Discutíamos o fenômeno da crescente participação dos juízes nas questões que envolvem a educação básica. Desde o problema da educação inclusiva até o direito à vaga em escola próxima da residência familiar. A aula era conduzida com maestria pela professora convidada que, ao saber da minha condição profissional, deixou-me à vontade para mostrar aos demais alunos o ”outro lado” desse fenômeno. Agradeci a gentileza e recusei a tentadora oferta por dois motivos.
Primeiro, convém não me deixar defender a classe judicial, sobretudo o juiz de primeira instância, que compõe aquilo que denomino como sendo o baixo clero dos tribunais. Se a postura dialógica for um tanto autocrática, corro o risco de deixar de nocautear as ideias do autor e acertar em cheio o autor das ideias. Com argumentos racionais e, se for preciso, com argumentos marciais também. Então, como conheço o demônio que habita em mim, é melhor não ceder prontamente a um convite como esse.
Segundo, gosto muito de ouvir as impressões dos cidadãos acerca do papel social dos juízes, ainda que muitos preconceitos e pré-compreensões equivocados venham à tona: é questão de separar a intenção da argumentação, levantar as intuições que estão por trás, refletir e chegar a determinadas conclusões. Naquele dia, muitos colegas de classe, nessa linha de raciocínio, reconheciam o peso do papel judicial naqueles assuntos, mas confundiam uma certa judicialização com ativismo judicial. No fundo, acreditavam ser seis por meia-dúzia quando, na verdade, são como causa e efeito.
Atuar juridicamente é sempre interpretar. Por isso, costumo dizer que os juízes, assim como advogados, promotores, delegados, procuradores e defensores, são, muito antes de profissionais do ramo jurídico, intérpretes do direito. Obviamente, há interpretações e interpretações. Mas todas elas devem partir de um dado bem concreto, o texto da lei, e o sentido e o alcance da interpretação final não podem ficar à margem do espírito do mesmo texto.
Quando sucede o contrário, o juiz deixa de julgar, passa a legislar sem ter sido eleito pelo povo e, ao assumir uma postura ativista, a harmonia entre os poderes, que deve lembrar uma música, transforma-se num barulho. É a posição marcante do STF nos últimos anos nas questões em que tem sido chamado para agir como árbitro social, como aborto anencefálico, pesquisa em célula-tronco embrionária, união estável homossexual, cláusula de barreira partidária e outras.
No ativismo judicial, o magistrado incorpora uma função legislativa daquilo que acredita ser o bem comum historicamente situado e, em casos mais patológicos, professa um messianismo político, porque crê estar antevendo, por um juízo estritamente particular, aquilo que é próprio da deliberação política parlamentar, onde o juízo final é formado pelo entrechoque das opiniões dos legisladores.
Nesse sentido, o ativismo judicial impõe sua interpretação sob o manto de uma decisão judicial. Mas esse manto é diáfano e, por isso, podemos observar, a partir da carência da intermediação de um processo legislativo, toda sua fragilidade intrínseca.
Sob um dado ângulo, o ativismo judicial é um efeito de uma certa judicialização social: a judicialização completa da existência humana. Tudo vira processo que, por mais concreto que seja, resta pleno de um vazio deixado pela ausência de uma ética social comum. Logo, como a realidade atomizada da sociedade inviabiliza o cultivo de um mínimo de valores comuns, pretendemos preencher esse vazio com o direito, batendo nas portas forenses em busca de uma resposta judicial que, embora venha a parecer uma solução, de fato, é parte do problema.
Quando resolvemos judicializar todas as dimensões vitais, pavimentamos uma larga senda para o ativismo judicial. Nessa toada, o ativismo judicial pode dar corpo à uma soberania institucional para os juízes agirem entre a ordem jurídica e a desordem ética social. Um autêntico governo de juízes.
Então, nossa experiência judicial se traduzirá numa espécie de ditadura judiciária, porque nós, os juízes, não gozamos de representatividade popular que nos habilite à tarefa de gestão social. Em suma, a ascensão do ativismo judicial é o declínio da democracia. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)
Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição 13.05.2015, Página A-2, Opinião.