Família, torna-te o que és!*

Sem Categoria | 10/12/2014 | |

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Foto: Chris Nyborg (Cnyborg in WikimediaCommons). Greek poet Pindar, bust in the National Gallery, Oslo.

Eu não quero ter poder

Mas apenas liberdade

P´ra dizer aos do poder

O que entendo ser verdade

Provérbio português

RESUMO

Os estudiosos das ciências humanas coincidem no mesmo diagnóstico da sociedade contemporânea: um paciente que passa por uma crise de sentido e que reflete, em parte, o mal do homem moderno, a depressão. O discurso da modernidade esclarecida representou um longo salto para a promoção da ciência e da tecnologia. Contudo, foi pouco capaz de proporcionar um crescimento profundo do ser humano como pessoa. Uma das razões desta crise estrutural está na polarização que a modernidade criou entre indivíduo e Estado.

Certamente, a vida humana é marcada por uma tensão dialética entre sua dimensão pessoal e sua dimensão social, mas tensão não significa necessariamente alienação ou mesmo oposição. A partir desse esquadro mal posicionado, a família, como ente social de primeiríssima grandeza, passou por uma série de processos de ressignificação desencadeados por um denso arsenal intelectual filosófico, ideológico, legal, semântico e científico, os quais abalaram suas bases ontológicas.

Como efeito disso, sua função personalizante foi decaindo e, na realidade social, ganharam espaço uma série de modelos familiares que cobram, a todo custo, do Direito de Família, que já se transformou num pantanoso cipoal legislativo, uma certa neutralidade axiológica legiferante, típica de um ultrapassado positivismo normativista, sem que o mesmo Direito possa, antes, investigar se aqueles modelos atendem a certa estrutura objetiva da família, respeitam a antropologia daí decorrente, viabilizam sua natural juridicidade constitutiva e, ao mesmo tempo, favorecem a função personalizante e o telos social do ente familiar.

Palavras-Chave: Direito, Família, Ontologia, Ofensiva, Redução Privatizante, Amor, Função Personalizante, Sociedade e Pessoa.

INTRODUÇÃO

Torna-te o que és! Foi o que disse, certa vez, o poeta pagão Píndaro acerca do homem. Do ponto de vista lógico, a afirmação de nosso poeta seria uma contradição, porque ninguém pode vir a ser o que já é. Se já sou um ser humano, não posso vir a sê-lo. Goergen (2005:61) elucida essa aparente contradição:

Na verdade, a percepção refinada do poeta traduz algo mais profundo, algo que ultrapassa o mero esquematismo lógico. Mesmo que sejamos seres humanos desde o nascimento, podemos admitir, sem contradição, que aos nascermos ainda não somos seres humanos em plenitude, pois, não temos uma identidade. Somos apenas seres abertos ao vir-a-ser humano. Este era o conselho do poeta: construa sua identidade, ou seja, torna-te de fato o que já és como possibilidade: ser humano. O que torna o ser humano verdadeiramente humano, ou seja, em plenitude, não é o fato de nascer filho de humanos, mas a construção de sua identidade. Por isso, faz muito sentido o “torna-te o que és” do poeta. Suas palavras escondem, ainda, um outro sentido igualmente importante: Píndaro diz “torna-te”, e não “permita que façam de você” um ser humano. Vale dizer que tornar-se um ser humano implica construir a própria identidade que é tarefa de cada um. O ser humano é artífice, escultor de si mesmo. Tal processo ocorre por conta do duplo movimento de socialização e individuação. Pela socialização o ser humano adapta-se ao meio e torna-se um ser pertencente a uma cultura. Pela individuação ele constrói a sua própria individualidade, tornando-se único, distinto de todos os demais no interior da mesma cultura.

O fenômeno da família, no qual se insere o homem, decorre do fato de que o ser humano surge para a vida numa situação de desamparo e, por isso, está necessariamente referido a outro. Existem seres vivos que são autônomos desde os primeiros momentos de sua existência, o que pode ser observado fartamente na natureza animal. Ao contrário, um ser humano recém-nascido demanda uma série de cuidados para poder sobreviver e levar adiante seu próprio desenvolvimento até a maturidade.

Surge assim uma relação entre uma nova vida, que ainda não tem a consciência de sua própria existência, e uma outra em andamento, representada pelos pais, cuja função é a de facilitar o advento das capacidades que resultem necessárias das circunstâncias vitais e históricas, as quais estão delimitadas por um arco de tempo que, normalmente, encerra-se no momento em que aquela nova vida alcança sua independência existencial.

Essa independência costuma surgir com a conquista de uma profissão. Mesmo assim, o processo familiar não cessa, porque o elemento de potencialidade interior no ser humano é essencialmente maior do que nos animais irracionais: nestes seres, os limites de possibilidade e de realidade alcançam rapidamente sua descoberta, causando a impressão de já estarem predispostos em sua própria natureza. No ser humano, a situação é completamente diversa[3].

Por isso, como resultante da importância dessa dimensão familiar, nós, como homens e mulheres, devemos nos debruçar sobre o estado da arte familiar nos dias atuais. Há algumas décadas, pude escutar dos lábios de João Paulo II, que havia chegado para toda civilização ocidental a “hora da família”. Mais do que assinalar as respostas que a ideia contemporânea de família – na maioria das vezes, endossada normativamente pelo Direito – propõe-nos como solução para o período de transição da modernidade para a pós-modernidade em que vivemos[4], é imprescindível demonstrar como a família pode ser uma primordial e insubstituível protagonista das mudanças radicais que nossa sociedade reclama no alvorecer do século XXI.

Ao analisarmos as relações entre a família, como ente social, e seu atual entorno histórico-existencial, esboça-se claramente sua atitude defensiva, porque a instituição familiar vem sendo submetida a um progressivo processo de deterioração de suas bases ontológicas e, ultimamente, tem sido o alvo de ataques, diretos ou indiretos, de vários campos do saber, sobretudo nos terrenos filosófico, semântico, legal, científico e ideológico. A família está cercada em seus últimos redutos, por todos os lados, com pouca munição, pessoal e moral abalados. Não nos estranha, pois, essa postura defensiva, muito semelhante à dos Aliados no cerco a Bastogne, a fase mais aguda da famosa batalha das Ardenas, travada no teatro europeu da última guerra mundial[5].

Entretanto, agora, é a hora da família. É a vez de sair de sua postura defensiva para um protagonismo amavelmente ofensivo, em virtude, justamente, dos bens e deveres em jogo para o futuro da humanidade e do bem comum, porque os verdadeiros aventureiros das trilhas de nosso confuso e belo mundo são justamente os pais de família. Charles Péguy (1958:108) escrevia, há algumas décadas, que

os aventureiros mais desesperados não são nada em comparação com eles. Tudo no mundo moderno está organizado contra esses loucos, esses imprudentes, esse visionários ousados (…) que se atrevem, com audácia, a ter filhos. Tudo está contra essas pessoas que se arriscam a fundar uma família. A única aventura que existe é aquela protagonizada pelos pais de família. Os outros estão hermeticamente fechados em seus mundos. Aquele que é pai ou mãe de família está aberto ao mundo de seus filhos. Os outros sofrem por si mesmos. Só os pais de família sofrem pelos filhos e em cada situação por eles vivenciada. Somente os pais de família esgotam o sofrimento temporal. Aqueles que nunca tiveram um filho enfermo, não sabem o que é a enfermidade. Aqueles que nunca perderam um filho, que nunca viram seu filho falecido, não sabem o que é a dor. E tampouco sabem o que é a morte.

Assim, as famílias devem crescer com a consciência de serem protagonistas das chamadas políticas familiares e, em razão disso, assumir a responsabilidade de transformação da sociedade, porquanto, a prevalecer uma atuação defensiva, as famílias serão as primeiras vítimas justamente dos movimentos e das ideias que alimentam uma espécie de anticivilização, como já podemos observar em muitas tendências intelectuais da atualidade e em muitos fatos sociais e políticos, cujo pantagruelismo é patente.

A família constitui, ao cabo, a fonte da civilização do amor, na feliz expressão cunhada por Paulo V[6]. A família, como motor de uma verdadeira e fecunda revolução social, é a missão que nos incumbe diante das portas do terceiro milênio de nossa história. Afinal, como já lembrava João Paulo II (1982:90), “tal é a família, tal é a nação, porque tais são seus membros”, palavras que serão o eixo estruturante deste trabalho intelectual. Então, parafraseando nosso poeta pagão, se a família deve ser o centro e o coração da civilização do amor, família, torna-te o que és!

PRIMEIRA PARTE

A instituição familiar não é fundada numa filosofia romântica e vaga e que serve de pouco no momento em que se pretende demonstrar a ontologia de seu ser no contexto da “cultura de repúdio” (SCRUTON, 2011:XII) em que vivemos: uma cultura que corresponde à maneira como o Ocidente tende a repudiar os seus valores estruturais, os valores da filosofia grega, do direito romano e da tradição religiosa judaico-cristã. Essa “cultura de repúdio” não representa apenas um empobrecimento moral ou mesmo epistemológico no confronto dos homens com o mundo.

Começa por ser um empobrecimento ontológico, independentemente de crença religiosa ou até mesmo de indiferença ou ausência desta. Sem um contato vital com aquele rico e perene arcabouço da genealogia ocidental, ficamos cegos, surdos e mudos para compreender corretamente dois milênios de civilização e todo seu legado existencial. E, no que toca ao campo filosófico, nossa razão fica um tanto obscurecida na tarefa de investigação da essência das coisas e a instituição familiar não fica imune a isso.

A respeito da família, o retrospecto histórico demonstra que se dá um acordo universal do gênero humano, explicado pela própria índole da instituição familiar. Não existe instituição mais próxima da natureza que a família. Sociedade simples, lastreada de maneira muito imediata em certos instintos primordiais, a família nasce espontaneamente do mero desenvolvimento da vida humana.

O Estado também deriva de certas exigências naturais, como o fenômeno do poder. Mas quanto ele dista, sobretudo se concebido a partir da Paz de Westfália[7] e aprimorado à luz dos princípios do Welfare State com todos seus mecanismos e órgãos artificiais, do instinto social primário que impulsiona o homem a sair do solipsismo e unir-se com seus semelhantes!

Ao contrário, o natural impulso do instinto sexual, do amor materno e do desejo de perpetuação dos seus são elementos que fundam a família de maneira mais imediata. A autoridade dos pais, no seio familiar, resta fundamentada, sem a necessidade de complexos e intrincados princípios, no mero fato de que os filhos nascem de seus pais e não podem viver e desenvolver-se sem eles.

Tampouco pode-nos surpreender o fato de encontrarmos em todos os povos civilizados uma organização familiar sensivelmente idêntica, cuja vigência pode ser também observada em comunidades mais próximas do tribalismo. Nesse ponto, evidentemente, a família surge como problema antropológico-cultural e a etnografia ou etnologia estruturalista, cujo maior expoente foi Claude Lévi-Strauss (1909-2009), etnólogo e filósofo francês, faz algumas provocações interessantes, sempre fundadas numa realidade empírica investigada cientificamente.

Toda vez que tais provocações vem à tona, lembro-me da provocação de Bergson (1950:109) sobre a religião, mas que pode ser perfeitamente aplicada à família: um espetáculo humilhante para a inteligência humana, tomado a partir do inúmeros absurdos, erros, violências e sacrifícios privados de qualquer sentido e que, em muitos casos, beiram o exotismo antropológico e o desrespeito à dignidade da pessoa humana.

Tais teratologias, assim entendidas sob o prisma da antropologia filosófica, impedem, em última análise e em prejuízo dos membros da entidade familiar, uma correta inserção deles no mundo humano, depois da ação personalizante da família, mais precisamente no complexo e multifacetado tecido social, historicamente condicionado e axiologicamente amalgamado. E esta inserção, como observa Hannah Arendt (2002:190), dá-se por meio da ação, fundada sempre num legado de valores familiares, e, de certa forma, é como um segundo nascimento[8]: o advento do “eu” individual junto ao “nós” social.

As cortinas desse espetáculo humilhante, ao qual se referia Bergson, abrem-se para o respeitável leitor: poligamia e a decorrente ascendência indevida do sexo masculino nesse tipo de relação; a poliandria e o problema da paternidade; as culturas que assimilam a mulher estéril ao homem, ao mesmo tempo em que o consentem ao desposamento de outra mulher; os povos que atribuem a paternidade legal ao marido abandonado pela mulher em relação aos filhos que estar vier a dar a luz depois; as realidades culturais que legitimam socialmente as núpcias de um homem com uma mulher e, ao mesmo tempo, com a filha desta; os agrupamentos sociais que dilatam a genitorialidade social em prejuízo da genitorialidade biológica; os costumes populares que impõem o sacrifício ritual dos primogênitos e que estimulam o suicídio da viúva sobrevivente.

Depois desse rol apenas exemplificativo de realidades antropológicas, poderíamos nos perguntar se existe realmente uma ideia orgânica de família, já que não se vê qualquer unidade lógica ou funcional que possa ser extraída a partir daqueles mesmos exemplos. A etnografia ou etnologia estruturalista põe – aparentemente, como veremos mais à frente – em xeque qualquer proposta da busca de um conceito perene de família. Então, não seria melhor considerá-la como uma mera estrutura portadora de um “testemunho da sociedade” e deixar aberta a questão relativa em “haver algum sentido em se construir um conceito histórico continuativo de família”[9]?

No âmago do diálogo entre a etnografia ou etnologia estruturalista e a antropologia filosófica, algumas considerações devem ser feitas[10]. Em primeiro lugar, até o século XVIII, o problema cultural coincidia com o pedagógico. Assim, a cultura era concebida essencialmente como paideia[11], como formação da pessoa[12] e não como uma estrutura fundamental (categoria autônoma) da sociedade. Consequentemente, o problema cultural era analisado sob a perspectiva antropológica exclusivamente, sem qualquer contribuição do viés etnológico, o que veio a suceder somente a partir do século XVIII.

Graças aos trabalhos dos iluministas alemães Herder e Humboldt, a reflexão filosófica tomou consciência de que a cultura é um fenômeno que não só diz respeito ao indivíduo, mas também ao grupo social com tal, enquanto ela representa seu sistema de vida, constitui o vínculo que une os indivíduos entre si e os diferencia dos membros de outros grupamentos sociais.

A partir da segunda metade do século XX, etnólogos europeus dedicaram-se ao estudo científico de civilizações antigas e de povos primitivos e, como corolário, elaboraram teorias gerais a respeito dos fenômenos culturais ali descritos, sempre à luz dos postulados gerais de uma dada cosmovisão. Lévi-Strauss, um dos mais importantes deles, era adepto do estruturalismo que, como efeito de qualquer corrente de pensamento, implica numa determinada concepção de homem. A etnologia, então, vista sob o viés estruturalista, foi autoerigida à condição de antropologia filosófica e tomou o lugar deste ramo no saber filosófico.

O estruturalismo nasceu como efeito de um aprofundamento teórico da línguistica[13]. A linguística propõe que o importante não é tanto o conteúdo das palavras (o significado), mas o contexto das palavras, isto é, o conjunto de relações que cada palavra trava com as demais. E esse contexto não é algo que se estabelece conscientemente, de uma só vez, mas é o produto de uma atividade inconsciente da coletividade, de maneira que cada homem singular a ela se submete.

Em suma, a palavra denota uma estrutura de relações que, precisamente por ser uma estrutura básica, pode admitir diversas superestruturas. Pouca serventia tem o conteúdo se não se conhece a base estrutural que permite que este exista. Por exemplo, na linha da linguística, a palavra “família” pode comportar diversas noções de família (genealógica, etnológica, monoparental, afetiva, social, entre outras).

Essa base estrutural tem somente uma função formal, porque o método estruturalista intenta somente descrever posições. Saussure ilustrou essa função formal da estrutura com um exemplo bem claro: esse método assemelha-se a um partida de xadrez em que uma dada posição das peças prescinde por completo dos movimentos antecedentes. Uma determinada posição das peças – considerando todas as possíveis e reais relações entre elas – pode ser entendida tanto por aquele que acaba de chegar à mesa da disputa como por aquele que esteja seguindo-a desde seu início.

O estruturalismo, dessa maneira, não se interessa pela gênese dos conceitos ou por sua história, senão pela complexa teia de relações que, num determinado momento, é possível descobrir. Por isso, a estrutura é definida justamente como uma entidade independente de qualquer conceito essencial e serve como forma para os inúmeros conteúdos que são delineados por aquela teia de relações.

Mas o estruturalismo vai mais além de um simples método. Como já antecipamos, implica numa determinada concepção antropológica, segundo a qual o homem, em suas manifestações individuais (trabalho) ou coletivas (família) está sempre submetido a estruturas linguísticas, biológicas, psicológicas que as superam e que se impõem sobre ele. O homem, assim, não faz a si mesmo. Ele é feito por uma consciência coletiva superior a ele, da qual ele, no máximo, é sua expressão. Por isso, Foucault chegou afirmar, coerentemente com os postulados estruturalistas, que o homem não existe, assim como fez Lacan na psicanálise e Lévi-Strauss na etnologia.

Segundo a etnografia ou etnologia estruturalista, a família, em suas diversas manifestações históricas, nada mais seria que um produto do pensamento inconsciente coletivo e jamais poderia haver um conceito natural dessa instituição, diante dos resultados das pesquisas de Lévi-Strauss, nos quais convivem a poligamia e a poliandria, entre outros, como superestruturas da estrutura familiar, tomadas sempre à vista do contexto de relações humanas desenvolvidas nas mais diferentes sociedades.

Pensamos que a família não é uma “resposta estrutural” que comporta infinitas superestruturas, moldadas no seio de relações sociais axiologicamente indiferentes. É, muito antes, uma “resposta antropológica”, porque, como ente multissingular, a família obedece à antropologia do homem, tanto que se cuida de um ente fundamental e insubstituível para qualquer sociedade de todas as eras e de todos os tempos. O próprio Lévi-Strauss (1967:134) afirma que “a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos é um fenômeno universal, presente em todo e qualquer tipo de sociedade”.

De fato, como seres humanos que somos, nossa própria maneira de ser nos revela, sem muita dificuldade, como diz Spaemann (1996:38), que somos “gerados e não acabados”. Isso significa que, para que comecemos a existir (desde a fecundação, segundo entendemos), precisamos ser concebidos por outros seres humanos, pois nada pode dar o que não tem e o efeito não pode ser desproporcional à sua causa.

Para que a concepção se verifique, é indispensável a complementariedade biológica, sexual e psicológica entre uma mulher e um homem e isso é apenas o começo: a tarefa não se encerra com a geração do filho, mas se requerem décadas para que esses filhos cresçam, amadureçam e se desenvolvam, fases da vida em que os pais são indispensáveis, porque cada faz um aporte existencial e espiritual, desde sua particular perspectiva e, ao mesmo tempo, de maneira conjunta e complementar. A família, assim entendida, não foi inventada, porque é uma instituição natural e isso explica seu caráter universal e perene

Doravante, acreditamos ser essa assertiva capaz de conduzir nossa investigação ao reenvio de uma série elementar de atributos que constituem o ente familiar. Tais atributos, por consequência, devem ter os toques da universalidade e da perenidade e, em sua essência, devem ser insuscetíveis de sofrer os efeitos da usura do tempo, salvo em suas formas de concretização, evidentemente condicionadas aos matizes históricos e materiais, mas sem que haja perda de sua identidade. Em suma, continuam, ontologicamente, referindo-se ao passado, mas, formalmente, agem diversamente do passado. DONATI (2000:64-65) anota que

a família permanece como o lugar onde continua em vigor a proibição de inversão dos papéis sexuais (masculino e feminino) e geracionais (entre os que geram e os que são gerados), inclusive a proibição de incesto, mesmo se sexos e gerações não sejam mais separados, mas fortemente interativos entre eles. A família é e tende a ser aquela específica relação social à qual sempre é mais confiada a tarefa – não transferível a outras relações sociais – de personalizar a pessoa, através de específicos processos de socialização. Estes processos são essenciais para a maturação da criança e também do adulto, se e na medida em que “formar uma família” significa orientar a comunicação à totalidade da pessoa, segundo uma norma de reciprocidade solidária total.

Por ser uma instituição tão próxima da natureza, o respeito às exigências naturais – se não se pretende desvirtuá-la – em matéria legislativa e jurídica deve ser redobrado, porque, historicamente, sempre que uma sociedade veio a soçobrar, o processo de decadência começou justamente pela família, como em Roma e, mais recentemente, nos totalitarismos de esquerda e de direita que se prodigalizaram ao longo do século XX.

Em outras palavras, a moralidade familiar é uma moralidade natural e não religiosa. Aliás, nesse ponto, convém lembrar que a tradição judaico-cristã nada mais fez do que assumir aquela moralidade natural e atribuir-lhe uma dignidade transcendental. Não inventou qualquer noção de família, apenas captou seus matizes essenciais e os incorporou ao magistério eclesial, a fim de indicar racionalmente aquilo que reforça – do ponto de vista dos costumes e das leis – aquela moralidade natural e aquilo que a dissolve.

Leclerq (1979:15), a respeito disso, informa que

a continuidade entre a moral familiar cristã e a moral familiar humana é tal que, os escritores dos primeiros séculos invocam a elevada moral familiar dos cristãos como argumento em favor da fé. A pureza e a união das famílias cristãs são motivos de triunfo e os opõem à desordem dos costumes pagãos. Este argumento não teria valor algum para aqueles espíritos da cultura se não houvesse concordância com seus princípios. Se os pagãos considerassem a orgia como uma virtude e a castidade como um vício, em vão tais escritores teriam invocado a pureza dos costumes cristãos: estes deveriam já ter provado, de antemão, o valor da dita pureza. Se sentiram necessidade disso, foi porque uns e outros estavam de acordo quanto aos princípios. O mundo pagão não estava tão corrompido em seu espírito quanto estava em seus costumes (…). Não há que se assombrar, por conseguinte, pelo fato de que a sociedade cristã tenha se desenvolvido lentamente por uma espécie de crescimento natural. Nos primeiros séculos, a Igreja reagiu contra os costumes e as instituições jurídicas pagãs em determinados pontos, como a indissolubilidade do matrimônio e a importância da virtude da castidade. Depois, cobrou maior relevo de outros aspectos da moral familiar, como o princípio da liberdade dos consortes em contrair uma matrimônio válido e, mais tarde, o direito inalienável dos pais como educadores de seus filhos.

No seio dessa moralidade natural, reconhecemos que o direito e o ente familiar atuam em conjunto, estabelecendo uma perspectiva ontológica dotada de uma juridicidade e de uma essencialidade bem claras e definidas. No primeiro nível desse reconhecimento, como contributo de Lévi-Strauss (1969:239), está a experiência do tabu do incesto, que assegura o intercâmbio feminino entre diversas famílias, a ponto de possibilitar a socialização pacífica de um dado grupamento de pessoas, fundada na reciprocidade e trazendo, como efeito imediato, a criação de uma simetria na estrutura social e de uma sadia constituição da subjetividade do eu.

Esse tabu, como ensina Lévi-Strauss (1969:250), articula-se de diversas formas estruturais internas e apresenta significativas diferenças de uma cultura para outra, como no caso do incesto primário e do incesto secundário: no primeiro caso, veda-se qualquer tipo de comércio sexual entre mãe e filho; no segundo, entre um homem e uma mãe e a filha ou entre um homem e duas irmãs ou entre uma mulher e dois irmãos (como em Hamlet, em que a rainha da Dinamarca e viúva do falecido Rei Hamlet, Gertrudes, é desposada pelo irmão do falecido, Cláudio).

Entretanto, em todos os casos, os tabus operam, na prática, a assunção de papéis específicos pelos sujeitos familiares, sem espaço para qualquer relação de fungibilidade entre eles e essa não fungibilidade dos papéis familiares constitui um dado primordial na constituição da subjetividade humana, sobre a qual se constrói a importante noção de pessoa humana.

No segundo nível de reconhecimento, enfoca-se o enraizamento, da parte do indivíduo, em sua própria identidade sexual biológica, feminina ou masculina. Nascendo a partir de um homem e de uma mulher, no seio de uma estrutura familiar, o sujeito é caracterizado por uma determinação monossexual e apreende que o seu eu não representa uma totalidade, mas uma polaridade, que o induz ao desejo e ao reconhecimento do outro, como sinal evidente de nossa pobreza ontológica e de nossa incapacidade estrutural de transcendê-la. O mito de Aristófanes (PLATÃO, 2007:135)[14] é bastante elucidativo a respeito.

Nesse ponto, a pulsão humana em direção à bissexualidade, muitas vezes precocemente diagnosticada, examinada exaurientemente pela psicanálise e entendida como (FREUD, 1921:255) “a necessidade de reconstrução de um estado anterior”, é ilusória, porque é símbolo de autogênese, imortalidade e de onipotência e, logo, contradiz a construção de nossa identidade, constitutivamente finita[15].

O terceiro nível de reconhecimento repousa sobre a complexa relação genitorialidade/filiação, objeto de inúmeros estudos contemporâneos que estão trazendo à tona novas nuances que superam uma visão estritamente biológica ou psicológica. Biologicamente, são os corpos que se reproduzem, mas, nessa terceira dimensão, importam os atos humanos. Psicologicamente, a genitorialidade manifesta-se, concretamente, no amor dos pais pelos filhos e vice-versa, um dado provavelmente constante do longo da história da humanidade, com algumas variáveis antropológico-culturais, como o pouco apreço educativo que se deu por muito tempo à infância ou o atual quadro de marginalização existencial de muitos idosos, situações explicadas, todavia, por motivos circunstanciais e materiais-históricos.

A genitorialidade, ainda que não se baseie na afetividade, mas se situe no plano da sensibilidade (no sentido kantiano)[16], introduz na constituição do eu a consciência de que o vínculo intersubjetivo inicia-se com uma assimetria fundamental: ninguém provém de si mesmo, mas surge a partir de outros dois seres sexualmente complementares num dado espectro temporal, recebendo somente e tão somente aquilo que lhe foi dado geneticamente pelos pais.

Graças à essa assimetria é que, na genitorialidade, radica-se o arquétipo do princípio da responsabilidade. Todo ser vivente é um fim em si mesmo e não demanda um justificação posterior. Nesse aspecto, logo, o homem não é em nada superior aos demais seres viventes, exceto pelo fato de ser responsável, durante uma fase daquele espectro temporal, por aqueles que livremente gerou. Em outras palavras, como já dizia Aristóteles, o homem não é um ser autárquico, porque necessita dos outros para o desenvolvimento de sua personalidade. A filosofia estuda, no âmago dessa relação de genitorialidade, seu fundamento último; a psicologia e a sociologia irão investigar a relação dialética entre os envolvidos, cada uma em seu campo específico de atuação.

Analiticamente, a genitorialidade é composta por um código paterno e outro materno, cada um denotando uma humanidade incompleta. O primeiro é composto pela normatividade, abstração, mérito e justiça; o segundo, por sua vez, é formado pelo amor, concretude, igualdade e equidade. Em suma, devem complementar-se harmonicamente, diria a filosofia, mas o código paterno, historicamente, sempre gozou de uma prevalência acentuada, diria a sociologia.

Contudo, a sociologia só confirma, na prática, a necessidade daquele equilíbrio recíproco pregado pela filosofia na teoria: a crise de um código corresponde à crise do outro. Hoje, por exemplo, diante da crise do princípio paterno, vivemos sob a hipertrofia do código materno, contribuindo para uma certa infantilização generalizada da sociedade. O efeito político dessa constatação empírica, como exemplo, é a hipertrofia do Welfare State em muitos países, sobretudo os europeus.

O quarto nível desse reconhecimento é representado pelo princípio da fraternidade ou da reciprocidade. Nesse âmbito, trata-se de um princípio de mediação entre os polos da liberdade e da igualdade: quando a liberdade é absolutizada, produz uma desigualdade insuportável; por sua vez, quando é a vez da igualdade, a liberdade é suprimida.  É justamente nessa dimensão que a juridicidade constitutiva da família assume um aspecto relevante, evitando que a realidade factual (eu sou eu e ele é ele) separe-se da realidade ética (ele é meu irmão).

O quinto nível do reconhecimento diz respeito à conjugalidade, mais precisamente em sua expressão monogâmica. Nesse caso, a etnologia revela-se muito útil para se alcançar a estrutura mais profunda da ontologia familiar. A conjugalidade, nessa linha e pela via do matrimônio, assegura plenamente a possibilidade de uma duração temporal, fundada no livre comprometimento existencial das partes envolvidas e, como consequência, cria fecundas condições para a continuidade de uma sociedade e a conservação do legado civilizatório humano. A respeito, Hervada (2000:248-249) afirma que

uma das principais dificuldades para a compreensão do matrimônio pela razão humana está reside no fato da necessidade de se conjugar duas noções que parecem paradoxais: os cônjuges são dois e um só; alcançar uma conjugação, sem cair em extremismos, de uma dualidade com uma unidade. Os cônjuges, mesmo sendo dois, formam uma unidade (…). A chave para o entendimento disso está no fato que são os cônjuges, ao mesmo tempo, dois e um. Esta é a originalidade do matrimônio, vale dizer que não se trata unicamente de uma simples unidade de esforços em prol de alguma atividade, mas, antes, uma unidade de ser, que poderia ser descrita, com linguagem retórica e não estritamente científica, como uma fusão: fusão de corpo e alma.

O sexto e último nível da dimensão constitutiva da ontologia da família é relativo à sua intrínseca possibilidade de dissolução por causas naturais, decorrente da sucessão de gerações, porque o crescimento dos filhos importa psicologicamente na morte dos pais. A família dissolve-se porque, biologicamente, esse é seu destino, em razão da natural temporalidade dos sujeitos envolvidos.

Ao se refletir sobre o quadro ontológico da instituição familiar aqui traçado, logo emerge à tona o quadro empírico-social vigente, ainda mais para quem lida diariamente nas varas de família. Certamente, um quadro bem diferente e, sob um dado ângulo, um porta-retrato do mundo ocidental: inversão dos papéis familiares, aumento do número de mulheres no mercado de trabalho e das estatísticas de divórcio, diminuição dos matrimônios e incremento das uniões estáveis e dos adultos solteiros, decréscimo do nível de convívio familiar,  exacerbação da violência juvenil, inversão da pirâmide etária, inverno demográfico em muitos países, reivindicação do direito de constituição de uma família pelos pares homossexuais, disseminação da violência familiar, entre outras pinceladas desse pontilhismo sociológico que, visto de longe, oferece ao observador algumas intuições.

Tais intuições servem para sinalizar, no fundo, muitas ambivalências nessas transformações havidas, à luz da ontologia familiar delineada anteriormente, sem qualquer apego nostálgico pela família “de ontem”, na definição de Giddens[17], mas sem aceitar servil e acriticamente as ofensivas que se fazem contra a instituição familiar, as quais serão objeto de nossa investigação mais adiante, e que costumam ser apresentadas, com um pomposo jogo semântico, na Sociologia, pela expressão “pluralidade das formas familiares” e, no Direito, pelo título de “Direito das Famílias”. Não é por acaso que o mesmo Giddens (2000:75) reduz a família, à semelhança de muitas outras instituições sociais, à uma singela “instituição-casca”, ou seja, a um ente social que (GIDDENS, 2000:75) “ainda é chamado do mesmo modo, mas que, em seu interior, já é fundamentalmente diferente”.

Hoje, no universo dessas ambivalências intuídas, por um lado, existe a consciência mais viva da liberdade individual e a maior atenção ao aspecto qualitativo das relações interpessoais, tanto entre os cônjuges como entre estes e os filhos; a dignidade da mulher foi colocada em seu devido patamar social; vive-se a procriação à luz de uma paternidade responsável; os filhos são valorizados como pessoas e sua educação é vista como uma tarefa que exige o protagonismo exclusivo de ambos os pais.

Por outro lado, não faltam sinais de degradação na vivência daquelas dimensões da ontologia familiar: o enfraquecimento de sua vocação socializante; a redução epistemológica dos laços conjugais e familiares ao âmbito particular e sempre instável da afetividade e das satisfações íntimas; a equivocada concepção teórica e prática da autonomia dos cônjuges entre si; a ausência de claros limites entre a atuação dos filhos e a autoridade dos pais; as dificuldades na transmissão de valores perenes; os reflexos sociais e os custos econômicos da galopante cultura divorcista; os efeitos demográficos e previdenciários produzidos por uma mentalidade contraceptiva generalizada.

Por isso, defendemos a conveniência de se estabelecer uma ontologia familiar a fim de se oferecer uma chave de leitura da historicidade familiar e, também, dar o devido valor aos inúmeros nuances positivos produzidos pelas múltiplas formas que a relação familiar assume historicamente. Quando a instituição familiar torna-se uma “casca” dentro da qual se coloca de tudo, corre-se o risco real e imediato de se perder de vista sua teleologia própria e o verdadeiro alcance das intransferíveis funções sociais que lhe competem.

Por isso, é melhor começar com um conceito de família (fundado ontologicamente) e, depois, partir para a investigação de suas versões historicamente constatadas. E não o contrário, porque tornaria inviável a busca de uma noção estável de família, como, aliás, foi o frustrante resultado obtido pela trilha de pesquisa de nosso sociólogo britânico: uma aporia, pois o máximo que sua perspicácia conseguiu concluir foi que família virou uma casca.

Na confusão de línguas de nosso mundo, a ontologia da família tem um papel de suma importância. Ao mesmo tempo em que se procura entender e, se for preciso, acolher os riscos e as oportunidades que nossa época oferece à instituição familiar, também dá critérios seguros para a salvaguarda da essência do ente familiar, quando se atenta contra este bem relacional.

Certos rigidezes e automatismos nas relações familiares não têm mais espaço nos dias atuais, ao passo que a tendência em reduzir a família a um mero fato privado e, logo, fechado à possibilidade de uma formação socializante voltada à totalidade da pessoa (como no caso do casamento homossexual), deve ser vista com reservas, diante da ponderação entre os bens e interesses em jogo no tabuleiro social do bem comum. E compete a nós o correto e eficaz manejo desse poderoso instrumento de leitura da realidade que a ontologia da família nos proporciona. Em outras palavras, uma tarefa e um desafio.

SEGUNDA PARTE

Neste século XXI, parece que a sociedade perdeu o interesse pela família ou, ao menos, relegou-a ao âmbito particular da afetividade e das satisfações íntimas. Entretanto, nunca como hoje a qualidade das relações familiares é tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos e, ao cabo, de uma sociedade que se fez individualista, consumista, relativista e indiferentista, deixando seus próprios membros decidirem sobre o próprio bem e a própria felicidade, mesmo que tais decisões sejam conflitantes umas com as outras.

Por isso, urge que seja preservado um local onde as relações humanas sejam caracterizadas pela gratuidade, pela entrega e pela doação, isto é, por um amor que, de fato, comprometa a totalidade da pessoa. Em outras palavras, é preciso reconsiderar seriamente a vocação socializante da família, tarefa na qual sempre desempenhou um papel chave e único. Quando o ente familiar fica reduzido à uma espécie de célula primária da vida individual (e não social), aquela vocação fica debilitada, ainda mais numa quadra histórica em que tanto se fala de liberdade, responsabilidade, tolerância e diversidade, atributos que envolvem, necessariamente, uma interação ética com os outros.

Essa “redução privatizante” do ente familiar é fruto de uma ofensiva direta, inaudita e desencadeada a partir de vários campos do saber, mas, sobretudo, dos terrenos filosófico, semântico, legal, científico e ideológico, sem prejuízo de seu principal efeito colateral, o fenômeno da despersonalização dos indivíduos, o qual será abordado na terceira parte deste trabalho. Vejamos, então, brevitatis causa cada um deles.

Na ofensiva filosófica, certas correntes de pensamento, portando conteúdos novos para os conceitos de pessoa/indivíduo, igualdade/identidade, liberdade/licitude, prazer/felicidade, colocaram a família em xeque, já que tais conceitos envolvem questões fundamentais para o homem. Pensamos que qualquer sistema filosófico construído com rigor e sistematicidade deve estar aberto às questões fundamentais que se abrigam no coração dos homens. Não conheço pessoa que não se maravilhe diante da contemplação das belezas que o homem é capaz de fazer ou da natureza que nos rodeia guiada por sua ordem natural.

Tal deslumbramento, que já tocava as mentes dos mais importantes filósofos gregos, provoca uma reta busca das causas primeiras e dos princípios últimos daquelas questões fundamentais. É a pergunta socrática (século V a.C.) – “Como viver?” – que, de fato, inaugura tal tipo de investigação, no âmbito da moralidade pessoal e em tom auto-reflexivo.

Assim, o papel do filósofo é o de guiar e educar racionalmente o esforço do homem para viver com sabedoria, além de indicar as nuances entre essência e aparência, verdade e falsidade, beleza e fealdade, bondade e maldade, liberdade e arbítrio, entre outros.

Boa parte das filosofias contemporâneas rejeitam muitos destes conceitos, sobretudo os de essência e de verdade, porquanto se entende que cada o ser de cada um depende exclusivamente do contexto cultural em que a pessoa está inserida (historicismo e culturalismo, o velho e o novo nome do relativismo) ou que a verdade é relativa (modernismo) ou mesmo que ela não existe (pós-modernismo).

Se cada categoria (a família, por exemplo) resume-se à uma imposição das relações de poder em voga (estruturalismo), nada é real e tudo é como aparece ao indivíduo. Se o foro de escolha disto ou daquilo reduz-se à estrita ação da vontade ou dos afetos (subjetivismo) ou se minha “felicidade” depende somente da satisfação dos prazeres (hedonismo), não existem, por conseguinte, mais a verdade e a essência. A virtude (como a magnanimidade) e o vício (como a mediocridade) tornam-se, eticamente, categorias equivalentes (niilismo – a “transvaloração” dos valores) e, no bojo desse caleidoscópio filosófico, qualquer noção de responsabilidade moral padece de sentido (modernidade líquida).

Estas e outras perspectivas de pensamento prevalecem no pensar e no agir das pessoas e, como efeito, atingem também o âmbito da noção de família: o ataque filosófico não se impõe com a expressão “isto não pode ser considerado propriamente uma família”, mas com outra manifestação – “sua ideia de família é tradicional e, portanto, superada. É possível redefini-la a fim de estimular outros laços entre os cônjuges e entre estes e os filhos”.

Note-se a mudança de frame na abordagem. Ao qualificá-la de “tradicional”, a ideia é a de associar a noção de família à imagem da família compreendida no arco histórico de Giddens e, por consequência, implicitamente, afirmar que a família “tradicional” representa uma fase de transição histórica do ente familiar, hoje definitivamente superada. Então, mudemos novamente o frame a nosso favor.

A expressão “família tradicional” enuncia, antes de mais nada, um verdadeiro pleonasmo, porque já vimos, na primeira parte, que a etnologia atesta que a instituição familiar lastreada no matrimônio monogâmico e heterossexual é uma constante em todas as sociedades humanas. E ainda que os modelos de organização familiar apresentem uma real diversidade, como também certifica a etnologia, para além dessa diversidade, há um núcleo constante: a família é um ente existencial fundado num vínculo de amor dotado de estabilidade entre um homem e uma mulher que projetam a transmissão da vida.

Família é, pois, um termo unívoco e não comporta aberturas polissêmicas, pois nos reenvia à uma instituição natural atestada histórica e universalmente, antes e fora do Cristianismo. Logo, não se trata de família “tradicional”, mas de família “natural” ou mesmo de família “etnológica”, pois a etnologia, como método científico, só veio a confirmar a ontologia familiar, ou seja, o modo de ser da família.

Passemos à questão da igualdade e seus reflexos na órbita do conceito de família, porque se cuida de um princípio político e moral que estabelece o valor do ser humano enquanto tal desde Sócrates na voz de Platão. Hoje, quando se recusa o status familiar a uma relação homossexual, argui-se a negação deste princípio, porque se atribuiria uma carga axiológica inferior àquela normalmente atribuída à relação heterossexual.

Essa assertiva parece-nos um puro sofisma igualitarista. Enquanto a primeira relação pode fundamentar sua unidade a partir de um acordo recíproco, na segunda, há um tipo diverso de comunhão, fundada na complementariedade e que, por corolário, pressupõe uma diversidade sexual. Não se faz letra morta do princípio da igualdade quando formas diversas de relação humana são consideradas de modo diferente: trata-se de mera aplicação do princípio da justiça distributiva aristotélica, cuja eficácia depende diretamente de sua comunhão com a justiça geral (ou legal) e a comutativa.

O Direito, antes de dar a cada um o seu, ou seja, antes de atribuir o devido grau de tutela jurídica para cada uma das relações aqui assinaladas, deve lançar algumas perguntas e isso envolve necessariamente a investigação da teleologia social destas mesmas relações: o que é mais importante para a gênese do tecido social, os matrimônios, como sempre foram estabelecidos, ou as parcerias homossexuais? Em qual deles reside o princípio autoconstitutivo e genético da sociedade?

Em qual deles, segundo suas peculiaridades intrínsecas, os valores podem ser transmitidos à geração sucessiva de uma forma melhor? Em qual deles os novos cidadãos crescerão melhor, de modo a estruturar-se e ampliar, de modo natural, as próprias personalidades? Quais são as obrigações que uma sociedade deve assumir em relação a um e outro? Em que medida cada um deles contribui para o incremento do bem comum? A equiparação da parceria homossexual à condição matrimonial não seria um privilégio? A manutenção do status quo do matrimônio não seria uma discriminação para a parceria homossexual?

Deixamos essas perguntas sem respostas, a fim de induzir a reflexão do leitor. Mas enfrentaremos a última, porquanto, ainda que, como as demais, pertença a um rol de argumentos de razões públicas (Rawls), guarda mais afinidade com a questão tratada neste ponto, o postulado da igualdade. Nesse caso, não me parece que a vedação constitucional dos homossexuais em contrair matrimônio – e não falo da união estável – implique numa discriminação estrita ou mesmo numa negação de direitos.

O ponderado fator de discrímen reside justamente nos elementos objetivos que o Direito exige para que um fato da vida seja dotado de juridicidade matrimonial. Quando o Direito distingue um vínculo, baseado numa complementariedade essencial e existencial voltada para a fecundidade e para o bem comum, de um outro vínculo, assentado numa complementariedade que se resume à afetividade e a interesses particulares (fruto do fenômeno da “privatização da família”), ele deve dar a cada um o seu, porque cada um move-se em órbita própria: ao primeiro, a condição de matrimônio, e, ao segundo, a de pacto civil, como, aliás, sucedeu por muito tempo em vários países europeus.

Ao dar a cada um o seu, o Direito faz justiça. Não segundo essa visão bem tosca transmitida na graduação pelo positivismo jurídico, correspondente ao fetichismo legal. Nem de acordo com essa noção sociológica, em que o legislador reduz-se a um notário, uma espécie de chancelador normativo de fatos sociais. Tampouco conforme essa visão igualitarista, que pretende, utopicamente, anular toda diferença natural, fator de enriquecimento social recíproco.

Mas segundo uma noção perene de justiça e, por isso, sempre atual: a noção de que iguais devem ser tratados igualmente e, os desiguais, desigualmente, na exata proporção da desigualdade. A justiça consiste numa certa igualdade: a igualdade que obedece à igualdade essencial entre os homens. Mas há que se distinguir as coisas iguais das desiguais e essa intrincada tarefa reclama uma filosofia política, com já alertou Aristóteles (2005:90)[18].

A igualdade essencial que há entre os homens não é, por si só, um motivo para considerar irrelevantes as diferenças secundárias que existem entre eles e não constitui um convite para se ignorar tais diferenças, sem antes perguntar ao fins que obedecem na dimensão social do bem comum. Discriminar é distinguir. Continuamente distinguimos. Diferenciamos entre pessoas boas e ruins, livros agradáveis e desagradáveis, o nosso time e o time (normalmente no diminutivo) alheio. Cada vez que elegemos algo, discriminamos inconscientemente, pois, ao optar por isto, descartamos aquilo.

Discriminar é inevitável. Apenas é reprovável a discriminação arbitrária, aquela que carece de qualquer fundamento ontologicamente objetivo, da qual o “casamento” gay está fora, porquanto chamar cada coisa pelo devido nome é uma justa discriminação.

Também não podemos nos esquecer dos reflexos do princípio da liberdade sobre o ente familiar. Atualmente, a liberdade confunde-se, cada vez mais, com os mandamentos da cartilha libertária: a liberdade levada às últimas consequências. Mas ser livre não se reduz à mera ausência de limites ou ao gozo de uns desejos. Uma pessoa que age segundo esta ótica certamente é menos livre que outra que aprendeu a ser crítica diante do objeto de sua vontade e se esforça com sabedoria em fazer melhores opções, atuando com o domínio de si.

Os defensores dos postulados libertários[19] sugerem a ampliação da ordem familiar para a união de pessoas de mesmo sexo, relações ocasionais (“relação aberta”) ou de grupo (“poliamor”). Poderiam argumentar que o contrário equivaleria à violação do direito de interação com o outro, segundo a própria vontade e não com base dos ditames do Estado.

Em primeiro lugar, a família é um ente natural e não foi criada por nenhuma religião, filosofia ou credo político, como já apontamos anteriormente. Segundo, se há liberdade para a formação de qualquer relacionamento humano, não se pode dizer que toda relação é uma família, sob pena de se reduzir uma estrutura antropológica objetiva a outra realidade alimentada pelo mero interesse.

No combate ao conceito de família que atende ao agrado alheio, à vontade da maioria ou mesmo à pressão setorial, urge que retornemos a uma visão realista-objetiva da antropologia e da ética. Uma guinada virtuosa que deve ser realizada sob a inspiração da recomendação que esculpia o dintel do templo de Delfos: conhece-te a ti mesmo.

Na ofensiva semântica, o termo “família tradicional” é muito usado em contextos políticos nos quais se debate a aprovação de diversas formas sociais de união, particularmente a união homossexual[20]. Conforme já assinalamos, muitos entendem que a sobrevida desta instituição dependeria do câmbio de seus paradigmas históricos, porque, por ser um produto cultural, na presente fase civilizacional, o formato predominante por muitos séculos caducou e se tornou uma velharia bolorenta: não haveria mais espaço para uma família numerosa, mesmo com avós debaixo do mesmo teto e relações lineares entre gerações e, para arrepio da patrulha feminista mais radical, uma maleável separação dos complementares papéis do homem e da mulher.

A partir do momento em que uma certa visão deturpada de fenomenologia expulsou a ontologia do núcleo do conceito de entidade familiar, isto é, a família não seria mais do que uma forma historicamente plasmada, não demorou muito para que o termo “família” agasalhasse outras relações sociais que muito pouco ou nada lembram seu conteúdo essencial, fato confirmado cientificamente pela etnologia. E é por isso, também, que os manuais de direito sobre família recebem o título, em muitos casos, de “direito das famílias”.

Essa postura não é tão inocente quanto parece, porquanto carrega uma carga semântica diversa. Discorre-se sobre “as novas famílias”, referindo-se aos “diferentes” que, a despeito da “diferença”, lutam para alcançar não somente aquilo que se refira a eles, mas também tudo aquilo que usufruem os “normais”. A expressão em foco é usada para tratar de temas que muitos pretendem furtar de qualquer vetor ético para relegá-los ao âmbito de uma mera política pública[21].

A expressão “novas famílias” é ambivalente, pois funciona como veículo de ideias que, no fundo, contradizem aquilo que significam à primeira vista. Uma vez manipulada, circula por todos os ambientes sociais. Não é o homem inteligente que a usa como própria, mas é a linguagem, imposta pelos grupos de pressão, que fala dentro dele. Heidegger já afirmava que não é o sujeito singular a falar, mas a linguagem que fala em nós.

Orwell já profetizava, no livro “1984”, que o Big Brother manipularia a linguagem para que significasse o oposto daquilo que falava. Sabemos que as palavras são sinais inventados pelo homem, enquanto animal loquente (que possui a palavra) e significante (que se expressa). A palavra é sempre relativa a um conceito e este a uma coisa. O falar vem depois do pensar e o pensamento ganha sentido na medida em que se torna expressão da realidade que lhe é anterior.

O acerto semântico ocorre na reunião dos três níveis: palavra, ideia e realidade. Naturalmente, o homem tende a fazê-lo. Por exemplo, a relação estável entre dois homens ou duas mulheres é, no fundo, uma relação homoerótica e não homoafetiva, porque homoafetiva é a relação que eu indistintamente tenho para com um amigo ou, como filho, tenho em relação ao meu pai. Mas, como somos capazes de unir os três níveis, somos capazes de apartá-los.

Quando os três mundos, o linguístico, o conceitual e a realidade posta, não estão em sintonia, as coisas deixam de ser ditas pelo seu verdadeiro nome: o aborto vira interrupção uterina, a eutanásia vira morte indolor, a afetividade toma o lugar do amor no seio das relações familiares, o adultério passa a ser chamado de aventura sexual e o homoerótico transforma-se em homoafetivo. Assim, a órbita semântica deixa a indiferente condição de categoria gramatical para ingressar no campo de guerra cultural como arma de manipulação das consciências.

Stork (2005:115) sintetiza bem essa guinada, ao afirmar que

através desta manipulação (que, de novo, é majoritariamente inconstante para o que a sofre) o mundo real e a verdade desaparecem. Se a relação sexual dos filmes ou telenovelas é um jogo divertido e sem consequências, parece que de verdade o uso do sexo tampouco as tem. Mas não é assim. Se a violência é uma dança fascinante de golpes e saltos, parece que de verdade é assim. Mas não o é, e há feridos que ficam lesados e há mortos, e dá nojo. Se o que conta é “querer ser bom”, ainda que alguém se comporte como um desgraçado e não tenha nem honra nem palavra nem amigos, parece que de verdade basta com isso. Mas não basta, porque quem faz mal tem uma ferida que reparar, que está aí, esperando-lhe. E triunfar custa e nem todos o conseguem; o ser honrado é difícil; e não é necessário ter tendências homossexuais para ser amigo de alguém do mesmo sexo ou para ser simpático e possuidor de uma bondade natural; e não faz falta acabar no leito de um desconhecido para saber o que é o amor, ou enganar a si próprios e aos estranhos para que a vida siga bem.   Desde a manipulação semântica da linguagem à verdade se lhe chama fanatismo; a tolerância se a confunde com a indiferença e com a negligência no cuidado da realidade; à fidelidade a converte em algo retrógrado e todo o “conservador” (querer a sua família, viver sereno, ter certa experiência religiosa, etc.) se transforma em curiosas atitudes imaturas de gente pouco inteligente. O intelectual se confunde com o que sai na televisão, com o descrente, com o ambíguo, e a qualquer postura que aspire ter conteúdos fortes se a tacha de anti-democrática e, consequentemente, se a expulsa da vida da polis com uma atitude descaradamente autoritária. A ditadura da linguagem, o trabalho do que C. S. Lewis chama “o exército filosófico”, leva à destruição do que faz com que um homem se distinga de um animal, leva a viver como se não pudéssemos ser algo mais que o que nos marcam nossos instintos. Converter aos homens em animais caprichosos e tirar a responsabilidade de seus atos, esvaziando a força semântica as expressões que usam para lhes dizer, é ter-lhes presos em uma escravidão de estúpidos, da qual não podem escapar porque não sabem que estão nela. Bradbury reflete fielmente esta idéia ao trabalho desse mundo sem livros que descreveu em Farenheit 451; algo similar aparece na crítica de Huxley à banalidade sexual de sua sociedade de Um mundo feliz. A análise destes novelistas é de uma atualidade preocupante.

Não nos admira o estado atual das coisas. A cultura e a filosofia do século XX, deixando de lado o ser e escurecendo o pensamento, voltaram sua atenção mais à linguagem (que liga o sujeito ao objeto), buscando um objeto estritamente verificável com a experiência e de costas para a realidade ou para as estruturas ontológicas objetivas. Assim, linguagem transformou-se num sinal subjetivo, à mercê das circunstâncias de cada época.

Os sofistas executavam sua profissão recorrendo ao artifício de Górgias: a inadequação entre a palavra e conceito e entre este e a realidade que representava. Discernir entre os legítimos desejos e os supostos direitos que se tenta promover por meio da manipulação da linguagem é a forma de se combater as antropologias mutiladas, porque, para se pensar corretamente a família, é preciso uma concepção integral desta e do homem. E não de firulas linguísticas[22].

Na ofensiva legal, todos sabemos que a tarefa da lei civil é a de assegurar o bem comum das pessoas por meio do reconhecimento e da defesa de seus direitos fundamentais, da promoção da paz e da moralidade pública. O bem comum político é a medida de avaliação ética das leis civis, como já alertava Aristóteles (2005:90).

Na história, a indissolubilidade da família constituída pelo matrimônio sempre foi ameaçada por leis em maior ou menor grau. O Velho Testamento, o Código de Hamurábi, na Grécia (com exceção do período homérico), em Roma (com exclusão da Monarquia e da República. No Império, na medida em que a opulência foi dissolvendo os costumes, generalizou-se o divórcio) e os povos do Oriente permitiam o divórcio. Muito mais como uma concessão à debilidade humana do que uma teoria moral.

Frise-se que a boa parte dos povos antigos era mais ou menos polígamos e, por isso, a questão do divórcio tinha uma importância muito menor do que hoje, em que a família estrutura-se monogamicamente. O divórcio era uma prática, tornando-se legal porque compunha o costume de um povo. Atualmente, a situação é diversa: na sociedade ocidental, a tese divorcista apresenta-se como efeito de uma teoria moral, o direito ao “amor livre”.

É um filhote intelectual do liberalismo clássico, de cunho individualista e racionalista, que vê o bem do homem exclusivamente na liberdade e na igualdade. Todos os homens têm o direito de buscar livremente sua felicidade e este direito estaria tão arraigado na natureza humana, que o homem não teria o dever de comprometer-se por toda a vida. Se um povo não pode vincular-se a um só governante, aplique-se o mesmo princípio à família constituída pelo matrimônio e a consequência impõe-se por si mesma.

Livres e iguais por natureza e titulares do direito à felicidade, os homens teriam o direito ao amor desenfreado, uma de suas formas essenciais, e ao direito de buscá-lo livremente, já que o amor é espontaneidade, não suporta subordinação e basta por si mesmo. Nessa linha de raciocínio, como o homem busca exclusivamente o bem pessoal, o bem comum, então, vira uma questão secundária.

Sob o influxo do materialismo, que invadiu a sociedade moderna, sobretudo após o advento do positivismo (século XIX), a teoria moral do amor livre foi repaginada e, nos ambientes do socialismo marxista, que reduz o bem do homem ao bem estar econômico e à felicidade “fisiológica” (entendida como o contentamento decorrente da mera satisfação das necessidades físicas), serviu como apoio teórico para a edição de leis contrárias à instituição familiar.

A teoria em foco, tomando uma roupagem legal, conduz à anarquia sexual e à destruição da família. Se é certo que nem todos seus defensores, na prática, chegam ao extremo das implicações destes postulados, por outro lado, convém separar o acerto do erro nas hipóteses em que esta teoria aparece mesclada com outras diferentes. A família vê-se ameaçada por uma série de leis fundadas na teoria do “amor livre”: desde a limitação de nascimentos até a possibilidade de divórcio como terapêutica “preventiva” do adultério.

A limitação de nascimentos segue a lógica do “amor livre”, dado que a paternidade e a maternidade são precisamente os obstáculos mais radicais para a liberdade do amor. Ao fim, a lógica insana desta teoria leva à educação dos filhos pelo Estado, já que os filhos, por entorpecerem a liberdade dos pais, os quais não têm mais interesse em perpetuar uma tradição familiar que foi suprimida, só servem para renovar o corpo social. São apenas úteis ao Estado e não aos pais: logo, devem ser educados pelos burocratas.

O divórcio, como medicação prescrita naqueles termos, tem um sabor de eutanásia. O paciente ainda não chegou ao fim e o remédio, como pretenso mal necessário, supera o próprio mal que se pretende sanar. Rompe-se o vínculo como tributo à “preservação” do dever de fidelidade e, na prática, as derivações abusivas daí degeneradas sempre ficarão aquém de nossa imaginação. As leis que, aqui e agora, são congruentes com o bem comum são leis dotadas de justiça. Aquelas que prejudicam as ideias essenciais do bem comum são leis iníquas. E o efeito das más leis é tal que outras ainda piores são necessárias para sustar os infortúnios das primeiras, como já pontuava, profeticamente, Montesquieu.

Ainda na ofensiva legal e como efeito da teoria do “amor livre”, ante o pluralismo de modelos familiares que brotam na sociedade, propaga-se a ideia de que o Direito não deveria discriminar este em favor daquele, mas tratar a todos à luz do princípio da igualdade, sejam matrimônios ou uniões estáveis, heterossexuais ou homossexuais. É possível que o Direito aja com tal neutralidade, que me parece um tanto ilusória, como se os aludidos modelos tivessem realizado um pacto de não-agressão mútua? As funções da família são favorecidas com esta postura, que desencadeia um novo marco legislativo nesta matéria?

As respostas jurídicas aos novos tipos familiares partem do pressuposto de certa neutralidade do Direito de Família, bem na linha do positivismo normativista kelseniano. Como se o Direito tivesse sua tarefa reduzida exclusivamente a chancelar legalmente situações jurídicas de fato, à semelhança de um notário que registra, à margem do assento de nascimento de uma pessoa, todas as alterações de seu estado civil ao longo da vida (emancipação, casamento, separação, divórcio e morte).

A abordagem, que rechaça um único modelo familiar e adota uma multiplicidade de tipos que são a resultante das diversas concepções existentes sobre a sexualidade e das relações afetivas e de convivência, coloca todas as formas no mesmo plano de equivalência social, o que parece torná-las juridicamente equivalentes, logo, sujeitando-as a um regime de direitos e deveres semelhante, quando não idêntico. Qualquer proposição contrária resultaria em discriminação nesta ótica.

O fruto colhido desta nova postura legislativa tem sido uma modificação do Direito de Família em suas linhas mestras. A falta de um conjunto de ideias e valores delimitados sobre as relações de caráter familiar cria uma sensação de que essas alterações carecem de um sentido claro e que as reformas levadas a cabo são, muitas vezes, incoerentes, contraditórias e de pouca funcionalidade social[23]. Assim, é adequada a resposta dada pelos ordenamentos jurídicos, inclusive o nosso? Penso que uma saída passa pelo questionamento acerca do fundamento e do sentido do Direito de Família.

Em relação ao fundamento, a primeira resposta seria a que, hoje, faz gravitar o Direito de Família ao redor dos critérios de convivência e afetividade. Seria o bastante, pois, que duas pessoas quisessem viver juntas: sob este argumento, ficariam efetivamente igualados os casais homossexuais e heterossexuais e seria também indiferente que estivessem ligadas pelo matrimônio, já que o fundamental, a convivência e a relação de afetividade, seria o denominador comum destes modelos familiares. Ao cabo, seria razoável tratá-los de forma semelhante.

A proposição não me parece convincente. De fato, nem no tratamento etnológico da noção de família, nem tampouco nos mais modernos, demonstraram ser suficientes a convivência ou a afetividade ou ambas simultaneamente. Basta lembrar o sistema de impedimentos matrimoniais do Código Civil, que proíbe o casamento daqueles que incorrem em alguma das hipóteses legais, ainda que, empiricamente, queiram-se muito e já vivam juntos.

O Direito, mesmo assim, se abstém de regular este relacionamento com direitos e deveres, ou seja, quer dizer que, por exemplo, duas pessoas casadas, mas não entre si, não podem constituir uma parelha estável na ótica legal. O Direito não proclama que não possam vivem juntas e querer-se mutuamente. Apenas salienta que essa convivência e essa afetividade não bastam para lastrear a regulação jurídica da família, segundo seu telos social.

Sob outro ângulo, se a convivência e a afetividade fossem, efetivamente, o fundamento e a razão de ser do Direito de Família, não restaria evidente um critério objetivo que impulsionaria a sociedade e o Direito a se ocupar de tais situações.  O problema reside no fato de que há muitas situações de convivência, de afetividade ou de ambas que nunca buscaram a força atrativa do Direito, salvo para efeitos periféricos, a saber, para atribuir algumas consequências jurídicas acidentais, como, por exemplo, no passado recente, em que não se reconhecia a união estável, mas se indenizava o cônjuge do lar pelos serviços domésticos prestados.

Logo, o fato de duas pessoas viverem juntas ou estabelecerem laços de afetividade não parece suficiente por si para justificar toda uma regulação jurídica tão densa que possa ser erigida à condição de Direito de Família, cuja finalidade, já ensinava Agostinho no século IV, é a de regular e proteger uma estrutura antropológica objetiva. Ainda que se argumente que, concomitantemente, o Direito conceda notável relevância a um desejo psicológico do casal, de fato, a afirmação procede, mas não é, juridicamente, o elemento essencial de sua hipótese de incidência.

O Direito de Família não pode ser neutro em relação às realidades familiares postas, pois cada uma delas traz consigo formas funcionalmente diferentes. Do contrário, desapareceria a razão de ser de sua própria atuação e contrariaria a própria finalidade de sua intervenção.

Superada a questão do fundamento, no que toca ao seu sentido, caberia afirmar que o Direito ocupa-se da família, porque se trata de uma relação de convivência e afetividade na qual concorre a mútua disponibilidade sexual? Logo, com a introdução deste elemento, o Direito deixaria de lado as situações contrárias, aquelas em que não haveria a mútua disponibilidade sexual?

A inserção do elemento sexual na análise traz consigo um fator qualitativamente diferente. Se a resposta ao questionamento formulado for positiva, a pergunta imediata seria acerca da razão pela qual à sociedade e ao Direito interessam as relações sexuais. Creio que a resposta é muito simples: por causa das consequências naturais, que atendem pelo nome de filhos.

A família é um grupo humano de interesse social primário, devido suas ímpares funções em relação à sociedade. Do ponto de vista social, a família está umbilicalmente ligada à subsistência da sociedade, já que possibilita o nascimento de novos cidadãos, além de ofertar um marco próprio e adequado para seu desenvolvimento integral como pessoas e sua interação harmônica no multifacetado corpo social.

Estas são as funções estratégicas da família. A família resulta ser uma estrutura de humanização e socialização barata, eficaz e ao alcance de qualquer cidadão praticamente. Tais funções estratégicas, que, na verdade, são essenciais e insubstituíveis, são as que justificam a especial atenção que a sociedade dedica-lhe, que, no campo jurídico, concretiza-se com a existência de uma específica regulação legal. A família é uma instituição de interesse social na medida em que, por intermédio dos filhos, cria as condições favoráveis para a existência e a socialização de novos cidadãos.

A partir deste ponto de vista, resulta evidente a maior relevância social das uniões heterossexuais, se comparadas com os pares homossexuais: aquelas procriam (ou podem fazê-lo) e estas não, por motivos naturais de ordem biológica. Por hipótese, basta imaginar uma sociedade em que a estrutura de relações sexuais fosse inversa da atual (a saber, aproximadamente, 10% homossexual e 90% heterossexual). Certamente, esta sociedade não iria muito adiante. Duraria uma geração.

Sob este ângulo, conclui-se que o caráter minoritário é condição de possibilidade das relações homossexuais. Somente se a estrutura de relações de uma sociedade for majoritariamente heterossexual, haverá novos cidadãos que possam optar, inclusive, por manter relações homossexuais. É evidente que a diferenciação sexual da espécie humana dirige-se objetivamente, em razão de sua própria natureza, à procriação e, logo, à perpetuação do Homo sapiens, como, aliás, se dá em todas as espécies sexualmente diferenciadas.

Além disso, a família também tem, como missão e outra função estratégica, proporcionar o parâmetro adequado para que tal processo de humanização e socialização possa se desenvolver eficazmente. Nesse ponto, também a diversidade sexual[24] assume foros de importância sem igual. Homem e mulher, agora como pai e mãe, não foram apenas chamados para proporcionar o material genético necessário para que os filhos existam, mas também devem aportar, neste período, aquilo que é próprio como varão e virago para se obter um desenvolvimento harmônico e integral dos filhos.

Se o advento de novos cidadãos está diretamente relacionado com a heterossexualidade, o processo de humanização e socialização dos seres nascidos, como efeito das relações havidas entre duas pessoas de sexo diferente, está atrelado com a estabilidade do núcleo familiar, único fator que pode assegurar que o aludido processo poderá desenvolver-se de forma mais adequada e eficaz.

A importância da estabilidade pode apoiar-se naquilo que pode ser nomeado como o reverso da moeda. A respeito, convém sempre recordar que, se é socialmente bom que as famílias durem, o rompimento (divórcio e separação) não pode ser reputado indiferente, assim como qualquer tentativa (inclusive legal) de afrouxamento do liame jurídico e natural que une um casal.

São numerosos e suficientemente conhecidos os estudos realizados que demonstram que as crises familiares (separação, divórcio e dissolução de união estável) produzem efeitos prejudiciais colaterais não desejados, sobretudo para os filhos, sem se esquecer dos deletérios efeitos para os cônjuges e para a sociedade inteira, como os altos custos econômicos, de assistência e de previdência social. A estabilidade da família mostra-se, cada vez mais, como um bem social e os instrumentos jurídicos dirigidos ao estímulo desta condição são um caminho seguro para o Direito de Família.

Assim, as funções estratégicas da família, que são seu sentido último e as razões pelas quais a sociedade e o Direito dela se ocupam, aparecem vinculadas à heterossexualidade e à estabilidade. O modelo heterossexual estável é o melhor dotado, se comparado aos demais, para atender as citadas funções da família e, portanto, reclamam, do Direito de Família, uma postura zelosa, bem ao contrário da neutralidade reinante e sob pena de contrariar seu próprio sentido de ser.

Na ofensiva científica, o quadro não difere muitos daqueles anteriormente tratados. Antes de mais nada, convém relembrar que a união conjugal tem uma antropologia implícita naturalmente estabelecida: diversidade sexual, complementaridade e abertura à procriação, alimentada pela natural atração entre homem e mulher e sobre a qual se articula a livre vontade de ambos, fundada pelo amor, e não pela simples afetividade, à doação e à aceitação mútua.

O amor conjugal não se limita a uma mera expressão da afetividade ou mesmo da volatilidade e do tumulto das emoções. Aliás, o amor humano pleno, em quaisquer de suas formas, não somente no amor esponsal, é oblativo, porque o amor consiste em (ARISTÓTELES, 2011:49) “querer o bem para o outro, enquanto outro”[25].

Amar é, primeiro lugar, querer, ou seja, o amor é uma dimensão que radica formal e prioritariamente na vontade e não se localiza na dimensão da afetividade (simpatias, sentimentos ou interesses). Quando se dá essa confusão, o sujeito, na prática, age como os seres inferiores (animais), porque é incapaz de saber dizer “eu quero” ou “eu não quero”. Em sua base, o amor é um ato da vontade e da inteligência, livre na causa, comprometedor nos efeitos e regido pela lógica da gratuidade.

Em segundo lugar, o amor busca o bem, mas o bem do ser amado, um bem real e objetivo: aquele que o aperfeiçoa como pessoa, tornando-o um ser humano mais completo e conduzindo-o para além do campo de seus próprios interesses e de suas apetências privadas. Em terceiro lugar, o querer do bem do outro é feito em consideração do outro enquanto outro, uma clássica reduplicação que encerra a cifra terminal do amor verdadeiro, porque a grandeza ontológica que me corresponde como pessoa exige que toda minha capacidade de agir seja vertida para os outros[26].

Logo, não nos parece possível que a estrita justaposição de dois egoísmos possa engendrar algum tipo de amor, ao menos digno de tal nome. Como o amor conjugal[27] demanda o compromisso aberto à transmissão da vida, decorre que a sexualidade, neste âmbito, não é um singelo dado fortuito nem somente uma maneira alternativa pela qual os cônjuges podem canalizar seu apetite sexual com exclusividade.

Às vezes, o casal não pode conceber de forma natural. Nesse caso, a ciência em muito colabora para a superação deste revés, quando estabelece técnicas de reprodução que preservem a dignidade humana. Ou, ainda, quando a ciência, de mãos dadas com a ética natural, preserva a natureza do ato conjugal. Todavia, as tecnologias reprodutivas da fecundação in vitro, da mãe de aluguel e da inseminação artificial  – casos mais comuns – atentam diretamente contra estes princípios.

Na fecundação in vitro, deu-se um passo atrás: por imperativos técnicos, produzem-se mais embriões do que o necessário para uma eventual transferência para o útero. Há um excedente de embriões congelados, os quais podem servir para a experimentação científica (em prol do “progresso da ciência”), estudo científico (por exemplo, do DNA, a fim de corrigir um patrimônio genético alterado que servirá como terapia de aberrações cromossômicas ou de doenças genéticas) ou mesmo fazer companhia a instrumentais cirúrgicos dentro do mesmo saco de lixo hospitalar.

A mãe de aluguel, não raro com nome e sobrenome nas revistas de consultórios ou de cabeleireiro, mediante pagamento, desenvolve até o fim, por conta de terceiros, a gestação de embriões fecundados in vitro com óvulo e esperma de um casal. O útero materno é substituído por outro e a “mãe substituta” fica intimamente ligada ao filho por vínculos de estreita comunicação biológica na gestação. Manipula-se a corporeidade do filho, uma espécie de “frankenstein” biológico formado pela carga genética do casal e pelo sangue, nutrição e comunicação vital intra-uterina da mãe “alugada”[28].

A inseminação artificial, quando o sêmen é de um doador (terceiro e, às vezes, parente), favorece a eugenia, porque se escolhem alguns zigotos (os mais perfeitos dentre aqueles já fecundados in vitro), que são implantados no útero, já devidamente preparado para acolhê-los. Assim, consegue-se um grau considerável de sucesso na gestação e, se todos vingarem, o casal, que pretendia ter um filho apenas, ainda pode “desistir” do restante dos quadrigêmeos em formação, solicitando ao médico a prática da “redução de embriões”, ou seja, o aborto do “excedente”.

Estes métodos têm, em comum, o desrespeito à unidade do matrimônio, à dignidade da procriação da pessoa humana e à unidade parental física, psíquica e biológica. Em relação à família, tais efeitos corrompem toda a relação humana, na qual se constitui e se define a vida familiar. As crianças, podendo ser concebidas fora do corpo, do ato sexual conjugal e do amor, serão o resultado de uma mera manipulação genética que, a longo prazo, tornará a família um sistema ultrapassado de procriação.

Como apontava Lewis (2005:38), “cada novo poder científico conquistado ‘pelo’ homem é, ao mesmo tempo, um poder ‘sobre’ o homem. Cada avanço o deixa mais forte e, ao mesmo tempo, mais fraco. Em toda conquista da natureza pelo homem, há uma certa beleza trágica: o homem é o general que triunfa e, ao mesmo tempo, o escravo que segue o carro do exército vencedor”.

Na ofensiva ideológica, já tivemos a oportunidade de constatar, na primeira parte deste artigo, que a família é, por excelência, o princípio da continuidade social e da conservação das tradições humanas. Em suma, é o elemento de preservação da civilização, porque os valores são salvaguardados pelos antecessores e transmitidos pelos sucessores.

Nos dias atuais, a família é alvo de constantes ataques que são, em grande parte, resultado de uma confusão semântica sobre ideias fundamentais que permeiam o conceito familiar: pessoa/indivíduo, igualdade/identidade, liberdade/licitude, prazer/felicidade. Trata-se de uma loucura que, à semelhança do mais famoso príncipe da Dinamarca, age com um método, cujo nascimento se deu com o advento das ideologias.

As ideologias tomam um aspecto da realidade, também importante, e lhe conferem tal envergadura como se aquele aspecto (como a economia, política e cultura) explicasse todos os princípios primeiros e as causas últimas daquela realidade examinada. Invariavelmente, falam com um sotaque totalizante, pois acreditam que o poder estatal é a fonte de todo direito, inclusive dos direitos da família.

Por sua vez, a família é um obstáculo, já que é o locus, por excelência, da educação da prole. Por isso, quando uma ideologia alcança o poder, uma das primeiras investidas recai justamente sobre este direito, subtraindo-o do âmbito familiar e entregando-o nas mãos do Estado. As crianças e jovens passam a ser educados fora daquele contexto, à vista daquilo que a ideologia almeja como um projeto de poder. Afinal, a família pode produzir indivíduos ideologicamente “desajustados”.

Na experiência de reengenharia social mais longa e traumática do século XX, o socialismo, inspirado pelo marxismo, entendia que a família nascia com a propriedade privada capitalista, como instituição social monogâmica, reflexo, em menor escala, da luta de classes (burguesia x proletariado) e com a ascendência do homem sobre a mulher. Abolido o capitalismo, a família desapareceria, porquanto seria um mero reflexo histórico de uma época em que o interesse privado era preponderante.

A família, com efeito, era considerada como uma superestrutura que se apoiava na infraestrutura dos meios de produção: no futuro, a família se reduziria apenas ao casal, unido pela satisfação erótica recíproca, numa espécie de egoísmo a dois. Não se estranha que tal concepção de família tenha sido desmoronada pela circunstância invencível de falta de respeito pela dignidade humana.

A Mãe Rússia, na medida em que coletivizava a economia, estatizando os meios de produção (e os privilégios em favor da nomenklatura, a classe política dirigente), monopolizava a educação primária e secundária, atribuindo ao casamento um status privado, favorecendo a prática do divórcio e do aborto, embora tivesse modificado sua postura mais adiante, em razão dos efeitos socialmente maléficos da diminuição de natalidade e da desordem institucional produzidos por aquelas práticas.

O nazismo, irmão intelectual da genealogia totalitarista, também atuou de forma semelhante, embora movido por outro fim. As crianças eram afastadas de suas famílias desde cedo, alistando-se no Jungvolk (povo jovem) aos 10 anos, para serem treinadas em atividades extracurriculares de doutrinação ao nazismo. Aos 14 anos, os jovens ingressavam na Juventude Hitlerista, com sujeição a uma disciplina semi-militar e introdução à propaganda nazista. No fim do ciclo, aos 18 anos, deveriam alistar-se nas forças armadas ou nas forças de trabalho.

Em ambos os casos, a família não tinha lugar na estrutura ideológica e era desacreditada como instituição, pois não poderia constituir o terreno fértil para o crescimento do “ser coletivo”, objetivo primário de ambos totalitarismos. Negou-se à família sua tarefa intransferível de educação e de mediação social. Encurralada num sistema teórico inflexível, metamorfoseou-se a família num ente instrumental para o sucesso de uma causa ideológica. Ao cabo, a pobreza antropológica destes experimentos foi de uma evidência empírica sem precedentes, comparável apenas ao número de cadáveres que cada um deles produziu.

Não se estranha porque a sabedoria humana, a partir da qual surgiram todas as áreas do conhecimento anteriormente tratadas, desde seus primórdios, tenha dedicado várias linhas à importância social da vida familiar. Na realidade, uma fecunda sabedoria humana, a fim de se ver livre de qualquer instrumentalização, deve reconhecer a prioridade do pensamento de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.

Cícero (2000:54), nessa linha, por exemplo, chamava a familia de principium urbis et quasi seminarium rei publicae. O mesmo princípio está contido, em versão moderna, na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.16, 3 – A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado). E outros exemplos podem ser ditos. Ao cabo, resta-nos afirmar que todos esses ataques à família, em seus mais variados campos e intensidades, demonstram que o novo, misturado de diversas formas, só serve para realçar o acerto dos contornos do velho. E da sabedoria humana que o sustenta.

TERCEIRA PARTE

Dentro deste ambiente intelectual desfavorável e deste caldo civilizacional confuso e caótico, a família, mesmo assim, deve reocupar o espaço que lhe é próprio por natureza. Não se trata de uma batalha das Termópilas[29], uma batalha de retaguarda a ser conduzida por bravos homens escudados pelas armas da nostalgia. Mas um horizonte a ser conquistado para bem da sociedade que, necessariamente, passa pelo nexo que une família e sociedade: a pessoa. A família dá consistência e alimenta a pessoa. Uma vez formada, a pessoa, por sua vez, nutre a sociedade. Por conseguinte, sem família não há pessoa e sem pessoa não há sociedade.

Embora a família seja uma instituição imprescindível para que a pessoa possa, em efeito, sê-lo, afirmando a plenitude de sua índole pessoal, a sociedade, pelo contrário, para se erigir sob uma condição humana e não como um mero agrupamento de indivíduos, deve estar composta por pessoas em sua totalidade, capazes de estabelecer entre si e nas mais variadas tramas do tecido social, relações interpessoais, regidas por amor e entrega gratuita, na efetiva busca do bem alheio.

A família, enquanto sociedade primária, constitui o paradigma do restante dos agrupamentos humanos. E, por isso, não é uma simples célula de sociedades mais amplas, porém, em razão de seu profundíssimo virtuosismo personalizante, é uma sociedade soberana. A soberania da família não se radica numa falsa e presumida autossuficiência, a ponto de assegurar sua subsistência sem o apoio dos demais grupamentos humanos, mas porque guarda uma íntima conexão com o fim último de todo ser humano, sua promoção enquanto pessoa. Em suma, a família é um modelo de sociedades e uma sociedade soberana.

João Paulo II (1980:237) afirmava explicitamente que

o homem, acima de toda atividade intelectual ou social, por mais alta que seja, encontra seu pleno desenvolvimento, sua realização integral e sua riqueza insubstituível no seio familiar. Aqui, realmente, mais que em qualquer outro campo vital, joga-se o destino do homem. (…) O homem não tem outro caminho rumo à humanização do que por meio da família. A família deve ser colocada como o fundamento mesmo de toda a solicitude para o bem do homem e de todo esforço para que nosso mundo seja cada vez mais humano. Nada pode subtrair-se à essa solicitude: nenhuma sociedade, nenhum povo, nenhum sistema, nem o Estado, nem a Igreja e nem mesmo o indivíduo.

O papel personalizante da família encontra seu fundamento último na natureza mais íntima e orgânica da instituição familiar, uma associação de pessoas. Contudo, essa natureza mais íntima e orgânica, ao se constituir no principal alvo do efeito colateral daquelas inúmeras ofensivas tratadas na segunda parte deste trabalho, acaba, também, por perder sua vitalidade e envereda por um processo crescente despersonalização: por um lado, a desconstrução do sujeito[30], que o priva das propriedades mais manifestas de sua condição pessoal e, por outro, a dissolução da individualidade irrepetível de cada um, em prol de uma massificação amorfa de condutas, porque apenas diversificadas em sua aparência.

Hegel, por assim dizer, desencadeou esse processo de despersonalização ao ter estabelecido, num vistoso arcabouço filosófico. que o indivíduo é um mero momento sem relevância na constituição do todo estatal. Depois dele, as filosofias materialistas simplesmente deram consequência prática à essa afirmação: o nacional socialismo alemão, o comunismo marxista, os socialismos de marca vária e o capitalismo liberal.

Entretanto, hoje, a partir de um conjunto global de estruturas – economia, política, educação, trabalho, moda, entretenimento, telecomunicações, legislação – que configura o atual momento civilizacional, o fenômeno da despersonalização entrou numa dinâmica entrópica drástica, sutil e devastadora, porque tal conjunto global tende a homogeneizar e a massificar o indivíduo, reduzindo-o a um mero fragmento social ou a uma peça do sistema, nas quais a individualidade e o personalismo, ao invés de se desenvolverem, acabam por definhar até desaparecer.

Vejamos na educação. Hoje, ao término do processo educativo no ensino médio, estamos interagindo com um sujeito mais pleno e virtuoso, cônscio de seus direitos e deveres, de seu lugar no mundo, de seu papel entre seus iguais na sociedade, capaz de conferir sentido e alcance à sua existência? Ou topamos de frente com um “técnico” em humanidades, cujo auge de sua potencialidade criativa, na órbita profissional, está em fazer com que o sistema “funcione”, ou seja, em suma, esse “técnico”, no fundo, não passa de um “funcionário”[31]?

Ou, ainda, estamos estritamente preocupados na formação de um faber ou de um laborans sem alma ou peso específico e quase sem humanidade? Estamos, no fundo, buscando, ainda que sem clara consciência, um indivíduo que não seja nada mais além de uma peça que se encaixe com o menor grau de fricção possível no interior de um sistema laboral e econômico, a fim de assegurar ao conjunto o máximo de bem estar social, lema que foi adotado, por nossas sociedades, como um fim em si mesmo? Será que o mundo do trabalho não acaba por consolidar definitivamente o fenômeno da despersonalização[32] conduzido pela educação durante anos?

Na economia, o quadro não difere muito. Nesse campo, o grande ausente é a pessoa. Se os valores pessoais tivessem algum peso no sistema produtivo, tudo desembocaria na produção de bens que consistissem num efetivo incremento na categoria pessoal de seus destinatários. Bem ao contrário disso, em boa medida, o fundamento da economia contemporânea está na constante criação de necessidades supérfluas, quase sempre materiais, convertendo os indivíduos em meros consumidores, ao ponto de serem consumidos pelo próprio consumismo[33].

Uma economia movida pelo consumo exacerbado e enredado em si mesmo subordina seus atores, sejam fornecedores, produtores ou consumidores, ao império do dinheiro, de sorte que uns e outros terminam por restarem despojados de suas dimensões mais altas. Novamente, a pessoa fica preterida a um plano secundário, submetendo-a uma inquietante dimensão  infra-humana.

No entretenimento, o desenho fático acompanha o quadro geral de despersonalização. O cinema, a música, a arte raramente induzem à formação de nossas prerrogativas singulares e, na prática, transformam-nos em fragmentos de massas amorfas, satisfeitas com um leque monocórdico de diversões que, no mais, servem apenas para nos fazer esquecer, por uns instantes, da alienação vital que nos cerca, porque a qualidade de tais distrações não tem nada ou muito pouco de cultural: esquecidas as dimensões da bondade, da verdade e da beleza, o entretenimento alimenta tão somente a afetividade e a emoção dos espectadores, já desprovidos de altura, peso e relevo, ou seja, apenas os aspectos periféricos de indivíduos carentes de profundidade espiritual e existencial[34].

Na política, o surto despersonalizante não difere das dimensões anteriormente analisadas: em regra, as agremiações políticas não defendem um ideario coeso e comprometedor, levado a cabo com paixão e temperado pelo debate intelectual pautado pelo respeito, liberdade e responsabilidade. Pelo contrário, enveredam por longos projetos de poder que só conseguem ser sustentados à base de muita demagogia e fisiologismo político, relegando o cidadão à condição de mero votante e, ao negar o atendimento de suas necessidades básicas, cria-se um ambiente social despersonalizante, cujo efeito mais perverso é a ascensão do arbítrio em prejuízo do bem comum.

Dizia Chesterton (2013:46) que “se queremos preservar a família, devemos revolucionar a nação”. Dessa forma, diante desse diagnóstico existencial contemporâneo – formado pelos ataques diretos à família e seu efeito colateral despersonalizante –, a chave dessa revolução transita necessariamente por aquilo que somente a família é capacitada para fazer crescer e amadurecer: a pessoa. Sobre a pessoa e seus valores deve girar o eixo do movimento revolucionário cujo ponto de chegada será a civilização do amor, conforme afirmamos na primeira parte deste trabalho.

Essa tarefa radicalmente repersonalizante começa por cada um de nós. Assim como um diamante é polido somente pela ação de outro diamente, a formação de uma pessoa – que se dá pela educação – somente pode ser realizada desde outra pessoa e pondo-se em jogo os atributos mais tipicamente pessoais: comprometendo-se a própria vida para solicitar dos demais aquilo que existe também de mais estritamente pessoal, a saber, sua inteligência e, sobretudo, sua vontade, na qual tem assento sua capacidade de amar, de querer e de construir o bem dos outros. Em suma, não há resposta técnica ou de cartilha para isso.

Nem pode haver, porque a tecnicidade reinante surgiu da mesma raiz despersonalizante da qual nasceu a modernidade: do afã de poder, de domínio, do intento de constituirmos, sem reservas, em donos e senhores absolutos da natureza e do universo (Descartes), para alcançar assim, por meio desse império hegemônico e desenfreado, nossa felicidade. Isso não só não aconteceu como o homem, como é reconhecido universalmente, desapareceu como efeito necessário do sufocamento provocado pela prepotência do instrumental técnico-científico criado por ele mesmo. Triste realidade histórica: crescemos ao longo de séculos e, depois, desaparecemos.

Essa subordinação mortificante já possuía em seu cerne o motor que converteria a realidade em matéria de manipulação transformadora, capaz de proporcionar aos mais fortes as vantagens, os benefícios e o bem estar, tudo isso alçado à condição de objetivos supremos de toda uma cultura. Para elevarmos seriamente a categoria humana resulta imprescindível resgatar suas dimensões estritamente pessoais. Melendo (2008:91-92) arremata que

a regra de ouro, capaz de inspirar o labor restaurativo da sociedade em que a família está chamada a vir a ser, poderia ser assim enunciada: quanto mais profundamente incidir uma ação sobre os atributos pessoais mais íntimos do destinatário, tanto maior será sua capacidade de melhorar profunda e duradouramente essa pessoa, precisamente enquanto pessoa. Pelo contrário, na medida em que essa intervenção apelar para as dimensões mais superficiais e epidérmicas do ser humano, menor a possibilidade de se influir positivamente sobre ela.

Quanto mais periférico e despersonalizante seja o influxo, maior será o poder de incitar os indivíduos à comodidade, à vida frívola e pouco substancial até se chegar ao gregarismo dissipador das teias sociais. E resulta mais difícil, por outro lado, a movê-los em direção ao bem e à uma atuação estrita e responsavelmente pessoal. Transformar a educação, o trabalho, a economia, o entretenimento e a política supõe vencer o coeficiente despersonalizante que cada uma delas carrega consigo, trabalhando a partir dessas dimensões e apesar delas, mas com um suplemento de humanidade, sem ceder jamais à tentação de acudir aos recursos e técnicas despersonalizantes que tais dimensões reclamam.

Por consequência, a partir do combate ao efeito colateral dos ataques ao ente familiar, paulatinamente, aquelas ofensivas diretas irão cessando, porque também serão esclarecidas e humanizadas mediante a insubstituível ação da relação pessoa-pessoa. E essa relação é particularmente feita na família e desde a família, a fim de se poder constituir a civilização do amor.

Considerações finais

Notamos que a família está enredada num ambiente social que pouco colabora para o desenvolvimento de suas potencialidades e virtuosidades, sobretudo no que atine à função personalizante do indivíduo, tarefa que sempre lhe foi incumbida ao longo da história, porque se trata do único ente social capaz de fazer frente a esse difícil desafio. Ao mesmo tempo, afirmamos a necessidade da família ser novamente alçada ao posto de custodes do humanum.

O quadro atual do contexto familiar, representado pela inversão dos papéis familiares, pelo aumento do número de mulheres no mercado de trabalho e das estatísticas de divórcio, pela diminuição dos matrimônios e pelo incremento das uniões estáveis e dos adultos solteiros, pelo decréscimo do nível de convívio familiar,  pela exacerbação da violência juvenil, pela inversão da pirâmide etária, pelo inverno demográfico em muitos países, pela reivindicação do direito de constituição de uma família pelos pares homossexuais e pela disseminação da violência familiar, oferecem ao estudioso um fértil campo de intuições, a fim de se poder chegar a uma série de deduções que permitam separar as causas dos efeitos da desagregação da noção ontológica do ente familiar e, ao mesmo tempo, realçar as contribuições que a família histórica dá para a ontologia familiar.

Sob outro ângulo, surgem, no horizonte do conhecimento, uma série de propostas carentes de um adequado fundamento antropológico e ético que, no limite, irão apenas aprofundar ainda mais aquele vazio ontológico, ainda mais se chanceladas pela normatividade do Direito. Em suma, são mais do mesmo, radicalizando a crescente abolição do humanum, ou seja, da tarefa personalizante do ente familiar. Um horizonte civilizacional pouco propício à conclusões e estimativas encorajadoras.

Em contrapartida, procuramos, numa sólida base antropológica e ética, sugerir uma forma de reencontro do caminho perdido: o resgate da ideia de família como uma comunidade de pessoas, fundada e vivificada pelo amor. Nosso contorno existencial e histórico reduziu a vitalidade do ente familiar à secura da despersonalização antropológica e, agora, redescobre a dimensão ontológica em busca da natural juridicidade constitutiva da família, em prol do bem comum, porquanto favorece a função personalizante e o telos social do ente familiar.

André Gonçalves Fernandes é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito titular de entrância final. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de ética, política e educação (FE/UNICAMP) e professor do CEU-IICS Escola de Direito. Coordenador do IFE Campinas. Articulista da Escola Paulista da Magistratura, da qual é também Juiz Instrutor, e do Correio Popular de Campinas, com especialidade na área de Filosofia do Direito, Deontologia Jurídica, Estado e Sociedade. Experiência profissional na área de Direito, com especialidade em Direito Civil, Direito de Família, Direito Constitucional, Deontologia Jurídica, Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica. Membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP, da Escola do Pensamento do IFE (www.ife.org.br), do Comitê Científico do CCFT Working Group (Diálogos entre Cultura, Ciência, Filosofia e Teologia), da União dos Juristas Católicos de São Paulo e da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas. Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas.

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NOTAS

[*] Texto originariamente publicado como capítulo da obra coletiva “Direito e Família”, publicado pela editora Noeses em outubro de 2014, coordenada pelos professores Ives Gandra Martins e Paulo de Barros Carvalho.

[2] A Nota 2 são as informações do autor, já fornecidas um pouco acima.

[3] Existe um adágio popular italiano que guarda uma realidade bem profunda e é inexplicavelmente dirigido apenas para o gênero masculino: “Filhos, a mãe começa a criá-los e a esposa termina”.

[4] Entendemos que, hoje, dentre os principais campos do saber, a pós-modernidade já completou seu processo de influxo e transformação epistemológica (que ainda toma corpo no campo do Direito de Família) apenas nas artes, a julgar pela irracionalidade e pela completa falta de senso ontológico e estético (quando não atingem a dimensão de verdadeiras pornopopéias) das principais manifestações artísticas expostas nos mais renomados museus do mundo inteiro. Nesse ponto, recordo-me de Vargas Llosa (2013:75-76) ao dizer que “no que me diz respeito, percebi que algo estava podre no mundo da arte há exatamente 37 anos, em Paris, quando um bom amigo, escultor cubano, cansado das negativas das galerias em expor as esplêndidas madeiras que eu o via trabalhar de sol a sol em sua mansarda, decidiu que o caminho mais seguro para o sucesso em matéria de arte era chamar a atenção. E, dito e feito, produziu umas “esculturas” que consistiam em pedaços de carne podre, fechados em caixas de vidro, com moscas vivas esvoaçando ao redor. Uns alto-falantes asseguravam que o zumbido das moscas ressoasse por todo o local como uma ameaça aterrorizante. Triunfou, de fato, pois até um figurão da Rádio e Televisão Francesa, Jean-Marie Drot, o convidou para seu programa. A mais inesperada e truculenta consequência da evolução da arte moderna e da miríade de experimentos que a alimentam é que já não existe critério objetivo algum que permita qualificar ou desqualificar uma obra de arte, nem situá-la dentro de uma hierarquia, possibilidade esta que se foi eclipsando a partir da revolução cubista e desapareceu totalmente com a não figuração. Na atualidade tudo pode ser arte e nada é arte, segundo o soberano capricho dos espectadores, que, em razão do naufrágio de todos os padrões estéticos, foram elevados ao nível de árbitros e juízes que outrora só alguns críticos possuíam. O único critério mais ou menos generalizado para as obras de arte na atualidade não tem nada de artístico; é o critério imposto por um mercado controlado e manipulado por máfias de galeristas e marchands que de maneira alguma revela gostos e sensibilidades estéticas, mas apenas operações publicitárias, de relações públicas e em muitos casos simples assaltos. Há mais ou menos um mês visitei pela quarta vez na vida (mas essa terá sido a última) a Bienal de Veneza. Fiquei lá algumas horas, acredito, e ao sair concluí que não teria aberto as portas de minha casa a nenhum daqueles quadros, esculturas e objetos que havia visto nos cerca de vinte pavilhões que percorrera. O espetáculo era tão enfadonho, farsesco e desolador quanto a exposição da Royal Academy, mas multiplicado por cem e com dezenas de países representados na patética farsada, onde, a pretexto de modernidade, experimentalismo e busca de “novos meios de expressão”, na verdade se documentava a terrível orfandade de ideias, cultura artística, habilidade artesanal, autenticidade e integridade que caracteriza boa parte das artes plásticas em nossos dias”.

[5] A Batalha das Ardenas (também conhecida como Ofensiva das Ardenas ou Batalha do Bulge) (16 de dezembro de 1944 — 25 de janeiro de 1945) foi a grande contraofensiva alemã no oeste (die Ardennenoffensive), lançada no fim da Segunda Guerra Mundial na floresta das Ardenas, situada na região da Valônia, na Bélgica, alcançando também a França (Bataille des Ardennes) e Luxemburgo na Frente Ocidental da II Guerra Mundial. As forças Aliadas foram abordadas de surpresa, com suas linhas muito espalhadas enfrentando uma força inimiga inicialmente superior. Em 21 de dezembro, as forças alemãs cercaram Bastogne, que era defendida pela 101ª Divisão Aerotransportada (101st Airborne) e pelo Comando de Combate B da 10ª Divisão Blindada. As condições dentro do perímetro eram precárias devido a falta remédios, de soldados, às temperaturas constantemente negativas em dois dígitos, à nevasca incessante (que impossibilitava o suprimento aéreo de mantimentos e o acesso terrestre de mais homens) e à cobertura defensiva de uma enorme área densamente florestada. Para agravar a situação adversa, a maioria dos médicos havia sido capturada pelos nazistas, a comida era escassa, as armas careciam de cuidados especiais, os caminhões tinham de correr a cada meia hora, para evitar que o óleo congelasse, e, em 22 de dezembro de 1944, a munição para artilharia fora reduzida para apenas 10 cartuchos por canhão. Depois de duros combates e, quando o tempo possibilitava, apoio militar, os Aliados conseguiram esgotar as ofensivas alemãs e, em 25 de janeiro de 1945, Hitler finalmente ordenou que suas forças deixassem as Ardenas, incluindo as divisões Panzer da SS. Winston Churchill, em discurso na Câmara dos Comuns depois da Batalha das Ardenas, disse que “esta foi, sem dúvida, a maior batalha americana da guerra e será lembrada como a maior vitória militar dos Estados Unidos nesse conflito”. De fato, a Batalha das Ardenas foi o confronto militar mais sangrento que as forças americanas enfrentaram na II Guerra Mundial: mais de 19 mil norte-americanos morreram, sendo este o maior número de fatalidades americanas sofridas em um único embate durante todo aquela campanha militar.

[6] João Paulo II (1994:17) afirma “que a família está na base daquela que Paulo VI designou como «civilização do amor», expressão que entrou depois no ensinamento da Igreja e se tornou já familiar. Hoje é difícil pensar numa intervenção da Igreja, ou então sobre a Igreja, que prescinda da referência à civilização do amor. A expressão está ligada com a tradição da «igreja doméstica» do cristianismo nos seus primórdios, mas possui uma precisa referência também à época contemporânea. Etimologicamente o termo «civilização» deriva da palavra latina civis (cidadão), sublinhando a dimensão política da existência de cada indivíduo. Todavia o sentido mais profundo do termo «civilização» não é tanto político como sobretudo «humanístico». A civilização pertence à história do homem, porque corresponde às suas exigências espirituais e morais: criado à imagem e semelhança de Deus, ele recebeu o mundo das mãos do Criador com o compromisso de o plasmar à própria imagem e semelhança. Precisamente do cumprimento desta tarefa provém a civilização, que, em última análise, não é senão a humanização do mundo”.

[7] A Paz de Westfália designa uma série de tratados que levou a termo a Guerra dos Trinta Anos e também reconheceu oficialmente as Províncias Unidas e a Confederação Suíça. É composta pelo Tratado Hispano-Holandês, que pôs fim à Guerra dos Oitenta Anos (assinado em 30 de janeiro de  1648 em Münster), e pelo Tratado de Osnabrück (assinado em 24 de outubro de 1648 entre Fernando III, Sacro Imperador Romano-Germânico, os demais príncipes alemães, além da França e da Suécia), encerrando o conflito entre estas duas últimas potências e o Sacro Império. Este conjunto de diplomas inaugurou o moderno sistema do Direito Internacional Público, ao acatar consensualmente noções e princípios como o de soberania estatal e o de Estado-nação. Embora o imperativo da paz tenha surgido em decorrência de uma longa série de conflitos generalizados, surgiu com eles a noção embrionária de que uma paz duradoura derivaria de um certo equilíbrio de poder, noção essa que se aprofundou com o Congresso de Viena (1815) e com o Tratado de Versalhes (1919).

[8] “É com palavras e atos que nos inserimos no mundo; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original. Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem se rege pela utilidade, como o trabalho. Pode ser estimulada, mas nunca condicionada, pela presença dos outros em cuja companhia desejamos estar; seu ímpeto decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos, apreendemos os valores familiares e ao qual respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa”.

[9] A autoria da pergunta é de Niklas Luhmann (1989:234), para quem, por detrás dos subsistemas sociais não existe uma estrutura ontológica (natural ou metafísica) a impulsionar seus movimentos, mas cada função ou subsistema (ciência, religião, política, economia, família, moral e direito) é um esquema de sentido que permite independência à sua verificação analítica, na exata proporção em que cada arranjo de sentido é fundante de um conjunto de conceitos operativos aptos a proporcionar uma série de resultados buscados socialmente e, assim, minimizar a complexidade inerente à troca comunicativa entre os subsistemas. Em outras palavras, Luhmann busca justificar a tremenda e crescente especialização dos subsistemas a partir da modernidade, os quais passam a atuar e a se desdobrar em seus modos de atuação, a ponto de se constituírem em realidades paralelas e fechadas umas às outras, com códigos e linguagem próprios. A interação entre tais subsistemas seria possível apenas pelo intermédio de mecanismos de “generalização congruente” (por exemplo, as leis ou a opinião pública), os quais possibilitariam a transmissão da complexidade de cada subsistema de forma mais reduzida.

[10] D’Agostino (2003:97-98) conclui que “se o dever da etnografia da família está em catalogar, de um modo cientificamente correto, a epifania cultural do fenômeno familiar, o dever, por sua vez, da filosofia da família está em refletir o princípio familiar naquilo que ele resta de irredutível em toda a epifania familiar, a ponto de assinalar para todas as culturas um caminho, não de um conservadorismo obtuso, mas de um contínuo e sempre novo esforço de atualização histórica”.

[11] Desde Roma (CAMBI, 1999:108-109), a pedagogia também muda completamente: heleniza-se, racionaliza-se, libertando-se do vínculo com o ‘costume’ romano arcaico e republicano, para aproximar-se cada vez mais dos grandes modelos da pedagogia helenística. Em particular, também em Roma penetra a grande categoria-princípio da pedagogia grega, aquela noção e ideal de paideia, de formação humana pela cultura, que produz uma expansão e uma sofisticação, bem como uma universalização das características próprias do homem. A paideia de Isócrates (…) vem radicar-se também na cultura pedagógica romana, sobretudo por obra do grande mediador entre estas duas civilizações – a grega e a romana – que foi Cícero. A ele, de fato, devemos a versão latina da noção de paideia na de humanitas, que sublinha ulteriormente sua universalidade e seu caráter retórico-literário, permanecendo durante séculos no centro da reflexão educativa e da organização escolar do Ocidente (grifos nossos).

[12]Paideia, a palavra que serve de título a esta obra, não é apenas um nome simbólico; é a única designação exata do tema histórico nela estudado. (…) Os antigos estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem uma arte formal ou abstrata, distintas da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação (JAEGER, 2003: introdução)”

[13] Um precedente a respeito pode ser assinalado com Saussure (1962:15), o qual entendia a linguística como um ramo da ciência mais geral dos signos, que ele propôs fosse chamada de Semiologia. Graças aos seus estudos e ao trabalho de Leonard Bloomfield, a linguística adquiriu autonomia, objeto e método próprios. Seus conceitos serviram de base para o desenvolvimento do estruturalismo no século XX.

[14] O Banquete, 189c.

[15] Para uma pungente crítica do pensamento freudiano acerca da bissexualidade primigênia: R. GIRARD, Des choses cachées depuis la fondation du monde, Paris, PUF, 1978, pp.388-390.

[16] Kant entende, na tentativa de uma síntese entre o racionalismo cartesiano e o empirismo inglês, ser o conhecimento possível, porque o homem possui uma série de faculdades que torna isso viável (ainda que, depois, ele afirme que esse conhecimento só alcance o fenômeno das coisas e não as coisas em si mesmas). A condição de possibilidade da experiência dá-se pelo entendimento (por meio do qual os objetos são pensados nos conceitos) e pela sensibilidade (o modo receptivo pelo qual somos afetados pelos objetos). Para Kant, é mediante a sensibilidade que os objetos são dados e é pelo entendimento que são pensados. Em suma, não existe uma única fonte do conhecimento: só o entendimento (racionalismo) ou só a sensibilidade (empirismo) e, assim, o filósofo alemão dá a cada faculdade o seu estatuto próprio e sublinha a decisiva importância de cada uma no processo cognitivo. A sensibilidade, dessa maneira, é a faculdade de poder intuir os dados da realidade e de receber impressões sensíveis e, como efeito, ela fornece a matéria que será estudada pelo entendimento.

[17] A expressão é de autoria do renomado sociólogo inglês Anthony Giddens, pai da teoria da estruturação e figura de proa da chamada “terceira via” e do novo trabalhismo inglês. Para Giddens (2000:71-75),  a família de ontem ou a família tradicional é aquele tipo familiar que se desenvolveu num arco de tempo que se inicia na Idade Média e termina nos anos 50 da última centúria. Suas características principais são: a) unidade econômica, ou seja, as pessoas se uniam por motivos econômicos e não pelos laços amorosos; b) local da assimetria existencial entre o homem e a mulher, onde a mulher era considerada uma longa manus do marido ou uma propriedade do pai; c) os filhos não eram considerados em si mesmos, mas somente como mão-de-obra ou colaboradores em prol do empenho econômico comum familiar; d) a sexualidade tinha sempre um fim reprodutivo. De fato, nosso sociólogo britânico aponta, com rigor, muitas realidades históricas vivas e presentes ao longo do arco temporal por ele traçado. Apenas criticamos aqui a pretensão de se confundir a substância de um ente – a família – com suas concretizações históricas, sempre sujeitas à imperfectibilidade de nossa natureza. Se a família corresponder, indistintamente, às formas historicamente assumidas, então, a realidade histórica fica autoerigida ao status daquilo que corresponder ao ser da família. Em outras palavras, Giddens usa uma visão deturpada de fenomenologia contra a ontologia, a fim de reforçar a própria convicção com a simples constatação de que (GIDDENS, 2000:75) “desde então – dos anos cinquenta – a família mudou”. Nesse ponto, Antiseri (1991:553-555) recorda-nos que “crítica do positivismo, portanto, a fenomenologia se apresenta também como pensamento desconfiado em relação a todo apriorismo idealista. Com isso, se insere naquele vasto movimento de pensamento caracterizado pela ‘tendência para o concreto’ (…). Nessa preocupação de construir uma filosofia ligada o mais possível a ‘dados imediatos’ e inegáveis, com base nos quais erguer depois as teorias, a fenomenologia está de acordo com o pensamento de Henri Bergson. E esse é o motivo por que ela promoveria, ou se entrelaçaria, com as concepções de Heidegger, Sartre ou Merleau-Ponty. Escreve Heidegger em Ser e Tempo: ‘a expressão fenomenologia significa antes de mais nada um conceito de método, um lema que poderia ser assim formulado: voltemos às próprias coisas! E isso em contraposição às construções desfeitas no ar e às descobertas casuais, em contraposição à aceitação de conceitos só aparentemente justificados e aos problemas aparentes que se impõem de uma geração à outra como verdadeiros problemas’. Portanto, a palavra-de-ordem da fenomenologia é a de retorno às próprias coisas, indo além da verbosidade dos filósofos e de seus sistemas construídos no ar. Mas como se fez para construir uma filosofia que se sustente? Para cumprir essa tarefa, é preciso partir de dados indubitáveis para com base neles construir depois o edifício filosófico. Em suma, procuram-se evidências estáveis para colocar como fundamento da filosofia. Essa, portanto, é a intenção de fundo da fenomenologia, intenção que os fenomenólogos procuram realizar através da descrição dos ‘fenômenos’ que se anunciam e se apresentam à consciência depois que se faz a epoché, isto é, depois que são postas entre parênteses as nossas persuasões filosóficas, os resultados das ciências e as convicções engastadas naquela nossa atitude natural que nos impõe a crença na existência de um mundo de coisas. Em outros termos, é preciso suspender o juízo sobre tudo o que não é apodítico nem incontrovertido até se conseguir encontrar aqueles ‘dados’ que resistam aos reiterados assaltos da epoché. E os fenomenólogos encontram esse ponto de aproximação da epoché – o resíduo fenomenológico, no dizer de Husserl – na consciência: a existência da consciência é imediatamente evidente. A partir dessa evidência, os fenomenólogos pretendem descrever os modos típicos como as coisas e os fatos se apresentam à consciência. E esses modos típicos são precisamente as essências. A fenomenologia não é ciência dos fatos, e sim ciências de essências. (…) Eis, portanto, o que a fenomenologia pretende ser: ciência, fundamentada estavelmente na ontologia, voltada à análise e à descrição das essências.

[18] Política, III, 12.

[19] Para se compreender claramente a ótica libertária, é imprescindível a leitura da principal obra de Robert Nozick, Anarchy, State and Utopia (New York: Basic Books, 2004), na qual é feita uma defesa filosófica dos princípios libertários e lançado um provocante desafio ao conceito de justiça distributiva aristotélica. Como contraponto filosófico, recomendo a leitura do capítulo 3 da obra Justiça, o que é fazer a coisa certa, de autoria do prestigiado filósofo político americano Michael Sandel (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012).

[20] A respeito das relações entre linguagem, comunicação e poder, escrevi (FERNANDES, 2012:2): “Durante a história da filosofia, sua reflexão pode ser dividida em três partes bem distintas, segundo as partes da relação do conhecimento: na Idade Antiga e Média, os filósofos debruçaram-se sobre o objeto. Na Idade Moderna, o sujeito racionalizou tanto, a ponto de a razão restar curvada sobre si mesma, a ponto de não poder mais olhar para o horizonte da verdade. Atualmente, o foco da filosofia está no vínculo que une sujeito ao objeto: a linguagem. Existem dois modos de obrigar as pessoas a atuar numa situação. O primeiro é o uso da força, sempre inútil, porque não atua sobre uma vontade livre e dá margem ao arbítrio. O segundo, mais eficaz, é a propaganda sistemática que faz da manipulação verbal seu principal instrumento, desvirtuando o reto uso da linguagem. Goebbels foi um exímio mestre nesta arte. Seria capaz de fazer o povo alemão acreditar até nas valquírias, mas não teve tempo suficiente para tanto, porque o regime de mil anos sequer chegou aos treze. A propaganda sistemática procura inculcar novas convicções em suas vítimas. No momento em que estas novas atitudes são assimiladas, as pessoas julgam ter chegado a elas por meio da própria vontade de aceitar essa nova forma de agir, fazendo-a sua. Toda manipulação social começa com a manipulação da linguagem. Seu propósito é o de manobrar cuidadosamente a opinião pública para produzir determinadas mudanças no comportamento. A manipulação verbal mina na raiz a dignidade humana, já que os indivíduos da sociedade vítima não são mais tratados como seres humanos, mas como objetos a serem manobrados, dominados e, depois, controlados. É um fenômeno que deita suas raízes na origem do homem (e das serpentes, quem sabe): Adão e Eva caíram na tentação “linguística” do sagaz réptil. Platão combateu os sofistas. Um deles, o Górgias, deve ter dado tanto trabalho para o nosso filósofo que virou até nome de um de seus famosos diálogos. O Iluminismo, que avocou, pretensiosamente, a condição de marco zero do conhecimento humano, definia suas propostas de mudanças sociais (estabelecidas por uma meia-dúzia de cabeças pensantes) como símbolo de progresso, ainda que, na prática, consistisse no avanço do retrocesso em muitas áreas. Aliás, esse mito do progresso, além de ter servido para estampar o lema de nossa bandeira, perdura até hoje: só não sei se andou trilhando na melhor direção. Quando uma inverdade é repetida muitas vezes e com uma argumentação persuasiva, pode converter-se em verdade na mente de várias pessoas, ainda que se afirme um absurdo: a propaganda nazista massiva contra os judeus impressionou até mesmo Churchill, para quem os alemães não passavam de bando de buldogues bem adestrados. Se for apresentada insistentemente, pode apropriar-se do status de saber coletivo. Essa técnica de manipulação da realidade já foi denunciada, com clareza profética, por George Orwell, em sua famosa obra “1984”, no qual a manipulação é definida como a “nova linguagem”. A realidade autêntica (doação eleitoral ilegal) é substituída por uma fictícia (recurso financeiro “não contabilizado”). A percepção das pessoas é, de fato, dirigida a um objeto, mas se trata, agora, de uma pseudo-realidade, falsamente real, de modo que se torna quase impossível discernir a verdade. Uma realidade falseada (fetos não são pessoas) que nega uma verdade objetiva da realidade (a vida começa na fecundação) atenta frontalmente contra a característica fundamental do homem, a da busca constante pela verdade das coisas. Em “Alice no país das maravilhas”, a manipulação da linguagem é bem retratada pelo autor da obra: “’Quando uso uma palavra’, diz Humpty, ‘ela significa exatamente aquilo que escolho que ela signifique’. ‘A questão é’, diz Alice, ‘que se podem inventar palavras para significar assim tantas coisas diferentes’. ‘A questão é’, diz Humpty, ‘qual se quer impor’”.

[21] A título de exemplo, disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/pt/obras-conversando-sobre-o-direito-das-familias.cont.

[22] A respeito das relações entre cultura moderna e linguagem, escrevi (2012:2): “(…)Também é preocupante o deslocamento da centralidade do matrimônio e da família para figuras assemelhadas e pouco condizentes com uma realidade antropológica objetiva, no âmbito da estrutura legal destas relações. A dissociação das relações entre a razão e a fé, entre filosofia e teologia, é evidente, porque o secularismo nega o potencial de verdade a uma visão de mundo religiosa (ao contrário do que propõe Habermas), porque seria fruto de uma “revelação” ou de um mito. E, desde Kant, enfrentamos o problema do divórcio entre filosofia e ciência, agravado pelo positivismo, que via a ciência como uma religião e uma filosofia. Uma resultante daquela postura contratual, nestas delicadas áreas do saber, é a manipulação da linguagem: o significado das palavras varia muito e passa a depender das determinações da vontade daqueles que definem seu conteúdo. Temos um bom exemplo no âmbito do direito de família, cujo nome já foi vítima daquela manipulação: há algum tempo, passou a ser chamado de “direito das famílias”. Na ausência de um mínimo ético, de um objetivo comum de felicidade e de uma filologia comum (como a virtude, bondade, verdade e beleza), a lei passa a fornecer os paradigmas e as definições e, ao fim, torna-se o primeiro sistema válido para resolver disputas pessoais ou sociais, quando deveria ser o último a ser manejado. A linguagem clássica e perene do matrimônio deu lugar a uma linguagem substitutiva: “cônjuge” virou “companheiro”, que sempre foi sinônimo de colega, ou “parceiro”, termo tomado de empréstimo junto à tradição contratual do direito romano-germânico. Em ambos os casos, as expressões estão bem longe de expressar um amor de aliança, fiel e exclusivo. O termo “família” já vem sendo usado como termo genérico para descrever uma vasta gama de relações. Atualmente, refere-se a vinte e uma diferentes definições de relacionamentos, dos quais o matrimônio é somente mais um. Nesse ritmo, daqui a alguns anos, provavelmente, o verbete terá um dicionário exclusivo. Toda história do homem está impregnada de reflexão sobre a linguagem e suas formas de manipulação. Platão já se desentedia com os sofistas, pois eles deturpavam o uso da linguagem. Górgias, famoso sofista e exímio orador, até virou nome de um dos diálogos platônicos, onde foi tematizado o valor e a função da linguagem, como instrumento de poder ou como instrumento de verdade. Como Platão, hoje, compete a cada um de nós descobrir o charlatanismo linguístico que ocupa boa parte dos discursos sociais e, à semelhança do mestre grego, submetê-lo ao diálogo.

[23] A propósito, o projeto de lei que dispõe sobre o estatuto das famílias (PLS 470/13), formulado segundo a moderna tendência dos microssistemas jurídicos, é um bom exemplo disso. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=115242. Acesso em 05.02.14. A exposição de motivos deste documento legislativo dá bem o tom daquilo que combatemos no presente trabalho. Transcrevo alguns trechos: “O conceito de família é cada vez mais plural. Os arranjos familiares da sociedade moderna não mais decorrem apenas do matrimônio. A união estável, entre pessoas do mesmo sexo ou não, famílias monoparentais, adoções e a comprovação de paternidade via testes de DNA atestam que as mais diversas formas de relação familiar tornam a vinculação afetiva mais importante na abrangência e nas novas definições do conceito de família. No entanto, o atual sistema jurídico rege as questões familiares com base no Código Civil que data de 2002, e que foi concebido no final dos anos 1960. Com a tramitação e aprovação de centenas de leis sobre o tema, o mesmo se encontra defasado”. (…) “a legislação atual está ultrapassada e defasada em relação à realidade da família que, hoje, deixou de ser essencialmente um núcleo econômico para dar lugar à livre manifestação do afeto. As fontes do Direito de Família como a doutrina e os princípios são avançados, mas as regras jurídicas ficaram ultrapassadas. Embora o Código Civil seja de 2002, ele traduz concepções morais da década de 1960. Daí a necessidade de adequar essas regras às novas formatações de família que não são protegidas pela legislação atual. Um dos principais argumentos para a apresentação do projeto é o de que não é mais possível tratar questões da vida familiar, que envolvem emoções e sentimentos, tendo como referência normas que regulam questões meramente patrimoniais”. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/noticias/5182/Projeto+de+Estatuto+das+Fam%C3%ADlias+%C3%A9+apresentado+no+Senado+#.Uv3trr1TuM8. Acesso em 05.02.14.

[24] Diversidade, neste trabalho, é entendido como diferença. Não se confunde com o sentido empregado por Herbert Marcuse (1898-1979), sociólogo e filósofo alemão, pertencente à Escola de Frankfurt, o qual, transplantando os conceitos marxistas para a sexualidade e para a psicanálise, preconizou uma sociedade “polimorficamente diversa”, como resposta à suposta opressão sexual da civilização judaico-cristã.

[25] Retórica, 2, 4, 80b.

[26] A respeito da ontologia do amor, escrevi (FERNANDES, 2013:2): “Recentemente, conversava com uns amigos sobre os tempos de faculdade. Cada um indicou seu maior legado. Para uns, foi a formação acadêmica; para alguns, foram as amizades; para outros, foram as festas e os jogos universitários. Para mim, foram tempos inesquecíveis em muitos sentidos, mas o maior legado do Largo de São Francisco foi o amor. E, por isso, sempre que vou ao centro de São Paulo, passo por lá, sento-me entre aquelas arcadas históricas e simplesmente me desligo por alguns instantes do mundo em volta. A qual amor me refiro? O amor ao direito, à minha profissão, aos estudos, aos meus amigos, aos injustiçados e à minha segunda namorada, que se casou comigo depois. Mas não necessariamente nessa ordem, porque corro o sério risco de ter problemas lá em casa. Assim, deixemos as causas de lado e concentremo-nos na pessoa amada. Quando amamos uma pessoa, parece que nossa vontade é catapultada a uma capacidade de criar sem fim. Talvez isso decorra do fato de que uma pessoa é sempre uma fonte de novidades. Criar é fazer que existam coisas novas. O mais criador que existe é o amor: “todo amor é criador e não se cria mais que por amor”, já disse o poeta. Por exemplo, nesse afã criativo, o amor aguça a capacidade de superar as dificuldades para unir-se e conhecer ao ser amado. Busca sempre novas formas de afirmação do outro. Mas, busca, sobretudo, uma coisa fundamental: sua perpetuação imortal no outro, ainda que a morte, um dia, venha a separar os amantes fisicamente. Cada um de nós é um ser intrinsecamente amoroso, é uma realidade amorosa. Seria interessante estudar histórica ou socialmente a condição amorosa, que se realiza de formas muito diversas, com variações de intensidade e de conteúdo, nas manifestações reais da vida pessoal ou literárias da vida social. E relacionar esse dado com a atitude face àquela imortalidade. Será que não existem épocas em que o homem sente fortemente a pretensão de imortalidade, tem vivo interesse por ela, por continuar vivendo sempre, precisamente porque tem uma realidade intensamente amorosa? Pelo contrário, não sucederá que, em épocas em que a capacidade amorosa decai, o nível amoroso anda baixo, produz-se diretamente uma queda no desejo de imortalidade, da pretensão de perdurar? Apesar do ceticismo que, infelizmente, mina a capacidade de amar das pessoas nos dias atuais, ainda há manifestações culturais, principalmente na música e na literatura, que enaltecem aquela perpetuação imortal do amor. “E se não vier facilmente/ uma coisa você precisa acreditar/ você sempre pode confiar em mim/ porque meu coração será sempre seu. Verdadeiramente seu”, dizia a letra de uma balada romântica que marcou minha época de faculdade. À medida que se ama, como na letra da música, necessita-se continuar vivendo ou voltar a viver depois da morte para continuar amando. Recordo-me de uma bela afirmação de Agostinho: “meu peso é meu amor, por ele sou levado onde quer que eu vá”. É o peso da vida humana, o amor, que nos carrega de uma parte a outra. Hoje, tenho a impressão de que vivemos numa crise de amor. O amor, essa constante disposição da vontade humana, deu lugar para os afetos, sempre instáveis, em todos os relacionamentos. E, num ambiente de pluriafetividade, não há espaço para um desejo de imortalidade. É o aniquilamento do amor. Tudo passa a ser fugaz e superficial. “Tu que eu amo, não morrerás”, feliz fórmula de outro poeta. Isto significa a impossibilidade de se pensar no fim da pessoa amada. Necessita-se dessa pessoa para que a vida tenha sentido. Se o homem estivesse destinado a perecer, não seria tudo um enorme engano, uma espécie de brincadeira de mau gosto? A vida teria um sentido? Mas o que impulsiona essa maneira de ver as coisas é precisamente o amor. Se não se ama, tudo isso cai na própria base e já não importa nada. Em outras palavras, quem não ama com aquele afã criativo de eternidade, não só não deseja continuar a viver, mas converteu sua vida num tremendo engano. “Amar alguém imortalmente/ amar alguém fielmente/ amar alguém igualmente/ não é o suficiente/ não é o suficiente”, dizia aquela mesma balada romântica”.

[27] O amor conjugal é iluminado, em seus princípios e atributos, por uma fecunda relação entre direito, ordem e amor. A propósito, escrevi (FERNANDES, 2012:2): “Curioso notar que o Direito dispõe sobre muitas normas em diversas dimensões da vida humana, mas nada trata sobre o amor humano. A título de curiosidade, o revogado artigo 1.338 do Código Civil de 1916 era o único dispositivo legal em que a expressão “amor” foi empregada pelo legislador: “O gestor responde pelo caso fortuito, quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste por amor dos seus”. O novo Código não manteve a palavra. Inclusive, consegue a rara façanha de tratar dos deveres do casamento, sem mencionar expressamente a expressão “amor”. Nesse ponto, será que existe uma relação entre o direito e o amor? E, caso positivo, no âmbito da relação conjugal, qual regra deveria iluminar as relações entre os casados: a lei natural ou a espontaneidade do amor? É um fato notório que, por trás de algumas posturas atuais em relação ao matrimônio, há uma clara, porém, aparente contraposição entre aquilo que se denomina como exigências do amor e o que, tradicionalmente, é chamado de lei natural. São tendências que defendem a autenticidade como um dos pilares da atuação do homem, inclusive numa relação matrimonial. A autenticidade estaria na espontaneidade do amor, num livre fluir da relação amorosa, marcada por uma invencível fragilidade intrínseca, algo bem retratado na famosa obra literária de Milan Kundera, “A insustentável leveza do ser” (1984), frente à inautenticidade representada pela lei, sobretudo pela lei natural, reduzida a um produto cultural de uma mentalidade ultrapassada e alienante. Estas tendências partem do pressuposto de que o homem é considerado um ser autêntico quando segue a inclinação espontânea que radica em si, porque toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao seu ser. Negam, sob outro ângulo, que a pessoa possa ter uma desordem em suas inclinações naturais, como a concupiscência. A desordem não teria espaço, porque, inspirado na concepção rousseauniana de natureza humana, o ser do homem não portaria nem o bem e nem o mal: há simplesmente o seu ser, que deve ser assumido tal como é ontologicamente, em virtude de sua bondade inerente. Eis a chamada autenticidade: uma tese pertinazmente proclamada e vivida por muitos, os quais, certamente, não acreditam que a antropologia kantiana aproxima-se muito mais da realidade posta acerca da natureza humana, dado que o homem é naturalmente capaz de fazer, além do bem, o próprio mal. E sem necessidade de sociedade, de qualquer estrutura ou mesmo instituição, que fazem apenas potencializar o bem ou o mal praticado individualmente. Superada a questão a respeito da possibilidade de desordem nas inclinações naturais, a espontaneidade do amor surge como a regra de ouro da ação humana. O mal está em agir sem amor. Migrado este critério ao amor conjugal, infere-se, sem muito esforço intelectual, que esta regra deva pautar as relações entre os cônjuges, já que, onde há amor espontâneo, não pode haver desordem. Mas aí reside o engano antropológico. Há um só amor, esse primeiro movimento da vontade que se orienta e adere intencionalmente ao objeto amado. É o primeiro movimento da inclinação natural do homem ao bem.  Contudo, o homem tem, dentro de si, um fator de desordem em sua tendência inata ao bem, de maneira que, apesar da lei natural, goza também de uma inclinação para o mal, a chamada concupiscência. Uma vez domado por esta, o amor fica cego. E se o amor é cego, nunca acerta o alvo, como já dizia Shakespeare. Por outro lado, os efeitos da “ética da autenticidade”, entendida como um agir social segundo a inclinação espontânea que radica em cada um de nós (porque toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao nosso ser), acabam por produzir uma relação dialética entre as demandas do amor conjugal e a lei natural, positivada nos deveres legais do matrimônio (artigos 1.565 a 1.568 do Código Civil), como se os imperativos do amor fossem dificilmente compatíveis com a lei natural. A interrogação é inevitável: pode haver tal contraposição entre o amor conjugal e a lei natural (positivada ou não) que origina o matrimônio e regula a vida conjugal? Dentro do âmbito mais amplo das relações entre o amor e a lei, se o amor é a fonte criadora de toda decisão acerca de uma ação humana, não seria o mesmo amor, proclamado em prosa e verso pela literatura de todos os tempos e de todas as épocas, a mais elevada norma do viver do homem, o princípio supremo de ordenação social, ao invés da lei? Recordo-me de uma frase de Agostinho – ama et fac quod vis (ama e faze o que quiseres) – que, em tempos idos, quando os intelectuais eram mais cultos, gozava de prestígio, como citação clássica, entre eles. O “ama e faze o que quiseres” não equivaleria a um desprendimento de toda lei imposta, de toda condicionante normativa derivada do exterior do indivíduo? Se mesmo o matrimônio religioso deposita no amor humano sua lei fundamental de valor moral, não seria o amor fonte originária de ordem? Por outro ângulo, existiriam razões que permitem afirmar que tal contraposição seria aparente e que o amor, por ser a regra mais elevada da ação humana, poderia ser exercido dentro das balizas da lei natural? Certa vez, li uma afirmação do filósofo alemão Josef Pieper, em sua obra “O Amor”, que dá bem o tom da natureza do amor que aqui se propõe:“ O amor e somente o amor é o que tem de estar em ordem para que todo o homem o esteja e seja bom”. Assim, segundo o amor esteja ou não ordenado, a vida de um homem será reta ou desordenada. A ordem aqui mencionada não decorre de uma fonte normativa exterior, como as convenções sociais ou os costumes de um povo, mas daquela ordem intrínseca do amor que lhe é inerente. Filosoficamente, a ordem como transcendental do ser. Explica-se. Uma roda é tanto mais uma roda quanto mais perfeito é o círculo que a forma. Se deixa de ser uma circunferência e passa a ser uma parábola, deixa de ser roda, ou seja, perde, em parte, seu ser próprio de roda. Pode até servir para outro fim, mas não atenderia sua finalidade natural, a de girar como uma roda. Se, então, sua estrutura ficasse mais desordenada e se transformasse num quadrado ou num triângulo, deixaria ser roda por completo. Quando um músculo, ao invés de se mover segundo sua ordem natural, move-se desordenadamente, dá causa a um estiramento, ou seja, a uma alteração naquilo que lhe é normal, segundo sua ordem em sentido filosófico, a mesma ordem a que está sujeito o amor. No âmbito desta ordem, o amor se aperfeiçoa e cresce quanto mais o ser desenvolve-se normalmente e, ao contrário, diminui sua intensidade na medida em que se atrofia a capacidade do ser. Basta comparar o amor de uma mãe pelo filho com o amor de um avaro pelo dinheiro: as diferenças são tão gritantes que é melhor não comparar. Neste sentido, o amor é tanto mais amor quanto mais ordenado for e, por consequência, o amor desordenado é a imperfeição ou degradação do mesmo amor. Uma caricatura do amor. Desta sorte, compreende-se a famosa máxima de Agostinho: “Todos vivem de seu amor, faça o bem ou faça o mal”. De fato, o amor nasce ordenado ou desordenado conforme uma ordem ou uma desordem fundamental da pessoa, individualmente considerada. E é inevitável que assim seja, porque o amor é um ato que depende, por ser ato, da potência, canalizada pela vontade. A ordem fundamental da vontade irá definir a ordem do amor que daí surge. Não é porque existe amor que uma dada conduta será necessariamente reta. Excluída a ideia de ordem, o amor deteriora-se e, por conseguinte, a conduta humana daí derivada. A espontaneidade do amor, entendida como um agir social segundo a inclinação espontânea que radica em cada um de nós, não é fonte primária da ordem, já que o amor é uma realidade medida por critério distinto. Só quando o amor é ordenado, então é a norma regente do agir humano e o “ama e faze o que quiseres” de Agostinho ganha sentido, alcance e resume os preceitos da lei natural. E qual é a ordem do amor? Mais uma vez, recorremos a uma clássica citação de Agostinho: Virtus ordo est amoris (A virtude é a ordem do amor). Invertendo a ordem da frase sem alterar seu sentido, desponta a resposta – a ordem do amor é a virtude. E quais virtudes? As virtudes morais, que representam fundamentalmente a justaposição da vontade aos ditames da reta razão. Por consequência, a ordem do amor é a lei natural. E os preceitos da lei natural representam as concreções da reta dinâmica do amor. Resta delimitar a ordem do amor conjugal. Evidente que esta ordem é representada pelas mesmas virtudes relativas ao amor propriamente dito, entretanto, impulsionado também por uma virtude específica que ordena o amor matrimonial, em virtude de suas peculiaridades: a virtude da castidade, aquele autodomínio que torna a pessoa capaz de se dar ao outro. Esta virtude ilumina o amor conjugal, objetivamente, por intermédio dos três bens do matrimônio, a saber, a abertura à procriação, a fidelidade e a indissolubilidade. Tais bens não se reduzem a uma mera limitação ou repressão ao amor humano, como defendem algumas escolas antropológicas. Muito pelo contrário, são efeitos concretos deste amor e, na medida em que são vividos ordenadamente, superam e excedem em muito o mero exercício estóico de todas as prescrições legais sobre o assunto, mormente no que toca aos deveres. As relações entre os homens, inclusive as de natureza conjugal, estão assentadas numa série de relações ontológicas objetivas, que portam uma ordem que lhes é inerente. Por exemplo, a relação entre pais e filhos tem nítida coloração ontológica, derivada da procriação, cuja ordem natural obriga os genitores ao dever de criação e educação da prole e esta, por sua vez, ao dever de respeito e obediência aos pais. É o fato da procriação que dá causa a um rol de direitos e deveres recíprocos e não o amor humano. Este dado empírico não rompe com tais exigências ou as modifica substancialmente, mas, sem que estas se alterem, o amor humano ordenado entende que estes imperativos derivam da dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual as assume e aperfeiçoa. Esta ordem objetiva funda-se no direito natural, porquanto se revela em deveres de justiça, cuja normatividade é veiculada pela lei natural, prisma ético que definirá se o amor é ordenado ou desordenado, inclusive aquele decorrente do matrimônio, lastreado no interior de uma relação natural e que responde a um anseio da pessoa humana. Este anseio é guiado em função de umas necessidades e finalidades da espécie, motivo pelo qual entre o homem e a mulher exista uma mútua atração natural, que poderá crescer e ganhar uma nova dimensão: a do amor conjugal que, se for ordenado, conduz o matrimônio à plenitude e, se for desordenado, impede que esta perfeição seja alcançada. Com efeito, a lei natural é a ordem do amor conjugal.

[28] A propósito da relação entre o fenômeno da barriga de aluguel e a ética que o fundamenta, escrevi (FERNANDES, 2013:02): “Na Índia, além de turismo religioso para estrangeiros que estão nauseados de uma vida materialista e focada exclusivamente no sucesso profissional, existe outro turismo bem mais rentável: o de barriga de aluguel. Nas maternidades, é uma criança, a cada três dias, que entra na pauta de “exportação”, com um rol de países destinatários que deixaria qualquer empresa de serviço de courier internacional com inveja: Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Alemanha e Japão. Ao custo de vinte mil dólares por gravidez. Compreendo a questão que sustenta o “negócio”: se um casal não consegue ter filhos por uma infertilidade natural da mulher, por que não contratar os serviços uterinos de uma “mãe de aluguel”, que terá o seu óvulo fecundado pelo espermatozoide do pai contratante? Fiz essa pergunta na sala de aula. Várias respostas surgiram. Uma delas chamou-me mais a atenção, em razão do grau de acuidade intelectual. “Se um acordo é celebrado livremente entre partes maiores e capazes e não prejudica terceiros, ele está eticamente respaldado”. Em outras palavras, o aluno valeu-se do princípio do dano, elaborado há muito tempo por Stuart Mill, na defesa da ética utilitarista de seu mestre, o filósofo e jurista Jeremy Bentham. Mas será que esse princípio pode ser realmente aplicado para serviços uterinos dispensados a soldo? De fato, o forte apelo à liberdade da pessoa torna a ética utilitarista muito atraente. Afinal, ela dá vazão à nossa fecunda individualidade, o que justamente nos difere dos outros e que nos faz conhecidos no seio social. Se um casal não pode ter filhos, por qualquer impossibilidade biológica, a opção pela barriga de aluguel, escolhida entre inúmeras outras (como a adoção, por exemplo), seria perfeitamente legítima, já que não há qualquer risco de dano para as partes envolvidas. Sem dúvida, se não fosse por um “detalhe”. Existe uma parte no “negócio”, cujos interesses sequer foram lembrados: o feto, que vai nascer num hospital de Mumbai e, depois, morar em Manhattan ou em Notting Hill. Pelo preço de vinte mil dólares, como quem compra um par de sapatos ou uma bolsa da Prada ou da Chanel. Com a diferença que não incide imposto de importação, por enquanto. Também devemos lembrar que o mesmo princípio só valeria se todas as partes habitassem a mesma realidade civilizatória o que, certamente, não existe entre um casal que se dispõe a gastar uma quantia que lhe corresponde a uns “trocados”, mas que, para a contratada do outro lado do planeta, é sua tábua de salvação econômica e social. O desequilíbrio de autonomias é tão flagrante que esse negócio é viciado desde seu começo. Nem mesmo um eventual equilíbrio econômico entre as partes, supondo que a contratada morasse em qualquer dos países já citados, justificaria a aplicação do mesmo princípio, porque, segundo Mill, o princípio do dano intervém para tutelar a liberdade das pessoas e os interesses de terceiros, no caso, rebaixados à condição de mercadorias de luxo. E não devidamente valorizados como seres humanos: não se questiona acerca dos futuros efeitos para uma criança no caso de uma precoce separação da mãe biológica. Não se reflete sobre os impactos desse “negócio” em seu desenvolvimento psicológico ou social, sobretudo quando souber que foi “encomendada”. Não se interessa pelo vínculo afetivo que se forma entre a mãe de aluguel e a criança gerada em seu útero. Tudo isso é reduzido a uma cifra “livremente” estabelecida. Tenho a impressão de que a ética libertária, ao final das contas, provoca o risco de transformar o mundo num grande palco para a realização dos desejos individuais e da própria satisfação pessoal, travestidos da condição de direito, cuja prestação, muitas vezes, passará pela exploração do mais pobre. E não há fumaça de incenso indiano que oculte a vileza dessa contradição”.

[29] Termópilas (do grego, “portões quentes”) é um desfiladeiro localizado na Grécia Central que serviu de palco para a batalha entre persas e espartanos (agosto de 480 a. C.). O conflito foi provocado pelo anseio do persa Xerxes de dominar o território e o povo espartano. Para o conflito, Leônidas, rei dos espartanos, encontrou grandes dificuldades, porque o exército persa já se aproximava, os espartanos comemoravam as honrarias ao deus Apolo e o resto da Grécia comemorava os Jogos Olímpicos, o que impedia qualquer tipo de guerra naquele momento. Sem outros recursos, Leônidas partiu para o conflito com apenas 300 homens de sua guarda pessoal. Apesar da desproporção entre os exércitos (301 espartanos contra 300 mil persas) os espartanos conseguiram repelir os primeiros ataques até que Efialtes, um pastor impedido de guerrear juntamente com Leônidas e seus homens, aliou-se a Xerxes, como prova de seu ressentimento, mostrou-lhe um caminho desconhecido que levaria o exército espartano à Termópilas, fazendo com que os persas cercassem os espartanos e os massacrassem violentamente. A batalha durou três dias. Leônidas foi decapitado, crucificado e sua cabeça foi empalada. Num monumento de homenagem no local do conflito, há os dizeres: “Digam aos espartanos, estranhos que passam, que aqui, obedientes às suas leis, jazemos”.

[30] Acreditamos ser necessário que a cultura ocidental recobre, no âmbito intelectual, o uso de suas faculdades espirituais superiores, mais precisamente seu poder de contemplação, as quais restaram atrofiadas por séculos de negligência existencial, pois a inteligência e a vontade do homem ocidental, desde a Idade Moderna, concentraram-se na conquista dos poderes político, econômico e tecnológico. No âmbito social, parece-nos ser imprescindível o resgate das dimensões do amor e da amizade como principais forças configuradoras da teia de relações sociais.

[31] Esse problema é muito sensível no universo do ensino jurídico, no qual os índices de reprovação nos exames de advocacia e de ingresso nas carreiras jurídicas crescem vertiginosamente, em razão de problemas metodológicos e epistemológicos que permeiam a imensa maioria das instituições de ensino superior. Ollero Tassara (1982:268-269) diagnostica bem esse fato ao afirmar que “a forja do futuro profissional do direito passa por sua consciente identificação com o texto legal. Para isso há de se esforçar em plasmá-lo em sua memória com tal intensidade que não reste em sua mente resquício algum livre do domínio da vontade do legislador. Não faz sentido fazer do profissional do direito um erudito, capaz de compreender conhecimentos de interesse meramente teórico; nem mesmo um juiz apto a criticar ou discernir, porque o legislador já se encarregou a contento dessa tarefa. O importante é formar um técnico capaz de manter em funcionamento a máquina legislativa e de fazê-la socialmente eficaz. Sua missão, como a de qualquer outro técnico, consistirá em conhecer os detalhes da máquina para fazê-la render ao máximo (…). E não se deve olvidar que, se cada técnico empenha-se em inventar uma nova máquina, sua tarefa acaba sendo inútil. O profissional do direito há de se empenhar por conseguir, fundamentalmente, que a máquina funcione: será, por excelência, um funcionário”.

[32] Em nosso trabalho de mestrado (FERNANDES, 2014:78-84), afirmamos que “em terceiro lugar, no seio da relação educacional, ao lado da evolução e da inserção, radica o encontro, o momento em que o educando relaciona-se com outros semelhantes, coisas e fenômenos. Esses dados da realidade não se entrelaçam com ele a partir de uma ordem pré-determinada e absolutamente incondicionada, como o liame religioso que havia entre os gregos e seus deuses, mas se põem à sua frente, em virtude da recíproca abertura desses dados para ele. Como consequência, o educando passa a conhecer profundamente uma área do saber, um conceito até então pouco esclarecido ou uma nova forma de abordagem intelectual de um assunto complexo. No encontro, está subjacente uma atitude aberta ao mundo e à imprevisibilidade. Compreender o novo, enfrentar aquilo que surge e aprender a dar forma ao dado não planejado. É aqui onde jaz a mais acabada expressão da amplitude de movimento dos impulsos naturais do educando e, por ser cada um uma individualidade irrepetível, essa capacidade de encontro não se dá do mesmo modo e na mesma intensidade. Se, na inserção, o educando é um “ser-aí”, no encontro, ele é um “vir-a-ser-aí”. (…) O encontro representa aprendizado constante, abertura ao imprevisto, espírito livre de investigação, perspectiva para distinguir o comum do peculiar, capacidade de reflexão e de autocrítica, convicção para bem decidir e, por trás disso, uma sensibilidade para o sentido e o alcance do próprio acontecimento decorrente do encontro. Tanto para ordená-lo no seio do já conhecido como também para tomar uma posição diante do novo enquanto tal. (…) A tarefa educativa, assim entendida, orienta o educando para uma postura em que se dá concomitante valor para os fatores do risco e da experiência, sendo que a modulação de um e de outro será estabelecida pela realidade pedagógica concretamente considerada. Essa atitude dispõe o educando para a originalidade do acontecimento, para a liberdade vital e para a amplitude da existência, lapidando a mais relevante dimensão humana: a dimensão espiritual, onde reside o motor que leva todo homem a naturalmente desejar o conhecimento (ARISTÓTELES, 2006:43)”.

[33] O consumismo sempre teve seus filhotes práticos, como a prodigalidade, o endividamento compulsivo e, atualmente, o brand bullying. A propósito desse novo fenômeno, escrevi (FERNANDES, 2013:02): “Neste tempo do Natal, surgem, no horizonte publicitário, novos apelos para adquirir o último modelo disso e o mais novo daquilo. Na essência dessa “visão” natalina, não tenho dúvidas em afirmar que se trata de mais do mesmo. E se a criança ou o jovem não forem contemplados pelos pais com o tal modelo disso ou daquilo, eles correm o risco de serem “vítimas” de bullying do grupo social a que pertencem. E que reforça um crescente consumismo social. Explico. De fato, o trem da afetividade, quando anda sem os freios da vontade e da razão humanas, descarrila mais cedo ou mais tarde. Um exemplo contundente está justamente no movimento consumista que assola nossa sociedade nos dias de hoje. O consumismo provoca, no indivíduo, uma maior dependência de estímulos sensoriais e, depois, busca, na ânsia por prazeres, o apoio para vender mais e mais. Sobretudo nessa época do ano. Não participar dessa onda consumista cria o temor do jovem e da criança de serem rechaçados no interior de seu grupo social, porque não estão na moda, não vestem certas marcas ou porque não têm o aparelho eletrônico que todos têm, sempre de última geração. Esse receio de se sentir excluído desse ambiente consumista foi chamado, acertadamente, pelos ingleses de brand bullying: uma espécie de intimidação psicológica provocada pelo uso reiterado, no grupo, de uma determinada e consagrada marca de consumo. Então, muitos pais, compreensivelmente, no afã de “proteger” seus filhos desse entorno consumista, acabam por sucumbir às demandas da tecnologia, do vestuário ou dos calçados esportivos das marcas com mais status no mercado. Sem saber, não têm a menor ideia de que estão chocando o ovo da serpente consumista no seio familiar. Para seguir esse ritmo de consumo frenético, muitos pais passam a trabalhar mais para poder consumir mais. E precisam consumir mais, porque o tempo de convívio afetivo roubado pelas horas extras é invariavelmente compensado com mais bugigangas de última geração, adquiridas sem qualquer critério em favor dos filhos. Como efeito paralelo nefasto, nesse círculo vicioso, o afeto é materializado por completo. É uma realidade que tenho notado em minha experiência profissional no julgamento dos processos em matéria de família. As crianças e os jovens necessitam ser aceitos pelo grupo e, para eles, as marcas “marcam” o território e carecer daquilo que todos os demais dispõem acaba por convertê-los em vítimas de brand bullying. Uma vez imersos nesse frenesi consumista, fica muito difícil sair: eles foram tratados com jogos eletrônicos e não com tempo gasto ao seu lado. Receberam coisas, ao invés de afeto familiar, além de um alto índice de tecnologia, se contrastado com a baixa cota de dedicação paterna. Ernst Schumacher já dizia, há quarenta anos, que a virtude que nossa sociedade mais precisa é a sobriedade. Se, naquela época, o prognóstico era duvidoso, nos dias atuais, ele tornou-se acertado. Com efeito, impõe-se a “necessidade de carência”: nós, adultos, devemos saber dizer aos nossos filhos que precisamos menos de coisas materiais e mais de bens intangíveis, que são mais baratos, não pesam e não precisam ser trocados a cada dois anos, como o tempo, a dedicação, a presença efetiva e o convívio familiar. E, também, procurarmos ser consequentes no exemplo. Trocar os desejos e caprichos dos filhos pelo atendimento de suas reais necessidades pode ser o melhor presente que nossos filhos venham a receber nessa Natal: no primeiro caso, estamos a prepará-los para a condição de futuros pequenos déspotas; no segundo, para o exercício maduro da cidadania num vindouro convívio social. Que este Natal seja uma oportunidade de, em primeiro lugar, enaltecer o sentido profundo e original dessa festa. Depois, sem dúvida, fomentar o convívio familiar com uma boa mesa e uma fraterna troca de presentes. Como minha avó já faleceu, não corro o risco de receber outro par de meias esportivas adquirido na última megaliquidação. Durante muito tempo, sempre olhava para esse presente com um sinal de interrogação na cabeça. Hoje, entendo este “sóbrio” recado: o presente era só uma lembrança, porque o sentido do Natal nunca foi o presente. É bem o contrário do que o consumismo nos propõe, e, nesse afã, inverter tudo para alegar um novo sentido apenas serve para revelar os contornos do velho, realçáveis mesmo num contexto social em que o consumismo, ao que parece, já nos consumiu”.

[34] A respeito das relações entre educação e entretenimento, escrevi (FERNANDES, 2011:2): “(…) Já vimos a importância do primeiro nível, a família, para a atuação educativa das crianças e dos jovens. O segundo nível é a escola. Idealmente, a escola atua nesse labor formativo por delegação dos pais, os protagonistas desta jornada, isto é, significa que a escola deve propor-se a colaborar – e jamais suprir – com a tarefa pedagógica conjugal de formação moral. A escola age não tanto sobre a criação de hábitos, embora possa fazê-lo, mas auxilia eficazmente quando oferece um mundo coerente com os valores aceitos socialmente e que contextualizem os valores do mundo da consciência da criança e do jovem, incutidos pelos pais (e não pela babá ou pela televisão) no ambiente familiar. A escola deve proporcionar aos alunos uma educação personalizada, completa e coerente, formando indivíduos que conheçam a realidade e se comprometam com ela, como seres livres, críticos, responsáveis e abertos aos outros. Em suma, um método pedagógico que transforme a investigação sobre a formação integral do homem em respostas educativas concretas. Uma educação emancipatória, entendida como a possibilidade de resistência às formas de dominação vigente pela via do exercício crítico e reflexivo da razão e que milite contra o pensamento determinista derivado da mitologia, os excessos do discurso unificador medieval, o cientificismo totalizante da modernidade, além do irracionalismo e do ceticismo das tipologias pós-modernas de desrazão, sem falar das inúmeras e atuais insinuações ideológicas presentes nos discursos sociais. Mas sem se desligar de um rol mínimos de valores, sob pena de desenraizamento e desorientação. O terceiro nível diz respeito aos produtos da indústria do entretenimento e que, talvez, gozem de uma relevância educativa nunca antes vista na história, a ponto de muitos confundirem educação com entretenimento, o que não é bem o caso. Julián Marías sintetizou bem isso ao afirmar que a grande potência educativa de nosso tempo é o cinema. As crianças e os jovens moldam sua personalidade, em grande medida, através daquilo que os diverte. Se a ação pedagógica paterna tem o vínculo afetivo como componente principal, o entretenimento educa por meio da metodologia narrativo-emocional, fato que poderia ser exponenciado pela educação com o fim de atingir a imaginação, os afetos e as emoções das crianças e dos jovens. A novidade do contexto cultural é a de que tais narrações, veiculadas por meio de filmes, séries televisivas, jogos eletrônicos, revistas, música, shows, são produzidas em escala industrial e chegam massivamente às crianças e aos jovens. Os perigos dessa massificação da indústria cultural, se alienada da realidade e vulgarizada, já haviam sido previstos por Adorno no começo do século passado. A capacidade de incidência dos efeitos da indústria do entretenimento é imensa e, ao que parece, não só não está articulada com os outros níveis nesta missão pedagógica como, com frequência, seu produto é tudo, menos educativo. O sucesso da tarefa pedagógica dos patamares familiar e educacional depende dos donos do poder do entretenimento assumirem um claro compromisso educativo: não se pede que a diversão seja sinônimo de conto de fadas, mas, simplesmente, que não seja danosa à atuação dos outros níveis. A educação do caráter moral das crianças e dos jovens é um objetivo que requer o concurso da ação dos pais, da escola e da indústria do entretenimento. Nesse assunto, basta lembrar que uma sociedade incapaz de educar seus filhos nos valores é uma sociedade incapaz de respeitar a si própria”.