A magistratura é uma carreira curiosa. Você é um juiz individualmente considerado, mas, por pertencer à uma corporação com status de poder constitucional, o que um magistrado faz e repercute na mídia reflete na sua próxima conversa com o caixa do supermercado ou do atendente da padaria em que se é cliente fiel: lá vem aquele questionamento inocente com tons maliciosos ou uma opinião em que a tomada de posição do interlocutor, por vezes, é contundente.
Ossos do ofício. Quando um juiz se sai bem, tomo carona nos confetes e serpentinas da mídia. Quando vai mal, prefiro não tocar no assunto, para não polemizar, e, caso seja “intimado” a me pronunciar, faço uma crítica de forma empática, sem me deixar levar pelo calor e pelas conhecidas generalizações indevidas da mídia quando o assunto é a magistratura.
Há pouco, um editorial apontou os crescentes problemas de má formação na postura público-política dos juízes e a disposição de substituir a lei, por opiniões políticas, na motivação das sentenças. Não entrarei no mérito, mas tanto um caso como o outro costumam ter uma raiz comum: o ativismo judicial. O ativismo judicial parte sempre de uma postura ideológica, em que se impõe uma visão particular de mundo, carente de amparo normativo, nas sentenças.
Na realidade americana, esse ativismo – chamado de judiciary government – sempre vem à tona no momento de escolha de um novo juiz para a Suprema Corte. E, por lá, existe uma forte corrente doutrinária que pretende, para combater essa patologia judicial, resgatar a ideia aristotélica de virtudes judiciais: a opção por este ou aquele candidato à uma suprema cadeira levaria mais em conta mais o caráter pessoal e menos suas preferências políticas.
No lugar de se esquadrinhar, no espectro de decisões do candidato, se ele é conservador ou liberal, seria melhor analisar se ele não possui vícios incompatíveis para o desempenho da função togada, por ser justamente portador das correspondentes virtudes contrárias.
Genericamente, os vícios seriam a inépcia judicial (desconhecimento das leis vigentes), a insensatez judicial (incapacidade de discernimento das regras aplicáveis num caso concreto), a corrupção (venda de decisões ou recebimento de favores indevidos), a covardia cívica (sentenciar pensando na opinião pública) e o temperamento impetuoso (descontrole emocional no trato com os servidores, os advogados e as partes). As virtudes contrárias seriam a inteligência judicial, a têmpera judicial, a coragem cívica e a parcimônia.
No entanto, ultrapassada essa fase, o candidato ainda poderia, assim mesmo, exercer essas qualidades em função das cores de sua tendência política. Então, na fase seguinte, ganharia destaque a virtude da justiça, entendida como legalidade (fidelidade normativa) e equidade (correção da legalidade iníqua), porque, afinal, o sujeito poderia achar que o Robin Hood ou o Terror Revolucionário são modelos prontos e acabados de distribuição do seu de cada um.
Uma vez aprovado como magistrado, essa mesma corrente doutrinária acredita que o exemplo virtuoso desse novo juiz, ao longo de sua carreira, acabaria por conferir aos jurisdicionados um certo senso de alteridade e de dependência recíproca, fortalecendo a vida comunitária como um todo. O juiz portaria uma excelência profissional por completo: no fazer processual e no agir judicial, ele seria a mão visível da justiça.
A ideia de virtudes judiciais tem seu apelo por guardar um bom grau de racionalidade e de coerência lógica, porque, o Direito, como um saber prático, envolve, em cada caso concreto, um agir prudencial do magistrado e as virtudes citadas são um bom termômetro para se aferir a aptidão profissional de quem pretende se tornar um juiz supremo lá em terras ianques.
Por aqui, não sei se tudo que é bom para a América é bom para o Brasil. Todavia, pelo menos, essa ideia ajuda a arejar o debate levantado no editorial mencionado e, quem sabe, melhorar meu arsenal de respostas toda vez que for procurado pelo caixa do supermercado ou pelo atendente da padaria. Afinal, sempre acreditei que os juízes deveriam ser escolhidos até mesmo dentre aqueles de cujas tendências políticas não gostamos, mas cujo caráter virtuoso e conhecimento admiramos. Com respeito à divergência, é o que penso.
Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 15/03/2017, Página A-2, Opinião.