Um cruel sarcasmo

Sem Categoria | 22/12/2014 | |

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Numa roda de conversa entre amigos, um deles, cujas ideias políticas o alçam à condição muito peculiar de um dos últimos representantes ativos das experiências totalitárias passadas, disse que a democracia brasileira, de tão corrompida, deveria ser liquidada pela força massiva do voto em branco. A democracia está em crise então?

Aqui, paira uma confusão bem típica dos dias atuais: confundir o mecanismo com a essência. Quando o sujeito fala de democracia, muitas vezes, fala de, implicitamente, igualdade, justiça, liberdade, solidariedade, bem comum e outros valores tão caros para as sociedades ocidentais. Sem dúvida, estes bens morais asseguram a perenidade de uma democracia e, por assim dizer, quando fomentados num ambiente democrático, reforçam-na, numa espécie de círculo virtuoso.

Quando tais bens morais escasseiam ou são jogados para o escanteio social, o principal mecanismo democrático – o princípio majoritário – é capaz de, democraticamente, conduzir uma democracia à liquidação de si mesma, como na Alemanha de Weimar.

Se o problema, para esse meu amigo com pendores nostálgicos totalitários, é a corrupção endêmica nas estruturas governamentais, logo, não é a democracia que precisa ser revista, mas a qualidade dos valores que hoje a sustentam, o que demanda algum tempo, sem prejuízo da defenestração dos ocupantes dos cargos políticos que são coniventes com esse quadro moral pouco animador, o que pode e deve ser feito imediatamente, sobretudo se estivermos no meio de um período eleitoral.

Aliás, essa capacidade de expulsar, da arena legislativa ou executiva, os políticos e os partidos que confundem o público com o privado ou o partidário é um dos mais grandiosos atributos da mecânica processual democrática: punem-se os maus políticos e premiam-se os bons, sem a necessidade de qualquer recurso às revoluções “gloriosas”, medidas autoritárias ou golpes sanguinários. Por isso, convém sempre manter um estado constante de crítica à classe política e, para o caso de políticos que desfilem na passarela de crimes cometidos contra o erário público, uma certa desconfiança generalizada, mormente se, mesmo condenados judicialmente, seu partido sequer cogitou de expulsá-los da sigla.

Mas voltemos ao problema da corrupção endêmica, que produz o pior efeito que pode acontecer para uma sociedade democrática: a “coisa pública” deixa de ser pública para pertencer ao domínio de uns tantos poucos, sejam empreiteiros, carreiristas de cargos públicos ou mesmo companheiros de partido. A máxima de Lord Acton – o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente – é muito repetida e com razão.

A busca da perfeição moral na órbita democrática moderna tende a ser uma tarefa possível, se comparada com uma órbita totalitária, que já é a corrupção em si mesma. Mas não é fácil, pois o jogo democrático trabalha com duas cartas, a do poder político e a do poder econômico que, como toda carta, tem duas faces: a face nominal e a face real. Quando a face real está corrompida em ambas as cartas, o jogo democrático leva um truco da corrupção endêmica.

Um bom começo de saída desse quadro desolador está em abrir os olhos para os limites e os reducionismos do relativismo moral, o mal de fundo dessa corrupção endêmica que, no frigir dos ovos, confunde os limites da retidão no trato da coisa pública e proporciona, como efeito, o cinismo mais impune. E, antes de abrir os olhos, no próximo domingo, convém usar bem as mãos na urna, demitindo, sem contestação, novos ou os mesmos projetos políticos que pretendem fazer do governo do povo, pelo povo e para o povo um cruel sarcasmo social. Com respeito à divergência, é o que penso.

■■ André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em filosofia e história da educação e coordenador do IFE Campinas, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 22 de Outubro de 2014, Página A2 – Opinião.