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Juízes para o século XXI

Opinião Pública | 09/11/2016 | | IFE CAMPINAS

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Num estado de direito, a ideia de tribunais independentes e imparciais assume-se, hoje, como direito fundamental e indisponível. O acesso aos tribunais judiciais apela a um efetivo direito ao pronunciamento judicial de um justo concreto e isso suscita a questão da disponibilidade de um profissional dotado de uma formação de elevado nível.
 
O tradicional mercado de lides que o cidadão sempre resolveu na justiça é hoje confrontado por um fenômeno de diversificação, senão mesmo de mutação a novas questões que exigem respostas novas e ousadas para a superação das inúmeras iniquidades sociais. São novos problemas, fundados em desigualdades sociais e econômicas, multiculturalismo, espaço público para o fenômeno religioso, emergência de problemas ambientais, incremento da segurança pública, pluralismo de visões e cultura de gênero.
 
Hoje, o debate sobre o papel dos juízes na sociedade exige que a formação do juiz fique atenta às agendas da discussão política sobre a reforma do sistema de justiça, sobretudo na tripla perspectiva do acesso, da qualidade, da eficácia. No primeiro caso, um quadro de consolidação; no segundo, pouca atenção e, no terceiro, a tônica das cúpulas dos tribunais.
 
O debate sobre o papel da jurisdição sugere que se consolide e, ao mesmo tempo, ultrapasse-se o domínio paroquial do exercício da função judicial. Exige-se, do magistrado, uma abertura ao mundo e uma insatisfação permanente no exercício da função.
 
Para tanto, será necessária uma formação aprofundada, diversificada e apta a encarar o grau de complexidade do mundo, comprometida com um conjunto de valores e direitos fundamentais dos cidadãos que reclamam ainda por efetivação, aberta aos desafios decorrentes do pluralismo jurídico e, ao cabo, disposta à assunção dos riscos de uma magistratura culturalmente esclarecida.
 
A amplitude desta exigência só é compatível, no entanto, com uma permanente formação, a ultrapassar, por isso, algumas perspectivas estáticas que, sobrevalorizando a questão da formação de juízes apenas no acesso ao exercício da função, omitem a relevância daquele viés formativo.
 
Num quadro absolutamente globalizado, o juiz local é um juiz do mundo, onde a multiplicidade dos problemas suscitados à decisão são inelutáveis, mas sempre condicionados pela afirmação de que são os juízes o último penhor do funcionamento correto e justo das instituições. Afinal, a formação do magistrado é para educá-lo integralmente para se decidir prudencialmente.
 
Preservar uma cultura de independência e de imparcialidade nas instâncias judiciais é o que se exige dos demais poderes. Atuar na direção de uma cultura de comprometimento com um quadro de necessária efetividade dos direitos fundamentais é o que devemos exigir dos juízes e tribunais.
 
Neste século XXI, os magistrados devem estar atentos à uma abertura rumo à compreensão das inúmeras tramas de uma sociedade plural, complexa e fragmentada, na qual a argumentação, a retórica e a lógica são elementos relevantíssimos no processo de aceitação e legitimação da própria função judiciária. Uma jurisdição independente, zelosa da efetividade dos direitos fundamentais e focada no justo concreto das relações sociais é condição necessária para a vitalidade de nossa democracia, tão combalida em seus valores fundantes.
 
Mas não é só. Mesmo sendo independentes e imparciais, se os juízes não assumirem, ao lado de uma elevada formação integral, um alto padrão ético de conduta, isso poderá prejudicar não apenas a imagem de independência e de imparcialidade da judicatura, mas, principalmente, comprometer seriamente a confiança da comunidade na integridade judicial. Estas são as reflexões que deixo aqui para meus cento e doze colegas de concurso e que hoje completamos dezenove anos em que entramos pela porta da frente do Poder Judiciário. Corrijo. Cento e dez. Marcelo e Cinthia já estão sob a jurisdição divina há algum tempo. Não precisam mais refletir sobre mundanidades. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes
é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 09/11/2016, Página A-2, Opinião.

Pequeno ensaio sobre a devastação – por Luiz Felipe Pondé

Filosofia | 27/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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Retrato de estúdio de Edmund Burke por Joshua Reynolds, óleo sobre tela (1767-1769).

Retrato de estúdio de Edmund Burke por Joshua Reynolds, óleo sobre tela (1767-1769).

 

Neste pequeno ensaio pretendo dar uma versão, muito pessoal, do meu encontro com o pensamento conservador na minha experiência de formação.

Mas, antes de mais nada, o que é formação?

Entendo formação, sobretudo, como a preparação para o enfrentamento da condição humana em si mesma. Portanto, o próprio conceito de condição humana é princípio organizador da idéia de formação. Formar-se é encontrar a humanidade em nossa alma: coração e intelecto em agonia reparadora, como diriam muitos pensadores cristãos ortodoxos antigos.

* * *

A formação não é o foco principal da educação no mundo contemporâneo, o que é uma pena.

Infelizmente, grande parte da vida acadêmica contemporânea sucumbiu ao medo e à preguiça, a ponto de poder dizer que hoje a educação é um misto de preguiça, oportunismo e medo. Na realidade, uma das idéias que têm dominado meu pensamento é que o medo tornou-se parte essencial da vida de quem se dedica a atividades de formação.

Certa feita, na faculdade de medicina, perguntei ao professor como um paciente portador de câncer terminal se via diante da possibilidade de estar indo em direção ao Nada. O professor foi taxativo: “O senhor está na aula errada, devia fazer filosofia”. Boa época aquela, em que professores não tinham medo dos alunos nem se preocupavam com teorias pedagógicas.

Hoje, já não acho que meu professor estivesse tão certo. A formação em medicina é uma boa chance de você se medir com essa emoção essencial da vida, o medo, enquanto as ciências humanas podem facilmente cultivar a covardia travestida de grandes e vazias aventuras teóricas sem carne ou sangue – e por isso mesmo sem riscos de se sujar com a vida, que está sempre imersa em carne e sangue. Tenho certeza de que grande parte do que penso hoje como filósofo é devida aos cadáveres que abri durante a noite, aos cérebros que espalhei sobre a mesa de metal, às pessoas que morreram pelas mãos de minha ignorância, e à estranha sensação de que algo de misterioso faz a ponte entre a matéria, sempre fracassada, espalhada sobre o metal, e a alma, sempre em espanto.

* * *

Vejo o advento da modernidade como se tivéssemos entrado no grande delírio da denegação, da denegação do mal – como os freudianos dizem –, de um modo cultural e universal. Isso criou uma espécie de fúria do homem moderno em se auto-afirmar como centro do universo, uma negação da sua condição.

Mas a formação que daí resultou – grosso modo dos jacobinos para cá – trouxe consigo um esgotamento dos instrumentos intelectuais para compreender o mundo. Simplesmente não tem mais elementos para lidar com o mundo tal como ele se apresenta. E o esforço para lidar com ele, a partir das categorias que temos à mão, é excessivo; por isso, o retorno, a reação perante todas as idéias que não estão alinhadas com esse pensamento, é violento, grosseiro.

Essa dialética sempre me chamou atenção. Eu tinha já uma percepção muito concreta do mal, apesar de não conseguir falar disso, quando estava na faculdade de medicina. Porque, antes de fazer filosofia, fiz medicina; depois, entre uma e outra, ainda quis fazer formação em psicanálise, pensando em salvar a carreira médica, mas depois mudei de idéia.

Quem fez essa passagem para mim foi Pascal. Fui fazer o doutorado em Paris – vinha de cinco anos de estudo, e queria escrever a tese sobre a concepção trágica do ser humano de Freud –, e quando cheguei ali meu orientador foi atropelado por um caminhão na A1 e morreu. Furou um pneu, ele parou no acostamento, abriu a porta, um caminhão passou e o levou. Como se diz em francês, ficamos todos “catastrofados”

Fiquei órfão de orientador, na primeira semana de doutorado em Paris! E isso criou um vácuo em que comecei a ler outros autores que trabalhavam uma visão trágica. Comecei a ler Pascal, e não parei mais.

Em algum momento em que eu estava trabalhando com ele, alguma coisa começou a virar. Isso mudou completamente a minha forma de ver o mundo; não que tenha perdido de forma alguma a minha herança anterior, científica e biológica – tanto assim que continua presente no meu trabalho –, mas me levou às minhas reflexões atuais.

Devastação e ceticismo

E o que ficou do médico em mim, afinal? A consciência de um fracasso fisiológico essencial como condição humana. Esta experiência de fracasso é minha ontologia do humano.

E por que o medo? Porque conhecer é correr o risco de visitar mundos devastados. Visitar mundos devastados é contemplar a fronteira do sentido das coisas. O ceticismo (a dura suspeita da existência desse fracasso no plano do conhecimento) tem sido evidentemente uma ferramenta essencial.

Ceticismo, para mim, é a vigília contínua sobre este mundo em pedaços. Contra o domínio das teorias abstratas, escolho o risco da vida autoral. A coragem é virtude essencial quando se contempla a devastação.

* * *

Qual a relação entre este sentimento de devastação e o encontro com a tradição conservadora? A experiência humana fala de uma ontologia frágil; por isso, antes de tudo, devemos ter cuidado ao lidar com esta fragilidade.

Segundo a fortuna crítica [1], o pensamento conservador tem três grandes raízes, o ceticismo de David Hume (seu “Iluminismo às avessas”), em meados do século XVIII; a crítica de Edmund Burke à Revolução Francesa no final do mesmo século; e a viagem de Alexis de Tocqueville aos Estados Unidos (laboratório da democracia moderna nascente) na primeira metade do século XIX –
mesmo que nenhum dos três autores tenha usado especificamente o termo “conservador” em suas obras. Há controvérsias quanto ao estabelecimento destas origens, mas não vou me ater a elas porque não ferem o conteúdo deste pequeno ensaio.

Segundo Russel Kirk, os termos “conservatif” ou “conservative” [2] surgem na França nos primeiros anos do século XIX para se referir àqueles que se opunham à “era napoleônica” e à sua herança revolucionária. Grosso modo, o ethos da atitude conservadora era preservar as instituições políticas, sociais e morais que estavam no alvo dos desdobramentos de 1789. No limite, tratava-se de combater a dissolução das instituições e dos comportamentos ancestralmente cultivados.

Vemos, portanto, que o foco era uma defesa da sociedade em face da devastação em processo. Reencontramos assim, a oposição entre devastação e conservação a que fiz referência acima.

* * *

Este ethos me pareceu significativo [3]. A relação histórico-filosófica entre ceticismo e importância da ancestralidade data da Grécia [4]:
diante da dúvida acerca da operacionalidade da Razão [5], hábitos e costumes se revelam como opção contra o erro. Hábitos e costumes são comportamentos e instituições de razoável sucesso diante das pressões sofridas pela humanidade em sua agonia ancestral.

No restante deste pequeno ensaio, discutirei introdutoriamente alguns traços do que seria um “espírito conservador” ou mesmo uma atitude, ou sensibilidade, ou caráter conservador. Para tal, dialogarei com Russel Kirk em seu The Conservative Mind. Pessoalmente, gosto cada vez mais da idéia de um temperamento conservador [6].

Ao contrário de grande parte das pessoas que se aproximam da tradição conservadora, o que me levou à leitura e ao confronto com esta tradição (ou pelo menos com uma parte significativa dela) não foi qualquer sentimento religioso (apesar de tê-lo), mas sim minha experiência cética. Se não conseguimos justificar racionalmente o mundo (nem moral nem epistemologicamente) e incorremos facilmente em abstrações, como não nos destruímos ainda?

O “temperamento conservador”

1. Os problemas humanos são essencialmente morais e religiosos e não políticos, como pensa a tradição moderna de raiz iluminista francesa. Quando tentamos “resolver” a vida politicamente, incorremos facilmente em simplificações da realidade. A política é bem-vinda quando se apóia nos hábitos e não quando inventa soluções para a vida humana.

No fundo, somos seres atormentados pela falta essencial de sentido das coisas. Esta marca é moral e religiosa, não política. Suspeito que forças maiores do que nosso entendimento seja capaz de compreender marcam nosso destino. Todavia, esta suspeita se materializa muito mais, para mim, na adesão a hábitos que as supõem e as respeitam, do que a rituais que imaginam acessá-las ou abstrações racionais que visam a dissolvê-las.

2. Acredito profundamente na máxima “radicais amam a humanidade e detestam seus semelhantes”. Isso porque esses radicais se relacionam com uma idéia do humano que responde à homogeneidade de uma abstração lógica (suas abstrações de gabinete).

Ao mesmo tempo, tenho uma atração natural (sem sustentá-la em nada que postule uma “dignidade intrínseca do ser humano”) pelos seres humanos reais e sua rica e intratável heterogeneidade. A própria possibilidade de podermos estabelecer uma “lógica definitiva” do ser humano, me tornaria profundamente desinteressado pelos meus semelhantes. Relaciono esta variedade, como diz Kirk, com um certo mistério que perpassa esta multiplicidade.

3. Os seres humanos não são iguais; uns poucos são melhores do que os outros. Estas diferenças demandam tempo pra se revelar, mas são essenciais. A insistência em negar este fato (igualitarianismo) fere a relação entre as pessoas e a organização da vida.

4. Não existe “a liberdade” como idéia, mas apenas formas materiais que evitam a violência de uns sobre os outros. Homens não são ovelhas. No seu limite mínimo, a propriedade privada marca esta materialidade da liberdade possível; por isso, a tentativa de igualdade abstrata fere a defesa concreta contra a violência que visa a destruir a propriedade privada.

5. A famosa frase de Burke sobre a desconfiança para com “sofistas, calculadores e economistas” resume a dúvida conservadora contra designs abstratos da sociedade. Aqui a relação entre dúvida e hábito se revela na sua face mais evidente: engenharias (sofistas, calculadas ou econômicas) sempre põem em risco esse equilíbrio frágil da vida no tempo e no espaço duramente compartilhado. Se duvido dessas engenharias, por conseqüência duvido das mudanças calculadas por elas.

Em conseqüência…

6. Duvido da possibilidade de fabricarmos novos homens pela educação, legislação ou engenharias culturais de qualquer tipo. O homem não é passível de perfectibilidade projetada e acumulativa; daí a recusa da noção de “meliorismo” por parte dos conservadores.

7. Prefiro o conhecimento ancestral às “novidades da Razão”. Radicais desprezam a tradição, optam pelo império do racionalismo. O racionalismo desvaloriza o hábito ancestral em nome de sua força de cálculo. Neste sentido, a religião é preservada contra a sua crítica apressada.

8. A democracia direta é um risco e leva a fúria da sem-razão, travestida de “political levelling”, “nivelamento político”, para o interior do tecido cotidiano.

9. A idéia de justiça social, atacada também por David Hume, é um risco na medida em que dissolve a fronteira entre a violência da liberdade abstrata e o cuidado com esta violência presente na defesa irrestrita da propriedade privada.

10. Por último – resumo da posição burkeana e central para a definição de Kirk –, a sociedade é uma comunidade de alma que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram.

Os mortos são nossa sabedoria ancestral viva na memória e nos hábitos. Os vivos são o presente; diante da insegurança estrutural de nossa Razão, são responsáveis por legar aos ainda não nascidos o cuidado com a vida da humanidade, sob a ameaça ancestral de nossa ontologia do fracasso.

Luiz Felipe Pondé é Doutor em Filosofia Moderna pela USP, professor de Ciências da Religião na PUC-SP e titular de Filosofia na Fundação Armando Álvares Penteado. Escreve semanalmente no jornal A Folha de São Paulo. Já publicou os livros Conhecimento na Desgraça (Edusp), Crítica e Profecia (Editora 34), Guia politicamente incorreto da filosofia (LeYa, 2012), entre outros.


NOTAS:

[1] Muller, J. Z. Conservatism, an Anthology of Social and Political Thought from David Hume to the Present (Princeton University Press, Princeton. 1997). Kirk, R. The Conservative Mind, from Burke to Eliot (Regnery Publishing, Inc., Washington DC. 2001). Id. The Conservative Reader (The Viking Portable Library, New York. 1982).

[2] Kirk, R. Edmund Burke, a Genius Reconsidered (Intercollegiate Studies Institute, Wilmington, 1997).

[3] A dúvida sistemática com relação ao alcance da Razão, marca do ceticismo filosófico, lega um sentimento de grande risco com relação aos malabarismos racionais diante da realidade. A dúvida conservadora de Burke com relação às engenharias sociais herdadas do jacobinismo se aproxima muito desta intuição cética. Ambas tendem a ser econômicas no que se refere à confiança nos produtos concretos destas engenharias (produtos da Razão que pretende moldar o mundo).

[4] Hankinson, R.J. The Sceptics (Routledge, London. 1995).

[5] É importante lembrar, contra o senso comum corrente, que o ceticismo filosófico desde a Grécia, passando por autores como Montaigne (séc. XVI), Pascal (séc. XVII) – naquilo em que ele “usa” o ceticismo -, Hume (séc. XVIII) e Oakeshott (já no século XX), atacam a validade da Razão, e não a validade de crenças ditas “religiosas”. Não porque essas devam ser preservadas, mas porque simplesmente são “fáceis” de ser atacadas (objeto de fé apenas), enquanto a Razão, sim, demonstra sua arrogância dogmática travestida de evidência universal. Por isso é tão comum, como por exemplo em Montaigne e Pascal, o convívio, até certo ponto, entre fé e ceticismo. Em Hume ou Oakeshott (para referências, ver nota 1), a fé está contida no hábito que conduz a vida para fora dos dogmas da Razão frágil. Em Burke, a fé se inscreve na vali

dade da aceitação de uma dimensão de mistério na condução da história (Providência divina opaca à Razão de ethos jacobino).

[6] Não vou aqui citar o texto de Russel Kirk propriamente dito. Remeto o leitor para o The Conservative Mind (para referências, ver nota 1), págs. 8 a 10.


Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Ed. nº 4, Dezembro de 2009, link da edição aqui.

[resenha de filme] “Ponte dos Espiões”: A sedutora criatividade do cumprimento do dever (por P.G. Blasco)

Cinema | 08/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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“Bridge of Spies” (2015)
Diretor: Steven Spielberg.
Elenco: Tom Hanks, Mark Rylance, Alan Alda.
141 minutos.

Entrou em cartaz [no ano passado] sem estardalhaço nenhum. No jornal, não encontrei estrelas qualificando o filme. Surge sem fazer barulho, em low profile, como o advogado protagonista, Jim Donovan, nesta magnífica história contada pelos irmãos Cohen, e magistralmente orquestrada por Spielberg. Bastam esses nomes para dispensar qualquer necessidade de propaganda. Fui atrás do filme e assisti duas vezes, no intervalo de um par de semanas. Senti uma necessidade imperiosa de apreciar, de saborear, a historia, o modo de contá-la e, naturalmente, a interpretação soberba de Tom Hanks.

A dupla Spielberg-Hanks é um arco voltaico de potencia superior. Vale lembrar O Resgate do Soldado Ryan, um dos filmes que mais me marcaram, um verdadeiro sonho de consumo em educação. Lá se mostra como é possível formar a vida de um homem, norteando seus próximos 40 anos, com uma frase –acompanhada do exemplo heroico- pronunciada in artículo mortis: “James, faça por merecer”. Frase esta, que escolta o jovem James Ryan todos os dias da sua vida, reflete sobre ela, lhe faz ajustar seu comportamento ao gabarito que lhe foi sugerido. Impactante. Emociono-me cada vez que a vejo, o que acontece com bastante frequência, por conta de conferências e seminários nos quais estou envolvido profissionalmente.

É fato conhecido a habilidade que Spielberg tem para mergulhar em histórias reais e injetar nelas humanismo. O fato histórico torna-se palatável, próximo, personalizado, como fazem os bons escritores de romances históricos e de biografias. A História, fria e distante, é iluminada com a presença de personagens de carne e osso, que carregam consigo tudo o que acompanha o quotidiano do ser humano: dilemas, medos, sofrimento, heroísmo, entusiasmo, júbilo. As suas produções – A Lista de Schindler, Amistad, por dar exemplos- rodeiam-se de possibilidades humanas, também de arte e poesia, o que lhes faz transpirar ensinamentos. É um humanismo plasmado em celuloide, que educa, ensina, eleva o espectador.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente no site de Pablo González Blasco, link <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/12/20/ponte-dos-espioes-a-sedutora-criatividade-do-cumprimento-do-dever/>. Acesso em 07/04/2016.

[resenha de filme] "Ponte dos Espiões": A sedutora criatividade do cumprimento do dever (por P.G. Blasco)

Cinema | 08/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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“Bridge of Spies” (2015)
Diretor: Steven Spielberg.
Elenco: Tom Hanks, Mark Rylance, Alan Alda.
141 minutos.

Entrou em cartaz [no ano passado] sem estardalhaço nenhum. No jornal, não encontrei estrelas qualificando o filme. Surge sem fazer barulho, em low profile, como o advogado protagonista, Jim Donovan, nesta magnífica história contada pelos irmãos Cohen, e magistralmente orquestrada por Spielberg. Bastam esses nomes para dispensar qualquer necessidade de propaganda. Fui atrás do filme e assisti duas vezes, no intervalo de um par de semanas. Senti uma necessidade imperiosa de apreciar, de saborear, a historia, o modo de contá-la e, naturalmente, a interpretação soberba de Tom Hanks.

A dupla Spielberg-Hanks é um arco voltaico de potencia superior. Vale lembrar O Resgate do Soldado Ryan, um dos filmes que mais me marcaram, um verdadeiro sonho de consumo em educação. Lá se mostra como é possível formar a vida de um homem, norteando seus próximos 40 anos, com uma frase –acompanhada do exemplo heroico- pronunciada in artículo mortis: “James, faça por merecer”. Frase esta, que escolta o jovem James Ryan todos os dias da sua vida, reflete sobre ela, lhe faz ajustar seu comportamento ao gabarito que lhe foi sugerido. Impactante. Emociono-me cada vez que a vejo, o que acontece com bastante frequência, por conta de conferências e seminários nos quais estou envolvido profissionalmente.

É fato conhecido a habilidade que Spielberg tem para mergulhar em histórias reais e injetar nelas humanismo. O fato histórico torna-se palatável, próximo, personalizado, como fazem os bons escritores de romances históricos e de biografias. A História, fria e distante, é iluminada com a presença de personagens de carne e osso, que carregam consigo tudo o que acompanha o quotidiano do ser humano: dilemas, medos, sofrimento, heroísmo, entusiasmo, júbilo. As suas produções – A Lista de Schindler, Amistad, por dar exemplos- rodeiam-se de possibilidades humanas, também de arte e poesia, o que lhes faz transpirar ensinamentos. É um humanismo plasmado em celuloide, que educa, ensina, eleva o espectador.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente no site de Pablo González Blasco, link <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/12/20/ponte-dos-espioes-a-sedutora-criatividade-do-cumprimento-do-dever/>. Acesso em 07/04/2016.

Não nascemos prontos – A educação, o homem, sua dimensão ética e seus reflexos no ensino jurídico

Sem Categoria | 30/12/2014 | |

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arcadas3

Mas a educação não é um adestramento animal. A educação no homem é um despertar humano. 

(MARITAIN, 1959:36)

O homem supera infinitamente o homem. 

(PASCAL, 2003:197)

Muito antes de sermos detentores desta ou daquela nacionalidade, ou mesmo de ambas, somos homens. O profundo dizer do poeta pagão Píndaro recorda-nos que nosso primeiro dever é o de nos tornarmos aquilo que somos. Se isso corresponde à verdade, logo, nada é mais importante do que nos tornarmos homens. Essa bela e difícil tarefa é assumida pela educação: formar o homem que está por trás de um homem do sertão, da universidade, do Ocidente, do Oriente, da metrópole europeia, da aldeia sub-saariana ou do clã de esquimós do Polo Norte. Hoje ou amanhã.

Saviani (1991:21) afirma que

o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para se atingir esse objetivo.

 Do ponto de vista lógico, a afirmação de nosso poeta seria uma contradição, porque ninguém pode vir a ser o que já é. Se já sou um ser humano, não posso vir a sê-lo. Goergen (2005:61) elucida essa aparente contradição:

Na verdade, a percepção refinada do poeta traduz algo mais profundo, algo que ultrapassa o mero esquematismo lógico. Mesmo que sejamos seres humanos desde o nascimento, podemos admitir, sem contradição, que aos nascermos ainda não somos seres humanos em plenitude, pois, não temos uma identidade. Somos apenas seres abertos ao vir-a-ser humano. Este era o conselho do poeta: construa sua identidade, ou seja, torna-te de fato o que já és como possibilidade: ser humano. O que torna o ser humano verdadeiramente humano, ou seja, em plenitude, não é o fato de nascer filho de humanos, mas a construção de sua identidade. Por isso, faz muito sentido o “torna-te o que és” do poeta. Suas palavras escondem, ainda, um outro sentido igualmente importante: Píndaro diz “torna-te”, e não “permita que façam de você” um ser humano. Vale dizer que tornar-se um ser humano implica construir a própria identidade que é tarefa de cada um. O ser humano é artífice, escultor de si mesmo. Tal processo ocorre por conta do duplo movimento de socialização e individuação. Pela socialização o ser humano adapta-se ao meio e torna-se um ser pertencente a uma cultura. Pela individuação ele constrói a sua própria individualidade, tornando-se único, distinto de todos os demais no interior da mesma cultura.

 O fenômeno da educação decorre do fato de que o ser humano surge para a vida numa situação de desamparo e, por isso, está necessariamente referido a outro. Existem seres vivos que são autônomos desde os primeiros momentos de sua existência, o que pode ser observado fartamente na natureza animal. Ao contrário, um ser humano recém-nascido demanda uma série de cuidados para poder sobreviver e levar adiante seu próprio desenvolvimento até a maturidade.

Surge assim uma relação entre uma nova vida, que ainda não tem a consciência de sua própria existência, e uma outra em andamento, representada pelos pais, educadores, mestres e docentes, cuja função é a de facilitar o advento das capacidades que resultem necessárias das circunstâncias vitais e históricas, as quais estão delimitadas por um arco de tempo que, normalmente, encerra-se no momento em que aquela nova vida alcança sua independência existencial.

Essa independência costuma surgir com a conquista de uma profissão. Mesmo assim, o processo educativo não cessa, porque o elemento de potencialidade interior no ser humano é essencialmente maior do que nos animais irracionais: nestes seres, os limites de possibilidade e de realidade alcançam rapidamente sua descoberta, causando a impressão de já estarem predispostos em sua própria natureza. No ser humano, a situação é completamente diversa[1].

Se considerarmos que as possibilidades de um indivíduo concretamente considerado vão além de sua realidade, existem graduações imprevisíveis em cada indivíduo. Nesse processo de formação humana, não existe um vínculo unilateral, pois, na medida em que o educando incorpora os elementos pedagógicos que lhes são transmitidos, o educador ensina a si próprio, toma consciência de suas próprias carências, encontra novas possibilidades de ensino e incorpora novas experiências educativas.

Por conseguinte, esse processo pedagógico – pelo qual se forma o ser humano, conduzindo-o à sua realização – é multidimensional, porquanto nele concorrem forças, atitudes e posturas de variada natureza, a seguir analisadas. Em primeiro lugar, há o desenvolvimento orgânico – a evolução – do educando. O ser humano nasce como uma realidade evolutiva a partir de sua forma originária, a partir da qual acrescenta possibilidades que, no transcurso da vida, realizam-se mediante tendências intrínsecas coordenadas e que, muitas vezes, permanecem latentes como uma espécie de devir qualificado.

O educador conduz o educando ao desenvolvimento de sua vida material, mas, sobretudo, anímica: a aptidão de pensar, de saber valorar, de tomar partido, de decidir, de atuar e de referir-se ao outro. A tarefa do educador é justamente potencializar esse impulso interior, incentivando-o, dirigindo-o e retificando-o quando necessário, até que alcance seus limites.

Guardini (2000:690) justifica essa limitação ao asseverar que

 em cada ser humano, a capacidade de evolução é limitada. Não somente quanto à dinâmica, mas também no que se refere às determinações qualitativas. Os limites radicam naquilo que chamamos de dotes, quero dizer, na especial estrutura correspondente à individualidade (…). Existem, desde logo, diferenças muito importantes, pois determinados seres humanos podem manejar facilmente coisas e ferramentas, para as quais outros são menos hábeis (…). Estas diferenças alcançam uma importância decisiva na eleição da profissão e no modo em que o indivíduo encontra seu lugar no tecido das relações sociais (…). Um homem que não goste de música nunca poderá chegar a uma real compreensão de uma sinfonia ou exercer uma criatividade musical; o mesmo se dá num homem frio por essência, que não chegará a desfrutar grandes vivências afetivas.

 Em segundo lugar, o processo pedagógico é, também, biunívoco: sua direção não é só de dentro para fora, mas de fora para dentro, isto é, o devir do educando deve entranhar-se no entorno existencial concretamente dado – a inserção –, porque o homem não é um leão ou uma águia. É um animal cultural e histórico: vive num determinado caldo cultural e civilizacional e num certo período temporal, sendo condicionado por tais fatores. Por isso, nós somos filhos de nosso tempo.

Nessa perspectiva, a educação tem um peso importante. Maritain (1968:27) aponta que

 por ser dotado de um poder de conhecimento ilimitado e que deve no entanto avançar gradativamente, o homem não pode progredir na sua vida específica que lhe é própria, ao mesmo tempo intelectual e moralmente, se não for auxiliado pela experiência coletiva que as gerações precedentes acumularam e conservaram, e por uma transmissão regular dos conhecimentos adquiridos. A fim de atingir essa liberdade, com a qual se determina e na qual foi feito, necessita de uma disciplina e de uma tradição que, simultaneamente, pesarão sobre ele e o fortificarão de modo a torná-lo apto a lutar contra elas, o que enriquecerá a própria tradição, tradição esta que, uma vez enriquecida, tornará possível novas lutas e assim por diante.

 O processo educativo não reside somente no movimento dos impulsos naturais para o exterior. Igualmente relevante é a necessidade do educando de se situar entre as coisas e os fenômenos que estão ao seu entorno, ambos historicamente localizados no tempo e no espaço. Nessa linha de raciocínio, o homem é um “ser-aí”, porque ele não é um ente cuja natureza esteja assepticamente isolada dos demais ou das coisas e fenômenos vitais.

Ele é circundado por um mundo composto por uma natureza material e por um rol de interesses, preocupações, desejos, afetos, conhecimentos e saberes, nos quais sempre está imerso. Assim, o homem sempre está colocado numa situação histórico-temporal determinada, caracterizando-se por ser um ser-no-mundo, onde deve desenvolver sua essência, ou seja, sua natureza, por meio de uma postura de abertura para fora de si.

As diversas formas de apreensão do mundo circundante estão determinadas não só pelas necessidades do educando, mas também pela natureza daquelas coisas e fenômenos. Se as necessidades já contêm em si sua determinação específica (por exemplo, a escrita e a leitura), as conquistas serão condicionadas pela realidade do entorno.

Em terceiro lugar, ao lado da evolução e da inserção, radica o encontro, o momento em que o educando relaciona-se com outros semelhantes, coisas e fenômenos. Esses dados da realidade não se entrelaçam com ele a partir de uma ordem pré-determinada e absolutamente incondicionada, como o liame religioso que havia entre os gregos e seus deuses, mas se põem à sua frente, em virtude da recíproca abertura desses dados para ele. Como consequência, o educando passa a conhecer profundamente uma área do saber, um conceito até então pouco esclarecido ou uma nova forma de abordagem intelectual de um assunto complexo.

No encontro, está subjacente uma atitude aberta ao mundo e à imprevisibilidade[2]. Compreender o novo, enfrentar aquilo que surge e aprender a dar forma ao dado não planejado. É aqui onde jaz a mais acabada expressão da amplitude de movimento dos impulsos naturais do educando e, por ser cada um uma individualidade irrepetível, essa capacidade de encontro não se dá do mesmo modo e na mesma intensidade. Se, na inserção, o educando é um “ser-aí”, no encontro, ele é um “vir-a-ser-aí”.

Julián Marías (1971:36-37) exprime bem esse ser e “vir-a-ser-aí” humano, ao dizer que

 esse alguém corporal ou pessoa, não somente acontece, como também está unido à futurição, a essa tensão para frente – ou pretensão – que é a vida. Começamos agora a vislumbrar o sentido de prosópon como “frente” ou “fachada” ou “dianteira”; é importante reter esse caráter frontal da pessoa, pelo fato de ser a vida uma operação que faz para frente. Esse “alguém” é futuriço; isto é, presente e real, porém voltado para o futuro, para ele orientado, projetado para ele; para o futuro “dá” a face em que a pessoa se denuncia e se manifesta, e por isso é a face, entre as partes do corpo, estritamente pessoal, aquela em que a pessoa se contrai e se patenteia, se expressa. Porém essa condição futuriça da pessoa envolve um momento capital: é parcialmente irreal, já que o futuro não é, mas será. No rosto ou pessoa denuncia-se agora – na realidade presente – o que será. Entendemos por pessoa uma realidade que não é só real. Uma pessoa “dada” deixaria de o ser. O caráter programático, projetivo, não é algo que meramente aconteça à pessoa, mas que a constitui. A pessoa não somente “está aí”, nunca pode como tal só estar aí, está vindo.

Quando dizemos que “se está fazendo”, facilmente podemos entender mal: ou no sentido de a pessoa ainda não estar feita, ou de que se procura seu “resultado”. Não é isso: a pessoa já é, está feita como pessoa, e, por outro lado, não interessa seu “acabamento” ou resultado. Seu ser atual é se estar fazendo, ou melhor, estar vindo. Toda relação estritamente pessoal – amizade, amor – o prova: nela o “estar” é um “continuar estando”, feito de duração e primariamente de futuro, um constante estar indo e vindo; sobretudo, um “ir a estar” (…).

É claro que isso vale para mim mesmo. Igual caráter programático, durativo e eveniente tem minha própria posse, em virtude da qual o pronome pessoal – mim, eu – é possessivo – meu –. O que inverte a caracterização ontológica tradicional. Longe de haver autarquia ou suficiência, a pessoa está definida pela indigência, pela carência, pela irrealidade da antecipação, estribada numa realidade que espera.

Eu sou uma pessoa, mas “o eu” não é pessoa. “Eu” é o nome que damos a essa condição programática e eveniente. Quando digo “eu”, me “preparo” ou “me disponho” a ser. Para o homem, ser é preparar-se a ser, dispor-se a ser, e por isso consiste em disposição e disponibilidade. Quando dizemos “eu”, não se trata de um simples ponto ou centro de circunstância, mas sim que esta é minha: por ser eu mesmo, posso ter algo meu. Na pessoa, há mesmidade, mas não identidade: sou eu mesmo, porém nunca o mesmo. É preciso, porém, acrescentar algo que disse muitas vezes, mas que se costuma esquecer: o “eu” passado não é eu, mas circunstância com a qual me encontro; isto é, com a que eu – projetivo e futuriço – me encontro quando vou viver. E não bastaria a mera “sucessão” para que houvesse mesmidade: falta essa antecipação de mim mesmo, esse ser o que não sou, a futurição ou carência intrínseca. O homem pode possuir-se ao longo de toda sua vida e ser o mesmo, porque não se possui integralmente em nenhum momento dela.

Existem inclinações no interior do educando que atribuem ao encontro uma rigidez relacional. Não são aptas a interpretar o imponderável emergente como um novo, porque o reduzem imediatamente a um esquema já existente, tanto teórico como prático. Não se preocupam em, antes, esgotar a investigação do novo, pois o status quo do esquema envolvido com o elemento imprevisível não pode ser alterado ou mesmo visto sob outra perspectiva, sem que se macule uma essência já consolidada pelo estado da arte.

Indubitavelmente, essa postura conservadora também pode ser portadora de valores (perenes ou não), como a tradição e a ordem; todavia, falta o fluir caudaloso do novo (que necessariamente não é sinônimo de ruptura ou de contradição) e, com ele, um importante elemento que se denomina realidade, o qual abarca evolução, inserção e encontro: um dado homem aqui e agora, nessas circunstâncias vitais, com esses limites históricos e sociais e aberto ao projeto de si mesmo.

Em suma, o encontro representa aprendizado constante, abertura ao imprevisto, espírito livre de investigação, perspectiva para distinguir o comum do peculiar, capacidade de reflexão e de autocrítica, convicção para bem decidir e, por trás disso, uma sensibilidade para o sentido e o alcance do próprio acontecimento decorrente do encontro. Tanto para ordená-lo no seio do já conhecido como também para tomar uma posição diante do novo enquanto tal.

Nunes (2005:101-103) assevera, nessa linha de raciocínio, que

 a educação, quer em seu aspecto institucional e jurídico, em suas bases filosóficas e éticas, quer em suas determinações políticas e constituições formais, sempre efetiva, isto é, torna aberta e presente uma consequente expressão de cultura e poder. Assim, pois, ao investigar as redes de poderes que sustentam nossa vida, as experiências que internalizam símbolos e determinam ou condicionam condutas, estamos exorcizando as formas de um poder disciplinar e autoritário, para propor novas formas de poder e de organização (…). (…) O ser humano produz uma realidade objetiva que passa a ser portadora de características humanas, assumindo identidades e características socioculturais, acumulando a atividade de gerações de outros seres humanos. Esse processo social institucionaliza-se como forma de apropriação, agora não apenas como apropriação da natureza, isto é, apropriação das objetivações do gênero humano, historicamente acumulado por conquistas, experiências e processos distintos no tempo e espaço. No campo da ética isso é ainda mais patente, pois as apropriações da identidade e das significações das condutas morais são nada menos que a objetivação coletiva, cultural e civilizatória, da marcha das sociedades. O homem, ao produzir os meios para a satisfação de suas necessidades básicas de existência, ao produzir uma realidade humanizada pela sua atividade, humaniza-se a si próprio. Trata-se, como dissemos anteriormente, da dialética entre a humanização da natureza e a hominização de si mesmo. Constitui, portanto, em seu processo de fazer-se homem, cada pessoa, uma realidade humanizada tanto objetiva como subjetivamente. Ao apropriar-se da natureza, transformando-a para satisfazer suas necessidades, objetiva-se a si próprio como subjetividade única, nessa relação dinâmica, nessa transformação prática de si. Por sua vez, essa atividade humana objetivada passa a ser ela também objeto de apropriação pelos demais homens, isto é, essas materializações passam a responder àquilo que de humano cada ser humano criou, apropriou-se, assumiu e superou em sua idiossincrática situação de constituinte e constituído, criatura e criador da cultura humana. Tal apropriação gera nele necessidades humanas de novo tipo, que exigem nova atividade, num processo sem fim.

 A tarefa educativa, assim entendida, orienta o educando para uma postura em que se dá concomitante valor para os fatores do risco e da experiência, sendo que a modulação de um e de outro será estabelecida pela realidade pedagógica concretamente considerada. Essa atitude dispõe o educando para a originalidade do acontecimento, para a liberdade vital e para a amplitude da existência, lapidando a mais relevante dimensão humana: a dimensão espiritual, onde reside o motor que leva todo homem a naturalmente desejar o conhecimento (ARISTÓTELES, 2006:43)[3].

De fato, para bem se compreender a tarefa educativa, é imperioso, também, assimilar com clareza justamente o protagonista dessa tarefa, ou seja, o homem: quem é ele? É um problema difícil, em razão da complexidade de nosso ser, de nosso virtuoso dinamismo, de nossas mais elevadas aspirações, mas também de nossos constantes retrocessos, de nossa potencial baixeza e de nossa omnipresente aptidão para o mal.

Todos os filósofos, desde Sócrates, em algum momento, debruçaram-se sobre a questão do homem e, independentemente da resposta alcançada, há um consenso em se atribuir ao estudo do homem uma relevância capital. Tomás de Aquino, citado por Mondin (2008:22), já advertia que “conhecer a alma humana é algo extremamente difícil e só se chega lá por meio de um raciocínio que procede dos objetos e se dirige para os atos e dos atos para as faculdades”.

Scheler (2007:173) ressalta que

 em certo sentido todos os problemas fundamentais da filosofia podem reconduzir-se à questão seguinte: que é o homem e que lugar e posição metafísica ele ocupa dentro do ser, do mundo, de Deus. Se há um problema filosófico cuja solução é requerida com urgência pela nossa época, este problema é o da antropologia filosófica. Entendo por isso uma ciência fundamental acerca da essência e da estrutura ética do homem; da sua relação com os reinos da natureza (minerais, plantas e animais) e com o princípio de todas as coisas; da sua origem essencial metafísica e ao seu início físico, psíquico e espiritual no mundo; das forças e potências que agem sobre ele e aquelas sobre as quais ele age; das direções e das leis fundamentais do seu desenvolvimento biológico, psíquico, espiritual e social, consideradas nas suas possibilidades e realidades essenciais. Os problemas da relação entre alma e corpo (entre psíquico e físico) e a relação entre o espírito e vida estão compreendidos em tal antropologia, somente a qual poderia dar um válido fundamento de natureza filosófica e, juntamente, finalidades determinadas e seguras à pesquisa de todas as ciências que têm por objeto o homem.

 Heidegger (1953:28) acentua a dimensão do problema ao sentenciar que

 nenhuma época teve noções tão variadas e numerosas sobre o homem como a atual. Nenhuma época conseguiu, como a nossa, apresentar seu conhecimento acerca do homem de modo tão eficaz e fascinante, nem comunicá-lo de modo tão fácil e rápido. Mas também é verdade que nenhuma época soube menos que a nossa o que é o homem. Nunca o homem assumiu um aspecto tão problemático como atualmente.

 O estudo do homem passa pelo campo da antropologia filosófica. O método da antropologia filosófica, segundo acreditamos, distingue-se em duas fases complementares: a fenomenológica e a transcendental[4]. Na primeira, são recolhidos todos os dados relativos à essência do homem e, na segunda, tenciona-se revelar o significado último desses dados, conferindo-lhes alcance e sentido.

Em suma, é uma abordagem, no seio de suas fases complementares, que se move vertical e indutivamente, dos fenômenos às suas causas ou às últimas razões, as quais justificam seus modos de ser e de agir, inferindo as condições que os tornam possíveis.  E essa abordagem permite-nos afirmar que o homem, pois, é dotado de corpo e alma. Veja-se.

O corpo é uma realidade física e material, dotado de uma série de propriedades (sistêmico, biologicamente intelectivo, não especializado, pouco instintivo e vertical) e que porta uma somaticidade que, se por um lado, está exposta à corrupção e a um fim, por outro, é cheia de consciência e aberta no ser. É um fenômeno, ou seja, uma manifestação de algo que a ultrapassa, de uma realidade mais profunda e vital, que a permeabiliza e a transforma totalmente, atendendo pelo nome de alma.

A alma corresponde à essa realidade íntima e orgânica que ela, ao mesmo tempo, esconde e revela por meio da somaticidade humana. Afinal, é no corpo que vemos a bondade ou a malícia, a magnanimidade ou a mediocridade e a beleza e a fealdade de um homem. O corpo subjaz à alma, que desempenha o papel de forma e que possui o ser diretamente, isto é, tem seu próprio ato de ser e dele faz participar o corpo. Existe uma densa e substancial unidade entre corpo e alma, porque é “único seu ato de ser” (AQUINO, 2005: 41)[5].

Em outras palavras, o homem tem três dimensões: uma matéria orgânica, um princípio vital que organiza e que também vivifica essa matéria. A matéria orgânica é o corpo. O princípio vital, aquele pelo qual um ser é organizado e vivificado, é a alma, o que o faz ser e ser como é. Por isso, é a forma do corpo, aquilo que faz movê-lo e comportar-se de um determinado modo. A tradição filosófica clássica definia com clareza essa relação unitária entre corpo e alma: anima forma corporis (a alma é a forma do corpo). E isso corresponde à realidade do ser humano, porquanto aquilo que acontece na alma tem estreita relação com o corpo e vice-versa: a saúde chama a alegria; a depressão, a tristeza; o pessimismo, a inação, por exemplo[6].

Considerada a dimensão unitária do ser do homem, composta por corpo e alma, a educação, nas perspectivas da evolução, da inserção e do encontro, acaba por fomentar a direção de si mesmo e a possibilitar o alcance da harmonia entre corpo e alma no mundo real[7]. Isso implica afirmar que a educação é uma arte, no sentido clássico, cuja finalidade não se resume à mera transmissão de um puro conhecimento teórico[8], mas, sobretudo, de modelos e valores que guiem o conhecimento, a reflexão e a ação do educando, aprimorando-o nas excelências que podem bem reger a razão teórica e a razão prática[9].

Assim, educar não é apenas um saber teórico: é, sobretudo, um saber prático[10], visto que consiste em ensinar ao educando como agir e, no caso do ensino jurídico, como atuar na defesa dos interesses de uma pessoa, de uma instituição, de uma empresa, de uma sociedade; como proceder no reconhecimento espontâneo e bilateral daqueles interesses; e, no caso de uma pretensão resistida, sob o ângulo do titular da distribuição da justiça, o magistrado, como obrar segundo o justo concreto no seio daquela pretensão.

No caso do ensino jurídico, existe uma profunda cisão entre razão teórica e razão prática, como se esse dualismo existisse efetivamente na realidade profissional. Falta ao ensino jurídico a necessidade de se conferir para ambas razões um sentido humano por intermédio de uma visão global e harmônica dos vários campos segmentados da ciência do Direito.

A chave para a solução desse problema apoia-se na personalização da relação entre educando e conhecimento jurídico transmitido pelo professor, a fim de se evitar a realidade dominante nos bancos escolares: o monótono discurso repetitivo das aulas expositivas, do lado docente, e a passividade de copiadores profissionais de anotações de aula, aliada à ausência de reflexão, a que tantos reduzem o conteúdo de sua formação profissional, do lado discente.

Mas não é só. No caso do ensino do Direito, por se tratar de um saber eminentemente prático, somado ao fato de que, como dissemos acima, ser a educação, de per se, um saber igualmente prático e, também, em ambos os casos, haver o envolvimento de um agir dotado de bilateralidade, é de extrema importância que a ética seja a seiva da cena pedagógica, a fim de que as tecnicalidades do direito a ela não se sobreponham, de molde a reduzir o direito a um mero joguete de interesses dos titulares de um poder político ou econômico, à ideia de uma simples convenção entre seus protagonistas sociais[11] ou à singela expressão de tendências naturais contra os abusos da legalidade positiva.

E, nesse diapasão, será necessária uma metodologia capaz de fornecer uma ferramenta pedagógica dotada de notável fecundidade ética na consecução de uma ideia de justiça que impeça tais reducionismos e de uma noção de Direito como saber prudencial e não estritamente científico.

No que toca ao aspecto ético, convém lembrar que o homem está inserido numa ordem do ser de cunho teleológico, na qual todos os entes naturalmente tendem para o fim que lhes é próprio. Entre as causas que constituem todos os entes, a mais relevante é a causa final ou o bem, isto é, “aquilo para o qual todas as coisas tendem[12]” (ARISTÓTELES, 2009:17). O bem é uma realidade metafísica (AGOSTINHO, 1958:121)[13]. Segundo Garcia Hoz (1988:41), o bem

 tem, principalmente, um sentido moral na medida em que o bem indica o que corresponde à natureza humana e, consequentemente, é objeto de tendências naturais do homem. De certa forma, poderíamos considerar que a ideia metafísica de bem corresponde à sua consideração objetiva, ôntica, enquanto o conceito moral implica na sua referência ao homem. Se aplicamos estas ideias à atividade humana, exprimida através de obras, poderemos distinguir entre o fazer, a ação e o resultado.

 À luz desse postulado metafísico, segundo o qual o bem de um ente corresponde ao seu fim (telos), a cogitação aristotélica desloca-se para telos da vida do homem. Para Aristóteles, o fim ou o bem supremo da existência humana é a felicidade (eudaimonia), porque é o único bem buscado por si mesmo, consistente na vida plenamente realizada segundo a reta razão (orthos logos), telos para o qual o homem deve convergir seus impulsos e instintos naturais, orientados sempre pela razão, em prol do cultivo das virtudes ou excelências que aprimoram a dimensão moral do homem.

A ética aristotélica é teleológica, porque tudo aquilo que colabora para o alcance do fim do homem deve ser realizado, evitando-se, como consequência, tudo aquilo que o impede. Esse fim é objetivo, está inscrito na ordem do ser, determina o bem moral e não pode ser modificado segundo o arbítrio do sujeito, no afã de estabelecer uma outra ordem, antítese de ideia contemporânea de autonomia moral. Esse lastro metafísico da ética aristotélica deve ficar bem acentuado, pois o papel da prudência (a reta razão), conforme será abordado no capítulo específico, não consiste em fundar o bem moral, mas descobri-lo na realidade das circunstâncias específicas e concretas de cada ação.

O bem moral, em cada situação singular, está no seio de uma ação virtuosa. Para Aristóteles, no agir humano, pode existir um excesso, uma falta e um justo meio: numa circunstância de perigo iminente, posso ser temerário (excesso), medroso (falta) ou corajoso (justo meio). Nessa situação, a ação será virtuosa ou excelente se atingir o justo meio entre os extremos, mediada pela reta razão, e, assim, serei conduzido, de ação virtuosa em ação virtuosa, nessa e naquela outra circunstância, para meu fim último, a felicidade.

O justo meio, por sua vez, não é fruto de uma equação algébrica, mas (ARISTÓTELES 2006:48) “consiste em fazer o que se deve, quando se deve, nas circunstâncias em que se deve, às pessoas a quem se deve, pelo fim pelo qual se deve e como se deve[14]”. Sem dúvida, a fim de se conseguir a medida de uma ação que se configure no justo meio, é imprescindível uma espécie de saber prático que delimite, em cada caso concreto, o justo meio a ser realizado.

Esse saber prático não pode estar voltado para a busca da essência do bem moral objetivo, empreitada de cunho estritamente teórico e a cargo da filosofia, mas à definição daquilo que é o bem aqui e agora, nessa situação concreta, sopesando-se todas as circunstâncias. Essa categoria de saber atende pelo nome de prudência e será enfocada com profundidade no capítulo específico.

Assim, a ética, entendida como a busca do sumo bem pelo exercício da excelência (ou virtude) na circunstância concreta, cujo agir é mediado pela reta razão, não se reduz a um saber prático padronizado acerca do desempenho de papéis sociais, mas se preocupa com crescimento moral do titular desses papéis, porque o homem, como visto acima, é um ser vivente cuja radicalidade é espiritual e cujo fim repousa na felicidade.

Ao colocar essa pauta ética de lado, o homem corre o risco de descambar para uma escravidão existencial, porque fica mais suscetível aos seus instintos egoísticos[15]. Torna-se massa de manobra sobre a qual gravitam interesses insensíveis ao semelhante e ao bem comum[16].

Sem essa dimensão ética, na forma aqui defendida, capaz de perpassar, como uma seiva, o conteúdo do ensino jurídico, o resultado sociologicamente identificável da educação jurídica consistirá na mera implantação de uma série de pautas de comportamentos profissionais, dotadas de uma suposta neutralidade, como pretende fazer crer o positivismo jurídico reinante.

E, ao mesmo tempo, tais pautas serão caracterizadas pela superficialidade, porquanto não atingirão o âmago do ser homem, diante da ausência de lastro ético, o único lastro que permite, na dimensão do agir (AQUINO, 2005:56), “a efetiva transformação interior do indivíduo (…) quando, porém, cuida-se da ética, a ação humana é vista com afetando não um aspecto particular, mas a totalidade do ser do homem. Ela diz respeito ao que se é enquanto homem[17]”.

Para a concepção aristotélico-tomista da ética, a faceta de maior importância jaz na dimensão interna do agir humano, porque a reflexão, o juízo intencional e o comando da ação operam nesse âmbito interior do agente, resultando numa potencial ação ética propriamente dita que, por sua vez, é capaz de levar o ser humano à realização de sua órbita axiológica. A outra faceta desse mesmo agir humano – o fazer – representa exatamente o aspecto externo desta ação. Como o agir profissional é, em essência, um agir humano, mas voltado para o exercício de um labor, logo, o agir profissional deve subordinar-se ao influxo ético aqui enfocado.

Dessa forma, a educação do ser humano atinge a totalidade do real no qual se insere e processa dinamicamente o indivíduo. Na seara jurídica, a essência da universidade (do latim, universitas) corresponde, no aspecto institucional, justamente àquilo que constitui o espírito humano, por sua vez, no aspecto ontológico. Isto é, na condensada fórmula de Pieper (1989:5-8), “a abertura para a totalidade do real em suas conexões globais[18]”.

Por conseguinte, nessa missão pedagógica baseada nos postulados expostos ao longo dessas linhas – a advertência de Píndaro (“Torna-te o que és!”); a educação entendida como evolução, inserção e encontro; a natureza espiritual do homem; a dimensão prática da tarefa pedagógica e a essência ético-virtuosa do agir humano –, duas atitudes éticas fundamentais devem ser desenvolvidas no educando na órbita do Direito: a prudência e a justiça.

Ambas as excelências devem ser adquiridas por um processo pedagógico em que se privilegie seu manejo teórico-prático às circunstâncias concretas, sempre à luz de um trabalho de criação do direito a partir da norma abstrata visando ao justo concreto, labor essencial para qualquer profissional do ramo jurídico e que, por isso, deve ser considerado o fim primordial da escola de Direito, e numa perspectiva de formação aberta, reflexiva, crítica, operante e criativa, bem ao contrário daquilo que distingue o ensino jurídico atual nos bancos acadêmicos.

 

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NOTAS

[1] Existe um adágio popular que guarda uma realidade bem profunda e é inexplicavelmente dirigido apenas para o gênero masculino: “Filhos, a mãe começa a criá-los e a esposa termina”.

[2] “Com efeito, sucede no caso do homem exatamente o mesmo que no caso do recinto aberto, ao ser projetado nos planos longitudinal e horizontal de um quadro fechado. O homem é representado no plano biológico como um sistema fechado de reflexos fisiológicos, e no plano psicológico, como um sistema fechado de reações psicológicas. Mais uma vez, portanto, a projeção tem por resultado uma oposição. Mas, porque pertence à essência do homem o ser ele, em todo caso, aberto, o ser “aberto no mundo” (Scheler, Gehlen e Portmann), – ser homem significa, já de si, ser para além de si mesmo. A essência da existência humana, diria eu, radica na sua autotranscendência. Ser homem significa, de per se e sempre, dirigir-se e ordenar-se a algo ou a alguém: entregar-se o homem a uma obra a que se dedica, a uma pessoa que ama, ou a Deus, a quem serve. Esta autotranscendência quebra os quadros de todas as imagens do homem que, no sentido de algum monadologismo, representem o homem como um ser que não atinge o sentido e os valores, para além de si mesmo, orientando-se, assim, para o mundo, interessando-se exclusivamente por si mesmo, como se lhe importasse a conservação ou o restabelecimento da homeostase (FRANKL, 1989: 44-45)”.

[3] In Metafísica, L. I, 980 a22: “todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento”.

[4]Crítica do positivismo, portanto, a fenomenologia se apresenta também como pensamento desconfiado em relação a todo apriorismo idealista. Com isso, se insere naquele vasto movimento de pensamento caracterizado pela ‘tendência para o concreto’ (…). Nessa preocupação de construir uma filosofia ligada o mais possível a ‘dados imediatos’ e inegáveis, com base nos quais erguer depois as teorias, a fenomenologia está de acordo com o pensamento de Henri Bergson. E esse é o motivo por que ela promoveria, ou se entrelaçaria, com as concepções de Heidegger, Sartre ou Merleau-Ponty. Escreve Heidegger em Ser e Tempo: ‘a expressão fenomenologia significa antes de mais nada um conceito de método, um lema que poderia ser assim formulado: voltemos às próprias coisas! E isso em contraposição às construções desfeitas no ar e às descobertas casuais, em contraposição à aceitação de conceitos só aparentemente justificados e aos problemas aparentes que se impõem de uma geração à outra como verdadeiros problemas’. Portanto, a palavra-de-ordem da fenomenologia é a de retorno às próprias coisas, indo além da verbosidade dos filósofos e de seus sistemas construídos no ar. Mas como se fez para construir uma filosofia que se sustente? Para cumprir essa tarefa, é preciso partir de dados indubitáveis para com base neles construir depois o edifício filosófico. Em suma, procuram-se evidências estáveis para colocar como fundamento da filosofia. Essa, portanto, é a intenção de fundo da fenomenologia, intenção que os fenomenólogos procuram realizar através da descrição dos ‘fenômenos’ que se anunciam e se apresentam à consciência depois que se faz a epoché, isto é, depois que são postas entre parênteses as nossas persuasões filosóficas, os resultados das ciências e as convicções engastadas naquela nossa atitude natural que nos impõe a crença na existência de um mundo de coisas. Em outros termos, é preciso suspender o juízo sobre tudo o que não é apodítico nem incontrovertido até se conseguir encontrar aqueles ‘dados’ que resistam aos reiterados assaltos da epoché. E os fenomenólogos encontram esse ponto de aproximação da epoché – o resíduo fenomenológico, no dizer de Husserl – na consciência: a existência da consciência é imediatamente evidente. A partir dessa evidência, os fenomenólogos pretendem descrever os modos típicos como as coisas e os fatos se apresentam à consciência. E esses modos típicos são precisamente as essências. A fenomenologia não é ciência dos fatos, e sim ciências de essências. (…) Eis, portanto, o que a fenomenologia pretende ser: ciência, fundamentada estavelmente, voltada à análise e à descrição das essências. (ANTISERI, 1991:553-555)”. Adotamos a noção de fenomenologia retro exposta, sendo a essência, captada a partir das aparências, encarada como uma realidade objetiva e determinante do pensamento, postulado da filosofia aristotélico-tomista. Assim, entendemos que a fenomenologia (ainda que, depois, alguns de seus pensadores tenham permanecido apenas na intencionalidade, como Husserl, e outros caminharam para um diálogo com o realismo clássico, como Edith Stein) e o realismo aristotélico-tomista são portadores de princípios que se complementam epistemologicamente no que concerne ao estudo do ser do homem.

[5] Suma Teológica, I, qq. 75-95.

[6] Diz um ditado italiano que “se il corpo va bene, l’anima balla (se o corpo está bem, a alma dança)”.

[7] Um bom exemplo disso está justamente numa área pedagógica tão delicada como o ensino superior, cuja finalidade é a de capacitar o estudante para uma profissão no mundo do trabalho. A profissão é o meio pelo qual o ser humano se instala num locus social e, a partir de então, adquire um ângulo de vista a partir do qual pode acrescentar novas e ricas realidades ao lugar em que vive. Por isso, uma deficiência orgânica nos princípios epistemológicos do ensino de uma área tão sensível socialmente como a nossa, o Direito, provoca uma espécie de “desemprego forçado” do bacharel recém-egresso dos bancos acadêmicos. Esse desemprego é um grande atentado contra a dignidade da pessoa humana, pois impede – no nascedouro de uma longa perspectiva de vida profissional – que esse ex-estudante possa ser útil socialmente, ao mesmo tempo em que lhe diz o que efetivamente não é: a lógica da razão instrumental (na mais genuína acepção habermasiana) pede-lhe que não se incomode, pois logo lhe será concedido um polpudo e longevo seguro-desemprego, já que essa pessoa não tem mais nada para oferecer à sociedade. Condenar uma pessoa – na flor da existência humana – à estrita sobrevivência é, no fundo, exilá-la precocemente do mundo dos homens e relegá-la à “periferia existencial” da realidade, na condensada e feliz expressão empregada pelo Papa Francisco em seu discurso de posse na cátedra de Pedro em 19.03.2013.

[8] A cultura tem um assento reservado no trabalho pedagógico em qualquer nível. Não existe uma verdadeira educação sem transmissão de cultura, sem o fecundo ensinamento do tesouro intelectual daqueles que nos precederam.  A cultura é o cadinho onde se deposita o resultado do longo e complexo processo de destilação do sentido das realidades históricas produzidas pelo homem ao longo dos séculos. A cultura, como ensinou Hegel, é o lugar onde se transcende o estreito limite das ocorrências particulares, das vontades interesseiras. Sem aprendizagem, não existe o homem.

[9] “Assim o demonstra a teoria de S. Tomás de Aquino, que se liga à filosofia de Aristóteles. Este não perfilhava o idealismo platônico e a sua filosofia incide na problemática do mundo empírico. Todavia, as concepções de Aristóteles constituem um dos fundamentos da pedagogia da essência. Aristóteles fez uma distinção que teve grande importância na história da filosofia: separou a matéria de forma. De acordo com sua concepção, a matéria é passiva, variável e neutra; a forma é ativa, duradoura, e dá um aspecto qualitativamente definido. A <forma> do homem é a atividade, uma atividade específica. Não a que possui à semelhança de plantas e animais, mas a atividade pensante. Esta <forma> molda a <matéria> e cria o homem. Há, portanto, uma <forma> para cada homem. A tarefa da educação consiste em atuar da mesma maneira em todos. Não é a partir da matéria que convém avançar para a <forma> do homem; pelo contrário, é preciso moldar a matéria com a energia do sentido contido na noção de forma humana. A orientação da ação educativa é assim idêntica à de Platão, embora variem seus motivos de justificação. Inspirando-se embora nesta filosofia, São Tomás de Aquino opôs-se aos aspectos excessivos da interpretação ascética da pedagogia da essência, mas conservou as teses principais, tal como o fez Aristóteles em relação às teorias pedagógicas de Platão, cujos aspectos extremos igualmente rejeitava. Na obra De Magistro, São Tomás de Aquino definiu a tarefa e as possibilidades da educação, baseando-se na distinção entre potencial e atual. Ao negar a concepção das ideias inatas, como reserva sempre disponível do espírito do conhecimento, São Tomás considerou que o ensino era uma atividade em virtude da qual os dons potenciais se tornam realidade atual. Este processo, quer pelo lado do educador, quer pelo do próprio aluno, implica uma atividade. Alargando este ponto de vista a todo trabalho educativo, São Tomás pôs em relevo o papel da vontade para se assenhorar da natureza falível do homem (…) e esta (a atividade do homem) não é mais do que um meio pelo qual o ideal da verdade e o ideal do bem devem formar a natureza corrompida do homem (SUCHODOLSKI, 1984:20-22)”.

[10] “Paideia, a palavra que serve de título a esta obra, não é apenas um nome simbólico; é a única designação exata do tema histórico nela estudado. (…) Os antigos estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem uma arte formal ou abstrata, distintas da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação (JAEGER, 2003: introdução)”.

[11] Platão, em três famosos diálogos, explica como os sofistas tentaram várias perspectivas de compreensão da lei e da justiça. Nos diálogos “A República” (L. I, 338-340), “Górgias” (482-484) e “Protágoras” (337d), Platão afirma que os sofistas buscaram muitas perspectivas de compreensão da lei e da justiça, oscilando entre a conveniência do mais forte, o resultado de uma convenção e a expressão de tendências naturais contra os abusos da legalidade positiva. Trasímaco identifica a justiça como a vantagem do mais forte ou superior; Cálicles antepõe o direito natural dos mais fortes à tática das leis defensivas a que recorrem os mais débeis, que se satisfazem com a igualdade; Hípias escolhe as leis não-escritas, pois a lei positiva, tirana dos homens, obriga a muitas coisas contrárias à natureza.

[12] Ética a Nicômaco, L. I, 1094 a.

[13] In Confissões, VII, 18: “Vi claramente que todas as coisas que se corrompem são boas: não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper se não fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse (…). Logo, se forem privadas de todo o bem, não existirão em absoluto: pois, enquanto são, são boas”.

[14] Ética a Nicômaco, L.II, 1106 b.

[15] Acerca do individualismo egoísta, são pertinentes as palavras de Adorno e Horkheimer (1985:67), no excurso 1 da dialética do esclarecimento: “Esse idílio é na verdade a mera aparência da felicidade, um estado apático e vegetativo, pobre como a vida dos animais e, no melhor dos casos, a ausência da consciência da infelicidade”.

[16] O Papa João Paulo II, na Encíclica Dives in Misericordia (VI, 11-12) retratou bem uma realidade social que dá as costas para a dimensão ética do homem: “Aumenta no nosso mundo a sensação de ameaça, aumenta o medo existencial que anda ligado sobretudo — conforme já tive ocasião de insinuar na Encíclica Redemptor Hominis— com a perspectiva de um conflito que, tendo em conta os hodiernos arsenais atômicos, poderia significar a autodestruição parcial da humanidade. A ameaça não diz respeito apenas ao que os homens podem fazer uns aos outros, utilizando os recursos da técnica militar. Ela envolve ainda muito outros perigos que são o produto de uma civilização materialista, que, não obstante declarações «humanistas», aceita o primado das coisas sobre a pessoa. O homem contemporâneo, receia que, com o uso dos meios técnicos inventados por este tipo de civilização, não só cada um dos indivíduos, mas também os ambientes, as comunidades, as sociedades e as nações, possam vir a ser vítimas da violência de outros indivíduos, ambientes e sociedades. Na história do nosso século não faltam exemplos a esse respeito. Apesar de todas as declarações sobre os direitos do homem tomado na sua dimensão integral, isto é, na sua existência corpórea e espiritual, não podemos dizer que tais exemplos pertencem somente ao passado. O homem tem justamente medo de vir a ser vítima da opressão que o prive da liberdade interior, da possibilidade de manifestar publicamente a verdade de que está convencido, da fé que professa, da faculdade de obedecer à voz da consciência que lhe indica o reto caminho a seguir. Os meios técnicos à disposição da civilização dos nossos dias encerram de facto, não apenas a possibilidade de uma autodestruição por meio de um conflito militar, mas também a possibilidade de uma sujeição «pacífica» dos indivíduos, dos ambientes de vida, de inteiras sociedades e de nações que, seja por que motivo for, se apresentem incómodos para aqueles que dispõem de tais meios e estão prontos para empregá-los sem escrúpulos. Pense-se ainda na tortura que continua a existir no mundo adoptada sistematicamente por Autoridades, como instrumento de dominação ou de opressão política, e posta em prática, impunemente, por subalternos. Assim, ao lado da consciência da ameaça contra a vida vai crescendo a consciência da ameaça que destrói ainda mais aquilo que é essencial ao homem, ou seja, aquilo que está intimamente relacionado com a sua dignidade de pessoa, com o seu direito à verdade e à liberdade. Tudo isto se desenrola, tendo como pano de fundo o gigantesco remorso constituído pelo facto de que, ao lado de homens e sociedades abastados e fartos, a viverem na abundância, dominados pelo consumismo e pelo prazer, não faltam na mesma família humana indivíduos e grupos sociais que sofrem a fome. Não faltam crianças que morrem de fome sob o olhar de suas mães. Não faltam, em várias partes do mundo, em vários sistemas sócio-econômicos, áreas inteiras de miséria, de carência e de subdesenvolvimento. Este facto é universalmente conhecido. O estado de desigualdade entre os homens e os povos não só perdura, mas até aumenta. Sucede ainda nos nossos dias que ao lado dos que são abastados e vivem na abundância, há outros que vivem na indigência, padecem a miséria e, muitas vezes até morrem de fome, cujo número atinge dezenas e centenas de milhões. É por isso que a inquietação moral está destinada a tornar-se cada vez mais profunda. Evidentemente na base da economia contemporânea e da civilização materialista há uma falha fundamental ou, melhor dito, um conjunto de falhas ou até um mecanismo defeituoso, que não permite à família humana sair de situações tão radicalmente injustas. Eis a imagem do mundo de hoje, onde existe tanto mal físico e moral, a ponto de o tornar um mundo enredado em tensões e contradições e, ao mesmo tempo, cheio de ameaças contra a liberdade humana, a consciência e a religião. Tal imagem explica a inquietação a que está sujeito o homem contemporâneo inquietação sentida, não só pelos que se acham desfavorecidos ou oprimidos, mas também por aqueles que gozam dos privilégios da riqueza, do progresso e do poder. Embora não faltem aqueles que procuram descobrir as causas de tal inquietação, ou reagir com os meios à disposição que lhes oferecem a técnica, a riqueza ou o poder, todavia, no mais fundo da alma humana, tal inquietação supera todos os paliativos. Como justamente concluiu na sua análise o Concílio Vaticano II, ela diz respeito aos problemas fundamentais de toda a existência humana. Esta inquietação está ligada ao próprio sentido da existência do homem no mundo. É mesmo inquietação quanto ao futuro do homem e de toda a humanidade e exige resoluções decisivas que hoje parecem impor-se ao gênero humano. Não é difícil verificar que no mundo atual despertou em grande escala o sentido da justiça, o que indubitavelmente põe mais em relevo tudo o que se opõe à justiça, tanto nas relações entre os homens, grupos sociais ou «classes», como nas relações entre os Povos ou os Estados e até mesmo nas relações entre inteiros sistemas políticos ou os assim chamados «mundos». Esta corrente profunda e multiforme, em cuja base a consciência humana contemporânea situou a justiça, atesta o carácter ético das tensões e das lutas que avassalam o mundo. A Igreja compartilha com os homens do nosso tempo este profundo e ardente desejo de vida justa sob todos os aspectos. Não deixa de fazer objeto de reflexão os vários aspectos da justiça exigida pela vida dos homens e das sociedades. Bem o comprova o amplo desenvolvimento alcançado no último século pela doutrina social católica. Na linha deste ensino situam-se tanto a educação e a formação das consciências humanas no espírito da justiça. Apesar disso, seria difícil não se dar conta de que, muitas vezes, os programas que têm como ponto de partida a ideia da justiça e que devem servir para sua realização na convivência dos homens, dos grupos e das sociedades humanas, na prática sofrem deformações. Embora depois continuem a apelar para a mesma ideia de justiça, todavia a experiência mostra que sobre ela predominam certas forças negativas, como o rancor o ódio e até a crueldade. Então, a ânsia de aniquilar o inimigo de limitar a sua liberdade ou mesmo de lhe impor dependência total, torna-se o motivo fundamental da ação. Isto contrasta com a essência da justiça que, por sua natureza, tende a estabelecer a igualdade e o equilíbrio entre as partes em conflito. Esta espécie de abuso da ideia de justiça e a sua alteração prática demonstram quanto a ação humana pode afastar-se da própria justiça, muito embora seja empreendida em seu nome. Não sem razão Cristo reprovava nos seus ouvintes, fiéis à doutrina do Antigo Testamento, a disposição manifestada nestas palavras: «Olho por olho, dente por dente». Era esta a forma de alterar a justiça naquele tempo; e as formas de hoje continuam a pautar-se pelo mesmo modelo. É óbvio efetivamente, que, em nome de uma pretensa justiça (por exemplo, histórica), muitas vezes se aniquila o próximo se mata, se priva da liberdade e se despoja dos mais elementares direitos humanos. A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça, por si só, não basta e que pode até levar à negação e ao aniquilamento de si própria, se não se permitir àquela força mais profunda, que é o amor plasmar a vida hurnana nas suas várias dimensões. Foi precisamente a experiência da realidade histórica que levou à formulação do axioma: summum ius, summa iniuria. Tal afirmação não tira o valor à justiça, nem atenua o significado da ordem instaurada sobre ela, indica apenas, sob outro aspecto, a necessidade de recorrer às forças mais profundas do espírito, que condicionam a própria ordem da justiça. Tendo diante dos olhos a imagem da geração de que fazemos parte, a Igreja compartilha a inquietação de não poucos homens contemporâneos. Além disso, devemos preocupar-nos também com o declínio de muitos valores fundamentais que constituem valor incontestável não só da moral cristã, mas até simplesmente da moral humana, da cultura moral, como sejam o respeito pela vida humana desde o momento da concepção o respeito pelo matrimônio com a sua unidade indissolúvel e o respeito pela estabilidade da família. O permissivismo moral atinge sobretudo este setor mais sensível da vida e da convivência humana. Paralelamente, andam também a crise da verdade nas relações dos homens entre si, a falta de sentido de responsabilidade pela palavra, o utilitarismo nas relações dos homens entre si, a diminuição do sentido do autêntico bem comum e a facilidade com que este é sacrificado. Enfim, é a dessacralização que se transforma muitas vezes em «desumanização»; o homem e a sociedade, para os quais nada é «sagrado», decaem moralmente, apesar de todas as aparências.

[17] In Eth. 6, 3, 10 e Suma Teológica I-II, 21 2 ad 2.

[18] “Podemos agora falar da experiência fundamental que se encarnou e que tem permanecido por mais de dois mil anos nesta instituição da civilização ocidental europeia: essa experiência que, só ela, é em última análise o fundamento da universidade e sua razão de ser. Essa experiência tem por objeto, nada menos, a natureza do espírito humano. Para formulá-la, pode-se dizer o seguinte: o espírito por sua própria essência, refere-se ao todo da realidade; não é, no fundo, senão aquela capacidade de relacionamento que aponta para a universalidade do real; está capacitado e disposto a entrar em contato (e a manter este contato) com o “em si” de tudo que é. “Ter espírito”, ser “um ente dotado de espírito”, significa sobretudo ser capax universi, capaz de abarcar e de ser receptivo ao todo do mundo. Ao contrário do animal, que está encerrado num meio fragmentário, num “mundo circundante”, ter espírito significa existir face ao conjunto da realidade, vis-à-vis de l’univers. Este pensamento tem sido repetido inúmeras vezes, desde os antigos até hoje: Aristóteles diz que a alma é, de certo modo, todas as coisas, anima est quodammodo omnia; S. Tomás de Aquino atribui ao espírito humano a potência natural de convenire cum omni ente, “ir junto”, entrar em positiva relação com qualquer ente; e Max Scheler fala de “abertura para o mundo” e de “posse-do-mundo” (Welt-haben); todos estes pensadores estão falando da mesma situação da realidade. Mas esta situação implica em algo mais: implica que um ente espiritual (e portanto também o homem) só realiza suas verdadeiras potencialidades quando divisa o todo da realidade e a ele se abre expressamente. A educação daquilo que é própria e especificamente humano, ou, em outras palavras, a verdadeira formação do homem, somente se dá quando se põe em marcha esse confronto com o todo existente. Um homem verdadeiramente formado é alguém que sabe como se relacionar com o mundo como um todo, ainda que (e sobre isto ainda falaremos mais adiante) esse conhecimento da realidade seja imperfeito. Na medida em que uma comunidade humana considere como plenas de sentido e necessárias, não só as instituições que têm por fim assegurar a existência do homem e atender “às necessidades da vida” (nas quais se incluem também as, sem dúvida, indispensáveis, organizações de ensino especializado, técnico, de treinamento e instrução), mas também a “escola superior” em sentido pleno, verdadeiramente dirigida para o ideal de construir um lugar de formação que sirva para a educação daquilo que é propriamente humano; nessa mesma medida, essa comunidade considerará necessária uma instituição que tenha expressa e metodicamente por projeto o confronto do homem com o todo real. Tal instituição é exatamente a universidade! O que faz com que a universidade seja universidade não é a ciência, mas… Mas o quê? Mas a resoluta orientação do pensamento para o universum, para a unidade do conjunto do real; o decidido e persistente esforço de abertura para o todo, que desde sempre tem sido designado e entendido como filosofar. Com esta tese – que traduz uma realidade complexa no mais alto grau e, infelizmente, não triunfalmente unívoca como talvez poderia parecer à primeira vista – encontramo-nos naturalmente situados no meio de uma polêmica. Antes de tomarmos nossa posição, porém, é necessário precisar um pouco melhor o que deve ser entendido por filosofia, filosofar e ciência. Filosofar significa: dirigir o olhar a tudo aquilo que se nos depara e, num esforço de pensamento preciso e metodicamente disciplinado, suscitar a questão de seu significado último e fundamental. Alfred North Whitehead († 1947), o célebre filósofo da Universidade de Harvard, que foi ao mesmo tempo um dos fundadores da moderna Lógica Matemática (e em relação a quem, portanto, não se admite facilmente a suspeita de que não expressasse seu pensamento com suficiente precisão), afirmou em seus últimos anos de vida que a Filosofia simplesmente se ocupa da questão: What is all about?, questão que indaga do todo e que quer saber o que o todo tem a ver com esta realidade concreta (PIEPER, 1989:5-8)”.

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André Fernandes é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito titular de entrância final. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de ética, política e educação (FE/UNICAMP) e professor do CEU-IICS Escola de Direito. Coordenador do IFE Campinas. Articulista da Escola Paulista da Magistratura, da qual é também Juiz Instrutor, e do Correio Popular de Campinas, com especialidade na área de Filosofia do Direito, Deontologia Jurídica, Estado e Sociedade. Experiência profissional na área de Direito, com especialidade em Direito Civil, Direito de Família, Direito Constitucional, Deontologia Jurídica, Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica. Membro da Escola do Pensamento do IFE (www.ife.org.br), do Comitê Científico do CCFT Working Group (Diálogos entre Cultura, Ciência, Filosofia e Teologia), da União dos Juristas Católicos de São Paulo e da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas. Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas.