Família: casca ou recheio?

Opinião Pública | 29/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Hoje, ao se refletir sobre o ser da instituição familiar, logo emerge uma realidade empírico-social que mais lembra uma colcha de patchwork, ainda mais para quem lida diariamente com o fenômeno familiar, como juízes, advogados, psicólogos, psiquiatras, pedagogos e assistentes sociais. Certamente, um quadro bem instigante e, sob um dado ângulo, um porta-retrato do mundo ocidental.

Inversão dos papéis familiares, aumento do número de mulheres no mercado de trabalho e das estatísticas de divórcio, diminuição dos matrimônios e incremento das uniões estáveis e dos adultos solteiros, decréscimo do nível de convívio familiar,  exacerbação da violência juvenil, inversão da pirâmide etária, inverno demográfico em muitos países, reivindicação do direito de constituição de uma família pelos pares homossexuais, disseminação da violência familiar, entre outras pinceladas desse pontilhismo sociológico que, visto de longe, oferece ao observador algumas intuições.

Tais intuições servem para sinalizar, no fundo, muitas ambivalências nessas transformações havidas, nos últimos cinquenta anos, no senso comum da noção de família. Como discernir entre fatores sociológicos permanentes e apegos nostálgicos pela família “de ontem”, na famosa definição do sociólogo britânico Giddens? Como argumentar sem aceitar servil e acriticamente as “novilínguas” que se dizem portadoras de uma moderna noção da instituição familiar? Não seria o caso de reconhecer que Giddens tem razão, ao definir a família como uma singela “instituição-casca”, ou seja, um ente social que ainda é chamado do mesmo modo, mas que, em seu interior, já é fundamentalmente diferente?

De fato, certos condicionamentos familiares de outras épocas não mais se justificam atualmente: não se fomenta mais uma ascendência masculina no lar, as tarefas domésticas procuram ser divididas entre o casal, a mulher costuma ter relações sociais que vão além dos compromissos estritamente familiares e assim por diante. Isso foi muito bom em vários aspectos. Contudo, por outro lado, afirmar ser cabível qualquer coisa dentro da dita “casca familiar” é, no fundo, reduzir ou retirar do fenômeno familiar uma vocação historicamente reconhecida: a vocação socializante.

Atualmente, nos debates sobre o conteúdo dessa “casca”, há uma forte tendência sociológica de aplicação do chamado enunciado comunicativo, uma visão que entende a familia como pura comunicação em suas relações internas. Em suma, uma espécie de feixe composto por mensagens que se movem paralelamente (casal) e cruzadamente (pais e filhos), sem qualquer referência à rede de pessoas que compõem a família e ao fato desta estar sempre inserida no contexto maior da sociedade.

Sociologicamente, a família não é pura comunicação, mas tem sido, ao longo dos tempos, uma relação social total, porque é o local em que se dá, por excelência, a personalização de um indivíduo. A família não é um puro sistema interativo, mas um sistema de relações publicamente relevante, mesmo hoje, em que a sociedade não é vista exclusivamente a partir do ente familiar.

A família também não é algo cerrado sobre si mesmo, já que excede a si mesma, na medida em que se intercambia com outras dimensões sociais, como a política, a economia e a educação. A família, como espaço de socialização, é muito mais que uma mera comunicação. É um contexto e um sistema de ação finalizado e intencional, ainda que com resultados não previsíveis. Apesar dessas censuras, o enunciado comunicativo tem um grande atributo: reforça a ideia de autonomia das relações internas da família, âmbito em que as leis civis devem se intrometer muito pouco.

A família é uma fenômeno social total. Não pode ser objeto de visões reducionistas ou mesmo contrárias a esse dado sociológico. A família é e segue sendo um vínculo simbólico que vai além da estrita comunicação e que instaura uma ordem sócio-cultural enquanto “ordem significativa do mundo”, onde os indivíduos encontram sua identidade, posição e espaço, a implicar todas as dimensões da vida desses mesmos indivíduos e a lhes possibilitar o desenvolvimento de sua pessoa. Enfim, a família, diante de sua função socializante, não aceita qualquer recheio sociológico. E, por precisar de um mínimo de base nesse recheio, não se resume a uma simples casca. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).