Vossa Excelência, o funcionário

Sem Categoria | 18/12/2014 | |

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Numa recente audiência, nos debates orais antes da sentença, ouvi o advogado afirmar que seu cliente tinha razão no processo, “nos termos do artigo tal do código qual e porque, afinal, o direito está na lei”. O cliente dele acabou saindo vitorioso na causa, mas não porque o “direito dele estava na lei”. Toda vez que ouço afirmações desse naipe, apesar de estar encarregado de julgar as ações alheias, o que, por si só, é uma tarefa nobre, difícil e desgastante, a sensação que tenho é a de sempre ser rebaixado a uma espécie de “burocrata judiciário”.

Quando o direito não se estava aprisionado em múltiplos e pantanosos diplomas normativos, na velha Roma, o método dos jurisconsultos, no ensino e no trabalho cotidiano de dizer o direito, era baseado na interpretação dos fatos e das questões sociais que os rodeavam, com vistas à separação, no âmbito jurídico, entre o que seria justo e o que seria injusto, segundo uma certa adequação social, isto é, conforme uma série de valores fundantes e perpetuadores de uma boa convivência social.

Foi uma missão complexa. Os jurisconsultos olharam a sociedade ao seu redor e detectaram alguns comportamentos que lhes serviram de medida: por um lado, havia os “mos maiorum”, a moral, representada pelos costumes plenos de eticidade de seus ancestrais, que lhes serviu como uma espécie de padrão, como o ouro em relação ao moderno sistema monetário.

Por outro lado, surgiam, na sociedade romana, os “boni mores”, os bons costumes, encarnados na imagem tão cara ao Direito Romano, a do “bonus pater-famílias”, o honesto pai de família, cumpridor de seus pactos, zeloso de seus compromissos sociais e impulsionado, em seu agir ético, pela “bona fides”, a boa-fé.

Esses jurisconsultos, então, consagraram, normativamente, as regularidades sociais que atendiam àquelas condições de justiça e de adequação social. Essas normas eram fruto de um trabalho interpretativo da realidade, porque normatizar umas condutas em detrimento de outras importa sempre numa intervenção das regularidades sociais concretas, conformando-as em prol de uns valores tidos como importantes socialmente.

Evidentemente que os jurisconsultos romanos não viviam nas sociedades pluralistas dos séculos XX e XXI, nas quais a construção de consensos, ainda que mínimos, é muito difícil. Apenas nos interessa concluir que, na mentalidade jurídica romana, a lei era feita para o homem. E isso era o suficiente para se assegurar um bom convívio social.

A atitude do advogado, na audiência já citada, é perfeitamente coerente com a visão do direito ensinada na escola atualmente: o homem é feito para a lei. A forja do futuro profissional passa por sua consciente identificação com o texto legal. Para isso, o professor há de se esforçar em plasmá-lo em sua memória com tal intensidade que não reste em sua mente resquício algum livre do domínio da vontade absoluta do legislador.

Nessa mesma escola, não faz sentido fazer do profissional do direito um erudito, capaz de compreender conhecimentos de interesse meramente teórico; nem mesmo um juiz ou um advogado apto a criticar ou discernir, porque o legislador já se encarregou a contento dessa tarefa. O importante é formar um “técnico” capaz de manter em pleno funcionamento a “máquina legislativa” e de fazê-la socialmente eficaz.

A missão desse “técnico jurídico”, como a de qualquer outro técnico, consistirá em conhecer os detalhes da máquina para fazê-la render ao máximo. E não se deve esquecer de que, se cada “técnico jurídico” empenha-se em inventar uma nova máquina, sua tarefa acaba sendo inútil. O profissional do direito há de se empenhar por conseguir, fundamentalmente, que a “máquina legislativa” funcione. E, assim será, por excelência, um funcionário: um funcionário do sistema legal vigente, um complexo normativo formado por uma parafernália de leis dotada de muita coesão formal, mas que, em termos de eficácia, produz pouca coesão social. Com respeito à divergência, é o que penso.

■■ André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação e coordenador do IFE Campinas (agfernandes@tjsp.jus.br)

Publicado no jornal Correio Popular, dia 17 de setembro de 2014, Página A2 – Opinião