. De fato, nem tudo o que hoje se denomina “arte” se presta a este papel. Mas poderíamos dizer que a verdadeira arte só é arte na medida em que nos leva, pela imaginação, a este maravilhamento do mundo, libertando nossa percepção da sua literalidade, para nos revelar seu verdadeiro sentido.

João Marcelo Sarkis, advogado, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas

Artigo publicado no jornal Correio Popular de 28 de novembro de 2014, na página A-2 – Opinião.

Eterno enquanto dure?

Opinião Pública | 23/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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Cada vez mais cresce entre nós o que se tem denominado “cultura do provisório”, na qual nossas escolhas são pautadas pelo efêmero e até mesmo pelo fútil.  Em tempos de tantas mudanças rápidas e em muitos níveis, uma pergunta frequentemente vem à tona: será que no contexto da cultura moderna ainda são válidas as decisões definitivas de vida? Será que decisões “para sempre” são possíveis, ou temos de aceitar o “eterno enquanto dure”, como no famoso poema de Vinícius de Moraes?

Nas últimas décadas, por exemplo, vimos difundir-se na sociedade a prática do divórcio, juntamente com a ideia de que a separação é uma fase natural e inevitável da maioria dos casamentos, que apenas excepcionalmente duram “para sempre”. O compromisso definitivo é visto como algo antiquado e até impossível, fruto de um passado patriarcal que ficou para trás e que já não pode servir de modelo para os casais. Neste contexto, muitos optam simplesmente pelo “morar juntos”, sem qualquer compromisso formal. Não que a formalidade por si só seja garantia de uma relação duradoura, mas, sem dúvida, sem ela a relação pode ser feita e desfeita com muito mais simplicidade e rapidez.

As recentes alterações legislativas no direito de família, principalmente com a emenda do divórcio (EC nº. 66/2010), seguem também esta mesma direção, buscando tornar cada vez mais fácil desfazer os vínculos familiares. Sob o pretexto de proteger a liberdade e a dignidade dos casais em crise, o próprio direito que deveria tutelar e proteger a família, acaba por promover a sua desintegração. Tal qual o título da obra de uma festejada doutrinadora nacional, “Divórcio já!” é o novo grito de ordem que pretende abafar o choro e as lágrimas que entoam o dia-a-dia das varas de família, transformando em festa o que, normalmente, é uma tragédia.

Por outro lado, é claro que esta concepção acaba por influenciar também os adolescentes e jovens. A importante fase do namoro, que deve ser um período de amadurecimento com olhos para um futuro casamento, é muitas vezes vivida numa ambiente de curtição, sem qualquer responsabilidade, quando não é simplesmente substituída pela prática do “ficar”, com direito a sexo casual entre desconhecidos. Impulsionados pela ilusão de uma vida fácil, muitos até se arriscam a um projeto de “solteirice”, já não querem comprometimento algum que não seja com o próprio umbigo (ou com a genitália).

O que sustenta a “cultura do provisório”, entre outras coisas, é a crença de que a vida humana encerra-se nos nossos desejos e impulsos (sentimentalismo) e nas nossas convenções sociais (relativismo). Despido da referência de uma ordem externa e superior, o homem vê-se fechado em si mesmo (egoísmo) e amarrado pela precariedade de um mundo em que não há valores objetivos e absolutos que dão sentido às suas decisões. A partir disto, surge um modelo de felicidade baseado na busca do prazer e do bem-estar (hedonismo) e numa concepção de liberdade como possibilidade de fazer tudo aquilo que se tem vontade.

Neste âmbito, de fato, já não faz mais sentido compromissos duradouros, que vinculem de forma definitiva, porque estes só são possíveis quando baseados no verdadeiro amor, que significa sacrifício e entrega total ao outro. Se não existe uma verdade que aponta para grandes ideais e propósitos em nome dos quais vale a pena lutar e enfrentar as dificuldades para permanecer em união, então tudo é possível e temos que estar sempre abertos a mudanças e rupturas de todo tipo. As nossas mais importantes decisões ficam sujeitas aos caprichos de cada um e a consensos provisórios que duram tanto quanto as opiniões e sentimentos que os geraram. Acabamos perdidos em uma cultura frágil e imatura que, ao invés dos referenciais mínimos que precisamos para viver bem, oferece-nos a insegurança, o medo, a solidão e o vazio existencial que amargamente temos visto em nossos dias.

Por isso, se realmente queremos viver em terrenos mais firmes, que possibilitem o desenvolvimento integral do homem, então é essencial promover uma cultura baseada na verdade e na razão, naquilo que o poeta T.S. Eliot chamou de “as coisas permanentes”. Que  conduza a compromissos duradouros, baseados no amor e na vontade livre e consciente que escolhe o bem e rechaça o mal, independentemente de sentimentos e opiniões, pois reconhece uma ordem de valores e princípios absolutos e objetivos, sem os quais a vida se torna um caos. Assim, insistir em decisões definitivas é, antes de tudo, afirmar o valor da vida e dos grandes ideais, elevando o espírito humano para além das precárias condições de uma realidade provisória, para abrir um verdadeiro caminho de dignidade e felicidade.

João Marcelo Sarkis, advogado, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 23 de Setembro de 2013, Página A2 – Opinião.

Aborto e democracia

Opinião Pública | 09/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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O dia 28 de setembro é o Dia Latino-caribenho pela Descriminalização do Aborto. Talvez você nunca tenha ouvido falar dele, mas, provavelmente, deve ter percebido que, por “coincidência”, nas últimas semanas surgiram na mídia reportagens e notícias sobre o tema, além de algumas manifestações nas ruas. A data foi escolhida em 1990, durante o V Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, para ser um marco, nestes países, da militância do chamado movimento abortista mundial (que, talvez, você também não conheça, mas, certamente, já deve ter presenciado a sua atuação).

Embora venha atuando sistematicamente no Brasil há pelo menos 30 anos, com o apoio de diversas entidades nacionais e internacionais, inclusive partidos políticos, esse movimento sem fronteiras, articulado, poderoso e financiado por fundações milionárias (como Ford, Rockfeller, MacArthur e outras) é ignorado pela maioria dos brasileiros. Isto acontece porque a sua principal estratégia é justamente a desinformação, essencial para quem pretende manipular a opinião alheia e colocá-la a serviço de seus próprios interesses.

De fato, para o movimento abortista a promoção do debate público na mídia e nas universidades é apenas a encenação de uma grande farsa. Trata-se apenas de uma estratégia de ocupação de espaços e criação de um clima propício para atuar a sua agenda. O intuito é simplesmente a cooptação de “idiotas úteis” que, ingenuamente, são conduzidos por suas falácias a comporem a massa que permitirá a realização de seus reais objetivos. E quem se atreve a se opor é automaticamente visto como inimigo e será alvo do mais terrível patrulhamento ideológico, leia-se: será perseguido, caluniado e, se possível, jogado no ostracismo.

O debate livre e transparente só favorece quem está disposto a declarar suas ideias e objetivos, sem medo de coloca-los à prova. Não é o caso do movimento abortista, que não possui um genuíno interesse em um diálogo racional em prol da melhoria da vida humana. O que existe é uma posição tomada a priori com objetivos ideológico-revolucionários (jamais declarados) e a busca ensandecida pela sua imposição política por meio de uma militância profissional. Tudo, é claro, com as melhores intenções. Veja bem, não se trata de uma organização qualquer, que pretende participar democraticamente do debate público e convencer as pessoas sobre convicções legítimas e verdadeiras. Mas sim da manipulação de pessoas para obter apoio para uma agenda conhecida somente pelos seus líderes.

Qualquer discussão séria pressupõe a boa-fé dos participantes e o comprometimento com a verdade. Mas o atual debate sobre o aborto, falsamente promovido pelo movimento abortista, está todo contaminado por mentiras e ambiguidades que, de antemão, o inviabilizam: estatísticas falsas, argumentos ilógicos, testemunhos forjados, linguagem deturpada, camuflagem de interesses, afastamento deliberado da realidade. Para compreender melhor esse aspecto, vale a pena assistir ao filme “Blood Money —Aborto Legalizado”, de 2013, disponível na íntegra no YouTube. Baseado na experiência norte- americana, traz um relato da tragédia abortista naquele país, mostrando o que existe por trás da milionária indústria do aborto e da promoção internacional da sua legalização.

Além disso, também vale a pena conferir alguns sites na internet, como o americano Life Site News (http://www.lifesitenews. com/), o da Associação Nacional Pró-vida e Pró-família (http://providafamilia.org/), o do Pró-vida de Anápolis (http:// www.providaanapolis.org. br/), o Juventude pela Vida (http:// juventudeprovida.wordpress. com/), apenas para citar alguns, onde se encontram diversos artigos e referências bibliográficas para um estudo sério sobre o assunto. Ao contrário do que comumente se ouve entre os defensores da agenda abortista, facilmente se perceberá que a discussão vai muito além de posturas moralistas, machistas, patriarcais ou seja lá que outro rótulo queiram inventar para desqualificar seus interlocutores.

Enfim, fica o convite a cada leitor, para que não se deixe conduzir passivamente pelas falácias da militância abortista, mas procure estudar com seriedade as ideias em jogo e conhecer a realidade dos fatos por trás dos discursos. Somos livres para construir nossas opiniões, mas não temos direito de expressá-las de forma irresponsável. Mais que um direito, cada cidadão tem o dever de se informar e formar honestamente a sua consciência individual e política. Esta é a arma que possuímos para que a democracia não degenere na demagogia, um mal tão grave como a pior tirania, com ensinava Aristóteles. Talvez descobrirá as verdadeiras origens da opinião que pensava ser a sua e se surpreenderá ao se reconhecer apenas um “idiota útil”. Mas não se envergonhe, pois, nesse instante, nascerá para você a oportunidade de deixar de sê-lo.

■■ João Marcelo Sarkis é advogado, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 9 de Outubro de 2014, Página A2 – Opinião.

31ª Bienal de Artes de São Paulo: a Beleza existe?

Artes | 09/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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De 6 de setembro a 7 de dezembro acontece a 31ª edição da Bienal de Arte de São Paulo, com o sugestivo tema: “Como falar de coisas que não existem”. Caminhar pelos corredores do prédio do Parque do Ibirapuera é se deparar com a típica “arte niilista” do nosso século, repleta de feiura, desalento, desprezo e transgressão. Mais do que mero “mau gosto”, o evento é uma mostra da decadência cultural que nos cerca, com a consequente perda do senso ético e estético.

Para entender melhor esta questão, sugerimos o documentário “Por que a beleza importa?” dirigido pelo filósofo inglês Roger Scruton e veiculado pela BBC em 2009 (e já mencionado aqui no site).  Neste vídeo, Scruton analisa a importância da beleza na existência humana e mostra como esta percepção está sendo perdida em nossos dias:

Em qualquer tempo, entre 1750 e 1930, se se pedisse a qualquer pessoa educada para descrever o objetivo da poesia, da arte e da música, eles teriam respondido: a beleza. E se você perguntasse o motivo disto, aprenderia que a beleza é um valor tão importante quanto a verdade e a bondade. Então, no séc. XX, a beleza deixou de ser importante. A arte, gradativamente, se focou em perturbar e quebrar tabus morais. Não era beleza, mas originalidade, atingida por quaisquer meios e a qualquer custo moral, que ganhava os prêmios. Não somente a arte fez um culto à feiúra, como a arquitetura se tornou desalmada e estéril. E não foi somente o nosso entorno físico que se tornou feio: nossa linguagem, música e maneiras, estão cada vez mais rudes, auto centradas e ofensivas, como se a beleza e o bom gosto, não tivessem lugar em nossas vidas. Uma palavra é escrita em letras garrafais em todas estas coisas feias, e a palavra é: EGOISMO. “Meus lucros”, “meus desejos”, “meus prazeres”. E a arte não tem o que dizer em resposta, apenas: “sim, faça isso”! Penso que estamos perdendo a beleza e existe o perigo de que, com isso, percamos o sentido da vida.

Sou Roger Scruton, filósofo e escritor. Meu trabalho é fazer perguntas. e durante os últimos anos, venho fazendo perguntas sobre a beleza. A beleza tem sido essencial para a nossa civilização por mais de 2.000 anos. Em seu inicio, na Grécia antiga, a filosofia refletiu sobre a arte, música, arquitetura, e a vida cotidiana. Filósofos argumentaram que, através da percepção da beleza, moldamos o mundo como um lar. Também passamos a entender sua própria natureza, sua essência espiritual. Mas nosso mundo virou as costas para a beleza. E, por este fato, nos encontramos rodeados de feiúra e alienação. Quero persuadí-lo de que a beleza importa, de que não é somente algo subjetivo, mas uma necessidade universal do ser humano. Se ignoramos esta necessidade, nos encontramos em um deserto espiritual. Quero te mostrar a rota de fuga deste deserto. Este é um caminho que nos leva de volta ao lar”.

Vídeo: Por que a beleza importa? (Roger Scruton)

Fidelidade intransigente

Opinião Pública | 01/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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O que um dia foi um casal entrou pela porta da sala de audiências. Ele, o autor de uma ação de conversão de separação judicial em divórcio, acompanhado de seu advogado. Ela, sozinha nessa primeira tentativa de conciliação. Os dois aparentando estar perto dos 70 anos. Documentos conferidos, na tela do computador o termo de acordo quase pronto. Todos os bens já divididos, todos os filhos já maiores, mais de um ano desde a separação. Requisitos presentes, caso fácil, acordo certo. Só homologar e “jogar” para a estatística.

Havia, porém, qualquer coisa no ar. Talvez algum resquício de remorso ou as lembranças inevitáveis de uma vida passada juntos. O arrependimento insinuando- se entre culpas, o rancor entre as feridas. Quando, então, coube-me perguntar: “há possibilidade de reconciliação?”. Artificial e legalista. Mais de trinta anos… Sob olhares quase mudos, concluí em voz alta dirigindo-me ao escrevente: “reconciliação infrutífera”. A lei estava cumprida. A pior parte resolvida. Rumo ao acordo.

Acordo? Impossível. A senhora se negava a assinar, não queria o divórcio. Instante inesperado. Expliquei-lhe a norma, o protocolo, o processo. Ante a presença dos requisitos, a lei é a lei. Quando percebi que tremia, tremia muito ao falar e mover os braços. Estava aflita e sofria. Estranhei que, até aquele momento, ignorava completamente esse fato. Realmente eu ainda não os havia notado.

Pela primeira vez li os nomes na capa do processo. E os vi, os dois, o casal e a sua tragédia. Li nos seus rostos a crise, as brigas, a dor da separação, o desespero dos filhos. Pela primeira vez desde o início da audiência, que parecia tão certa, tão óbvia. Qualquer coisa foi dita sobre traição, outra mulher. A senhora tremia, insistindo que não queria o acordo. Pouco importava a demora, pouco importava o que fizesse o juiz depois de alguns meses. “Eu não assinarei”.

Perguntei-lhe, então, o porquê. Ela levou as mãos trêmulas à bolsa e retirou uma Bíblia. Levantando-a em punho disse com firmeza: “Por isso!”. O advogado da parte contrária disfarçou um riso sádico (talvez mais tarde, na roda dos amigos…). O escrevente percebeu e também riu, demonstrando certa impaciência ante a atitude tão descabida. O marido tinha os olhos atentos e calados. Por um instante me surpreendi com a sua coragem. A sensação de estar diante de um milagre ou, pelo menos, de uma manifestação do Espírito. Agradeci.

Mas, em seguida, uma grande angústia atropelou a surpresa. A obrigação de ofício me levou a explicar a divisão das competências, a diferenciar o civil do religioso. Em minha mente, pensava na laicidade do Estado e na constituição laica clamando a proteção de Deus. Pensava na doutrina social da Igreja, no reinado social de Cristo. Lembrava os crucifixos retirados das repartições públicas. Ela sorriu para mim, com a Bíblia nas mãos (como um mártir?). O livro todo num único versículo: “dai a César…”.

Então, calei-me e ela suspeitou que lhe dava razão. Compreendeu a explicação, mas insistiu em não assinar. O juiz que o fizesse. Ela não, não podia. “O senhor compreende, eu não posso, mesmo assim, não posso, minha consciência”. Guardou o livro sagrado novamente na bolsa e teve a sua vontade atendida. O acordo infrutífero, a audiência encerrada. Colhemos as assinaturas em silêncio e a ata foi afixada aos autos. Estávamos livres do rito.

No entanto, o diploma, o bacharelado parecia pesar- me sobre as costas. Minha assinatura no papel, as minhas roupas, a faculdade, os livros jurídicos, o prédio do Fórum. Sentiame culpado, como um cúmplice. Por fim, despedi- me das partes, interrompendo a divagação. Era necessário me recompor e prosseguir com o restante das audiências do dia.

■■ João Marcelo Sarkis é advogado, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.

Publicado no jornal Correio Popular, dia 29 de Agosto de 2014, Página A2 – Opinião.