Uma Manhã Inexistente

Sem Categoria | 19/12/2014 | |

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Naquela quinta-feira, no começo da manhã, dirigi-me ao salão nobre da faculdade do Largo de São Francisco, uma hora antes da apresentação que um amigo, formado comigo e conhecido filósofo do direito da casa, faria numa mesa de debates sobre as relações entre a cultura e o direito.

Resolvi, então, passar numa famosa livraria situada ali perto, a fim de buscar um livro encomendado. Tive uma enorme surpresa, porque, no intervalo de alguns anos, aquele pequeno recinto de preciosidades jurídicas havia passado por uma revolução reclassificatória. Os livros de direito estavam agora acompanhados por outras seções, desde as mais tradicionais, como literatura, arte, filosofia, até as mais pitorescas, representadas por vastas estantes de obras pós-modernas de teoria cultural, classe e gênero, raça e cultura.

Entretanto, chamou-me mais atenção uma seção intitulada “homem e sexualidade”, que me trouxe alguma esperança, mas não tinha nada a ver com antropologia filosófica e sim com puro experimentalismo estruturalista, a julgar pelos títulos das obras ali expostas: os principais livros de Deleuze, Foucault, Barthes e outros bem menos conhecidos, mas, nem por isso, menos chocantes, como “A Revolução Feminista do Eu”, “O Bicha Material”, “O Transfeminismo Pós-Moderno” e “O Ídolo Lésbico”. Como nada daquilo me abriu o apetite intelectual, fui embora sem comprar nada, algo que raramente se dá comigo em livrarias, e, em estado de choque intelectual, acabei esquecendo até de solicitar ao atendente o livro encomendado.

Resolvi retornar à faculdade para ouvir meu amigo, cuja brilhante inteligência era capaz de devorar todas as obras platônicas e aristotélicas em algumas semanas, mas que, com o tempo, resolveu se esquecer da sabedoria dali haurida e dar corpo teórico para as teorias pós-modernas do direito. Em suma, ele tinha uma parcela de responsabilidade sobre o atual estado da cultura e, daqui a alguns anos, terá sobre aquilo que entenderemos sobre o direito. Afinal, como dizia minha avó, as ideias têm consequências…

Sua apresentação começou como já previa: um discurso demolindo o existente e substituindo-o por uma irrealidade verbosa e oca. Segundo Foucault, o homem não existe mas, pelo menos, essa “inexistência” está aí, povoando nossa realidade com seu “versátil vazio”. Barthes só conferia substância real ao estilo, inflexão que cada vida é capaz de imprimir no rio de palavras em que o ser aparece e desaparece. Para Derrida, somente os textos ou discursos têm vida, porque eles pertencem a um universo de formas autossuficientes que se remetem e modificam mutuamente, sem qualquer necessidade de interação com experiência humana.

Meu amigo deu o passo adiante que faltava. Para ele, a realidade já não mais existe. Em seu lugar, entrou a realidade virtual, criada pelos discursos públicos que, a partir dos fatos, interpreta-os e os rotula sob o nome de “informação”. As ocorrências do mundo real não são objetivas e nascem minadas em sua verdade e consistência ontológica, de maneira que não podemos mais ter qualquer perspectiva crítica sobre o mundo que nos rodeia. A única “realidade” de nossa era é a dos simulacros e o melhor exemplo disso é a “verdade” da ficção midiática dos grandes telejornais e periódicos.

Sem dúvida, vivemos numa época de grandes representações que dificultam nossa compreensão do mundo real. Os políticos pegos em flagrante costumam ser bem férteis e imaginativos na escolha do rol de desculpas de plantão. É um bom exemplo. Contudo, não parece evidente que, para muito além desses políticos, alguns pensadores, que pretendem incrustar na vida o jogo especulativo e os sonhos da ficção, contribuem determinantemente para turvar nosso entendimento sobre o mundo?

Ao final da apresentação e, talvez, involuntariamente, meu amigo afirmou que “o escândalo, hoje, não está em atentar contra os valores morais e sim contra o princípio da realidade”. Tomei isso como uma autocrítica de quem, há algum tempo, vem empenhando toda sua astúcia dialética e uma inteligência privilegiada contra o homem, como se ele não pudesse mais discernir entre a verdade e a mentira, a história e a ficção, a  ponto dele ter se transformado, nesse labirinto midiático, numa espécie de fantasma autômato, privado de conhecimento e de liberdade e condenado à extinção sem sequer ter vivido.

Antes do final, deixei, movido por outros compromissos, o recinto da apresentação. Gostaria muito de tê-lo cumprimentado. Ao menos em razão da amizade que nos une, mas, sobretudo, para lembrar-lhe os tempos idos de nossa juventude acadêmica, quando a realidade nos exaltava e ele ainda acreditava que nós existíamos até nos excessos mundanos: quando bebíamos para além da conta ou passávamos uma parte da noite na delegacia por causa de um “pindura” mal sucedido. Permaneci caminhando tão absorto nesses pensamentos que nem passei na livraria para buscar o livro esquecido, porque me consolei com a ideia de que, talvez, ele já não mais existisse para mim, mas para outro dono que o tivesse arrematado depois de meu lapso matinal.

André Fernandes – IFE Campinas