Abertura para o Todo, a Chance da Universidade – Josef Pieper

Sem Categoria | 10/12/2014 | |

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Josef Pieper, filósofo alemão do século XX, foi um influente pensador da antropologia filosófica. Seguindo a tradição clássica do pensamento europeu, ele entendia que filosofar consiste na busca do ser, na linha da famosa pergunta de outro filósofo contemporâneo seu, Alfred Whitehead: “What is it all about?”. Dessa forma, a filosofia não se reduziria a este ou àquele ponto de vista, mas indagaria pelo todo e com tudo aquilo que guardaria relação real. Em suma, a filosofia abrir-se-ia omnidimensionalmente ao ser e a tudo que em si e em seus últimos fundamentos sustentaria tal realidade.

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No presente artigo, Pieper entende que a universidade deve agir com uma resoluta orientação do pensamento para o universum, para a unidade do conjunto do real, aliado a um decidido e persistente esforço de abertura para o todo, que desde sempre tem sido designado e entendido como filosofar. Nessa tarefa de busca do conhecimento, Pieper propõe que as ciências particulares devem dividir o trabalho empírico e, à filosofia, traçar os fins, função que, há algum tempo, foi usurpada, justamente, por aquelas ciências, provocando um efeito incontroverso no mundo acadêmico: uma série de saberes estanques e descompassados entre si, divorciados de qualquer unidade epistemológica e abertos à manipulações hermenêuticas e experimentais de ordem vária, sem que se alcance o todo da realidade.

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Abertura para o Todo: a Chance da Universidade – Josef Pieper

Fonte: http://www.paideuma.net/textos.htm

(Tradução: Gilda N. M. de Barros e Luiz Jean Lauand, a partir do texto Offenheit für das Ganze – Die Chance der Universität, publicado em 1963).

 Josef Pieper

 I- As experiências escondidas nas instituições

As grandes instituições costumam ser a expressão de grandes experiências, de experiências que estão como que vazadas nessas instituições e, conseqüentemente, um tanto escondidas nelas. Esta é precisamente uma das razões pelas quais é tão difícil dizer cabalmente em que consiste o verdadeiro significado das instituições que condicionam e emolduram a vida humana. Com o simples atentar para o aspecto aparente, histórico-concreto do fenômeno, não se pode decifrar o que elas realmente são e devem ser; para fazê-lo, é necessário penetrar, através de um paciente e cauteloso esforço de interpretação, naquelas experiências, intuições e convicções que se incorporaram nas instituições e que as fundamentam e legitimam.

Porém, quando se trata das grandes experiências que o homem tem consigo mesmo e com o mundo, das experiências que condicionam sua vida, não se pode dizer que elas possam ser apanhadas e formuladas facilmente, uma vez que não estão de modo algum ao alcance imediato da consciência reflexiva. Sabemos muito mais do que aquilo que somos capazes de exprimir de improviso, em palavras precisas, num determinado momento. E talvez aconteça que o que digamos de fato passe à margem de nossas verdadeiras convicções.

Precisamente aí é que reside a dificuldade inerente às pesquisas de opinião, quando o seu objeto diz respeito não à existência exterior, mas à interior. As respostas expressam aquilo que os entrevistados acham que pensam, enquanto sua verdadeira opinião lhes escapa e se esconde a tais apressadas pesquisas. “O senhor crê na imortalidade?” (este foi o tema de uma recente pesquisa internacional). Não é um resultado muito significativo o fato de que na Alemanha Ocidental, 47% dos entrevistados tenham respondido afirmativamente. O que realmente um homem pensa da imortalidade possivelmente só se tornará claro (talvez até para sua própria surpresa) num momento de abalo existencial: uma rápida entrevista tem pouca probabilidade de penetrar na dimensão em que se situam tais convicções.

Precisamente as nossas certezas mais vitais – as que atingem nosso fundamento e o do mundo, de que temos tanta segurança que por elas orientamos nossas vidas – estão fadadas a se transformarem logo em existência viva; se tudo segue seu caminho normal, convertem-se em vida vivida, tornam-se realidades, concretizam-se. Passam, por exemplo, como dizíamos, a formar a organização estrutural das instituições, nas quais se configura e se perfaz o viver histórico do homem. Ainda que não se deem a conhecer de modo imediato, essas experiências estão presentes e ativas, e quem queira expressá-las deve ultrapassar o que se manifesta na superfície e procurar atingi-las para, por assim dizer, retraduzi-las em forma de enunciado.

Nesse sentido, é muito significativo que justamente a forma institucional das “escolas superiores”, do “ensino superior”, daquilo que chamamos de universidade, seja uma daquelas realizações nas quais se “cristalizam” experiências humanas grandes e fundamentais. E é de presumir que, se queremos averiguar o que faz com que uma universidade seja verdadeiramente uma universidade, devamos transcender a pura descrição fática e procurar focalizar aquelas experiências existenciais que se escondem sob a forma da instituição em que se transformaram, e que nela se fundiram, tornando-se, assim, um tanto invisíveis.

Com isto se define de uma forma razoavelmente precisa, o objetivo da presente discussão: pretendo traduzir em palavras algumas das experiências, intuições e convicções que se cristalizaram na instituição ocidental da universidade e nas quais esta se fundamenta e se legitima. Além do mais, preocupam-me principalmente os elementos daquela intuição prévia que estão hoje especialmente ameaçados de se tornarem esquecidos ou distorcidos. É sempre necessário empreender de novo essa tarefa e certificarmo-nos do estado em que se encontram os impulsos dos quais as instituições recebem sua existência própria e pelos quais devem continuar a estruturar-se. Certamente, uma tal averiguação não teria sentido algum se a realidade que nos foi transmitida permanecesse vigente de forma imperturbável.

Ora, quem, como nós, está diante da estimulante tarefa não só da reconstrução, mas também da criação de novas universidades, tem a necessidade de identificar esse núcleo originário para implantá-lo nas novas fundações. Aqui, porém, levanta-se uma pergunta: será que esta necessidade é realmente percebida? Encontramos receptividade para ela? É o que realmente se quer?

Em todo caso, as novas fundações continuarão a receber o nome tradicional de universidades: quanto a isto não há divergências. Ora, este nome contém – como todo mundo sabe – uma palavra fundamental da linguagem humana: universum. E palavras fundamentais não podem sofrer alterações arbitrárias de sentido. Como pode o vocábulo universum, que se refere ao caráter de todo único e uno da realidade, de repente passar a significar algo de novo e diferente? Assim, é claro que também não depende do nosso gosto entender por universidade qualquer coisa, algo que não tivesse nada a ver com aquilo que expressa esta palavra fundamental[1].

De fato, por mais que em sua realidade concreta nossas universidades se diferenciem das escolas superiores da cristandade medieval (e nem se podia esperar outra coisa), mesmo assim elas realizam a mesma concepção fundamental que se exprime sob o nome de universitas: uma instituição que, de modo específico e singular, está relacionada com a totalidade do real, com o mundo como um todo.

 

De resto, as escolas de Paris, Oxford, Pádua, etc. – que desde o princípio do século XIII começaram a se chamar universidades – não se concebiam, de modo algum, como algo simplesmente novo, mas como herdeiras e continuadoras da escola do bosque de Academos, que o patriarca de todo o filosofar ocidental, Platão, fundara em Atenas um milênio e meio antes. Os historiadores não têm, parece-me, dado a devida atenção ao fato de que os grandes fundadores da cultura ocidental, pelo menos desde o grande mestre Alcuíno, constantemente invocam a Academia de Platão como modelo dos seus próprios projetos: estes fundadores consideram que o cultivo da sabedoria foi transplantado de Atenas para o meio dos francos.

Naturalmente, aqui este particular não é de maior interesse. Importante é, isto sim, que a própria fundação de Platão se autoconsiderava universitas, uma comunidade de ensino e aprendizagem formada por homens – é o que diz Sócrates na República (486 a) – “cuja alma se lança continuamente para atingir o todo e o universal, tanto divino quanto humano”.

 

II. A receptividade do espírito para a totalidade do mundo

Podemos agora falar da experiência fundamental que se encarnou e que tem permanecido por mais de dois mil anos nesta instituição da civilização ocidental européia: essa experiência que, só ela, é em última análise o fundamento da universidade e sua razão de ser.

Essa experiência tem por objeto, nada menos, a natureza do espírito humano. Para formulá-la, pode-se dizer o seguinte: o espírito por sua própria essência, refere-se ao todo da realidade; não é, no fundo, senão aquela capacidade de relacionamento que aponta para a universalidade do real; está capacitado e disposto a entrar em contato (e a manter este contato) com o “em si” de tudo que é. “Ter espírito”, ser “um ente dotado de espírito”, significa sobretudo ser capax universi, capaz de abarcar e de ser receptivo ao todo do mundo. Ao contrário do animal, que está encerrado num meio fragmentário, num “mundo circundante”, ter espírito significa existir face ao conjunto da realidade, vis-à-vis de l’univers.

Este pensamento tem sido repetido inúmeras vezes, desde os antigos até hoje: Aristóteles diz que a alma é, de certo modo, todas as coisas, anima est quodammodo omnia; S. Tomás de Aquino atribui ao espírito humano a potência natural de convenire cum omni ente, “ir junto”, entrar em positiva relação com qualquer ente; e Max Scheler fala de “abertura para o mundo” e de “posse-do-mundo” (Welt-haben); todos estes pensadores estão falando da mesma situação da realidade. Mas esta situação implica em algo mais: implica que um ente espiritual (e, portanto, também o homem) só realiza suas verdadeiras potencialidades quando divisa o todo da realidade e a ele se abre expressamente.

A educação daquilo que é própria e especificamente humano, ou, em outras palavras, a verdadeira formação do homem, somente se dá quando se põe em marcha esse confronto com o todo existente. Um homem verdadeiramente formado é alguém que sabe como se relacionar com o mundo como um todo, ainda que (e sobre isto ainda falaremos mais adiante) esse conhecimento da realidade seja imperfeito.

Na medida em que uma comunidade humana considere como plenas de sentido e necessárias, não só as instituições que têm por fim assegurar a existência do homem e atender “às necessidades da vida” (nas quais se incluem também as, sem dúvida indispensáveis, organizações de ensino especializado, técnico, de treinamento e instrução), mas também a “escola superior” em sentido pleno, verdadeiramente dirigida para o ideal de construir um lugar de formação que sirva para a educação daquilo que é propriamente humano; nessa mesma medida, essa comunidade considerará necessária uma instituição que tenha expressa e metodicamente por projeto o confronto do homem com o todo real.

Tal instituição é exatamente a universidade! O que faz com que a universidade seja universidade não é a ciência, mas… Mas o quê? Mas a resoluta orientação do pensamento para o universum, para a unidade do conjunto do real; o decidido e persistente esforço de abertura para o todo, que desde sempre tem sido designado e entendido como filosofar. Com esta tese – que traduz uma realidade complexa no mais alto grau e, infelizmente, não triunfalmente unívoca como talvez poderia parecer à primeira vista – encontramo-nos naturalmente situados no meio de uma polêmica. Antes de tomarmos nossa posição, porém, é necessário precisar um pouco melhor o que deve ser entendido por filosofia, filosofar e ciência.

Filosofar significa: dirigir o olhar a tudo aquilo que se nos depara e, num esforço de pensamento preciso e metodicamente disciplinado, suscitar a questão de seu significado último e fundamental. Alfred North Whitehead († 1947), o célebre filósofo da Universidade de Harvard, que foi ao mesmo tempo um dos fundadores da moderna Lógica Matemática (e em relação a quem, portanto, não se admite facilmente a suspeita de que não expressasse seu pensamento com suficiente precisão), afirmou em seus últimos anos de vida que a Filosofia simplesmente se ocupa da questão: What is all about? questão que indaga do todo e que quer saber o que o todo tem a ver com esta realidade concreta.

É, sem dúvida, uma questão bem simples, mas não passível de ser respondida definitivamente. Por outro lado, nenhuma ciência indaga: “o que o todo, afinal, tem a ver com esta realidade concreta?”. As ciências perguntam: qual é causa de tal doença; como se produziu tal evento histórico; de que tipo é a estrutura do átomo; e assim por diante. A ciência está constituída precisamente por estes saberes setoriais, que são gerados através de enunciados especializados, aspectos particulares sob os quais a realidade é considerada. As ciências existem, por assim dizer, por causa dos limites que as opõem uma às outras.

Quando um físico, enquanto físico, considera um corpo, não lhe interessam absolutamente os aspectos que são importantes para o químico ou para o biólogo. Já o filósofo, pelo contrário, mesmo quando focaliza uma realidade concreta (e naturalmente nem sempre fala, expressa e exclusivamente, do “mundo como um todo”), tanto faz que se trate de uma folha de papel, de mim mesmo ou de um de meus ouvintes, de um evento político, de um ato religioso ou da morte; o filósofo, dizia, busca responder as questões do tipo: o que é – sob toda a perspectiva de reflexão – “isto aqui”? (e, para fazê-lo, talvez nem mesmo precise estar claro o que são essas “perspectivas de reflexão” – mesmo isto continua em aberto).

O próprio Whitehead exprime a mesma idéia do seguinte modo: o problema filosófico é to conceive a complete fact, compreender plenamente, totalmente, de ponta a ponta uma realidade; completely, completamente. Dizia há pouco que nem sempre o filósofo pergunta expressamente pelo todo do mundo e devo fazer uma pequena correção: no mesmo instante em que procuro conhecer uma realidade completa (ou: conhecer completamente uma realidade), já não se trata tanto de uma realidade particular e especial. Neste mesmo instante, tenho que voltar-me para o todo da realidade, para a coesão global do real, não posso evitar de falar, por assim dizer, “de Deus e do mundo”.

Na medida em que me pergunto: “o que acontece na morte de um homem?” do ponto de vista fisiológico, isto é, enquanto cientista, só formulo um aspecto parcial; não me é necessário falar “de Deus e do mundo”; isto nem mesmo me é permitido: seria claramente procedimento não-científico. Mas, a partir do momento em que me pergunte o que acontece na morte de um homem, o que é a morte, não só do ponto de vista fisiológico, mas sob toda a “perspectiva de reflexão”, a partir desse momento em que interrogo filosoficamente, já estou falando da “coesão global” do mundo e da vida; não proceder assim seria simplesmente não-filosófico.

Ao indagar de modo verdadeiramente filosófico, o espírito humano abre-se sem reservas para o todo do ser, e é somente então que penetra em suas próprias possibilidades: dá-se aquele convenire cum omni ente que constitui sua natureza. E é precisamente esta convicção que se cristalizou e se encarnou na instituição ocidental da universidade. Daí se segue que não é tanto a ciência que dá a esta instituição sua marca específica, no que ela tem de decisivo, mas antes a viva relação com o mundo realizada por aquele que filosofa.

E também a pretensão de ser, no sentido antes indicado, “escola superior”, lugar de educação e formação daquilo que é verdadeira e profundamente humano; também essa pretensão somente se legitima através do confronto com o todo da realidade, que estimula a realização das potencialidades últimas do espírito.

 

III. O Papel das Ciências

Esta concepção, como se sabe, não é aceita pacificamente, e não é raro que se ouça o contrário, algo assim como o seguinte: certamente a tarefa essencial da universidade é, na pesquisa e no ensino, abarcar o todo da realidade, mas esta tarefa compete faticamente às diversas ciências particulares que dividem entre si o trabalho; o papel de estabelecer fins, antigamente atribuição da filosofia, foi totalmente assumido pelas ciências.

Por outro lado, é claro que não se pode expressar numa fórmula cabal “a totalidade do ser”. A pergunta pelo significado último e fundamental do modo e da existência mostra-se, por princípio, irrespondível, o que se situa fora do âmbito da ciência.

Modestamente críticas em relação a si mesmas, as ciências se limitam ao que pode ser conhecido com precisão, ao particular e, portanto, ao concreto. Por isso, elas alcançam resultados seguros e comprováveis e, acima de tudo, um progresso incontestável; efetivamente, a pesquisa científica tem atingido campos até então desconhecidos. Além disso, os resultados assim adquiridos podem ser frutuosamente traduzidos em aplicações práticas: a descoberta de novas fontes de energia, colheitas mais abundantes, melhores métodos de cura, maior rapidez nas comunicações, meios mais eficazes de defesa militar, etc.

Também o significado educativo de tudo isto é evidente: impele o homem à critica objetiva, a disciplinar todo devaneio especulativo descomprometido, à orientação para o serviço ao bem comum. Numa formulação resumida, a tese poderia enunciar-se assim: a universidade é primariamente um lugar das ciências e da colaboração entre elas; sua missão educativa consiste em ser, no dizer de Fichte, “uma escola da arte de usar cientificamente a inteligência”. Precisamente isto é o que faz dela uma universidade.

Tais teses são-nos bastante familiares e, à primeira vista, parecem totalmente plausíveis. Parece muito difícil, senão impossível, opor-lhes uma refutação convincente. No entanto, é precisamente isto que pretendo apresentar. Começo por concordar. É evidente que a universidade é essencialmente um lugar de ciência; ela não pode sequer ser imaginada de modo diferente. E é perfeitamente acertado dizer que é graças às ciências e só a elas que se dá o progresso no conhecimento tanto do cosmos quanto da realidade histórica do homem.

Como também é verdade que os resultados da pesquisa científica atingiram um grau incomparável de precisão e segurança. E mais: tais resultados, por sua natureza, são aplicáveis ao que é útil e prático e, no mais estrito sentido, vitalmente importantes (para milhões de homens a existência física só é possível graças à ciência). Finalmente, ninguém contestará que a atividade científica tem podido, de modo insubstituível, formar o homem, na medida em que ela, e só ela, leva sempre a clareza e à disciplina de pensamento, à objetividade, à sobriedade e à devida integridade.

É necessário, porém, especificar também as críticas. A justaposição espacial ou organizacional das ciências particulares é claramente insuficiente para revelar, a quem quer que seja, aquele universum, a realidade como um todo, com a qual a universidade tem – até pelo seu próprio nome – um compromisso. A própria universidade, enquanto instituição, não é um indivíduo, que “possa dirigir seu olhar para algo” ou considerar algo; para fazê-lo, é necessário o sujeito, o espírito singular, a pessoa. Só as pessoas que constituem a universidade podem realizar essa abertura para a totalidade de que estamos falando.

É necessário, pois, que os estudantes, por mais que se limitem a um aspecto parcialmente formado da realidade (aliás, pela sua própria disciplina científica), sejam postos em condições, sejam estimulados, continuamente provocados, compelidos pelo próprio espírito da instituição, a olhar de modo pessoal o todo do mundo e da existência. Ao se discutir, por exemplo, a questão da liberdade humana, não se deve considerá-la somente dos pontos de vista psicológico, biológico, jurídico, etc. mas “em si”, sob toda a “perspectiva de reflexão”. Ou o que “em si” é e o que deve ser a poesia; ou ainda, o que acontece realmente – para além da dimensão fisiológica ou puramente biográfica – na morte de um homem; e assim por diante.

Não há nenhuma outra forma de encarar a coesão global do existente e de ponderar a nossa experiência sobre isso. O que faz com que uma universidade seja uma universidade, é que ela é o núcleo, o reduto, a cidadela e o território livre preparados e permanentemente abertos, deliberadamente, por uma organização que específica e metodicamente visa esse objetivo. Quando isto não se dá, ela fracassa na sua missão essencial; desperdiça uma potencialidade que se encontra em nenhuma outra parte do mundo.

 

IV. A filosofia como centro da universidade

É claro que este revelar-se da realidade como um todo se dá necessariamente sob um outro signo que não o da ciência; como já foi dito, ocorre por meio da atitude de entrega filosófica em relação ao mundo. Acerca dessa diferença, preciso ainda fazer algumas observações concisas, não apenas para uma elucidação do papel da filosofia, como também para a justificação e defesa dela.

Primeiro ponto: É com razão que a ciência não se propõe questões irrespondíveis, ou então as deixa de lado assim que percebe com clareza que tal é a natureza delas. O filósofo, pelo contrário, não cessa de considerar e de discutir questões que, reconhecidamente, nunca poderão ser respondidas de uma forma definitiva. O que é, no fundo, conhecer? Podemos estar certos da imortalidade? O que significa ser real?

Para perguntas desse tipo, nunca se encontrará uma resposta que resolva plenamente a questão, uma resposta como aquela que diz que o bacilo de Koch é o agente da tuberculose pulmonar. Por que, então, insistir na pergunta? Resposta: por que o próprio ato de perguntar é, ainda, uma forma de ficar no encalço da realidade e estar sempre atento a ela; uma forma também de conservar, em face do todo, aquela receptividade que constitui a natureza do espírito.

Aquele que, por princípio, renuncia a discutir questões não suscetíveis de uma resposta exata, aquele que permanece simplesmente no âmbito da investigação especializada, já deixou de lado, não só como cientista, mas também como pessoa humana, a totalidade do real e renunciou à possibilidade de realizar-se plenamente. Isto pode perfeitamente ocorrer. Existe uma forma específica de estreiteza espiritual, para não dizer de servidão, que tem o seu fundamento estritamente na auto-limitação do espírito ao cientificamente cognoscível.

Segundo ponto: O trabalho das ciências consiste, por meio de um processo contínuo, em tornar claro o que até então era desconhecido. Todo conhecimento científico realmente revela novos saberes; todo conhecimento científico é um “progresso”. O sistema periódico dos elementos, a circulação do sangue, o modo de ação dos hormônios – todas estas verdades eram completamente ignoradas até o momento da sua descoberta.

Na reflexão filosófica, contudo, ocorre o seguinte: é muito provável que o problema se torne mais claro à medida que o filósofo mais e mais se deixe envolver por ele, verse a questão sobre a morte e a imortalidade, a liberdade, a culpa etc. Todavia, é claro que isto não implica a descoberta de algo que até então lhe era absolutamente desconhecido. O que ocorre é antes o esclarecer algo já sabido, porém mal sabido. Eis porque Platão compreendeu e designou o conhecimento filosófico como a recuperação de algo esquecido, como reminiscência.

Mas que sentido deve ter a reflexão sobre a totalidade da existência, se ela não revela nada de novo? A esta questão responde-se: ao homem não é necessário apenas ampliar seu saber acerca do mundo, mas talvez seja mais necessário ainda lembrar-se das verdades imutáveis e ser lembrado delas. E fazer isto de espírito inteiramente vigilante, sem fugir romanticamente da realidade, nada esquecendo ou desprezando do que, criticamente, sabemos sobre nós próprios e sobre o mundo.

Terceiro ponto: Diferentemente do que ocorre com o conhecimento científico, não se pode aplicar ou utilizar a consideração filosófica da realidade para garantir a existência ou prover as necessidades da vida; ela não é do tipo que, como Descartes proclamou, poderia pôr-nos em condições de nos tornarmos “senhores e possuidores da natureza” (maîtres et possesseurs de la nature). O mais importante, contudo, é o reverso da moeda: por natureza, o filosofar é “livre”; ele é um fazer pleno de sentido em si, não se prestando a fins estranhos ao seu próprio. Ele não é instrumentalizável.

O caráter prático da ciência, por outro lado, tem igualmente seu reverso: obrigatoriedade e ambivalência. Sabe-se que, entre os descobridores da energia atômica, havia alguns que procuravam evitar toda exploração técnica do invento. (A peça teatral de Dürrenmatt, “Os físicos”, mostra isso com clareza e de forma drástica). Essa espécie de ciência, essa espécie de saber, é aplicável por natureza; refere-se por natureza à aplicação e à utilização, e até mesmo a ambos: uso e mau uso.

Apenas com base em considerações outras, que transcendem o âmbito da física atômica, é possível avaliar até onde vai o limite dessa aplicação, em que ponto começa o mau uso. E também a provisão daquilo que de fato é útil para a vida pressupõe que se tem claro aquilo em que esta “vida” mesmo consiste, a vida verdadeiramente humana. Para isso, não basta a ciência, para isto é necessária a reflexão filosófica sobre a totalidade da vida.

Quarto ponto: Diz respeito ao poder educativo que a ciência, por um lado, e a filosofia, pelo outro, reivindicam. Com razão se diz que a ciência força seus cultores à objetividade de pensamento, ao senso do real, à sobriedade, à disciplina. Ninguém contestará que estas são virtudes intelectuais elevadas e imprescindíveis, cuja força se irradia amplamente para além do campo da atividade científica. Todavia, quando acontece de se dar um verdadeiro ato filosófico, ele marca o homem de forma incomparavelmente mais profunda do que a “educação pela ciência” pode ou pretendeu fazê-lo alguma vez.

Do filósofo que quer, acima de tudo, contemplar o seu objeto, exige-se muito mais. Sem dúvida, exige-se dele muito mais do que a objetividade de pensamento; ou seja, exige-se dele um olhar de profunda e franca ingenuidade, um ouvir em silêncio absoluto, um espírito simples, de uma simplicidade (simplicitas) que nada perturba, que alcança o íntimo da pessoa. O que importa, em filosofia, não é apenas possuir aptidões ou aplicar forças. O espírito se vê muito mais obrigado a realizar sua mais alta possibilidade enquanto ser, muito mais do que limitar-se a fazer o que pode; deve antes tornar-se o que é, a saber, a ter receptividade à totalidade do mundo.

 

V. Liberdade de juízo com relação a todo aspecto pensável

Soa muito pretensioso falar da abertura para o todo. Mas não se trata de uma exigência que se faz, e sim de uma exigência à qual nos expomos e a que nos submetemos. O que distingue o filosofar concerne, antes de mais nada, ao ter em vista a própria modéstia, do que a alguma espécie de “superioridade”. Concretamente falando, com isto não se quer dizer que a filosofia possua a totalidade em um sistema fechado de conhecimento cabal. Como se sabe, isto de modo algum é evidente.

Cito apenas os três grandes representantes do chamado “idealismo alemão” – Schelling, que chama a filosofia de “a ciência dos eternos arquétipos das coisas”; Hegel, que a compreende como “apreensão do absoluto”; e Fichte, que diz: “A filosofia antecipa a experiência total”. Nada é tão compreensível como o fato de as ciências empíricas, mesmo ao se apropriarem dos seus domínios, terem tido de recusar, como algo grotescamente descabido e pretensioso, a exigência de superioridade formulada pela filosofia, mormente quando esta a expôs claramente.

Na verdade, essa pretensiosa auto-afirmação, que continua até hoje, afeta a própria reorganização da universidade, já que é extremamente difícil desfazer o desacordo entre a ciência e a filosofia. Em contrapartida, é preciso remontar ao sentido original do nome philosophia, que tanto a Antigüidade como a Idade Média radicalmente aceitaram. Filosofia não significa precisamente a posse de um saber que abarca tudo e tudo compreende, e que nós chamamos sabedoria, mas a busca amorosa desse saber, de um lado interminável, mas do outro proveitosa.

O mundo e a própria existência também são assim: por um lado, são luminosos, translúcidos, cognoscíveis até os fundamentos; pelo outro, contudo, são inapreensíveis, inescrutáveis. Porque isto é assim, por esta razão é que o filósofo sempre continua na dependência de cada nova informação acessível sobre o seu objetivo, nunca definitivamente esclarecido; sempre continua a necessitar precisamente das novas informações descobertas pela ciência. Não lhe é permitido dizer: “a mim, interessa-me perguntar sobre o ser metafísico do homem, não sobre o que a psicologia, a fisiologia do cérebro, a pesquisa sobre o comportamento têm a dizer sobre o homem”.

Se o fizesse, no mesmo momento deixaria de filosofar seriamente, isto é, de considerar a realidade sob cada aspecto pensável. Precisamente isto, contudo, determina o posto da filosofia e constitui a sua dignidade. A reflexão filosófica sobre a realidade como um todo, como dissemos, é o núcleo plasmador da universidade; mas isto, por si só, justificaria a “exigência de superioridade” da filosofia? Que outro significado esta exigência poderia ter?

Significa que a filosofia, ainda que sempre na dependência de toda descoberta de todas as ciências, e a elas atenta, tem contudo de cuidar, ela sozinha, para que nem um único aspecto pensável da realidade seja minimizado, descurado, encoberto ou desprezado. Por outras palavras, a filosofia tem de cuidar para que a consideração do objeto na sua totalidade, isto é, “o fato completo”, seja aberta e assim permaneça.

Este compromisso com a abertura, que não pode fechar-se a nenhuma informação acessível, não importa de onde esta venha, esse compromisso traz ainda uma outra conseqüência. Em todo caso, a pergunta é inevitável: não se estenderia este compromisso também àquelas informações, oriundas não de nossa própria experiência e investigação, mas de esfera sobrehumana, de tradição sagrada, da revelação, de uma fala de Deus?

Não existe dúvida alguma de que os grandes iniciadores e fundadores da filosofia ocidental, não só Platão, mas também Aristóteles, trataram formalmente dessas informações sobrehumanas, e refletiram sobre elas. Precisamente isto dá aos diálogos platônicos e à metafísica aristotélica o sabor do existencial, em virtude do qual eles podem manter até hoje ativo o pensamento. Essa corajosa imparcialidade em relação à teologia é uma marca da filosofia antiga; ela se funda na convicção de que simplesmente não seria filosófico excluir, por princípio, qualquer informação possível sobre a realidade.

Pela mesma razão, não pode uma universidade sem teologia ser uma universidade no sentido pleno, se sob o nome “escola superior” se compreende aquela escola que exige a consideração da totalidade do mundo e da existência e a ela se obriga. O grande humanista do século XIX, John Henry Newman, expressou isto em uma frase um tanto agressiva: “University teaching without theology is simply unphilosophical”. A exclusão da teologia contraria o caráter da universidade como uma instituição filosófica.

Sem dúvida, é preciso dizer logo que é muito provável que venham, a teologia mesma e seu papel dentro da universidade, a ser mal compreendidos e isto, de modo algum, é uma simples possibilidade abstrata. Assim, a missão da teologia é cuidar de que toda a dimensão da realidade não seja esquecida, embora a teologia ocidental – por meio de seus grandes representantes -, sempre tenha compreendido que ela, para realizar a tarefa que lhe é própria, isto é, a interpretação da tradição sagrada, simplesmente tem necessidade de todas as contribuições do esforço cognoscente das ciências da natureza.

Até mesmo a palavra “serva”, palavra chocante, a que se liga a idéia segundo a qual as ciências teriam de servir à teologia, até esta palavra, mil vezes e até mesmo de ambos os lados mal interpretada, no fundo não significa outra coisa senão que a cooperação é indispensável. Apenas uma teologia que não se desvia desse inevitável e incômodo confronto com a investigação científica pode discernir, com superioridade, sua própria tarefa teológica[2].

Por exemplo, como poderia a teologia, de modo fidedigno, sem deixar de considerar todos os resultados da pesquisa sobre a evolução, dizer-nos qual é exatamente o verdadeiro significado, que não deve ser deixado de lado, da frase bíblica segundo a qual Deus criou o homem do barro da terra e lhe insuflou o fôlego da vida? O que isto significa? Está vivo ou não o confronto da teologia com a pesquisa científica? Eu me propus esta questão há pouco, durante alguns meses de exercício do magistério em universidades indianas.

Na Índia, onde a totalidade da vida é penetrada por impulsos religiosos, não existe na universidade teologia alguma; nem mesmo a universidade hindu de Benares, embora construída ao redor de um templo, tem uma cátedra de teologia de hinduísmo. E ficou-me muito claro que esta ausência é perigosa e plena de conseqüências inesperadas. O perigo não está apenas no fato de que, da forma mais natural, a teologia e a tradição religiosa caiam em descrédito e se tornem estéreis; pior do que isso, a elite intelectual de todo um povo corre o risco de alhear-se das verdadeiras origens de sua cultura.

Naturalmente, já não basta o mero fato de que a filosofia e a teologia sejam representados na universidade em faculdades próprias, como “especialidades”. Por certo, a implantação institucional é um pressuposto indispensável. Mas a particularidade da filosofia e da teologia está justamente em que elas, por natureza, não são “disciplinas especializadas”. Precisamente falando, ambas não se definem pelo fato de ocuparem uma área determinada, claramente demarcável.

Ao contrário, quase se poderia dizer que o ser que filosofa com seriedade não se interessa pela “especialidade” filosofia. O teólogo também enquanto exerce a atividade que lhe é pertinente, pode não ter como objetivo originário exercer a teologia na sua “pureza metódica”, embora ele também precise fazer isso. O problema da limitação temática do próprio campo teórico é, tanto para a filosofia quanto para a teologia, igualmente sem sentido; uma e outra, e apenas elas, dizem respeito à realidade como um todo. E justamente nisso reside o significado delas para a vida da universidade.

Muitas vezes foi dito, sem dúvida com razão, que é decisivo para a universidade a “cooperação entre as ciências”. Mas freqüentemente não se percebe que as especialidades científicas se constituem justamente pela delimitação de um aspecto parcial da realidade e que então esta cooperação pode tornar-se impossível de ser realizada a partir delas próprias. Esta é uma expectativa que, por princípio, não pode ser satisfeita.

Para tanto, é preciso um intermediário que promova esse encontro e compreensão, tarefa que as ciências não podem levar a cabo. Apenas a consideração filosófico-teológica da realidade é capaz disso. Apenas ela, desde que também não venha a ser exercida como simples disciplina especializada, pode tornar possível e manter o diálogo plural, exclusivamente no qual se estabelece e se legitima a verdadeira unidade da universidade.

 

VI. A capacidade de discussão

Nesse ponto, ousaria apresentar a única proposta concreta de organização com a qual eu tenho colaborado para a discussão sobre a renovação da universidade. Ela assim se formula: poderíamos reservar no plano de construção da universidade um lugar ao debate acadêmico, que transcenda as disciplinas e faculdades. É, provavelmente, um mal-entendido romântico pensar que a universidade medieval pura e simplesmente transmitiu aos seus estudantes uma visão de conjunto.

Todavia, houve nela a instituição regular da disputatio, que, por princípio, não recusava nenhum argumento e nenhum contendor, prática que obrigava, assim, à consideração temática sob um ângulo universal. Um homem como Tomás de Aquino parece ter considerado que precisamente o espírito da disputatio é o espírito da universidade. Naturalmente não tenho empenho algum em reintroduzir em nossas universidades os procedimentos formais da disputatio escolástica, embora não se devam menosprezar as regras formuladas; cito, por exemplo, aquela pequenina regra segundo a qual somente se poderia responder a uma objeção após tê-la repetido com as próprias palavras e ter o seu autor confirmado com precisão o que pensara.

Mas a questão em si é que, por trás do aspecto formal, da discussão cultivada com toda a agudeza de um confronto real, a disputatio era, todavia, um diálogo, e o ser um autêntico diálogo, que nela era decisivo, é hoje, para a universidade, mil vezes mais importante do que pode ter sido alguma vez para a universidade medieval. Na verdade, também não houve outrora possibilidade de oferecer um sistema global harmônico de interpretação do mundo. Não foi por acaso que a maior Summa do século XIII permaneceu incompleta.

Mas, para nós, logo se tornou impensável o projeto de uma Summa. A multiplicidade de nossos saberes sobre o mundo tornou-se tão imponderável que não nos é mais possível, de modo legítimo, fazer afirmações cabais e fechadas sobre o mundo. Mas a renúncia à conclusão de uma imagem definitiva da realidade de modo algum tem de significar também desespero agnóstico.

Esta expressa abstenção pode muito bem, pelo contrário, ter o sentido de justamente salvar, apesar de tudo, uma imagem unitária do mundo, e manter aberta uma perspectiva para o todo, o qual escapa a toda formulação. Contudo, esta abertura para a totalidade, como já foi dito, também não é realizável pelo simples fato de a universidade abrigar estas ciências especializadas. Ela se realiza sobretudo no espírito do sujeito singular, que, falando ou ouvindo, participa desse diálogo plural das disciplinas.

O que faz de alguém um verdadeiro professor universitário é esta capacidade de participação e, de resto, ainda, esta disposição para fazê-lo. Além de cientificamente qualificado, o professor deve poder reconhecer a relevância de seu próprio trabalho para a reflexão permanente sobre o todo; ele deve ser capaz de introduzir no diálogo filosófico esse conhecimento, sem generalização diletante ou apressada. Isto pressupõe, sem dúvida, alguma coisa a mais, isto é, que em caso de necessidade ele não se recuse a trazer para o debate as últimas posições.

O que no âmbito das ciências especializadas com razão não é permitido, não apenas por ser anti-científico como também por atentar contra a discrição acadêmica, justamente isto torna-se inevitável no diálogo filosófico, à medida que se trata de levar em conta expressamente o “fato completo” sob toda perspectiva de reflexão. É dispensável dizer expressamente que isto não deve significar um apoio a confissões particulares ou uma tolerância em relação a elas. O filosofar tem a sua própria forma de discrição. Contudo a mais resoluta simplicidade exige que o professor, como tal, se manifeste necessariamente, quando solicitado acerca do problema da coesão global do mundo.

Basta apenas formular, e já ficarão claras, as dificuldades e resistências com as quais quase seguramente é preciso contar nessa matéria. Em suas memórias, Fedor Stepun dá-nos um exemplo que ainda poderia ter um certo valor sintomático. Trata-se da preleção de Wilhelm Windelband, com quem era difícil estabelecer um relacionamento humano, porque ele era “um típico professor alemão de seu tempo, isto é, pesquisador e professor de uma disciplina científica”, enquanto ele próprio, Stepun, era “um típico jovem russo, que viera à Europa pala decifrar o enigma do mundo e da vida”.

Em certa ocasião verificou-se no seminário de Windelband uma calorosa discussão sobre o tema “liberdade e culpa”. O resultado do debate foi uma série de várias respostas possíveis, claramente não definitivas. Stepun reuniu, então, toda a sua coragem e perguntou ao professor qual, era a sua posição pessoal última. A resposta de Windelband, conta-nos Stepun, foi: “que ele naturalmente tinha uma resposta para a pergunta, mas que esta pertencia à sua metafísica particular, à sua fé pessoal, que não poderia ser transformada em objeto de um trabalho de seminário”. “Eu senti”, assim prosseguiu Stepun, “que era envolvido de todos os lados por uma malha de arame farpado de metodologias sutis, e que era impossível uma ruptura na esfera da verdade, que me torturava”.

Essa história, propícia à reflexão, é também característica, enquanto mostra que ninguém precisa realmente ficar apreensivo devido à eventual disponibilidade do estudante para uma reflexão sobre o todo. Desta perspectiva, o problema não são os alunos, mas os professores. Por isso, é preciso insistir em que o que exatamente está em consideração é o que faz da universidade uma universidade. “Como obter para a universidade cientistas de valor, que possam ser igualmente verdadeiros professores universitários?”

Seria pouco realista encerrar esta questão de outra forma que não com um problema em aberto, o qual, embora seja um entre muitos, é o mais urgente. Contudo, é também aquele que tem a menor possibilidade de ser resolvido a partir de “medidas administrativas”. Do quadro da situação empírica de nossas universidades de modo algum foi expressamente falado. Sabe-se que a crítica a respeito passou, entrementes, a integrar a conversação do cotidiano.

Meu interesse é outro, ou seja, desejo lembrar o critério sem o qual é absolutamente impossível uma crítica plena de sentido. Dessa maneira, falei da oportunidade que é oferecida à universidade desde as suas origens e que assim o creio, também hoje e no futuro continua aberta para ela. Mas a oportunidade, enquanto tal, por certo, tanto pode ser percebida e aproveitada, como também perdida e desperdiçada.

 

[1] O documento mais antigo em que se menciona a expressão Universitas é uma carta do Papa Inocêncio III para o Studium Generale Parisiensis.

[2] Philosophiae ancilla theologiae: melhor seria, então, philosophiae amicus theologiae?