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O papel do Supremo

Opinião Pública | 20/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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No meio da natural turbulência do presente processo de impedimento da presidente, o STF tem sido provocado, pelas duas partes políticas em contenda, a se pronunciar sobre vários assuntos de alçada constitucional e, para minha preocupação, em algumas de suas respostas, em desprestígio do princípio da separação dos Poderes, deixando seu saudável protagonismo de Suprema Corte em favor de um ativismo político institucional.

A compreensível indignação social, diante da síndrome de holofote que anda a atrair alguns de seus membros, tomou vulto. Desde lugares-comuns que resvalam na menoridade intelectual, no preconceito ou no achincalhamento gratuito do STF ou de seus membros até manifestações ponderadas de descrédito a respeito da mesma instituição. Também houve a colaboração dos bons chargistas, cujo humor fino e inteligente costuma valer mais que a argumentação de muitos editoriais.

Independentemente desta ou daquela opinião, creio que seria um bom momento para o debate dessa importante instituição judicial que, em última análise, atua como nosso árbitro social em grandes e delicadas questões. Mas há arbitragens e arbitragens e o STF resolveu arbitrar mesmo: avocou o papel de juiz legislador ou de um governo de juízes.

Sabemos que a última palavra acerca da constitucionalidade das leis é dada pelo STF e, de fato, quando provocado, este tribunal, de certa forma, acaba por comandar aqueles que governam dentro de seus limites naturalmente institucionais.

Mas, se o Poder Executivo é virilizado historicamente e o Poder Legislativo deixa de legislar e fiscalizar, quando o STF é chamado a se pronunciar nas ações em que uma dessas instituições peca pela falta de atuação, fica difícil estabelecer um meio-termo entre uma postura de joelhos e uma de dedo em riste, dada a elasticidade na interpretação desse pronunciamento. Cada caso é um caso.

Se o ativismo judicial tem prevalecido, explica-se (e não justifica-se) pelo crescente vácuo social que os outros poderes deixaram pelo caminho, fato que capta a sensibilidade dos membros do STF, a ponto de, diante de uma falta de perspectiva de mudança, provocar um protagonismo exacerbado na condução de boa parte dos destinos da sociedade. Vira puro ativismo.

Assim, o STF, aos poucos, vai robustecendo cada vez mais seu papel de governo de juízes, porque o diálogo entre a sociedade e os outros dois Poderes continua a padecer de um denominador comum. Então, quem se sente prejudicado resolve bater nas portas do STF em busca de uma resposta judicial toda vez que um certo vazio dialógico é notado e precisa ser preenchido. Nessa toada, o STF deixará de ser árbitro social para virar babá social.

Já notamos indícios dessa guinada. Por estes meses, têm sido perturbadoras as mais recentes atitudes do STF em relação ao processo de impeachment em curso, quando resolveu se imiscuir em decisões exclusivas do Congresso Nacional, ajudando a agravar a perigosa crise institucional que atravessamos.

Ao fazê-lo, pode até ter dado uma espécie de selo de legitimidade ao processo de impedimento, mas cada Poder tem suas atribuições, em respeito às peculiaridades e à sua natureza intrínseca. Não compete ao STF o papel de pautar um processo que pertence ao foro parlamentar, sob pena de usurpar a função do legislador.

Mas beira o risível quando um ministro resolve servir de consultor jurídico para quem é réu do processo de impedimento, adiantando sua posição sobre uma questão que poderá, um dia, estar em sua mesa para julgamento. Nesse caso, resta saber se nosso ministro busca as luzes da ribalta, opina em demasiado, faz uma interpretação bem exótica da Constituição ou padece dos três ao mesmo tempo. Ou, ainda, quem sabe, como já foi dito, está sempre nos ensinar algo de novo.

Desejo ao STF que cumpra, e não rasgue, seu papel constitucional. Churchill disse ser a democracia a pior forma de governo, com exceção de todas as outras. Quando a comparo com um governo de juízes e essa “forma de governo” passa a ser aceita acriticamente, a “pior forma de governo” deixa de ter qualquer exceção. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é professor de Direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição 20/4/2016, Página A-2, Opinião.

Juízes críticos ou engenheiros sociais?

Opinião Pública | 25/11/2015 | | IFE CAMPINAS

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Nos dias correntes, muitas das pautas sociais judicializadas e tidas como progressistas, de uma maneira ou de outra, acabam por colocar o magistrado singular ou um tribunal numa situação processual em que, necessariamente, deverá interpretar a realidade desenhada nos autos e, depois, decidir favorável ou contrariamente à pretensão deduzida.

Assuntos como pesquisas com célula-tronco embrionárias, aborto anencefálico, união estável homossexual, ensino religioso na rede pública de ensino, capelania das Forças Armadas, retificação de assento de transsexual, adoção por casais homossexuais, entre outros, foram ou estão sendo julgados num sentido ou noutro. Naquele trabalho hermenêutico, noto que uma postura muito recorrente poderia ser resumida na máxima de um ex-ministro-poeta do STF, repetidas em muitos de seus votos nessas questões: o direito existe para a vida e não a vida para o direito.

Sem prejuízo da beleza produzida pela estética semântica que a oração encerra, no fundo, o juiz, ao se preocupar em tão somente chancelar situações sociologicamente consolidadas, corre o risco de se transformar numa espécie de notário togado ou burocrata judiciário e afastar a dimensão de justiça – dar a cada um o seu – dos juízos de valor que tais situações merecem ser enfocadas.

Convém lembrar que muitas dessas situações, por serem periféricas, não passam de uma presumida realidade social majoritária, a encerrar muito mais o desenho de uma sociedade futura e subscrita utopicamente por uma minoria autoconvencida de seus postulados. E, mesmo sendo majoritárias, tanto num caso como o noutro, suporiam abrir a porteira para uma suposta normatividade do dado fático, ao ponto de se ignorar que nem todo uso social pode ser considerado juridicamente relevante.

Posso viver em regime de poliamor, mas isso não quer dizer que, necessariamente, o direito deva chancelar essa situação com o mesmo status do casamento constitucional. Nem sob o argumento da não-discriminação, pois nem sempre o ser confunde-se com o dever-ser. Ignorar essa saudável e perene distinção pode levar a consequências pouco acertadas.

A alusão à realidade social como fonte ética de exigências jurídicas, muitas vezes, é uma boa e cômoda motivação, porque, dando-a como já existente na sociedade (mesmo quando não o é), pode-se desqualificar qualquer intento de questioná-la como uma resistência conservadora ou reacionária.

Mas não é só. Quando a questão judicializada é expressiva do politicamente correto, uma minoria, habitualmente bem situada na opinião pública, toma para si o monopólio do horizonte utópico do ordenamento jurídico e passa a reviver o bolorento despotismo ilustrado. Uma vez nessa posição, este passará a impor a observância de seus ditados, agora chancelados juridicamente, a todos os demais, sem se quer se dar ao trabalho de convencê-los nessa tarefa.

A dimensão jurídica conservará sempre uma abertura promocional, apta a aspirar a cotas de justiça, de igualdade, de liberdade ainda não asseguradas em muitas das realidades iníquas que nos cercam. Sem dúvida. Mas se ao Direito competisse somente, por fim último, consolidar a realidade social vigente, logo, estaria fadado a desaparecer.

Em boa medida, sua existência é justificada pela vontade de mudá-la, logrando-se um maior ou menor ajustamento das relações sociais, submetidas ao juízo crítico de um dever-ser e não de um projeto de reengenharia social, não raro, nestes últimos tempos, embasado pelo politicamente correto

Historicamente, ainda ignoramos os reais estragos do politicamente correto, mas já conhecemos bem os efeitos das reengenharias sociais: mal-estar civilizacional costumeiramente acompanhado de uma pilha de cadáveres. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição 25/11/2015, Página A-2, Opinião.

 

 

 

 

Governo de juízes?

Opinião Pública | 13/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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Discutíamos o fenômeno da crescente participação dos juízes nas questões que envolvem a educação básica. Desde o problema da educação inclusiva até o direito à vaga em escola próxima da residência familiar. A aula era conduzida com maestria pela professora convidada que, ao saber da minha condição profissional, deixou-me à vontade para mostrar aos demais alunos o ”outro lado” desse fenômeno. Agradeci a gentileza e recusei a tentadora oferta por dois motivos.

Primeiro, convém não me deixar defender a classe judicial, sobretudo o juiz de primeira instância, que compõe aquilo que denomino como sendo o baixo clero dos tribunais. Se a postura dialógica for um tanto autocrática, corro o risco de deixar de nocautear as ideias do autor e acertar em cheio o autor das ideias. Com argumentos racionais e, se for preciso, com argumentos marciais também. Então, como conheço o demônio que habita em mim, é melhor não ceder prontamente a um convite como esse.

Segundo, gosto muito de ouvir as impressões dos cidadãos acerca do papel social dos juízes, ainda que muitos preconceitos e pré-compreensões equivocados venham à tona: é questão de separar a intenção da argumentação, levantar as intuições que estão por trás, refletir e chegar a determinadas conclusões. Naquele dia, muitos colegas de classe, nessa linha de raciocínio, reconheciam o peso do papel judicial naqueles assuntos, mas confundiam uma certa judicialização com ativismo judicial. No fundo, acreditavam ser seis por meia-dúzia quando, na verdade, são como causa e efeito.

Atuar juridicamente é sempre interpretar. Por isso, costumo dizer que os juízes, assim como advogados, promotores, delegados, procuradores e defensores, são, muito antes de profissionais do ramo jurídico, intérpretes do direito. Obviamente, há interpretações e interpretações. Mas todas elas devem partir de um dado bem concreto, o texto da lei, e o sentido e o alcance da interpretação final não podem ficar à margem do espírito do mesmo texto.

Quando sucede o contrário, o juiz deixa de julgar, passa a legislar sem ter sido eleito pelo povo e, ao assumir uma postura ativista, a harmonia entre os poderes, que deve lembrar uma música, transforma-se num barulho. É a posição marcante do STF nos últimos anos nas questões em que tem sido chamado para agir como árbitro social, como aborto anencefálico, pesquisa em célula-tronco embrionária, união estável homossexual, cláusula de barreira partidária e outras.

No ativismo judicial, o magistrado incorpora uma função legislativa daquilo que acredita ser o bem comum historicamente situado e, em casos mais patológicos, professa um messianismo político, porque crê estar antevendo, por um juízo estritamente particular, aquilo que é próprio da deliberação política parlamentar, onde o juízo final é formado pelo entrechoque das opiniões dos legisladores.

Nesse sentido, o ativismo judicial impõe sua interpretação sob o manto de uma decisão judicial. Mas esse manto é diáfano e, por isso, podemos observar, a partir da carência da intermediação de um processo legislativo, toda sua fragilidade intrínseca.

Sob um dado ângulo, o ativismo judicial é um efeito de uma certa judicialização social: a judicialização completa da existência humana. Tudo vira processo que, por mais concreto que seja, resta pleno de um vazio deixado pela ausência de uma ética social comum. Logo, como a realidade atomizada da sociedade inviabiliza o cultivo de um mínimo de valores comuns, pretendemos preencher esse vazio com o direito, batendo nas portas forenses em busca de uma resposta judicial que, embora venha a parecer uma solução, de fato, é parte do problema.

Quando resolvemos judicializar todas as dimensões vitais, pavimentamos uma larga senda para o ativismo judicial. Nessa toada, o ativismo judicial pode dar corpo à uma soberania institucional para os juízes agirem entre a ordem jurídica e a desordem ética social. Um autêntico governo de juízes.

Então, nossa experiência judicial se traduzirá numa espécie de ditadura judiciária, porque nós, os juízes, não gozamos de representatividade popular que nos habilite à tarefa de gestão social. Em suma, a ascensão do ativismo judicial é o declínio da democracia. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição 13.05.2015, Página A-2, Opinião.

 

Pensar o Direito (Parte III de VI): “A crise do direito”

Direito | 16/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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III – A CRISE DO DIREITO

Muito se fala sobre a necessidade de reforma do Poder Judiciário. Por vários motivos: algumas propostas, sabiamente e com acerto, apontam a morosidade como sua principal deficiência. Outras, demonstrando um nível bem celerado, indicam “os privilégios” dos magistrados como a causa de seu retrocesso, sugerindo seu fim.

Por fim, outras propostas, em nome da democratização, defendem uma maior aproximação do direito aplicado com o chamado “direito achado na rua”, o que reduz o direito ao puro fato, visto como algo axiologicamente neutro. Porque “o direito existe para a vida e não a vida para o direito”, como pode ser lido na decisão sobre a união estável homossexual.

Se a reforma é inevitável, as soluções invariavelmente são estruturais e acabam não atingindo o verdadeiro cerne da crise do direito: a de seus fundamentos, que traz prejuízo à paz social e ao respeito à pessoa humana.

Essa situação atinge os mais variados domínios da lei, mas, sobretudo, algumas áreas particularmente sensíveis, como hoje pode ser visto na biotecnologia, na família e na prática democrática. Nos últimos anos, sucessivas medidas legais, com um ar de corrida vertiginosa para o abismo, debilitam o homem no reduto mais íntimo e sagrado de sua dignidade.

Vida, identidade genética, integridade física, procriação, doença, morte, paternidade, filiação, educação, sexualidade, afetividade, valores, privacidade, entre outros temas, estiveram na pauta do legislador, o qual assumiu a condição de líder daquilo que muitos julgam ser uma rebelião oficial contra a ordem natural das coisas. Uma espécie de revolta dos códigos contra a natureza das coisas.

A crise dos fundamentos do direito é a crise do positivismo, essa linha de pensamento que reduz o direito válido ao direito escrito. Assistimos, naqueles campos da vida, à uma série de imposições de decisões humanas subjetivas e de escolhas culturais completamente desconectadas de padrões objetivos e naturais, de ordem moral, política e jurídica. Os mandatários do povo e os juristas tornaram-se a medida de todas as coisas, versão moderna da medida de Protágoras.

O estudo do direito tornou-se mais um estudo da lei do que o estudo do justo. Basta analisar o currículo da matéria de filosofia do direito em qualquer faculdade, com raras exceções: não se aprende metafísica ou mesmo antropologia e a ética natural é substituída pela ética normativa. Nas outras matérias, invariavelmente, o aluno é adestrado (acho que este verbo resume bem o que penso) a fazer a singela justaposição do fato ao texto da lei.

O direito, no campo das relações políticas, virou muito mais uma espécie de gestão convencional de interesses da maioria do que a realização responsável do bem comum. Recordo-me da máxima de Hobbes, aquele que nos rebaixou a uma matilha tresloucada de lobos, para quem a lei não procede da verdade, mas da autoridade.

Então, imaginem um louco e não um médico comandando o hospício: foi justamente a relação entre Hitler e os alemães, como bem descreveu Eric Voegelin na obra homônima. De fato, uma nação que, com respaldo legal, começa por queimar livros, só pode terminar matando pessoas…

A ideia de Estado de Direito resume-se à uma débil concepção de salvaguarda da legalidade vigente a todo custo. A democracia, cuja restauração custou a vida de milhares de soldados no teatro de combate da segunda guerra mundial, hoje, prevalece sob uma roupagem formal, processual e técnica, ao preço do sacrifício de valores fundamentais em prol do império da ditadura cega do princípio da maioria. Deixou-se seduzir pelo relativismo ético e, a cada dia que passa, converte-se na antessala de um novo totalitarismo.

Não creio que essa reviravolta tornará os homens mais felizes, isto é, mais plenamente pessoas. Ou mesmo se a sociedade continuará a ser um fórum ou se transformará num coliseu. Desta maneira, a política falha na missão de promover a “vida boa”, na clássica expressão do direito romano, de seus membros.

Escolher deliberadamente pelo antinatural é a forma mais rápida e segura para garantir uma boa colheita de sofrimentos humanos. Devido à ganância humana, alguém já observou, acertadamente, que o homem deixou de ser o pastor do ser para se converter em ovelha do rebanho do ter. Pausa para reflexão do fundamento do direito que queremos. Afinal, reportar-se ao fundamento é reportar-se ao ponto em que a verdade oferece-se a si mesma como sua razão.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximos artigos da série “Pensar o Direito”:

Parte IV: “Resgate da Essência do Direito”

Parte V : “Direito e Filosofia: Cara e Coroa”

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”

*Já publicados:

Parte I: “Pensando o Direito”  – para ler clique AQUI

Parte II: “Direito e Ordem Natural” – para ler clique AQUI

Pensar o Direito (Parte III de VI): "A crise do direito"

Direito | 16/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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III – A CRISE DO DIREITO

Muito se fala sobre a necessidade de reforma do Poder Judiciário. Por vários motivos: algumas propostas, sabiamente e com acerto, apontam a morosidade como sua principal deficiência. Outras, demonstrando um nível bem celerado, indicam “os privilégios” dos magistrados como a causa de seu retrocesso, sugerindo seu fim.

Por fim, outras propostas, em nome da democratização, defendem uma maior aproximação do direito aplicado com o chamado “direito achado na rua”, o que reduz o direito ao puro fato, visto como algo axiologicamente neutro. Porque “o direito existe para a vida e não a vida para o direito”, como pode ser lido na decisão sobre a união estável homossexual.

Se a reforma é inevitável, as soluções invariavelmente são estruturais e acabam não atingindo o verdadeiro cerne da crise do direito: a de seus fundamentos, que traz prejuízo à paz social e ao respeito à pessoa humana.

Essa situação atinge os mais variados domínios da lei, mas, sobretudo, algumas áreas particularmente sensíveis, como hoje pode ser visto na biotecnologia, na família e na prática democrática. Nos últimos anos, sucessivas medidas legais, com um ar de corrida vertiginosa para o abismo, debilitam o homem no reduto mais íntimo e sagrado de sua dignidade.

Vida, identidade genética, integridade física, procriação, doença, morte, paternidade, filiação, educação, sexualidade, afetividade, valores, privacidade, entre outros temas, estiveram na pauta do legislador, o qual assumiu a condição de líder daquilo que muitos julgam ser uma rebelião oficial contra a ordem natural das coisas. Uma espécie de revolta dos códigos contra a natureza das coisas.

A crise dos fundamentos do direito é a crise do positivismo, essa linha de pensamento que reduz o direito válido ao direito escrito. Assistimos, naqueles campos da vida, à uma série de imposições de decisões humanas subjetivas e de escolhas culturais completamente desconectadas de padrões objetivos e naturais, de ordem moral, política e jurídica. Os mandatários do povo e os juristas tornaram-se a medida de todas as coisas, versão moderna da medida de Protágoras.

O estudo do direito tornou-se mais um estudo da lei do que o estudo do justo. Basta analisar o currículo da matéria de filosofia do direito em qualquer faculdade, com raras exceções: não se aprende metafísica ou mesmo antropologia e a ética natural é substituída pela ética normativa. Nas outras matérias, invariavelmente, o aluno é adestrado (acho que este verbo resume bem o que penso) a fazer a singela justaposição do fato ao texto da lei.

O direito, no campo das relações políticas, virou muito mais uma espécie de gestão convencional de interesses da maioria do que a realização responsável do bem comum. Recordo-me da máxima de Hobbes, aquele que nos rebaixou a uma matilha tresloucada de lobos, para quem a lei não procede da verdade, mas da autoridade.

Então, imaginem um louco e não um médico comandando o hospício: foi justamente a relação entre Hitler e os alemães, como bem descreveu Eric Voegelin na obra homônima. De fato, uma nação que, com respaldo legal, começa por queimar livros, só pode terminar matando pessoas…

A ideia de Estado de Direito resume-se à uma débil concepção de salvaguarda da legalidade vigente a todo custo. A democracia, cuja restauração custou a vida de milhares de soldados no teatro de combate da segunda guerra mundial, hoje, prevalece sob uma roupagem formal, processual e técnica, ao preço do sacrifício de valores fundamentais em prol do império da ditadura cega do princípio da maioria. Deixou-se seduzir pelo relativismo ético e, a cada dia que passa, converte-se na antessala de um novo totalitarismo.

Não creio que essa reviravolta tornará os homens mais felizes, isto é, mais plenamente pessoas. Ou mesmo se a sociedade continuará a ser um fórum ou se transformará num coliseu. Desta maneira, a política falha na missão de promover a “vida boa”, na clássica expressão do direito romano, de seus membros.

Escolher deliberadamente pelo antinatural é a forma mais rápida e segura para garantir uma boa colheita de sofrimentos humanos. Devido à ganância humana, alguém já observou, acertadamente, que o homem deixou de ser o pastor do ser para se converter em ovelha do rebanho do ter. Pausa para reflexão do fundamento do direito que queremos. Afinal, reportar-se ao fundamento é reportar-se ao ponto em que a verdade oferece-se a si mesma como sua razão.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximos artigos da série “Pensar o Direito”:

Parte IV: “Resgate da Essência do Direito”

Parte V : “Direito e Filosofia: Cara e Coroa”

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”

*Já publicados:

Parte I: “Pensando o Direito”  – para ler clique AQUI

Parte II: “Direito e Ordem Natural” – para ler clique AQUI