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Descriminalizar: o senso do contrassenso

Opinião Pública | 26/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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Nossa corte constitucional está em vias de decidir sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, sob o argumento, na ótica dos defensores da ideia, de que o Direito Penal não deve ser ativado nos casos em que uma conduta pessoal não interfira nos direitos alheios. É uma espécie de progressão da mentalidade social. Primeiro, o impensável torna-se pensável e, subitamente, transforma-se numa espécie de ortodoxia, cuja verdade parece tão elementar que, a partir de então, ninguém mais se lembra que já se pensou de forma diferente.

Eis o estágio da ideia da descriminalização do porte de drogas: uma espécie de emplastro Brás Cubas para o fim da violência gerada pelo tráfico, a redução de danos para a sociedade e o enfrentamento do problema como uma questão de saúde pública. O debate entrou num campo de jogo de queimada, a julgar pelos supostos benefícios e obviedades da descriminalização, mas há tantas peças em questão, que mais lembra um tabuleiro de xadrez.

O desejo humano de tomar substâncias que alteram a mente é tão velho quanto a própria sociedade, à semelhança das tentativas de regulação de seu consumo. Mas nenhuma época humana teve de lidar com um duplo dilema: a disponibilidade de inúmeras drogas diferentes e a demanda crescente de um conjunto de cidadãos, desejoso do exercício de seu direito de gozar de seus próprios prazeres de sua própria maneira.

Numa sociedade livre, a lei deve permitir que os adultos possam fazer o que bem quiser, contanto que eles devam assumir as consequências de suas próprias escolhas e que não causem danos diretos aos outros. A ideia, que remonta a Mill, é muito atraente na teoria. Na prática, a teoria é outra: é muito difícil assegurar que os indivíduos assumam todas as consequências de seus atos, ainda mais quando o consumo de drogas tem o efeito imediato de reduzir a liberdade individual e, como resultado, mitigar o senso de responsabilidade.

Essa ótica libertária impede a sociedade de conceber um código moral. No limite, seria como se não tivéssemos nada em comum, mas nosso “contrato social” de não interferência mútua permanece enquanto nós buscamos nossos prazeres privados. Dependência e uso recreativo atingem não apenas o portador de drogas. Sempre levam junto o cônjuge, filhos, colegas de trabalho, amigos e parentes. Ninguém, exceto um eremita, é uma ilha. Estou saturado de mandar internar judicialmente drogadictos, a pedido, justamente, daquelas pessoas que, segundo os defensores da descriminalização, estariam imunes da conduta pessoal alheia.

Por isso, a aplicação do princípio de Mill às ações humanas beira à inutilidade, quanto mais para justificar a descriminalização do porte de drogas para uso privado. Eis o erro de Mill: os assuntos humanos – sobretudo no campo penal – não podem ser decididos por um apelo a uma regra infalível, expressa em poucas palavras, cuja mera aplicação possa decidir corretamente todos os casos. Fundamentalismo politicamente correto não é preferível ao religioso.

Todos valorizamos a liberdade, mas também a ordem; às vezes, sacrificamos a liberdade em favor da ordem e, outras vezes, a ordem em prol da liberdade. Uma vez retirado o véu, nesse caso, da proibição, será difícil de restaurá-lo, mesmo quando a liberdade recém descoberta revela ter sido socialmente desastrosa.

A liberdade que tanto prezamos não se resume à satisfação de nossos apetites ou de umas ações que, supostamente, não causariam interferência na órbita do outro. Quem pensa assim tem uma visão antropológica bem pedestre do ser humano. Não somos crianças que se irritam com as restrições só porque são restrições, ainda que algumas delas, paradoxalmente, possibilitem-nos um maior gozo da liberdade. Somos seres maduros que pensam por conta própria e que sabem que perdemos muito pouco com a proibição do consumo privado de drogas.

Mill, alguns anos depois, viu as limitações de seu próprio princípio na ação social, sobretudo quando negou que todos os prazeres tinham igual significado para a existência humana: era melhor, disse ele, ser um Sócrates descontente a um tolo satisfeito. Assim, nosso filósofo utilitarista concluiu que nem todas as liberdades são valorativamente iguais e nem todas as limitações são impeditivas de seu exercício.

Resta saber se os defensores da pauta libertária da descriminalização farão o mesmo. Do contrário, continuarão agindo como um avestruz e, quem sempre esconde a cabeça, um dia, acaba por perdê-la. Tal como os drogadictos e a sociedade que resolve trilhar, quando acata essa proposta insana, a mais sem saída das ruas sem saída. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 26/8/2015, Página A-2, Opinião.

Maniqueísmo penal?

Sem Categoria | 19/12/2014 | |

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Causa-me sempre uma certa preocupação quando surgem propostas de reformas, no campo penal, que passeiam ou pela lassidão ou pelo rigorismo jurídicos. Tais qualificativos acabam por influenciar não só o debate na escolha das condutas que devem ser penalizadas ou não, mas, sobretudo, terminam por empobrecer esse mesmo debate ao restringirem à questão da maior ou menor severidade na repressão das condutas já tipificadas penalmente. E, o que é pior, ocultam, no debate, o fato de que a aplicação de uma pena, baseada numa lei laxista ou rigorosa, é sempre modulada prudencialmente pelo juiz no caso concreto.

É uma simplificação bem grosseira de uma área tão sensível para a sociedade como o direito penal que, de uns tempos para cá, anda pela marcha e contramarcha do populismo penal: basta surgir uma tragédia social ou alguma figura de destaque ser vítima de um crime mais grave que nosso legislador corre prontamente para recrudescer as penas para o delito que motivou a comoção social. Então, nosso mesmo legislador dá-se por satisfeito e, depois, cobra a conta no período eleitoral.

O direito penal, visto só pela lassidão ou só pelo rigorismo, é um direito que se transforma numa espécie de conjunto de garantias formais, ocas e assépticas, fechado à totalidade do mundo e esvaziado de valoração objetiva. É preciso restabelecer uma metódica mais dialética e menos radical e buscar o primado da racionalidade no discurso penal.

Existe um fato verídico que ilustra bem essa ideia. Segundo Peyrefitte, no começo do terrível inverno de 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, soldados finlandeses, no istmo da Carélia, observavam o fogo da floresta de Raikkola, onde estava concentrada a artilharia soviética, formada por homens, cavalos e canhões. Assustados, muitos cavalos correram para atirar-se no lago Ládoga para escapar do fogo intenso: tentaram nadar até a outra margem com a cabeça empinada fora d’água, cheios de frio e de medo. Subitamente, como o ruído seco de um cristal que se parte, a água que os protegia do fogo enregelou e, assim, eles ficaram aprisionados. Pela manhã, na floresta calcinada, os soldados finlandeses puderam contemplar, ao longo do lago, centenas e centenas de cabeças de cavalos, com seus corpos cobertos com uma mortalha branca-azulada.

Nosso  pensador francês extrai dessa imagem chocante o símbolo “de uma mal mais permanente”, consistente “no maniqueísmo, na inversão dialética, a vertigem do tudo ou nada, do branco ao negro”. Aterrorizados pelo risco da morte pelo fogo, os cavalos precipitaram-se a apresar-se numa parede de gelo. Contudo, entre o inferno do braseiro e o inferno da banquisa, havia uma terceira opção: “lançar-se em fila ao longo da margem, galopando sobre a areia, quando o incêndio não ameaçasse, e molhando os cascos no lago, se as chamas avançassem”.

No afã de evitar a morte pelo fogo, os cavalos russos provocaram a morte pelo gelo, pois o calor corporal solidificou a água do lago que, na alvorada seguinte, mais se parecia com um cemitério de animais, lá jacentes como símbolo da irracionalidade de seus movimentos. Nesse episódio, a “metódica dialética” do deslocamento equino estava em saber temperar ora estar no fogo, ora na água, no breve tempo que uma e outra situação não levariam à morte. E essa metódica, que desembocava numa mediedade real, demandava, por certo, uma certa racionalidade também.

No direito penal, é preciso abandonar as duas posições extremadas, porque, a mediedade justa situa-se entre dois erros, uma deficiência e um excesso. O direito não é matemática e, por isso, não existe um modelo penalístico “geométrico” para indicar, com exatidão, a mediedade do justo concreto. Há princípios, conclusões adequadas, leis e, ao mesmo tempo, há também singularidades fáticas, circunstâncias e exceções que, por envolverem uma tarefa de manejo típica do juiz, permitem concluir que a mediedade no campo penal só pode ser encontrada judiciariamente.

Por isso, se a norma penal, lassiva ou rigorista, é condição necessária para o oficio judicial, por outro lado, ela não é a condição suficiente para o trabalho de determinação da mediedade penal, porque ao magistrado compete a importante função de mitigar as deficiências e moderar os rigores da normativa penal. Visto dessa forma, o direito penal supera os reducionismos das duas posturas antípodas e ganha em magnitude e eficácia sociais. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)