Juízes críticos ou engenheiros sociais?

Opinião Pública | 25/11/2015 | | IFE CAMPINAS

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Nos dias correntes, muitas das pautas sociais judicializadas e tidas como progressistas, de uma maneira ou de outra, acabam por colocar o magistrado singular ou um tribunal numa situação processual em que, necessariamente, deverá interpretar a realidade desenhada nos autos e, depois, decidir favorável ou contrariamente à pretensão deduzida.

Assuntos como pesquisas com célula-tronco embrionárias, aborto anencefálico, união estável homossexual, ensino religioso na rede pública de ensino, capelania das Forças Armadas, retificação de assento de transsexual, adoção por casais homossexuais, entre outros, foram ou estão sendo julgados num sentido ou noutro. Naquele trabalho hermenêutico, noto que uma postura muito recorrente poderia ser resumida na máxima de um ex-ministro-poeta do STF, repetidas em muitos de seus votos nessas questões: o direito existe para a vida e não a vida para o direito.

Sem prejuízo da beleza produzida pela estética semântica que a oração encerra, no fundo, o juiz, ao se preocupar em tão somente chancelar situações sociologicamente consolidadas, corre o risco de se transformar numa espécie de notário togado ou burocrata judiciário e afastar a dimensão de justiça – dar a cada um o seu – dos juízos de valor que tais situações merecem ser enfocadas.

Convém lembrar que muitas dessas situações, por serem periféricas, não passam de uma presumida realidade social majoritária, a encerrar muito mais o desenho de uma sociedade futura e subscrita utopicamente por uma minoria autoconvencida de seus postulados. E, mesmo sendo majoritárias, tanto num caso como o noutro, suporiam abrir a porteira para uma suposta normatividade do dado fático, ao ponto de se ignorar que nem todo uso social pode ser considerado juridicamente relevante.

Posso viver em regime de poliamor, mas isso não quer dizer que, necessariamente, o direito deva chancelar essa situação com o mesmo status do casamento constitucional. Nem sob o argumento da não-discriminação, pois nem sempre o ser confunde-se com o dever-ser. Ignorar essa saudável e perene distinção pode levar a consequências pouco acertadas.

A alusão à realidade social como fonte ética de exigências jurídicas, muitas vezes, é uma boa e cômoda motivação, porque, dando-a como já existente na sociedade (mesmo quando não o é), pode-se desqualificar qualquer intento de questioná-la como uma resistência conservadora ou reacionária.

Mas não é só. Quando a questão judicializada é expressiva do politicamente correto, uma minoria, habitualmente bem situada na opinião pública, toma para si o monopólio do horizonte utópico do ordenamento jurídico e passa a reviver o bolorento despotismo ilustrado. Uma vez nessa posição, este passará a impor a observância de seus ditados, agora chancelados juridicamente, a todos os demais, sem se quer se dar ao trabalho de convencê-los nessa tarefa.

A dimensão jurídica conservará sempre uma abertura promocional, apta a aspirar a cotas de justiça, de igualdade, de liberdade ainda não asseguradas em muitas das realidades iníquas que nos cercam. Sem dúvida. Mas se ao Direito competisse somente, por fim último, consolidar a realidade social vigente, logo, estaria fadado a desaparecer.

Em boa medida, sua existência é justificada pela vontade de mudá-la, logrando-se um maior ou menor ajustamento das relações sociais, submetidas ao juízo crítico de um dever-ser e não de um projeto de reengenharia social, não raro, nestes últimos tempos, embasado pelo politicamente correto

Historicamente, ainda ignoramos os reais estragos do politicamente correto, mas já conhecemos bem os efeitos das reengenharias sociais: mal-estar civilizacional costumeiramente acompanhado de uma pilha de cadáveres. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição 25/11/2015, Página A-2, Opinião.