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Dor e sofrimento na Literatura

Literatura | 14/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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1. Prometeu: herói ou vilão?

Sofrer é parte da condição humana e, como não poderia deixar de ser, a dor produziu momentos marcantes na Literatura.  Não é possível resgatar todas as preciosidades que a arte nos legou nesse tema. Contudo, um breve passeio por algumas grandes obras pode nos dar uma ideia da riqueza humana retratada pelos grandes autores em relação ao sofrimento.

Uma peça teatral de grande interesse nesse sentido é Prometeu, de Ésquilo. Como sabemos, o titã roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens. Por esse motivo, Zeus o puniu de forma atroz: foi obrigado a ficar acorrentado a uma rocha por toda a sua existência, isto é, para sempre.

A figura de Prometeu é ambígua, já que podemos vê-lo como a personificação da revolta e do orgulho ou como de um grande injustiçado. Bem verdade que, não necessariamente, um fato exclua o outro, ou seja, uma iniquidade pode ser motivo para uma grande revolta. Parece ser esse o caso de Prometeu. Alguns tentaram vê-lo como um nietzscheniano, mas é preciso perceber que a rebelião do titã não é contra o deus cristão, afinal das contas um anacronismo, visto a peça ter sido escrita no século VI a.C!, mas contra a concepção grega, ou ao menos de Ésquilo, de divindade.

Já no início da peça, após se lamentar do seu estado, afirma:

Temos de suportar com o coração impávido

A sorte que nos é imposta e admitir

A impossibilidade de fazermos frente

À força irresistível da fatalidade.[1]

O titã considera que não deve mostrar medo ante o fato de que é impossível mudar o destino. Aliás, nem o próprio Zeus escapa à força das moiras, as três irmãs que, na Mitologia, representavam o destino: Cloto, que significa em grego, fiar, era responsável pelos nascimentos; Láquesis, “sortear”, responsável pela sorte de cada um e Átropos, “afastar”, era quem cortava o fio da vida, isto é, determinava a morte.

Portanto, essa concepção grega da vida apresentada por Prometeu é a base da tragédia: não há como escapar ao próprio destino. Como veremos mais tarde em Sófocles, Édipo é o exemplo maior do sofrimento que essa concepção causa, visto não ser possível nenhuma ação, divina ou humana, para driblar a própria sorte:

Prometeu

O Destino supera minhas aptidões.

Corifeu

E por quem o destino é governado? Dize!

Prometeu

Pelas três Parcas e também pelas três fúrias,

Cuja memória jamais esquece os erros.

Corifeu

Os poderes de Zeus, então, cedem aos delas?

Prometeu

Nem ele mesmo pode fugir ao destino.[2]

A peça, de fato, revela um momento de grande sofrimento do personagem. Contudo, não sabemos exatamente como foi o fim de Prometeu em Ésquilo, pois a obra é parte de uma trilogia da qual Prometeu acorrentado é a única que nos foi legada integralmente. Da última delas, Prometeu libertado, na qual se daria a reconciliação com Zeus, restam apenas fragmentos.

Além disso, o papel do coro na obra é curioso. Além de demonstrar compaixão pelo sofrimento do herói, revela um medo de Zeus que ultrapassa qualquer reverência ou justo temor. Em poucas palavras, é bom ficar atento e cumprir todos os rituais, pois a ira de Zeus pode aparecer em qualquer instante!

Qual é, portanto, o sentido do sofrimento na peça? De acordo com Werner Jaeger, “em Prometeu, a dor torna-se o sinal característico do gênero humano”[3]. O mesmo Jaeger nota que o pecado de Prometeu não é o roubo do fogo, mas a consequência desse ato, “na relação com alguma trágica e profunda imperfeição do benefício que, com o seu maravilhoso dom, prestou à humanidade”. [4] Talvez esse dom seja tornar os homens semelhantes a Zeus. É o que Hefesto parece indicar no início da peça, ao dizer que o castigo de Prometeu é merecido:

Quiseste transgredir um direito sagrado

Dando aos mortais prerrogativas divinas.[5]

Difícil até mesmo supor se essa afirmativa se refere a uma revolta ao estilo Adão e Eva (“sereis como deuses”) ou a uma busca de perfeição humana por meio de um “endeusamento” – “sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito”, disse Jesus – impensável para a mentalidade grega.

Em outra peça, contudo, Ésquilo exprimiu o que o filósofo Giovanni Reale considerou o ponto máximo que os gregos conseguiram chegar a respeito do sentido da dor, isto é, que “o sofrimento pode conduzir à sabedoria e pode curar”.[6] Essa máxima pode ser percebida na obra Agamenon. O coro afirma:

Foi Zeus que guiou os homens para os caminhos da prudência,

Estabelecendo como lei válida

A aprendizagem pelo sofrimento.

Contudo, e aqui seguiremos a perspicácia de Reale, é em Édipo em Colono, peça de Sófocles que retrata os últimos dias do ex-rei na Terra, que o sofrimento tem como resultado uma experiência positiva, possivelmente a maior que se possa ter, a do amor:

Ouvindo o estrondo, as meninas tremeram e se prosternaram

aos pés do pai, batendo sem cessar no peito

enquanto soluçavam consternadamente.

Ele, entretanto, ouvindo o pranto amargurado

abraçou-as e disse-lhes: “Ah! Minhas filhas!

“De hoje em diante vosso pai já não existe;

“de fato, agora acaba-se tudo que fui

“e cessa o vosso encargo de cuidar de mim

“— muito penoso, eu sei, minhas pobres crianças —;

“uma palavra só, porém, vos recompensa

“por tantos sofrimentos: de ninguém tivestes

“amor maior que o deste homem sem o qual

“ireis viver pelo resto de vossas vidas!”

Os três se estreitavam nos braços uns dos outros

mas, quando seus gemidos chegaram ao fim

e já não se podia ouvir-lhes os soluços,

todos ficaram em silêncio absoluto.

Essa belíssima cena, uma das últimas da obra, é um dos grandes momentos da literatura. E cabe ressaltar que nos ajudar a compreender a figura de Antígona, uma das filhas de Édipo presentes nesse momento e heroína da obra que leva o seu nome. Esse amor, podemos conjecturar, transforma-a em uma fortaleza no momento em que terá de defender a honra da família.

2. Morte e vida em um poema de Manuel Bandeira

Há um poema de Manuel Bandeira que, como boa parte de sua obra, parece ser descartável, simples demais. Contudo, um olhar mais atento pode descobrir uma riqueza incomparável. Trata-se de “A Virgem Maria”, escrito em 1926 e publicado no livro Libertinagem, de 1930.

Por tratar-se de um poeta que se utiliza muito da própria biografia como motivo de seus poemas, é preciso apontar alguns fatos de sua vida para melhor compreender a obra. Nascido em 1886, foi diagnosticado com tuberculose aos 18 anos, o que a época representava uma sentença de morte. Teve de abandonar os estudos de Arquitetura e iniciou uma peregrinação por estâncias climáticas em busca da melhora da saúde.  Entre 1916 e 1920, perde, respectivamente, a mãe, a irmã, que desde o diagnóstico de tuberculose tinha sido uma fiel enfermeira e, por fim, o pai. Tendo esses dramáticos acontecimentos em vista, vamos ao poema:

O oficial do registro civil, o coletor de impostos, o mordomo da Santa Casa e o administrador

[do cemitério de S. João Batista.

Esse é o primeiro e longuíssimo verso do poema. São enumerados alguns personagens, como o oficial do registro civil, responsável pela inscrição de nascimentos e mortes, o coletor de impostos, que possivelmente é aqui retratado ironicamente, pois também “mata”, o mordomo da Santa Casa que, nesse contexto, é o administrador do hospital e, por fim, o gestor do cemitério. Todas essas figuras aparecem elencadas no mesmo verso para dar a ideia de uma soma de acontecimentos relacionados à morte, como lemos nos versos seguintes:

Cavaram com enxada

Com pás

Com as unhas

Com os dentes

Cavaram uma cova mais funda que o meu suspiro de renúncia

Depois me botaram lá dentro

E puseram por cima

As Tábuas da Lei

A óbvia repetição intencional da letra C (fonema k) leva-nos sonoramente a um enterro em vida. Como ficará mais claro a seguir, trata-se de um desânimo em relação à vida, de uma desistência a vivê-la em plenitude por causa do sofrimento. Afinal, a dor, por si só, pode levar-nos a essa situação, como explica o teólogo Pie Régamey. Após considerar a abdicação da vontade na doutrina de Buda, considera que

o que Buda exprime de maneira tão profunda, é realizado pelas grandes dores – ou pelas dores sofridas pelas almas débeis -: a alma adormece. A vida física, psíquica, intelectual, continua a desempenhas suas funções, mas a alma torna-se insensível. Não vive uma nova vida, mais alta: pelo contrário, extingue-se e morre, por assim dizer, em vida. [7]

Essa condição de morte em vida é descrita de forma brilhante por Bandeira: os sofrimentos acabaram por fazer com que o poeta perdesse o gosto de viver.  Remeto o leitor ao soneto Renúncia, escrito 1906 (aos 20 anos do poeta, portanto) para compreender os versos “uma cova mais funda que o meu suspiro de renúncia. Em linhas gerais, Renúncia apela a uma atitude estoica perante a dor que indica uma abdicação após a revolta. Se a dor é inevitável, fazer o quê? Ser alegre? Não!

Encerra em ti tua tristeza inteira

E pede humildemente a Deus que a faça

Tua doce e constante companheira…

Evidente não se tratar de uma atitude cristã perante o sofrimento. Afinal, o seguidor de Cristo fia-se no Seu exemplo: se é possível, afasta esse cálice. Contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua, afirmou Jesus na oração do Horto das Oliveiras. Significa que, no cristianismo, a dor não é amada por si mesma, mas aceita pelo desejo de seguir o exemplo de Cristo.

No poema “A Virgem Maria”, essa renúncia à vida é um fato que, na segunda e última estrofe, é abalada por um apelo:

Mas de lá de dentro do fundo da treva do chão da cova

Eu ouvia a vozinha da Virgem Maria

Dizer que fazia sol lá fora

Dizer i n s i s t e n t e m e n t e

Que fazia sol lá fora.

 Quando, portanto, o poeta estava no mais absoluto indiferentismo, ouve um chamado,  reforçado pela repetição das preposições que, na Gramática, tem como função relacionar os termos da oração, e que no poema dá uma ideia sonora de grande profundidade. Sabemos que se trata de um apelo delicado pela repetição da vogal i.

A beleza da musicalidade também está presente no sentido. O que essa voz lhe diz? Talvez muitos imaginariam que o evento sobrenatural descrito no poema fosse uma reprimenda pelo comportamento censurável do poeta. Afinal, ele desdenhou do maior dom que recebeu: a vida. Contudo, a voz serena apela à sua liberdade.

Assim como em “Renúncia” há uma opção pela tristeza, compreensível, tendo em vista as dores que passou. Mas aqui há um convite à alegria. Não um imperativo, mas uma observação carinhosa, maternal: faz sol lá fora, isto é, a vida continua. Não se trata de uma explicação para os sofrimentos, mas um convite à aceitação que em Renúncia parecia ser um fato, mas era antes uma revolta sem explosões de cólera, sentimental: mágoa. Essa palavra, aliás, provém do latim macella, diminutivo de macula, mancha. As mágoas, portanto, podem ser entendidas como pequenas manchas que se impregnam na alma.

3. Conclusão

A concepção grega do sofrimento à época das tragédias supõe um destino contra o qual nem as divindades podem escapar. Os resultados são os mais variados: desde a revolta de Prometeu ao carpe diem, visto que se a dor é um fato, o melhor é aproveitar o momento, de preferência rodeado de prazeres.

O interessante no poema de Manuel Bandeira é que não nos traz uma resposta. O sofrimento é recebido como merece: com desprazer e um consequente desgosto. Contudo, os últimos versos apresentam uma intervenção divina que leva o poeta não a reconsiderar a sua atitude, mas a olhar para outro lado, por assim dizer.

Embora um pouco longa, gostaria de terminar essas considerações com uma bela citação de Aristóteles:

O que acontece de mal oprime e desgraça a nossa disposição, traz sofrimentos e impede o deflagrar de muitas atividades. E, todavia, até nessas circunstâncias reluz o esplendor, caso sejamos capazes de suportar com facilidade muitas e frequentes desventuras, não porque não se sofra, mas por generosidade e magnanimidade. Se estas são as autênticas atividades da vida, tal como dizemos, nenhum dos que são bem-aventurados se tornará miserável. Jamais praticará ações odiosas ou mesquinhas.[8]

Eduardo Gama (IFE Campinas)

 

NOTAS:

[1] Prometeu Acorrentado, Ésquilo. Trad. Mário da Gama Kury, Jorge Zahar Editor, RJ, 2004, VV. 135-138.

[2] Op. Cit. VV. 665-670.

[3] Paideia – A formação do homem grego. Werner Jaeger, p. 310.

[4] Id. Ib. p. 311.

[5] Op. Cit. VV 45.

[6] Corpo, alma e saúde. O conceito de homem de Homero a Platão. Paulus, 2002, p. 263.

[7] O mistério da cruz. Pie Régamy. Editorial Aster, Lisboa, 1959, p. 29.

[8] Aristóteles, 1100b24-35, Ética a Nicômaco, Atlas, SP, 2009.

 

Eric Voegelin e a coragem da filosofia – por Martim Vasques da Cunha

Filosofia | 12/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Eric Voegelin ainda é um filósofo pouco conhecido nas universidades brasileiras e também em nossa cultura, mas este panorama felizmente está mudando. Talvez, os mais velhos, reconheçam este nome pela coleção “amarelinha” da UnB dos anos 80-90, denominada Pensamento Político, e cujo volume 12 era a tradução de uma das obras importantes do filósofo, A Nova Ciência da Política (“The New Science of Politics”, 1953), que lhe rendeu uma reportagem na revista americana Time e fama no exterior. Mas também não é tarde para colocá-lo em pauta e, mais do que isso, em nossa mesa de estudo, pois há razões suficientes para isso, como se verá no texto que segue. Além disso, publicamos o texto de Martim Vasques da Cunha aqui porque já passou da hora do filósofo-germano americano ficar apenas nas prateleiras das livrarias brasileiras, uma vez que, graças a um esforço editorial notável, o Brasil já conta com uma lista de mais de dez títulos traduzidos dele ou sobre ele, que colocamos ao final, de modo que Voegelin agora está bem mais acessível ao público de língua portuguesa.

 

Eric Voegelin e a coragem da filosofia**

Por Martim Vasques da Cunha

The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

W.B. Yeats, “The Second Coming

Conta-se que o filósofo grego Anaxágoras caminhava por uma estrada quando encontrou um homem agonizante. Este lamentou o fato de estar distante de sua pátria na hora da morte. Para tranqüilizá-lo, Anaxágoras disse-lhe: “Não se preocupe, meu caro. A descida ao inferno é a mesma de qualquer lugar”…

A historieta, dura – embora não tanto: lembremo-nos que o Hades grego não tem o mesmo peso que o inferno tem para nós, o de uma rejeição eterna e irrevogável do real -, alude à coragem que todos temos de ter se queremos conhecer a realidade.

Antes de mais nada, porém, o que é essa tal “realidade”? Não tenho a pretensão de responder aqui a esta pergunta, mas, para ir à raiz do problema, basta que nos perguntemos: O que entendemos por realidade? Como a compreendemos? Esse foi, em todos os tempos, um problema constante, que só pode encontrar alguma solução se o homem der ouvidos a esse fundo insubornável do ser de que fala Ortega y Gasset, ao mais íntimo dos seus pensamentos naquele momento em que enfrenta o seu reflexo no espelho e tenta reconhecer a própria face.

É daí que me dirijo a você, leitor. Não sou filósofo, e muito menos um condutor de homens. Sou, no máximo, um cidadão que, por uma comichão na consciência, tenta observar as coisas como são e por isso chegou a algumas conclusões perturbadoras. Por isso, gostaria de que me lesse, não como quem traz respostas para todos os problemas, mas apenas como alguém que reflete sobre o que todos sabem, mas talvez tenham medo de dizer. E aqui procurarei que essa voz não seja apenas minha; através dela, queria transmitir a de outra pessoa, a do homem que tentarei apresentar aqui: Eric Voegelin.

Um filósofo para uma seleta minoria

Voegelin nasceu em Colônia, na Alemanha, a 3 de janeiro de 1901, e faleceu em Stanford, na Califórnia, a 19 de janeiro de 1985. É um dos maiores filósofos do século XX, mas permanece ignorado em boa parte dos meios acadêmicos nacionais. Por quê? Bem, na verdade, não há mistério nisso: é um autor difícil por ser duro como poucos, rigoroso como um verdadeiro filósofo deve ser e, como se não bastasse, escreve com uma facilidade que desnorteia os que pensam que a filosofia deve ser transmitida como um código secreto para iniciados. Além disso, não brinca com as coisas sérias da vida.

Pelos locais de nascimento e morte, já percebemos que não morreu na terra natal. Em 1938, teve de fugir de Viena, onde tinha estudado e depois começado a carreira universitária, devido ao Anschluss, a anexação da Áustria pela Alemanha governada pelo Partido Nacional-Socialistas dos Trabalhadores. Nessa altura, era já persona non grata para os nazistas: em 1933, quando eles haviam chegado ao poder, publicara dois estudos que criticavam as raízes ideológicas do partido –Raça e Estado e O Estado autoritário.

Em Viena, tinha sido discípulo de Hans Kelsen, o filósofo do Direito positivista que, ironicamente – porque as suas teorias serviram para fundamentar doutrinalmente o sistema legal nazista – , também tivera de fugir por ser de ascendência judaica. Voegelin não era judeu nem socialista, e também não tinha a intenção de ser um opositor político do nazismo; era contrário a qualquer ideologia por motivos estritamente intelectuais e espirituais, pois num momento em que mais ninguém tinha coragem de admiti-lo, já sabia que era insustentável ser nazista para qualquer um que quisesse manter um mínimo de honestidade moral.

Depois de uma breve passagem pela Suíça, chegou aos Estados Unidos, onde recomeçou a carreira acadêmica como filósofo, fixando-se na Universidade de Louisiana, em Baton Rouge. Era um fim de mundo acadêmico, convenhamos, mas permitiu-lhe preparar-se durante vinte anos para o trabalho de toda a vida – desmascarar o mecanismo que permite às ideologias políticas corromper uma nação inteira.

Ali começou por escreveu um tratado de 3.200 páginas sobre a História das idéias políticas, que abandonou e que só viria a ser publicado postumamente. A seguir, dedicou-se a pesquisar os símbolos religiosos de Israel e da filosofia grega, e publicou parte dos resultados deste trabalho no livro A nova ciência da política, de 1953, que lhe valeu uma reportagem na Time e o transformou em um nome celebrado nas universidades americanas. Mesmo assim, Voegelin não se acomodou sobre os louros, mas começou a redação do grande tratado Ordem e História, iniciado em 1955 e só terminado no final da vida.

Contudo, em 1958, treze anos depois do fim da Segunda Guerra, suas atividades acadêmicas nos Estados Unidos foram interrompidas quando a Ludwig-Maximilian Universität de Munique o convidou a assumir a cátedra de ciências políticas, que tinha sido a de Max Weber e estava vaga havia vinte anos. Ali, Voegelin acrescentou um trabalho administrativo às responsabilidades acadêmicas, fundando o Instituto de Ciência Política. Por fim, em 1969, voltou para os Estados Unidos, desta vez para trabalhar em Stanford, onde permaneceria até a morte.

“Dominar” o passado?

Voegelin aceitou o desafio de voltar para a Alemanha – apesar da posição de destaque no meio acadêmico conquistada a duras penas –
por um motivo simples: era a oportunidade de, vinte anos depois, acertar as contas com os fantasmas do nazismo.

Quando chegou, o país estava em pleno processo de “desnazificação”. Oficialmente, tratava-se uma “condenação do passado nazista” feita pelo povo e pelo governo de Konrad Adenauer, que girava em torno da noção de culpacoletiva. O termo soava bem num país ocupado por quatro potências ocidentais e dividido por um muro, mas realmente “desnazificava” o país? Essa “revisão” do passado assegurava uma mudança real para o presente e o futuro?

Voegelin responderá decididamente que não. Em 1964, deu uma série de palestras sob o título de Hitler e os alemães que foram um enorme sucesso de público.[1] Conforme o filósofo tinha pretendido, esse público estava composto na sua maioria por estudantes, que eram o seu alvo preferencial por já correrem o risco de perder a noção do que fora viver nos tempos de Hitler. E as perguntas que lhes fez não diziam respeito a pretensas culpas coletivas, mas atingiam aquele fundo insubornável do ser individual: como fora possível que semelhante corrupção espiritual tivesse atingido todos os níveis da sociedade, da política à intelectualidade, do mundo dos negócios à moral? E essa corrupção não continuaria a atuar na mente da jovem geração, mesmo vinte anos depois do desaparecimento do nazismo?

De acordo com a retórica da culpa coletiva, todos os alemães seriam culpados pelo nazismo. Que sentido fazia isso? Os membros do partido teriam a mesma responsabilidade que os que tinham votado em Hitler por acharem que seria o salvador do mundo? E os que não queriam saber de política e desejavam apenas escapar ao pesadelo da ruína econômica após a Primeira Guerra Mundial? Tudo isso não passava de uma paródia de expiação, que mascarava algo muito mais importante: a responsabilidade individual.

De fato, a “desnazificação” não atingia os altos escalões do poder público. Membros importantes da antiga burocracia nazista – simples “funcionários” ou “burocratas”, dizia-se, sem responsabilidade pelas decisões criminosas e por isso mesmo incapazes de perturbar alguém – permaneciam em cargos-chave do novo governo. Um caso clamoroso era o de Hans Globke, que despertou as mais ferozes indignações de Voegelin e da filósofa Hannah Arendt.

Em 1958, Globke era o braço direito de Adenauer, ocupando o cargo de “subsecretário de Estado e chefe da divisão pessoal da Chancelaria da Alemanha Ocidental”. Vinte e seis anos antes, fora um dos funcionários mais respeitados do Ministério do Interior do Terceiro Reich. Quando surgiu o escândalo em torno do seu passado, Globke apressou-se a afirmar que apenas procurara tomar “medidas mitigadoras”. Curiosas medidas, aliás… Em primeiro lugar, fora o autor da lei segundo a qual todo judeu deveria ter como segundo nome “Israel” e usar uma estrela de Davi amarela a fim de mostrar que não tinha “ascendência ariana”; e isso foi em 1932, quando “a subida de Hitler não era uma certeza, mas apenas uma forte possibilidade”. Mais tarde, já no ministério, criara a lei que obrigava moças tchecas que pretendessem casar com soldados alemães a exibir fotos em que apareciam vestidas de maiô, para comprovar os dados antropométricos arianos (talvez fosse mesmo uma mitigação, pois antes se exigiam fotos em que apareciam nuas…).

Isso já fora denunciado por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém, o livro-reportagem publicado em 1962 que narrava o julgamento de Adolf Eichmann, acusado pelo governo de Israel de ser o “arquiteto da Solução Final”. Arendt se perguntava se Eichmann, um burocrata arrivista, seria o monstro de que tanto se falava. E chega à conclusão de que não: tratava-se de um “homem-massa”, sem vida interior, sem convicções pessoais, imbuído apenas do intuito de seguir o rebanho – mesmo que este praticasse assassinato em quantidades industriais. De quem era a responsabilidade? Dos alemães? Dos judeus? Do Ocidente? Talvez de todos, desde que isso não mascarasse o fato de que, antes de mais nada, o verdadeiro responsável por suas ações era o próprio Eichmann.

A conclusão que se impunha era que o verdadeiro processo de “desnazificação” não se podia obter por meio de um processo legal ou político; era necessária umareviravolta da consciência, uma revolução do espírito – uma conversão pessoal que tinha de começar com uma “descida aos infernos”. E essa foi a tarefa que Voegelin se impôs ao chegar à Alemanha em 1958: fazer a sua terra natal compreender que, para “dominar” o passado, tinha antes de mais nada de “dominar” o presente.

A descida ao inferno

Para isso, Voegelin recupera e propõe no conjunto da sua obra duas noções praticamente esquecidas no ambiente acadêmico: a do homem maduro e a doprincípio antropológico.

O “homem maduro” corresponde ao spoudaios de Aristóteles, a pessoa que desenvolveu ao máximo as suas potencialidades e, em conseqüência, aprendeu que governar e comandar os outros é antes de mais nada governar e comandar-se a si mesmo, especialmente no domínio das paixões e dos sentimentos. Conhece a profundidade da sua alma e da dos seus semelhantes porque desceu ao inferno do conhecimento próprio e de lá voltou. Neste sentido, não é apenas alguém que manda, mas alguém que representa os anseios mais íntimos dos homens de carne e osso que compõem a sociedade; não é um chefe político ou institucional, mas um líder autêntico, com liderança existencial, pois chega a ser o reflexo da sociedade que governa. Tudo isso pode ser resumido na seguinte sentença: a sociedade é a alma do homem escrita por extenso. Voegelin recuperará essa noção de Platão e a chamará de princípio antropológico.

Ora bem, nas suas palestras sobre “Hitler e os alemães” Voegelin começa apresentando uma carta escrita por um jovem acadêmico à famosa revista Der Spiegel:

“Quando lemos que Hitler foi um amador, ‘abaixo da média dos homens’, perguntamo-nos automaticamente como então ele foi capaz de modelar uma época. Reconheço que ele era um ‘jogador’, mas um jogador que ofuscou os outros. […] E o seu único crime foi o de ser um jogador que perdeu, e que levou consigo todo um povo, de maneira que afundou com ele. Entretanto, toda a política é um jogo e os ganhos aumentam quando as apostas são altas. Hoje já não podemos e não queremos jogar; portanto, também nos é impossível ganhar – a não ser o tão cotado padrão de vida. Mas talvez estejamos perdendo mais, mesmo sem Hitler”.

Aqui estão prefigurados muitos dos clichês que, inquietantemente, voltamos há pouco a ouvir repetidos na imprensa e na academia: o de que Hitler, no fim das contas, era um grande líder, o de que a política é um jogo, e o de que sua única culpa foi perder. Nem se menciona que o nazismo e o seu líder tinham um projeto de eliminação sistemática de toda uma raça e, nas palavras de Churchill, de toda a civilização.

Voegelin apresenta outro exemplo, extraído de um acadêmico que faz a seguinte descrição física e psicológica de Hitler:

“Hitler fascinava as pessoas com seus olhos azuis profundos, ligeiramente esgazeados, quase radiantes. Muitos que se encontravam com ele eram incapazes de resistir a seu olhar”.

 E, com palavras mais reveladoras:

“É quase impossível comunicar aos que nunca o conheceram o impacto pessoal de Hitler […]. Havia, no entanto, muitas pessoas sobre quem isso não tinha absolutamente nenhum efeito. Certa vez um coronel me descreveu que, quando estava conversando com Hitler, sentiu uma aversão crescente ao homem enquanto este o fitava de perto (vale notar que Hitler dispensou esse coronel e outros muitos rapidamente). A reação reversa foi provocada numa requintada proprietária da Pomerânia de ascendência aristocrática e convicções cristãs, que detestava Hitler. Encontrou-o por acaso no passeio de madeira de uma praia do Mar Báltico, foi atingida por um breve momento pelo olhar dele e declarou, como fulminada por um raio, que embora ainda não gostasse dele, sentia que ele era um grande homem. Aqueles a quem Hitler tolerava perto dele eram, é claro, mais do que tocados pelo seu olhar, e eram transformados em seus satélites voluntários”.

Nestes parágrafos quase hagiográficos, o Führer aparece como um “enigma”, como se tivesse uma “aura” incomum que o transformasse em um homem situado “além do bem e do mal”. É verdade que o seu autor, Percy Schramm, tinha feito parte do Supremo Comando das Tropas de Guerra; mas já agora, devidamente munido do seu “certificado de desnazificação”, era um acadêmico de renome e ganhador da Ordem do Mérito – a maior honra que, na Alemanha pós-guerra, se podia conferir a um civil.

Esse tipo de mitificação, diz Voegelin, mascara um fato relevante para qualquer análise política decente: o da representação social. Se as pessoas viam essa “aura” em Hitler, por mais que antipatizassem com a sua causa, as suas idéias ou mesmo a sua pessoa, era porque desejavam participar dela, ver essa “aura” refletida nelas mesmas. O jornalista Konrad Heiden descreveu isso com precisão já em 1933, quando ainda ninguém previa as dimensões que o nazismo viria a assumir:

“Com uma confiança ímpar, Hitler expressou o pânico sem palavras das massas confrontadas por um inimigo invisível e deu um nome ao espectro sem nome. Ele era um fragmento puro da própria alma da massa moderna […]. Alguém se perguntará quais foram as artes pelas quais ele conquistou as massas; na verdade, ele não as conquistou, apenas as retratou e as representou“.

Essa intuição brilhante, que Heiden captou no calor da hora, mostra o fundo da “aura” e do “enigma” de Hitler. Não havia ali nada da liderança do “homem maduro”, mas apenas um homem-massa imbuído de um intenso complexo de inferioridade e da intensidade que conferem a angústia e o ódio. O próprio estilo repleto de clichês dos “hagiógrafos” manifesta esta realidade, pois a primeira manifestação da corrupção social está na corrupção da linguagem, que se torna uma “língua de madeira”, rígida, repetitiva e vazia de sentido real, como a que caracterizou igualmente o governo totalitário soviético.

Manipulação, não liderança

Schramm acrescenta, ainda no tema do “enigma de Hitler” e baseado em testemunhos dos que cercavam o Führer, que este só contava aos que lhe estavam próximos o estritamente necessário, mesmo nos momentos decisivos da Segunda Guerra. Essa atitude enigmática é às vezes mencionada, mesmo hoje, como uma “técnica de liderança”. Voegelin, pelo contrário, chega a uma conclusão muito mais banal e concreta:

“O problema obviamente escapou a Schramm, pois esse sonegar informações, mesmo aos membros do Estado Maior e do Almirantado, tinha uma razão institucional. Nos últimos anos, Hitler não contou com nenhum Estado Maior para conduzir a guerra, mas tomou as rédeas do exército em suas próprias mãos, pois temia ser posto sob pressão se tivesse de enfrentar um grupo de seis ou sete generais e almirantes com visão de jogo. Assim, lidava com eles apenas individual e pessoalmente, e esse contato isolador, em que nenhuma pessoa sabia qual era o plano todo, era uma tática deliberada e um instrumento de estabelecimento da ditadura“.

Com efeito, esse reservar para si a informação de conjunto é uma das técnicas clássicas de manipulação do poder. Novamente, não há aí nenhum tipo de liderança, mas apenas uma imposição da ambição pessoal.

Uma segunda amostra dessa manipulação surge da análise do relacionamento doFührer com a sua “comitiva”. Para Schramm, como para outros, a “culpa de tudo” não estaria em Hitler, mas sim naqueles que o cercavam. Ele, homem imbuído de um sonho grandioso, teria sido influenciado por asseclas criminosos e incompetentes; se tivesse podido traduzir na prática os seus ideais, o nazismo teria tido outro destino histórico.

Ora, é mais do que sabido que a ordem decisiva para a última fase da “Solução Final” –
a do extermínio em massa dos judeus – veio do próprio Hitler. O que nos leva à teoria oposta, também apresentada com certa freqüência: a “culpa de tudo” teria sido exclusivamente do Führer, não do partido nem do governo nem do povo. Sabemos aonde conduz esse raciocínio: à afirmação de que “o nazismo foi desvirtuado por Hitler; sem ele, seria outra coisa, muito mais bonita” (É interessante notar que se usa o mesmo procedimento para o comunismo, apenas trocando “Hitler” por “Stálin”).

As duas teorias são nitidamente insuficientes. Se aplicarmos o princípio antropológico, o de que o líder representa os anseios dos seus adeptos, veremos que Hitler se cercava de uma comitiva incompetente porque ele próprio era incompetente. Por ser o representante do homem-massa inferiorizado, as suas palavras só encontravam eco em uma “pseudo-elite” intelectual e militar que, no fim, não passava de uma “massa inferiorizada”,
de uma “ralé”.

Voegelin apresenta seis parâmetros para analisar o “caso de amor” de Hitler com sua comitiva:

“(1) Hitler estava a par da inadequação de seu círculo. (2) Hitler era, no entanto, obcecado com a ‘camaradagem’ e a ‘lealdade’. Desaprovava veementemente as mudanças que Mussolini fazia em sua guarda, as trocas de ministros. (3) Ele era conservador em seus hábitos de vida e dificilmente rompia relações com pessoas com quem crescia. (4) Teria ocorrido uma mudança, no entanto, se tivesse sido capaz de ver os seus homens como eram realmente, de discernir quem dentre eles era incompetente ou tinha sérias deficiências de caráter. Eis a contradição: por um lado, ele tinha consciência da inadequação desse círculo; por outro, não era capaz de detectar-lhes a incompetência, as deficiências de caráter. (5) Portanto, não tinha precisamente aquilo pelo que muitas vezes foi louvado: o conhecimento da natureza humana. (6) Hitler conseguia suprimir um julgamento inteiramente correto, mas que não lhe era conveniente, a fim de justificar pessoas que lhe pareciam úteis e devotadas”.

É especialmente importante aqui a expressão “como eram realmente“. A incompetência de Hitler e de sua comitiva devem-se simplesmente a que não foram capazes de ver a realidade. Por isso, não formaram uma “elite”, uma minoria seleta que sabe que primeiro a realidade tem de ser estudada com amor para só depois se tornar dócil; formaram uma “ralé” que acreditava que a realidade estivesse aos seus pés apenas por serem eles quem eram. E se as coisas davam errado, limitavam-se a negar toda a responsabilidade, lançando as culpas, conforme o caso, ora no Führer, ora na sua comitiva. Mas quem se recusa a ver as conseqüências do real, não merece outro nome que o de estúpido.

Pneumopatologia da estupidez

Antes de mais nada, devo dar um esclarecimento. O leitor talvez se tenha surpreendido com as palavras “ralé” e “estúpido”, e pense que são insultos vulgares. Não são. Na verdade, são termos técnicos e rigorosos, que classificam um determinado comportamento diante do real. Além de que um insulto preciso às vezes pode ser um excelente diagnóstico.

Comecemos com o termo “estupidez”. Voegelin faz um resumo delicioso de como essa palavra é usada desde o início dos tempos, da Bíblia até a mais recente literatura moderna, passando pela filosofia grega. Os israelenses chamam o homem que cria desordem na sociedade de “tolo”, nabal, pois não é um “crente”, não aceita a revelação de Deus; Platão usa outro termo, amathes, o homem irracional, que não se curva à razão e, portanto, tem uma imagem defeituosa da realidade. Para São Tomás de Aquino, o “tolo” é o stultus, o estulto, que não compreende nem a revelação, nem a razão, e mesmo assim tenta mudar a realidade, tendo como resultado óbvio produzir o caos. Por fim, na literatura moderna Voegelin encontra no escritor austríaco Robert Musil as expressões “estúpido”, “idiota” e “néscio”, que retratam o mesmo tipo humano.

Qualquer um de nós já sentiu o momento em que se depara com a estupidez do próximo como um dos tormentos mais angustiantes de sua vida. Ortega y Gasset define certeiramente a distinção entre o tonto e o “perspicaz”: o segundo sempre se surpreende a dois passos de se tornar um tonto (e aí está o início da inteligência), ao passo que o primeiro jamais suspeita de si mesmo, sempre se considera “discreto” e se instala na sua torpeza e tranqüilidade de “néscio”. Não há como tirar o tonto da sua tontice; aliás, como bem diz Ortega, a diferença entre um “néscio” e um homem “mau” é que o mau descansa às vezes, o néscio nunca.

Voegelin toma de Musil os conceitos de “estupidez simples” e “estupidez inteligente”. O “estúpido simples” é alguém que erra por ignorar o que acontece, por mera desinformação; já o “estúpido inteligente” é alguém que insiste no erro por acreditar que sempre tem razão. Do resumo histórico que o filósofo faz, ressalta uma constante que caracteriza o “estúpido inteligente”: a negação deliberada da razão, que lança o ser humano na bestialidade, mesmo que esta assuma as formas aparentemente sofisticadas da técnica ou da ideologia. O estúpido não quer conhecer, prefere permanecer na negação da realidade. No fim das contas, pensa com o poeta alemão Novalis (muito admirado pelos nazistas): “o mundo será como eu quero que ele seja”. Por não respeitar a realidade como ela é, violenta-a de uma forma ou de outra; mas, como ela é “insubornável”, cedo ou tarde ela se vingará, pregando-lhe uma peça. E como resultado o estúpido assume uma atitude de revolta contra tudo e contra todos.

Ao binômio de Musil, Voegelin acrescenta mais um termo para descrever “Hitler e os alemães”: o de “estupidez criminosa”. Se o estúpido inteligente insiste no erro, o criminoso está disposto a fazê-lo custe o que custar. A sua vontade racional é substituída por um desejo de poder alucinado, que acaba encontrando satisfação somente na destruição do seu semelhante; as aparentes “razões” que invoca para fazê-lo – de raça, de credo, de cor ou de sexo -, não passam de pretextos.

Hitler foi exatamente isso: um estúpido criminoso, o exato oposto do spoudaios, do homem maduro defendido por Aristóteles. Contudo, permaneceu um ser humano: não é possível perder a razão ou o próprio espírito só porque queremos: eles continuam a fazer parte da constituição humana. Como diria Voegelin: “Foi de uma humanidade em forma absolutamente humana, porém a humanidade mais notavelmente desordenada e doente: uma humanidade pneumopatológica“. O estúpido, e mais ainda o estúpido criminoso, não é um “psicopata”, mas algo mais profundo: sofre de uma doença do espírito, de uma pneumopatologia, que nasce da vontade humana mas acaba por enraizar-se em todo o ser da pessoa.

Musil criou também a distinção entre “primeira realidade” e “segunda realidade”. A primeira é a realidade captada pela apreensão concreta das coisas, entendida pela razão e refletida no bom senso, em que todos vivem e se comunicam; a segunda é a pseudo-realidade criada como alternativa pelo espírito doente, em que ele tentará viver e expressar-se independentemente dos desejos dos seus semelhantes. Quando ocorre o choque inevitável entre as duas, nasce a mentira erigida num sistema em que todos os dados incompreensíveis da “primeira realidade” têm de encontrar uma explicação exata na “segunda realidade”. E nesse momento ocorre uma desumanização: o ser humano, esse algo concreto e inesgotável, feito de carne e espírito, é transformado em um mero conceito, uma simples abstração – uma “estatística”. Daí para o genocídio é apenas um passo.

Este foi o caso da Alemanha na época em que foi representada política e existencialmente por Adolf Hitler. Não houve nenhuma “aura”, nenhum “enigma”, muito menos uma “personalidade demoníaca”: tratava-se somente de uma nação de estúpidos governada por um estúpido criminoso. No choque entre a primeira realidade e a segunda, a “elite” da nação abdicou do espírito e decidiu deixar-se escravizar pelo desejo de poder, tornando-se “ralé” submetida à “autoridade da ignorância”. Essa “ralé” só estava aberta à vontade do Führer, e isso porque também ela estava imersa na mesma doença espiritual.

Para mostrar com clareza o que caracteriza a “ralé”, Voegelin usa um episódio doDom Quixote. Como todos sabem, o cavaleiro espanhol é a personificação do homem que vive na “segunda realidade”, confundindo moinhos com monstros e camponesas com nobres donzelas. A certa altura do romance, o Quixote é libertado de uma gaiola de madeira pelo cônego, que o acompanha até a sua casa e procura convencê-lo de que suas aventuras não passam de rematada loucura. O cavaleiro responde-lhe que suas aventuras são tão reais como as que compõem os livros de cavalaria da época; o verdadeiro louco, diz, seria o cônego, que não acredita nesses livros “apesar de terem sido publicados com a licença do rei”. Aqui temos o raciocínio característico da “autoridade da ignorância”: aceita-se incondicionalmente a mentira porque “a autoridade” (que pode ser do rei, doFührer ou da “maioria”, tanto faz) a aprova.

A resistência dolorida

Uma “ralé” comandada por um “estúpido”, intoxicada por uma doença erigida em sistema legal: essa estupidez institucionalizada gera uma situação de sonâmbulos conduzidos por outros sonâmbulos. Houve, entretanto, alguns que se ergueram contra essa “opção preferencial pelo desastre” e cumpriram a famosa frase do filósofo inglês Richard Hooker: ao menos “a posteridade saberá que não deixamos, pelo silêncio negligente, que as coisas se passassem como um sonho”.

O mito de que não houve resistência ao nazismo mostra-se cada vez mais infundado. Já mencionamos as obras do próprio Voegelin ou o de Robert Musil, que, ainda em 1937, deu uma conferência pública chamada “Da estupidez”. Mas existiram vários tipos de resistência, como o dos prelados Faulhaber ou Von Galen (que os nazistas não ousaram prender), de católicos como Fritz Gehrlich e Alfred Delp (executados), dos pastores Dietrich Bonhöffer (preso e executado) e Martin Niemöller (a princípio fascinado pelo nazismo, mas que percebeu a armadilha e foi preso), de intelectuais como Hermann Broch e Thomas Mann (exilados nos EUA) – e, é claro, dos irmãos Hans e Sophie Scholl.

Em fevereiro de 1943, os Scholl – que tinham formado com mais três amigos um grupo clandestino chamado “Rosa Branca” – distribuíram nos corredores da universidade de Munique milhares de panfletos em que denunciavam a loucura da guerra e a existência de campos de concentração. A Gestapo, com eficiência alemã, caçou-os e prendeu-os quase que imediatamente. Depois de uma farsa de julgamento, os Scholl foram condenados à morte e levados à guilhotina; Sophie tinha 21 anos e Hans, 25 anos. A evocação dos dois não é casual: o próprio Voegelin batizou o Instituto de Ciência Política de Munique, que fundou e onde deu as suas palestras sobre “Hitler e os alemães”, de Geschwister-Scholl-Institut(Instituto Irmãos Scholl); para o filósofo de Colônia, uma política autêntica tem de estar sob a égide da coragem.

A conclusão de Voegelin é um chamado à responsabilidade individual e a uma qualidade completamente insuspeitada neste contexto: a humildade. Porque a humildade é exatamente aquilo que afirmamos no início deste artigo: confiar na realidade. A coragem de confiar no real é a única garantia que permite superar a estupidez institucionalizada, tornar-se um homem maduro e encontrar essa realidade que fundamenta o encontro com todas as outras realidades: a vida do espírito. São necessários anos e anos de dedicação, e é necessária também umareviravolta interior para perceber as coisas por esse novo olhar. Mas o começo de tudo está em perceber que estamos sempre a dois passos de nos tornarmos estúpidos.

Enfrentar-se com essa clareza é uma espécie de descida aos infernos; mas não esqueçamos que o estúpido também desce, e de maneira muito pior: no caso de Hitler, basta ler os últimos relatos de sua vida no fétido bunker onde escolheu morrer. Uma frase publicitária da época, profundamente irônica, afirmava: “Hitler no bunker – esse, sim, é o verdadeiro Hitler!” E o que era? Segundo Joachim Fest, um homem consumido pelo ódio à humanidade, cristalizado nos seus padrões de pensamento, dominado por uma força irracional orientada somente para a destruição. É interessante confrontar esta atitude com a de Winston Churchill, a “nêmesis de Hitler”, que descreve assim os seus “anos de ostracismo” na década de 30:

“Todo profeta deve provir da civilização, mas todo profeta tem de ir para o deserto. Deve ter uma impressão profunda de uma sociedade complexa e de tudo o que ela tem para dar, e depois atravessar períodos de isolamento e meditação. É mediante esse processo que a dinamite psíquica é feita”.

O spoudaios, o homem que “desceu ao inferno” do autoconhecimento e de lá voltou, é precisamente esta “dinamite psíquica”. Esta é a lição que Eric Voegelin deixou para todas as jovens gerações: a de que a tarefa da filosofia é cultivar a coragem e confiar no real, sempre de acordo com o aviso do profeta Ezequiel: “Filho do homem, te pus como sentinela para a casa de Israel. Assim, quando ouvires uma palavra da minha boca, hás de avisá-los da minha parte. Quando eu disser ao ímpio: ‘Ímpio, certamente hás de morrer’ e tu não o desviares do seu caminho ímpio, o ímpio morrerá por causa da sua iniqüidade, mas eu requererei o seu sangue de ti. Por outra parte, se procurares desviar o ímpio do seu caminho, para que se converta, e ele não se converter do seu caminho, ele morrerá por sua iniqüidade, mas tu terás salvo tua vida” (Ez 33:7-9).

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista e doutorando pela Universidade de São Paulo (USP).


NOTAS:

[1] Hitler e os alemães foi publicado no Brasil em 2008 pela editora É Realizações, que também lançou Reflexões autobiográficas, igualmente de autoria de Eric Voegelin.


**Texto publicado na revista-livro Dicta&Contradicta, edição nº 2, Dez/2008, principal meio impresso do Instituto de Formação e Educação (IFE). A imagem de Eric Voegelin foi extraída deste link.


ADENDO:

LISTA DE LIVROS TRADUZIDOS PARA O PORTUGUÊS DE ERIC VOEGELIN:

  • 1979 A nova ciência da política. Brasília: UnB.
  • 2008 Reflexões Autobiográficas. São Paulo: É Realizações.
  • 2008 Hitler e os Alemães. São Paulo: É Realizações.
  • 2009 Anamnese – Da teoria da história e da política. São Paulo: É Realizações.
  • 2009 Ordem e História, vol. I: Israel e a Revelação. São Paulo: Edições Loyola.
  • 2009 Ordem e História, vol. II: O Mundo da Pólis. São Paulo: Edições Loyola.
  • 2009 Ordem e História, vol. III: Platão e Aristóteles. São Paulo: Edições Loyola.
  • 2010 Ordem e História, vol. IV: A Era Ecumênica. São Paulo: Edições Loyola.
  • 2010 Ordem e História, vol. V: Em Busca da Ordem. São Paulo: Edições Loyola.
  • 2012 História das Ideias Políticas – Vol. I: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo. São Paulo: É Realizações.
  • 2012 História das Ideias Políticas – Vol. II: Idade Média até Tomás de Aquino. São Paulo: É Realizações.
  • 2013 História das Ideias Políticas – Vol III: Idade Média Tardia. São Paulo: É Realizações.
  • 2014 História das Ideias Políticas – Vol IV: Renascença e Reforma. São Paulo: É Realizações.

LISTA DE LIVROS TRADUZIDOS PARA O PORTUGUÊS SOBRE VOEGELIN:

  • HENRIQUES, Mendo Castro. Filosofia Política em Eric Voegelin – dos megalitos à era espacial (Livro + 3 DVDs). São Paulo: É Realizações, 2009.
  • HENRIQUES, Mendo Castro. A Filosofia Civil de Eric Voegelin. São Paulo: É Realizações, 2010.
  • SANDOZ, Ellis. A Revolução Voegeliniana. São Paulo: É Realizações, 2010.
  • FEDERICI, Michael P. Eric Voegelin – A Restauração da Ordem. São Paulo: É Realizações, 2011.

Apresentação Núcleo de Filosofia

Filosofia | 21/04/2014 | | IFE CAMPINAS

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A Filosofia nasceu na Grécia Antiga entre os séculos VI e VII a.C. Buscava o saber, a realidade do mundo e da vida. De lá para cá a História da Filosofia conheceu muitos filósofos, desde seus grandes pais Sócrates, Platão e Aristóteles, passando por Santo Agostinho e Tomás de Aquino, até Immanuel Kant, Henri Bergson e outros.

Contudo, em nosso tempo, muito se perdeu daquilo que a Filosofia objetivava no início, isto é, o saber, a busca pela verdade, pela sabedoria, limitando-se muitas vezes a resenhar ou interpretar filósofos do passado sem um comprometimento com a realidade do passado e dos dias de hoje, fato que levou e leva muitas pessoas a olharem a Filosofia como não ligada à nossa vida, como se fosse algo à parte e sem utilidade. Por outro lado, houve também filósofos contemporâneos que não desistiram dessa busca e, pelo contrário, empreenderam-na de modo exemplar. O ideal pela busca do saber e da verdade não foi perdido com o tempo.

Nosso Núcleo de Filosofia objetiva esse ideal, sem ignorar a tradição filosófica, mas ao mesmo tempo sem um apego a filósofos do presente que desconectam a filosofia da vida real. Afinal, não faz sentido estudarmos se não tivermos como objetivo conhecer melhor o mundo e o que nele acontece. Do contrário, ficaremos em especulações descoladas da realidade.