Maniqueísmo penal?

Sem Categoria | 19/12/2014 | |

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Causa-me sempre uma certa preocupação quando surgem propostas de reformas, no campo penal, que passeiam ou pela lassidão ou pelo rigorismo jurídicos. Tais qualificativos acabam por influenciar não só o debate na escolha das condutas que devem ser penalizadas ou não, mas, sobretudo, terminam por empobrecer esse mesmo debate ao restringirem à questão da maior ou menor severidade na repressão das condutas já tipificadas penalmente. E, o que é pior, ocultam, no debate, o fato de que a aplicação de uma pena, baseada numa lei laxista ou rigorosa, é sempre modulada prudencialmente pelo juiz no caso concreto.

É uma simplificação bem grosseira de uma área tão sensível para a sociedade como o direito penal que, de uns tempos para cá, anda pela marcha e contramarcha do populismo penal: basta surgir uma tragédia social ou alguma figura de destaque ser vítima de um crime mais grave que nosso legislador corre prontamente para recrudescer as penas para o delito que motivou a comoção social. Então, nosso mesmo legislador dá-se por satisfeito e, depois, cobra a conta no período eleitoral.

O direito penal, visto só pela lassidão ou só pelo rigorismo, é um direito que se transforma numa espécie de conjunto de garantias formais, ocas e assépticas, fechado à totalidade do mundo e esvaziado de valoração objetiva. É preciso restabelecer uma metódica mais dialética e menos radical e buscar o primado da racionalidade no discurso penal.

Existe um fato verídico que ilustra bem essa ideia. Segundo Peyrefitte, no começo do terrível inverno de 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, soldados finlandeses, no istmo da Carélia, observavam o fogo da floresta de Raikkola, onde estava concentrada a artilharia soviética, formada por homens, cavalos e canhões. Assustados, muitos cavalos correram para atirar-se no lago Ládoga para escapar do fogo intenso: tentaram nadar até a outra margem com a cabeça empinada fora d’água, cheios de frio e de medo. Subitamente, como o ruído seco de um cristal que se parte, a água que os protegia do fogo enregelou e, assim, eles ficaram aprisionados. Pela manhã, na floresta calcinada, os soldados finlandeses puderam contemplar, ao longo do lago, centenas e centenas de cabeças de cavalos, com seus corpos cobertos com uma mortalha branca-azulada.

Nosso  pensador francês extrai dessa imagem chocante o símbolo “de uma mal mais permanente”, consistente “no maniqueísmo, na inversão dialética, a vertigem do tudo ou nada, do branco ao negro”. Aterrorizados pelo risco da morte pelo fogo, os cavalos precipitaram-se a apresar-se numa parede de gelo. Contudo, entre o inferno do braseiro e o inferno da banquisa, havia uma terceira opção: “lançar-se em fila ao longo da margem, galopando sobre a areia, quando o incêndio não ameaçasse, e molhando os cascos no lago, se as chamas avançassem”.

No afã de evitar a morte pelo fogo, os cavalos russos provocaram a morte pelo gelo, pois o calor corporal solidificou a água do lago que, na alvorada seguinte, mais se parecia com um cemitério de animais, lá jacentes como símbolo da irracionalidade de seus movimentos. Nesse episódio, a “metódica dialética” do deslocamento equino estava em saber temperar ora estar no fogo, ora na água, no breve tempo que uma e outra situação não levariam à morte. E essa metódica, que desembocava numa mediedade real, demandava, por certo, uma certa racionalidade também.

No direito penal, é preciso abandonar as duas posições extremadas, porque, a mediedade justa situa-se entre dois erros, uma deficiência e um excesso. O direito não é matemática e, por isso, não existe um modelo penalístico “geométrico” para indicar, com exatidão, a mediedade do justo concreto. Há princípios, conclusões adequadas, leis e, ao mesmo tempo, há também singularidades fáticas, circunstâncias e exceções que, por envolverem uma tarefa de manejo típica do juiz, permitem concluir que a mediedade no campo penal só pode ser encontrada judiciariamente.

Por isso, se a norma penal, lassiva ou rigorista, é condição necessária para o oficio judicial, por outro lado, ela não é a condição suficiente para o trabalho de determinação da mediedade penal, porque ao magistrado compete a importante função de mitigar as deficiências e moderar os rigores da normativa penal. Visto dessa forma, o direito penal supera os reducionismos das duas posturas antípodas e ganha em magnitude e eficácia sociais. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)