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3º Seminário IFE/ACL: “Ética e Política” – 23/Maio – 14h00

Agenda | 13/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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3º SEMINÁRIO IFE CAMPINAS-A5-AMP-FB

Prezados e prezadas,

É com prazer que divulgamos oficialmente a programação e declaramos abertas as inscrições do 3º Seminário IFE Campinas em parceria com a ACL (Academia Campinense de Letras), com o tema “Ética e Política”. Como de costume, o seminário contará com duas palestras intermediadas por um coffee break. A entrada é franca, mas garanta sua vaga fazendo a inscrição. Informações:

Data: 23 de Maio de 2015, sábado | Horário: 14h00 | Local: ACL

PALESTRAS:

  • No contexto político brasileiro atual, ainda faz sentido falar de ‘ética na política’?

por Bolívar Lamounier (Sociólogo e Cientista Político brasileiro, com Ph.D. em Ciência Política pela University of California. Escreve freqüentemente para os mais importantes veículos de comunicação do País. Autor, dentre outros, do livro Profetas, Tribunos e Sacerdotes – Intelectuais e Ideologias no Século XX, publicado em 2014 pela Companhia das Letras).

  • A política na prática

por Luís Carlos Cândido Martins Sotero da Silva (Desembargador aposentado desde 2014, é também Mestre em Direito pela USP. Pela APAMAGIS (Associação Paulista de Magistrados) foi ganhador do prêmio “Edgard de Moura Bittencourt” por sua atuação como “Defensor do Estado Democrático de Direito”, reconhecimento que os Magistrados de São Paulo fazem por sua trajetória de vida dedicada à República, à Democracia e à Justiça (2009). Já atuou também como Juiz, Procurador e Conselheiro e participou como palestrante, expositor e coordenador em diversos eventos e congressos).

Mais informações do evento:

Local: ACL (Academia Campinense de Letras) – Rua Marechal Deodoro, 525, Centro, Campinas/SP

Realização: IFE CAMPINAS

Parceria: Academia Campinense de Letras

Apoio: ANUBRA e Fórum das Américas

Contamos com sua presença e divulgação para amigos e colegas.

INSCRIÇÕES:

As INSCRIÇÕES serão recebidas através deste link http://goo.gl/forms/QFL4Mm2eyI até às 14h00 (horário de Brasília) do dia 22/05/2015 A entrada é franca.

 

Cordialmente,

Guilherme Melo e João Toniolo

(organização)

 

Resumo sobre a concepção de ensino em Agostinho de Hipona (do livro “De Magistro”)*

Filosofia | 27/01/2015 | | IFE CAMPINAS

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Afresco entre 1464 e 1465 intitulado “St Augustine Teaching in Rome” (‘Santo Agostinho ensinando em Roma’), de Benozzo Gozzoli (1420–1497), atualmente na Apsidal Chapel, Sant’Agostino, San Gimignano (Itália).

Santo Agostinho, influenciado sobremaneira pela tradição platônica, faz a comum distinção encontrada em Platão entre conhecimento sensível e inteligível (De Magistro, XII, 40). Sem tal distinção, não conseguimos entender qual a relação entre conhecimento humano e Iluminação Divina, os dois elementos centrais da concepção filosófica de ensino e aprendizagem contida no De Magistro (“O Mestre”).

O diálogo se inicia perguntando pela finalidade da linguagem: “Que te parece que pretendemos fazer quando falamos?”, pergunta Agostinho a seu filho Adeodato. No decorrer do diálogo, ambos desenvolvem, a partir desta pergunta inicial, uma longa discussão acerca da linguagem e de sua relação com o ensino e o aprendizado, tanto em termos internos como em termos externos (inteligível e sensível).

No capítulo II, se discute se o homem mostra o significado das palavras só pelas palavras. No capítulo III, esta questão é aprofundada e se pergunta se é possível mostrar alguma coisa a outrem sem o emprego de um sinal:

AGOSTINHO: – Tens razão, confesso-o; porém se te perguntasse o significado destas três sílabas: “paries” (parede), não poderias tu mostrar-me com o dedo, de maneira que eu a visse, a coisa mesma de que é sinal esta palavra de três sílabas, demonstrando-a assim e indicando-a tu mesmo, sem usar palavra alguma? (De Mag., III, 5)

 Ao que se conclui, com as palavras de Adeodato: “Confesso que não se pode mostrar a coisa sem sinal, se, no momento em que a fazemos, somos interrogados” (De Mag., III, 6).

No capítulo IV, um dos maiores capítulos do De Magistro, se coloca se é possível os sinais se mostrarem por sinais. Diz Agostinho:

– Portanto, quando se discute sobre os sinais, resulta que se podem mostrar uns sinais pelos outros; mas quando se discute sobre as coisas que não são sinais, não se podem mostrar senão fazendo-o imediatamente após a pergunta – se for possível –, ou dando algum sinal pelo qual possam ser compreendidas (De Mag., IV, 7).

 Nos capítulos V e VI são postas as questões de sinais recíprocos e sinônimos. Pergunta Agostinho a seu filho: “(…) agora vê se é possível encontrar sinais que se signifiquem reciprocamente, de maneira que, assim como este significa aquele, também aquele signifique este” (De Mag., V, 11). Encontram, nesse sentido, por exemplo, “nome” e “palavra”.

O capítulo VII é um resumo de tudo o que se desenvolveu até aqui, feito por Adeodato. Agostinho o elogia por ter feito tão bom resumo.

Segundo Maria Leonor Xavier e António Soares Pinheiro, ela autora da introdução da edição portuguesa de “O Mestre” (De Magistro) e, ele, tradutor, respectivamente, esta obra pode ser dividida em duas partes. Os capítulos que até aqui percorremos brevemente se referem, então, à primeira parte, que eles denominam de “As palavras e os sinais”. A segunda, na qual agora vamos entrar, denominam “Os sinais, a realidade e O Mestre”.

Nessa parte, que começa no capítulo VIII, são discutidas as questões da importância desta discussão, isto é, se ela não é inútil (De Mag., VIII), se devemos preferir as coisas, ou o conhecimento delas em vez de seus sinais (De Mag., IX) e se é possível ensinar algo sem o uso de sinais (De Mag., X), além daquilo que agora vamos desenvolver, referente aos capítulos de XI a XIV (final do livro).

Para o filósofo, aprendemos algo não pelo poder das palavras, mas pelo conhecimento de seu significado e pelo contato com os objetos aos quais elas se referem (De Mag., XI), sejam eles exteriores ou interiores, isto é, sensíveis ou inteligíveis. Nesse sentido, o conhecimento é sensível quando se refere aos objetos que afetam os nossos cinco sentidos, como, por exemplo, quando conheço o cheiro de uma rosa ao levá-la próxima de meu rosto, tendo assim o conhecimento do cheiro da rosa através do olfato. Assim sendo, a minha aprendizagem de qual é o cheiro da rosa suceder-se-á mediante o contato sensível com a mesma. Se conheço o significado das palavras “cheiro da rosa” é porque, em algum momento, tive contato com o objeto “rosa”. Aprendo, portanto, conhecendo os objetos e não as palavras. De modo semelhante e ao mesmo tempo diferente, o conhecimento é inteligível quando se trata dos objetos que afetam nossa mente, o nosso interior – eis a diferença (De Mag., XII, 40), mas as palavras aqui também não nos ensinam – eis a semelhança.

Para o primeiro tipo, também chamado por Agostinho de carnal, seguindo assim a tradição judaico-cristã, o conhecimento é realizado mediante o contato direto ou indireto com os objetos. O filósofo não se utiliza desta terminologia, mas podemo-la inferir através de suas palavras quando nos afirma que o contato com objetos pode ser com eles presentemente a nós, isto é, quando estão diante dos nossos sentidos no momento em que os percebemos ou quando, através das palavras ouvidas, lidas etc., tomamos conhecimento de uma dada realidade que, embora não a tenhamos contemplada diretamente, conhecemos contudo os objetos nela referidos por estarem em nossa memória e, desse modo, imaginamos como é esta realidade (De Mag., XII, 40). Contudo, este conhecimento não é tão completo como o primeiro, pois há certas coisas que não temos em nossa memória e tampouco teremos condição de tê-las, como é o caso dos três jovens bíblicos na fornalha ardente, Ananias, Azarias e Misael. Agostinho afirma que, quando se ouve esta história, sabe -se o que é “fogo”, o que é “jovens”, “fornalha” etc., mas não se sabe exatamente o que/quem são os jovens nomeados, pois não os viu, nem os percebeu através dos sentidos (De Mag., XI, 37–8).

Nesse primeiro tipo, os professores ou mestres, através de suas falas ou livros, e referindo-se a objetos sensíveis, só ensinam a nós ao apresentar os objetos referidos, mas não apenas os aludindo com palavras. Moacyr Novaes, estudioso da obra de Agostinho, afirma:

Mas se a coisa mesma não for vista, apreendida, não há conhecimento. Por quê? Porque só ensina aquele que apresenta a coisa mesma. Esta é a exigência para reconhecer alguém que ensine: é preciso que esse alguém apresente aos sentidos ou à mente aquilo que se quer conhecer (Novaes, 2007, pp.78–9).

Para o segundo tipo, o inteligível, também chamado de espiritual, o conhecimento realiza-se também mediante o contato direto ou indireto com os objetos, mas estes são interiores, como já referimos há pouco. Porém, aqui não há mestres que nos ensinam, pois nenhum ser humano é capaz de apresentar objetos interiores ao nosso interior, mas, de acordo com Agostinho, somente um Mestre, Jesus Cristo que, como diz São Paulo aos Efésios (3, 16–7), habita no homem interior. O processo de conhecimento e aprendizagem no domínio interno é semelhante ao externo, mas quem ensinará, quem apresentará estes objetos a nós de maneira clara e distinta e dizer se são verdadeiros ou falsos, será Cristo, este Mestre interior. Sendo assim, se nos é apresentado exteriormente através de palavras algo que se refere ao domínio interior, a aprendizagem e o conhecimento só se realizarão mediante o significado destas palavras e mediante o contato com estes objetos, que só serão possíveis de serem contemplados pela Luz Interior que é Cristo, que, habitando o interior do homem, ilumina sua alma. Aqui, portanto, está a relação entre conhecimento humano e Luz Divina. A Luz Divina está para o conhecimento humano na medida em que este pertence ao domínio interno do Homem, só podendo ser válido e verdadeiro na presença da Luz de Cristo. E, como diz Agostinho, “se às vezes há enganos, isto não acontece por erro da verdade consultada, como não é por erro da luz externa que os olhos, volta e meia, se enganam” (De Mag., XI).

Esta é, portanto, resumidamente, a posição de Santo Agostinho a respeito do ensino, da aprendizagem e do papel da linguagem neste processo.

NOTA

* Este texto é parte de um trabalho que apresentei na disciplina de Estágio Supervisionado II (necessária para o grau de Licenciatura em Filosofia), enquanto cursava a graduação de Filosofia na Unicamp, em meados de 2011.

BIBLIOGRAFIA

AGOSTINHO, Santo. De Magistro. Tradução de Angelo Ricci. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

______. O Mestre. Introdução e comentários de Maria Leonor Xavier. Tradução de António Soares Pinto. Porto: Porto Editora, 1995.

NOVAES FILHO, Moacyr Ayres. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial, 2007.

Breve estudo da moralidade de Diderot a partir d’“O Sobrinho de Rameau”[1]

Filosofia | 09/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Félicien Rops. “Le vice suprême”, 1884.

Félicien Rops. “Le vice suprême”, 1884.

 

Neste breve estudo mostro algumas fragilidades da moralidade de Denis Dirderot (1713-1784), incluindo paradoxos dela mesma, partindo de uma obra romanesca dele, “O Sobrinho de Rameau”, escrito entre 1762 e 1773. Diderot, além de filósofo, foi também escritor. Jean-Philippe Rameau foi um importante compositor do período Barroco Rococó. Diderot usa o sobrinhho deste músico como personagem no romance, que se dá entre ele e um “Eu”. Vamos ao texto.

***

Na disciplina de “Tópicos Especiais de Estética III” que cursei em 2011, ministrada pelo Prof. Dr. Roberto Romano, foram vistos os aspectos estéticos que podem ser extraídos da obra O Sobrinho de Rameau. Meditamos, longamente inclusive, em aspectos políticos a ela relacionados, como a questão do favor e da lisonja. Como foi visto também, a obra é rica em termos de conteúdo, assuntos, imagens e variadas referências a que se reporta, a começar, e principalmente, pela música. À parte a questão estética, uma questão que não escapa da obra é a moral. Franklin de Mattos, citando Georges May, escreve em A cadeia secreta:

Georges May examinou certa vez as causas e os efeitos do desprestígio do romance nos séculos XVII e XIII. As reservas então formuladas eram fundamentalmente de dois tipos: estéticas e morais. A acusação de imoralismo transparece na suspeita de que o romance constitui uma ameaça para os costumes, e deve-se principalmente à predominância que confere ao tema do amor. A idéia surge, por exemplo, em Diderot, que associa ao gênero a um passatempo ilícito (“perigoso para os costumes”, dirá o autor do Elogio de Richardson) (Mattos, 2004, p. 17).

Moral em pelo menos dois sentidos: primeiro, porque vários aspectos da obra tocam na moralidade. E segundo, porque o próprio Diderot – segundo Mattos – chamou suas obras “romanescas” de “contos morais” (Ibid., p. 33). De fato, como se pode observar na diversificada bibliografia disponível sobre Diderot, sempre encontramos um estudo inteiro, capítulo ou alguma referência à moral do filósofo, como em Schmitt (Diderot, ou la philosophie de la séduction, Albin Michel, 1997) e Lefebvre (Diderot, capítulo 4, parte A, “Hier et Aujourd’hui”, 1949), para citar apenas dois exemplos.

Feitas estas considerações, nosso interesse pelo Sobrinho é a moralidade. Mas em que sentido abordamos a moralidade da obra? Olhamos para seu aspecto intrínseco ou extrínseco, isto é, pela moralidade embutida na obra em si mesma (a devassidão de Rameau, p.ex.) ou a moralidade que o autor quis transmitir com a obra (que pretendia Diderot, em termos morais, com o Sobrinho)? Podemos ir pelos dois caminhos, sendo talvez mais fácil o primeiro. Mas este primeiro sentido é bastante patente na leitura do diálogo: todos que o lêem percebem a imoralidade de Rameau, das primeiras às últimas páginas, bem como, e até mesmo, um certo consentimento imoral do filósofo que com ele dialoga. Por outro lado, contrariamente, o que não fica tão patente na obra é seu aspecto moral extrínseco. Por essa razão, nosso interesse é versar sobre este aspecto, tentando deixá-lo com certa clareza.

Contudo, sabemos que isso é de grande dificuldade para ser realizado em um trabalho pequeno como este, mas nossa intenção aqui, por termos consciência da dificuldade, não é alcançar o estado da questão do problema, nem chegar a um ponto final. É – como foi dito – tentar deixá-lo com certa clareza, de modo a explorar um pouco mais a temática pretendida.

A bibliografia sobre Diderot, como pude observar nas breves pesquisas que fiz, é enorme. Citemos como exemplo o nome de alguns estudiosos, como Roger Kempf, Jacob Guinsburg, Eric-Emmanuel Schmitt, Pierre Lepape, Yves Benot, Henri Lefevbre, Roberto Romano, a grande maioria escrevendo no século passado, mas também trabalhos muito recentes, como os de Franklin de Mattos (A cadeia secreta, Cosac&Naify, 2004) e James Fowler, editando o New Essays on Diderot (Cambridge U.P., 2011), que parece oferecer o status quaestionis das discussões atuais.

Para nortear nosso trabalho, os volumes que usaremos são os que conseguimos disponíveis na biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, ou na Internet.

***

O trecho que citamos acima de Franklin de Mattos encontra-se no primeiro capítulo do referido livro, A cadeia secreta, e se chama “Três romancistas tardios: Voltaire, Rousseau, Diderot”. Nele, Mattos mostra como esses autores, num primeiro momento, não viam o gênero do romance com bons olhos, mas como algo ignóbil, sem muita relevância. Com o passar do tempo, porém, tornaram-se importantes romancistas de sua época e da literatura universal – até mesmo Rousseau, que antes criticava com vigor o gênero. Voltaire os classificava como “bagatelas filosóficas” e depois escreveu seu consagrado Cândido. Rousseau os considerava como “miseráveis” e, paradoxalmente enquanto os critica, parte de A nova Heloísa estava redigida, que posteriormente se consagrou, embora Rousseau (com suas contradições pessoais que muitos de nós conhecemos), depois de sua publicação, ainda mantinha reserva quanto aos romances, e aquilo que escrevia não se destinava a todos os tipos de leitores (Mattos, 2004, pp. 17-32). Já o caso de Diderot, segundo Franklin de Mattos,

é certamente mais simples; não apresentava nem o caráter tortuoso do exemplo de Voltaire, nem tampouco o páthos de Rousseau, mas revela a mesma adesão tardia ao gênero romanesco. Com efeito, ao considerar a trajetória de Diderot como homem de letras, constatamos que, a partir de 1760, torna-se cada vez maior o interesse do filósofo pelas formas narrativas. Se antes dessa data ele se ocupara apenas episodicamente do conto ou do romance (…), depois de 1760 as coisas mudam muito de figura (Mattos, 2004, p. 33).

Citamos estes pontos apenas para dar um panorama do texto de Mattos, mas o que nos interessa nele sobretudo é: o que Diderot pensava a respeito do romance? Como ele encarava esse tipo de escrita na qual estava incluso O Sobrinho de Rameau?

Diderot citado em Mattos (2004, p. 21) diz o seguinte:

Uma obra será romanesca, se o maravilhoso nascer da simultaneidade dos acontecimentos: se nela os deuses e os homens forem bons ou maus em demasia; se as coisas e os caracteres diferirem demais daquilo que nos é mostrado pela experiência e pela história; e principalmente se o encadeamento dos acontecimentos for extraordinário e complicado demais.

Chega a ser difícil não pensar no Sobrinho com esta definição do próprio autor. Não vemos no Sobrinho uma simultaneidade de acontecimentos quando Rameau faz suas pantomimas? A imoralidade de Rameau não é demasiada? Essa definição também lembra o modo como Romano aborda o Sobrinho em seu Silêncio e ruído, de 1996, quando fala do palavrório, da incomunicabilidade, da falta de sentido, do caos, da multiplicidade e do uno etc. (Romano, 1996, cap. 5, p. 131).

Outro ponto que Mattos observa é que em Diderot “o romance é tratado satiricamente como uma espécie de remédio de efeitos paradoxais” (Mattos, 2004, p. 20). Mas o que mais nos interessa – a moralidade – é quando Franklin diz que Diderot classifica seus escritos desse tipo não como romances ou sátiras, mas como “contos morais” (Ibid., p. 33). Isso mostra, com pouca ou nenhuma dúvida, que Diderot tinha um objetivo moral em seus romances, e isso não escaparia ao Sobrinho de Rameau.

Especificamente no caso moral, um trabalho de relevância é a comunicação de M. Lester G. Crocker no XII Congrès de L’Association [12º Congresso da Associação] em 26 de julho de 1960, intitulado “Le Neveu de Rameau: Une Experience Morale” [O Sobrinho de Rameau: Uma Experiência Moral]. Para Crocker,

Ce sont ses préoccupations morales qui donnent à tous les romans et dialogues de Diderot leur direction particulière. En effet, ils sont tous conçus (ses indiscrétions juvéniles mises à part) comme si Diderot suivait sa propre méthodologie scientifique, c’est-à-dire comme des expériences; et leur but est d’explorer la nature et la qualité de l’expérience morale humaine (Crocker, 1960, p. 133).

Ademais, esse grupo de escritos no qual se encontra O Sobrinho de Rameau

se caractérise par une méthode et une intention communes. L’intention, nous l’avons déjà dit, est d’explorer la nature et les possibilités de la vie morale; elle est aussi de mettre à l’épreuve les spéculations matérialistes de Diderot en les concrétisant sous forme de caractères, de problèmes, d’action (Ibid., p. 134).[2]

Crocker diz ainda que esses escritos são um eco, ou uma adaptação das teorias de metologia científica do filósofo, justamente porque tocam na experiência (Ibid., p. 134). Para estas afirmações, Crocker se baseia de modo especial nos Pensées sur l’interprétation de la nature, na qual encontra pontos que revelam uma justificativa para esta possibilidade da experiência moral:

Les expériences doivent être répétées pour le détail des circons tances et pour la connaissance des limites. Il faut les transporter à des objets différents, les compliquer, les combiner de toutes les manières possibles (Diderot, Pensées, XLIV)

Ou seja, para uma verdadeira experiência moral, é preciso “conhecer os limites” e combinar os objetos de “todas as maneiras possíveis”. Partindo dessas observações, é exatamente o que vemos no Sobrinho: altos e baixos, subidas e descidas, agudos e graves, múltiplas maneiras, em duas palavras, os extremos, os limites. Ainda segundo Crocker (1960, p. 135), diferentemente de Jacques, o fatalista, onde as experiências extremas estão separadas, “la première, dans les personnages de Jacques et de son maître; la seconde, dans les divers contes que Diderot tisse dans l’histoire des personnages principaux”, no Sobrinho essas experiências estão num mesmo personagem, no Ele, em Jean-François Rameau.

Mas e nossa pergunta inicial? Que Diderot pretende, em termos morais, com O Sobrinho? Antes de tentarmos respondê-la, é interessante vermos uma observação que Crocker faz:

Cependant, Diderot est un grand maître de l’art du dialogue. En quoi consiste cet art ? Il consiste — pour ne pas parler du style — en la capacité de l’auteur de donner une force presque égale aux antagonistes, de sorte que le lecteur n’est pas sûr avant la fin de quel côté penche l’auteur, ou peut-être ne l’est-il jamais. C’est justement le cas du Neveu de Rameau, grâce à l’art que Diderot possède au plus haut degré. Par conséquent, que ce soit ou non l’intention originelle de Diderot, Moi devient à son tour le sujet d’une expérience secondaire ; en tant qu’adversaire de Lui, il est éprouvé dans cette confrontation d’attitudes et d’idées. Moi, l’antagoniste, représente la respectabilité conventionnelle. Il affirme la validité, voire la nécessité, de ces notions morales développées par sa culture au nom d’un idéal qui revendique des restrictions aux demandes instinctives de l’égo, demandes qui ne s’expriment qu’au détriment de ce bien général qu’il faut favoriser si l’on veut préserver la société civilisée. Dans la joute qui s’engage, Lui sera donc le corrosif des valeurs acceptées, Moi le critique de l’anarchisme moral (Crocker, 1960, p. 138).

De fato, numa leitura leve do Sobrinho parece mesmo difícil decidir de que lado está o autor no diálogo. Como o próprio professor Romano sublinhou no curso acima referido, muitos pensam que o “Eu” no diálogo é Diderot, mas isso não corresponde à realidade, pois não há uma sobreposição exata entre o “Eu” e o Diderot concreto. Outro ponto que Crocker coloca no trecho acima é que “Moi, l’antagoniste, représente la respectabilité conventionnelle. Il affirme la validité, voire la necessite”. Discordamos desta afirmação. Apesar de na maioria do tempo o “Eu” representar a moralidade, a contrariedade da anarquia moral, há certos momentos em que esse mesmo “Eu” consente e concorda com o “Ele” em suas imoralidades. É o caso, por exemplo, de quando Rameau conta ao filósofo seus roubos e ainda afirma que roubava sem remorso. À descrição e à explicação que Rameau dá de ter roubado sem remorso, o filósofo responde que admira aquilo que Rameau lhe diz, que é imoral. Quando Rameau coloca o ouro, a fortuna, como um deus – e inclusive louva vícios a isso associados –, o “Eu” responde: “Não poderia ser melhor (…)”. Na resposta seguinte do “Eu” vê-se também certo consentimento com algo corrutível ou corruptor:

Apesar dessas considerações tão corajosas e sensatas, continuo achando que o melhor seria fazer dele um músico. Não conheço meio mais rápido para se aproximar dos grandes, para melhor servir aos vícios deles e tirar proveito dos seus próprios.

Com esses exemplos, queremos ilustrar que a moralidade do “Eu” não é verdadeiramente exemplar, não é perfeita, nem unívoca.

Com relação à nossa pergunta principal, Crocker acredita – segundo lhe parece – que se Rameau vive uma vida moral a seu modo, e isso não lhe traz remorso, nesse sentido Diderot concluiria que isso não trai a natureza humana em tudo:

Mener une vie morale, n’est-ce pas trahir la nature humaine tout court, semble conclure Diderot, dans son portrait de Lui. Certes, la morale conventionnelle, qui à la fois protège et limite les médiocres, contrecarre leurs vrais désirs (Cocker, 1960, p. 150).

Aprofundando a questão e concluindo seu estudo sobre a moral no Sobrinho, Crocker sublinha dois pontos. O primeiro é o caráter niilista de Rameau, que, não se importando com os outros, busca sua própria satisfação. O segundo é uma libido dominandi, um desejo, um sentimento que determina grande parte das pantomimas (Crocker, 1960, pp. 151-153).

Crocker admite que a questão da moralidade na obra de Diderot é complexa e não admite reducionismos, mas afirma que, “comme Diderot devait l’affirmer dans ses dialogues philosophiques, que vice et vertu n’existent pas ; comme les matérialistes le disaient à propos de la question du mal, c’est un point de vue subjectif, déterminé par l’intérêt” (Crocker, 1960, p. 152).

Observadas as questões acima colocadas, a imoralidade para Diderot não seria algo condenável. A moral tradicional, comum, poderia ser mantida em convivência com a incomum, com a imoral, e o que ele estaria tentando mostrar com O Sobrinho de Rameau, em termos morais, é justamente isso. Por esses termos, a hipótese mostra-se ao menos razoável, mas podemos ainda evocar outros elementos que a corroboram.

Essa moralidade contrária à tradicional, segundo Crocker, é a base da moral do interesse, principal solução dos filósofos humanistas e da qual Diderot se serve muito, e notavelmente numa passagem célebre da Refutação de Helvetius (Oevres, II, 35-5).

Uma evidência da própria obra: o personagem que encara a moral comum, o “Eu”, quase não fala no diálogo. A grande maioria das falas vem de Rameau, do devasso. Se Diderot estivesse interessado em transmitir a moral tradicional, aquela de que a virtude é a fonte da felicidade e o vício o seu contrário, certamente daria bem mais espaço, e bem mais explicações, fundamentações e argumentos da parte do “Eu”. Diante de tanto falatório, o “Eu” não tem vez. Você quase não o acompanha – ele se perde no meio das palavras de Rameau. Se, como o próprio Diderot afirma, esse tipo de literatura é de alguma forma diversão, o que traz uma diversão proeminentemente imoral senão a própria imoralidade? Não faz sentido pensar que Diderot esteja contra a moralidade do sobrinho.

Pode-se ainda pensar em outra hipótese, a de que Diderot estaria fazendo um l’art pour l’art, mostrando a realidade nua e crua do homem. Mesmo assim, vendo que ele toca sem receio os extremos da imoralidade e em demasia, ele se mostra, no mínimo, como alguém que não está preocupado com a moralidade comum. Mas, para não restar dúvidas, tomemos um exemplo muito claro do próprio Diderot citado por Henri Lefebvre (1949, p. 278):

J’ai vu de savant sythèmes, j’ai vu de gros livres écrits sur l’origine du mal, et je n’ai vu que des rêveries. Le mal tient au bien meme ; on ne pourrait ôter l’un sans l’autre ; et ils sont tous deux leur source dans le memes causes. C’est des lois données à la matière, lesquelles entretienent le mouvement et la vie dans l’univers, qui derivens les desordres physiques, les volcans, les treblements de terre, les tempêtes, etc. C’est de la sensibilité, source de tous nos plaisirs, que resulte la douleur. Quant au mal moral, qui n’est autre que le vice ou la préférence de soi aux autres, il est un effet nécessaire de cert amour-propre, si essentiel à notre conservation, et contre lequel tant de faux raisonneurs ont déclamé. Pour qu’il n’y ait point de vices sur la terre, c’est aux législaterus à faire que les hommes n’y trouvent aucun intérêt (Note, Assézat, II, 85).

Portanto, do ponto de vista da moralidade comum, Diderot é imoral. Mais do que isso. Observando com atenção a passagem acima, Diderot mostra-se um relativista, algo que condiz completamente com as conclusões de Crocker, de que a moralidade nesse sentido é subjetiva.

Mas como pode um filósofo se dizer ilustrado, propor algo para os homens de letras e até para a sociedade (como foi visto na disciplina), adotar uma posição filosófica relativista e não enxergar a contradição na qual se encontra com estas mesmas posições? Isto é, se ele não acredita que há uma moralidade objetiva, por que se preocupa com as luzes, com o esclarecimento, algo que considera como digno e bom e que lhe custou décadas de trabalho? Como pode Diderot se colocar como um ilustrado ao mesmo tempo em que mente sobre Rousseau, sobre suas convicções, suas obras e várias outras questões que mostram sua incoerência entre atos e palavras? (Cf. Benot, 1970, cap. 2, pp. 24-39).

O “como”, o que motivou Diderot não o sabemos. Talvez o encontremos nas obras completas, uma declaração, correspondência, enfim, ou jamais saberemos. O que sabemos, contudo, pela breve investigação que fizemos, apoiando-nos inclusive nos originais, é que O Sobrinho de Rameau é um dos ramos de aplicação da filosofia de Diderot, e que ele claramente se coloca contra a moralidade comum e adere a um tipo de relativismo. Nesse sentido, consideramo-lo um moralista da imoralidade.

Sabemos, pela História e pela lição de Richard M. Weaver (1984), que idéias têm conseqüências. Porque não estudamos este ponto, não sabemos se de fato (ou até que ponto) o pensamento de Diderot influenciou a Revolução Francesa e outros movimentos modernos de desordem, violência, libertinagem ou caos social. Mas podemos fazer uma legítima pergunta: se idéias têm conseqüências, e, portanto, tem o poder de moldar as pessoas, a sociedade, o curso das coisas etc., as idéias do ilustrado Diderot são de fato benéficas para o homem e para a sociedade? É sustentável sua moralidade imoral ou seu relativismo?

Com a filosofia e com as pesquisas históricas que se sucederam à modernidade em que Diderot estava inserido, e que encontram lugar na época contemporânea, a resposta é certamente não. Para desenvolvermos esta resposta, seria necessário pelo menos o dobro do tamanho deste trabalho, o que não é viável para a ocasião, mas fiquemos com algumas indicações do caminho desta resposta.

O relativismo, em suas diversas formas, já foi amplamente refutado, por diversos estudiosos e filósofos do século XX. Em termos históricos, um dos estudos mais relevantes é o A Treasury of Traditional Wisdom, de Whitall N. Perry, uma enciclopédia que mostra, entre outros, a comum unidade de valores entre os homens dos mais diferentes tempos e lugares. Em termos filosóficos, temos Insight: a study of human understanding, do filósofo canadense Bernard Lonergan, uma obra de quase 800 páginas que nos faz compreender por que compreendemos e, nesse processo, toca na questão do relativismo num determinado ponto e o refuta em contraste com as demonstrações cognitivas e epistemológicas (Insight, Cap. 11). Em termos filosóficos e históricos ao mesmo tempo, os cinco volumes do Order and History de Eric Voegelin. Obras menores, mas que dão conta do problema de forma suficiente, são: A Abolição do Homem, de C.S. Lewis que, além de escritor, foi um notável pensador; e A Refutation of Moral Relativism, do filósofo americano vivo e atuante, Peter Kreeft. E entre vários outros, apenas mais um, em termos antropológicos: Verità o fede debole?, um debate entre o antropólogo e filósofo francês René Girard e o filósofo italiano Gianni Vattimo; e, por extensão, todas as obras de René Girard.

Nos termos morais sobre os quais discorremos, do ponto de vista do benefício da filosofia de Diderot nesse sentido (afinal, para que fazer filosofia senão para trazer benefícios?, do contrário estaríamos nos alinhando com filosofias a favor de um Führer), não podemos admitir que uma proposta relativista seja benéfica, porque em termos concretos isso não é viável no que se refere à ordem do corpo social. Se não há um reconhecimento comum dos valores humanos (e esse reconhecimento é possível, basta, por exemplo, A Abolição do Homem de Lewis ou o Natural Right and History de Leo Strauss) – valores esses que começam no princípio da responsabilidade, na preservação da vida, na caridade (sem boa sociabilidade não há comunidade alguma), entre vários outros valores comuns que encontramos muito bem demonstrados e fundamentados nas obras acima –, eu dizia, se não há um reconhecimento desses valores, do direito natural dos clássicos, qualquer moralidade se torna possível, da moralidade de Rameau à moralidade de Hitler e Stálin. Admitindo o relativismo de Diderot, qualquer moralidade que se torna possível acaba por tornar possível a ascensão de coisas que nenhum de nós deseja: totalitarismos, ditaduras, opressão e injustiça. E isto não é teoria ou devaneio, é História.

 

REFERÊNCIAS

BENOT, Yves. Diderot: de l’athéisme à l’anticolonialisme. Paris: François Maspero, 1970.

CHERNI, Amor. Diderot. L’ordre et le devenir. Paris: Droz, 2002.

CROCKER, Lester G. « Le Neveu de Rameau », une expérience morale. In: Cahiers de l’Association internationale des études francaises, 1961, N°13. pp. 133-155.

DIDEROT, Denis. O Sobrinho de Rameau. Tradução: Bruno Costa. São Paulo: Hedra, 2007.

_______. Oeuvres complètes de Diderot. Tome 20 (Correspondance Générale II, Appendices, Table Générale et Analytique). Paris: Garnier Frères, Libraires-Éditerus, 1877 (reimpressão por Kraus Reprint Ltd. Em 1966).

LEFEBVRE, Henri. Diderot. Paris: Hier et Aujourd’hui, 1949.

ROMANO, Roberto. Silêncio e ruído: a sátira em Denis Diderot. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.

WEAVER, Richard M. Ideas have consequences. 2ª ed. Chicago and London: The University Of Chicago Press, 1984.

 

NOTAS:

[1] A primeira versão deste texto foi apresentada como “Trabalho Final” na disciplina de Tópicos Especiais de Estética III no 1º semestre de 2011, ministrada pelo docente Prof. Dr. Roberto Romano, IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas), UNICAMP, durante meu curso de Graduação em Filosofia. Tendo o trabalho sido bem avaliado, foi elaborada uma segunda e aprimorada versão que foi apresentada no VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP, no dia 15 de maio de 2012, na sessão de comunicação oral, na mesa-redonda de Filosofia Moderna I, com moderação de João Antonio de Moraes, sala 49. A terceira e atual versão (Dezembro de 2014) contém apenas alguns ajustes para publicação no site IFE Campinas.

[2] É bom salientar: Crocker adiante diverge claramente de Georges May (cit. em Mattos, 2004, p. 20), que acredita na inverosimilhança desses escritos, chamando-os de romanescos. Diz Crocker: “Si je dis « trouvaille » c’est que, dans tous ces écrits, les personnages et les intrigues ne sont fictives qu’en partie; ils sont tirés de personnes et d’événements de la vie réelle — ce qui confirme le fait que le but de Diderot est de soumettre la théorie à l’épreuve de la vie, et d’évaluer la vie par la théorie” (Crocker, 1960, p. 134, grifo nosso).

João Toniolo é graduado e licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), mestrando por esta mesma universidade e gestor de Núcleo de Filosofia do IFE Campinas.

Étienne Gilson e a metafísica contemporânea

Filosofia | 28/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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Gilson-Ilustra-MoraesHá quem pense que o historiador da filosofia francês, Étienne Gilson, que escreveu obras como A Filosofia na Idade Média, O espírito da filosofia medieval, Heloísa e Abelardo e ainda Introdução ao estudo de Santo Agostinho, seja apenas o autor dessas obras que estão acessíveis em português a todos. Mas a obra de Gilson é vasta, compreendendo mais de 50 títulos, de modo que o que conhecemos dele em português é muito pouco. Embora haja outros livros dele publicados mais recentemente em português, como Introdução às artes do belo e O Filósofo e a Teologia, poucos conhecem um de seus textos como filósofo (e não como historiador da filosofia), que ainda não recebeu tradução, o The unity of philosophical experience, e que é comentado pelo texto a seguir.

O texto que segue é de Renato Moraes, publicado na seção da revista-livro Dicta&Contradicta  4, “O LANÇAMENTO QUE NÃO HOUVE”, dedicada a livros como esse: importantes mas que não receberam tradução no Brasil. No texto, Moraes trata não apenas do livro filosófico de Gilson, mas também do tomismo e da metafísica contemporânea. É um bom texto para se introduzir em um pouco daquilo que Gilson explorou como pesquisador e também realizou como filósofo. Ao final, coloco um anexo com uma lista atualizadas de obras de Gilson traduzidas para o português e outra lista com obras dele em francês e em inglês pouco conhecidas.

Boa leitura!

***

Quero minha metafísica de volta! – por Renato José de Moraes

Com o perigo de sermos da espécie de ensaísta que, para falar de qualquer coisa, tem que começar com Adão e Eva, antes de tratar de The unity of philosophical experience, de Étienne Gilson, parece-nos importante comentar sobre aceitação da filosofia de São Tomás de Aquino na Idade Média e na Idade Moderna, bem como sobre o surgimento da neoescolástica, no final do século XIX. Assim, será possível contextualizar melhor a importância do nosso autor e do livro cujolançamento não houve.

A filosofia tomista aos trancos e barrancos

A trajetória do pensamento de Tomás de Aquino (1225?-1274) na história da filosofia é acidentada. Estando vivo o simpático pensador, sua doutrina foi duramente criticada por várias frentes: os professores seculares da Universidade de Paris, que combatiam os professores oriundos das ordem mendicantes, isto é, os dominicanos e franciscanos; os averroístas latinos, que propunham uma interpretação de Aristóteles contrária às verdades da fé cristã; e, finalmente, os pensadores conservadores da linha agostiniana.

Ao contrário do que diz certa hagiografia, Tomás de Aquino não era um pensador com a cabeça nas nuvens, lento para agir e puramente racional ao argumentar. Ele combateu seus adversários no campo deles, e sobrepujou a todos. Escreveu libelos de defesa da espiritualidade mendicante; comentou os principais livros de Aristóteles, mostrando os equívocos da interpretação averroísta; e, com a filosofia do Estagirita, construiu uma síntese até hoje não superada.

No entanto, essa vitória teve o seu preço. Pouco depois de sua morte, seus inimigos fizeram uma série de intrigas e conseguiram que algumas teses, ao menos aparentemente dele, fossem incluídas em uma condenação promovida pelo Arcebispo de Paris, Esteban Tempier. Essa condenação jogou um véu de desconfiança sobre o pensamento do Aquinate.

Apesar do apoio decidido da maior parte dos dominicanos, a filosofia tomista passou a ser cultivada por grupos minoritários, contando com a decidida oposição dos teólogos franciscanos. Essa situação perdurou por séculos, apesar de pensadores tomistas terem conseguido fazer valer as teses do mestre em momentos importantes, como nos Concílios de Trento e de Florença.

Os séculos XVII e XVIII não foram nada favoráveis ao pensamento tomista e ao escolástico, ficando os teólogos inebriados com a filosofia moderna. No início do século XIX, de maneira um tanto clandestina, o tomismo começou a ser estudado em algumas cidades italianas, notadamente Piacenza e Nápoles. Apesar de trabalhado nesse âmbito restrito, chegou ao conhecimento de Joachim Pecci, que seria Arcebispo de Perugia e, em 1878, eleito Papa com o nome de Leão XIII.

A neoescolástica

Em 1879, Leão XIII lança sua segunda encíclica, Aeterni Patris, na qual propõe a filosofia de Tomás de Aquino como a resposta para os desafios lançados contra a doutrina católica pelas escolas de pensamento modernas. Esse acontecimento é considerado o começo do neotomismo, ou seja, a escola de pensamento que procurou estudar a obra de Tomás de Aquino, compreendê-la e aplicá-la às necessidades atuais.

O tomismo, até então marginalizado, torna-se, com a bênção papal, ao menos nominalmente, a filosofia predominante da Igreja Católica. Os escritos do filósofo passam a ser editados de maneira rigorosa e são estudados por vários teólogos e filósofos católicos.

Nesse primeiro momento, o neotomismo tem um caráter mais arqueológico, buscando compreender a doutrina de Tomás em continuidade com seus comentadores medievais, sem trazer muitas novidades. Destacam-se nessa fase os franceses Sertillanges e Garrigou-Lagrange, com sólidos trabalhos filosóficos e teológicos.

Contudo, mais importante ainda será a segunda geração neotomista, que procurará redescobrir o pensamento autêntico do mestre. Aparecem aqui as figuras de Étienne Gilson e de Cornelio Fabro, talvez os tomistas de maior relevo no século XX. Ambos sustentam que o núcleo da metafísica tomista é a noção de “ato de ser”, que seria uma novidade em relação à filosofia anterior a Tomás  de Aquino e que não teria sido bem compreendida pelos seus discípulos, que logo confundiram o “ato de ser” com o mero existir.

Esses temas metafísicos, ainda que apaixonantes, não são o objeto deste nosso estudo. Mas vale lembrar que a metafísica não é uma série de pensamentos obscuros sobre assuntos que não servem para nada. “Em que a metafísica vai me ajudar para fritar ovos, ou para ganhar dinheiro?” Talvez em nada. Mas ela explica a verdade que está por trás do ovo e do dinheiro, e também de nós mesmos. Se não há metafísica, não faz muito sentido fritar ovos, e muito menos ganhar dinheiro. Tudo seria uma grande ilusão, ou simplesmente matéria gerando matéria – afirmar isso já é fazer metafísica, mesmo que de baixa qualidade –, e a liberdade do homem seria um engodo.

A metafísica tomista, conforme estudada por Gilson e Fabro, representa um avanço em relação à aristotélica, e não uma mera continuidade. Essa percepção abriu caminho para outros tomistas importantes, como Josef Pieper – pese que não queria se definir como tomista, mas, enfim, na falta de uma palavra melhor… –, Ralph McInerny, Stephen Brock, John Wippel, Angel Luiz González, Leonardo Polo, Leo Elders, e um longo etc.

Infelizmente, ainda pouco se conhece desses filósofos na maior parte das nossas universidades, que tendem a valorizar exclusivamente o pensamento de tipo moderno e imanentista, em muitos casos ignorando a filosofia contemporânea inspirada na tradição antiga e medieval. Assim, perdem-se autênticos tesouros filosóficos, que trariam importantes contribuições ao debate atual de idéias.

Apesar disso, é visível o ressurgimento do interesse pelo pensamento clássico e medieval em várias partes do mundo. Nas primeiras décadas do século XX, os tomistas estavam praticamente restritos aos círculos católicos e, na maior parte das vezes, eclesiásticos. De maneira paulatina, filósofos leigos das universidades começaram a se dedicar a essa escola de pensamento e a produzir muito do que há de melhor nela. Isso se deve, em boa parte, ao labor de Gilson.

O pensamento de Tomás de Aquino vai adquirindo evidentes foros de respeitabilidade. Hoje, não é possível ignorar contribuições como as de John Finnis ou de Alasdair MacIntyre, autores profundamente influenciados pelo tomismo, o qual ganha força nos campos da ética, da política e da filosofia da ciência. Somando-se isso à sua presença na metafísica, na antropologia filosófica e na teologia, vemos que a obra de Tomás tem caráter universal e enciclopédico, abrangendo praticamente todos os domínios do saber humano, e com contribuições relevantes em cada um deles.

Renovar redescobrindo: a obra de Gilson

O papel de Étienne Gilson no fortalecimento e renovação do tomismo é excepcional. Aliás, não só do tomismo, mas de toda a filosofia medieval: as obras de Gilson sobre Santo Agostinho, Duns Escoto e São Boaventura permitiram que mais gente tomasse contato com esses importantes autores, que tanto têm a nos dizer. E não se pode esquecer a monumental A filosofia na idade média [1], uma referência fundamental no assunto.

Não se considerava primeiramente filósofo, mas um historiador da filosofia. Gilson não quis fazer uma obra original, mas sim verdadeira: enxergava no pensamento medieval tamanha riqueza, desconhecida da maior parte dos seus contemporâneos, que envidou seus melhores esforços em trazer à tona o que os antigos disseram, para que pudessem iluminar também a nossa época. Notamos aqui a humildade desse autor, que não buscou fundar uma espécie de gilsonismo, mas preferiu se ater à verdade.

Em uma página memorável, Gilson descreveu a atitude de Tomás, que também era a sua: “Tomás de Aquino disse coisas tão lhanamente verdadeiras que, da sua época até hoje, muito poucos foram capazes de esquecer-se de si mesmos o suficiente para aceitá-las. Há um problema ético na raiz das nossas dificuldades filosóficas; nós homens somos muito voltados a buscar a verdade, mas reticentes em aceitá-la. Não gostamos que a evidência racional nos encurrale, e inclusive quando a verdade está aí, na sua impessoal e imperiosa objetividade, continua de pé a nossa maior dificuldade: para mim, submeter-me a ela, apesar de não ser exclusivamente minha […]. Os maiores filósofos são aqueles que não titubeiam na presença da verdade, mas lhe dão as boas vindas com estas simples palavras: Sim, amém”.

Ah, a vaidade de ser “original” em filosofia… Quantos desastres intelectuais e vitais não surgiram dessa vã pretensão! Boa parte do pensamento moderno se explica pelo desejo de destruir o que fora feito antes e substituí-lo pelo que eu, o verdadeiro gênio, pensei. O meu sistema é melhor do que anterior, exatamente porque é meu. Essa praga é combatida por Gilson com seu saudável e – vamos usar a palavra, apesar de alguns a considerarem um palavrão – tradicional tomismo.

Tradicional, mais ou menos. Mais, porque Gilson propugnou o estudo direto dos textos de Tomás, evitando seus comentadores, que pulularam logo depois da morte do filósofo e, em parte, distorceram seu pensamento. O Cardeal Caetano, por exemplo, separou-se do mestre em pontos fundamentais, como a prova racional da imortalidade da alma e a distinção real entre ser e essência. Por sua vez, João de São Tomás, cujos trabalhos sobre lógica são atualmente bastante valorizados, tomou rumos não tomistas em importantes questões metafísicas.

Gilson percebeu o perigo de estudar a obra de Tomás pelos olhos desses comentadores; portanto, dirigiu-se diretamente aos textos do teólogo italiano, para perscrutar seu espírito e verdadeiro conteúdo. Nesse sentido, o tomismo do filósofo francês era tradicional, porque retornava às fontes mesmas da filosofia tomista.

Ao mesmo tempo, era menos tradicional, porque rompera com a tradição formada exatamente pelos comentadores de Tomás, que deram origem à escola do tomismo. Gilson deixará para trás o trabalho desses comentadores, ainda que reconhecendo o seu valor, e, como dissemos, proporá uma nova interpretação da filosofia do Doutor Angélico. Esta está na base de The unity of philosophical experience.

Uma história filosófica da filosofia

Esse livro é um apaixonante relato de experimentos que procuraram dirigir a filosofia de acordo com um método impróprio. O autor não apenas descreve esses processos, mas procura as causas da deterioração de cada um deles, propondo ao final um método filosófico que se veja livre das falhas que, repetidamente e em épocas bastante diversas, fizeram com que o pensamento descambasse no ceticismo.

A obra foi escrita originalmente em inglês e é o resultado de um ciclo de conferências que Gilson ministrou na Universidade de Harvard, na primeira metade do ano acadêmico de 1936-7. Sem ser um trabalho preso àquela época, é interessante lê-lo recordando que foi escrito pouco antes da Segunda Guerra Mundial, na qual ideologias fundadas no desenvolvimento do hegelianismo – o nazismo, o fascismo e o marxismo – levaram o mundo à atrocidade. Por então, esses monstros já mostravam suas garras, e um homem inteligente e atento como Gilson não podia deixar de ver neles o maldito fruto de graves erros filosóficos.

Um aspecto que chama a atenção é a pena fluente do autor. Gilson tem o dom da clareza; contudo, ao contrário de muitos pensadores gauleses, isso não é em detrimento da profundidade e rigor intelectual. Além disso, mantendo sempre o tom acadêmico, não é jamais frio ou desinteressante. Antes, prende o leitor no meio de discussões sobre a filosofia árabe medieval, o ocasionalismo de Malebranche, a formação do pensamento kantiano, as elucubrações espantosas de Comte, as explicações de Ockham sobre o conhecimento… Convenhamos, não é tarefa fácil, mas ele o conseguiu. Há um bom humor subjacente em tudo o que diz, e a leitura é sempre sugestiva.

Chama a atenção a erudição e domínio dos temas presentes no livro. Não há como negar que Gilson é um dos maiores – se não o maior! – historiador da filosofia medieval. Até aí, tudo bem. Contudo, seu discorrer sobre a obra de Descartes – que, curiosamente, foi a porta de entrada de Gilson no pensamento medieval, mas isso é outra história… –, de Malebranche, Locke e Hume; de Comte, de Kant, Hegel e Marx, são excelentes. O historiador francês captou o núcleo desses autores, com conhecimento das fontes primárias e dos principais comentadores.

Enfim, vemos na obra o trabalho de um especialista em filosofia medieval, adepto da visão filosófica e teológica de Tomás, que consegue examinar a fundo, porque estudou seriamente e de forma honesta, as principais correntes do pensamento moderno e contemporâneo. É o contrário de qualquer especialismo – como o daquele professor que só podia falar de O nascimento da tragédia, de Nietzche, porque era o tema do seu doutorado de vinte anos atrás –, bem como da superficialidade chutadora dos que conhecem a filosofia por manuais, compêndios e poucos livros mal lidos.

The Unity of Philosophical Experience foi dividido em quatro partes. As três primeiras tratam, respectivamente, do experimento medieval, do cartesiano e do moderno, e a quarta traz as conclusões do autor. Vejamos o que diz cada uma delas.

O experimento medieval, ou a confusão dos universais

Gilson começa sua explanação sobre a filosofia medieval citando a observação de que ela foi pouco mais do que uma tentativa obstinada de resolver um só problema: o dos universais, ou seja, dos conceitos e das idéias gerais. Como podemos explicar que pensemos por conceitos, que aplicamos a vários entes semelhantes – por exemplo, animal, que se pode predicar de um leão, de uma girafa, e do próprio homem –, mas que não existem por si mesmos em nosso mundo? Essa aplicação de um conceito geral a entes individuais tem algo de verdadeiro, ou é apenas uma economia de linguagem, ou mesmo uma ilusão? Em outras palavras: há alguma relação entre o nosso pensamento e a realidade?

A partir dessa questão – e que questão! –, Gilson explica a filosofia de Pedro Abelardo, célebre pelos seus amores por Heloísa, mas muito mais importante pelo seu pensamento. Segundo Gilson, Abelardo procurou resolver a questão dos universais, profundamente filosófica, com o método e os conceitos da ciência que conhecia, a lógica. Aliás, esta era a única ciência cultivada de verdade em sua época, e não estranha que a tenha empregado para o seu propósito de explicar o problema que atormentava os filósofos de então.

O caso de Abelardo é um excelente exemplo da presunção científica na filosofia, que vai se repetir nos outros experimentos descritos pelo filósofo francês. Porfírio, que escreveu uma famosa introdução às Categorias, de Aristóteles, reconhece que surge da lógica o problema dos universais, mas sabiamente afirma que não cabe a ela resolvê-lo, pois é um tema relativo aos filósofos, não aos lógicos. O grande Abelardo, por sua vez, não compartilhou a prudência do autor da Isagogee entrou de cabeça no problema filosófico dos gêneros e espécies.

A tragédia abelardiana está em que ele ignorava o que outros antes dele – especialmente Aristóteles – escreveram para explicar esse problema. Como escreve Gilson, em uma das centenas de frases lapidares e divertidas que se encontram no livro, “Abelardo achava-se nesse feliz estado de ignorância que com tanta facilidade faz com que um homem inteligente seja original. (…) Ao não ser nada mais do que um professor de Lógica, não havia nada nele de metafísico para o envergonhar de não ser mais do que lógico”. Essa falta de vergonha fez com que atravessasse tranquilamente a linha que divide a lógica da filosofia e da metafísica sem se dar conta disso, e o resultado foi um tropeço.

Abelardo sustentou que os conceitos com que pensamos não representam nenhuma realidade externa a nós mesmos. Contudo, se assim é, porque aplicamos a palavra “animal” corretamente a alguns entes, e não a empregamos com outros? Por que chamo “animal” ao elefante, ao macaco e ao papagaio, mas não ao quartzo, à hortênsia ou ao anjo? A resposta de Abelardo a essa pergunta nunca foi satisfatória, e ele mesmo foi honesto o suficiente para eliminar todas as pseudo-soluções que lhe podiam servir. Acabou afirmando que há algo de comum a todos entes dos quais predicamos um nome universal, mas esse algo comum não é uma essência, e sim um estado, uma condição. Era uma forma de ser, mas não uma coisa. O que isso significa exatamente, Abelardo não será capaz de explicar (aliás, parece impossível que o conseguisse…). Seu pensamento termina em um beco sem saída.

O logicismo será seguido por outro equívoco, o teologismo. Este consiste em aplicar à filosofia categorias puramente teológicas, o que termina por eliminar a natureza e a consistência das realidade criadas em favor da onipotência e grandeza de Deus. Como afirma Gilson, “por diversas que essas doutrinas (do teologismo) possam ser de acordo com as diferentes épocas, lugares e civilizações em que foram concebidas, parecem-se sempre, ao fim e ao cabo, em que todas se encontram intoxicadas por um determinado sentimento religioso a que chamarei, em favor da simplicidade, sentimento da Glória de Deus”.

São Boaventura, um dos maiores teólogos e místicos cristãos, foi um expoente dessa corrente. Demonstra-o o título de um dos seus escritos místicos: Sobre a redução das Artes à Teologia. A função da filosofia seria conhecer não as coisas, mas Deus através das coisas; seria assim reduzida a um departamento pouco importante da teologia. Contudo, para que a filosofia possa nos levar a Deus, precisa antes ser autêntica filosofia, o que não acontece na concepção do franciscano.

A teoria da iluminação divina no conhecimento, tão cara a Boaventura, se levada às últimas conseqüências, acaba negando o conhecimento natural: todo o conhecimento passaria a ser sobrenatural e uma dádiva de Deus. Também não existiria causalidade eficiente na ação das criaturas, porque Deus criou tudo desde o início do mundo, o que foi e o que ia ser, e a realidade simplesmente vai se desenvolvendo pela ação divina. O universo é inerte, sem força intrínseca, sendo manejado totalmente por Deus em cada momento.

O teologismo, entendido dessa forma, poderia levar, contra os desejos do sucessor de Francisco de Assis, a concluir que não há liberdade, porque tudo está determinado desde a criação. Essa era a postura de alguns teólogos árabes, que também foram, no âmbito da religião islâmica, partidários do teologismo. Os discípulos de Boaventura perceberam esse perigo e tentaram se afastar dele, sem muito êxito.

A terceira tentativa do experimento medieval foi a de Guilherme de Ockham, franciscano inglês que influenciou a teologia luterana. Considerava-se um aristotélico, mas suas conclusões destruíam tudo o que Aristóteles afirmou. Ao tratar do tema dos universais, Ockham procurou se afastar de qualquer resquício de realismo, que considerava ainda presente em Abelardo. Este seguia considerando haver um fundamento na realidade para dizer que todos os animais têm algo em comum. Já o filósofo inglês afirmará, de maneira radical, que tudo o que existe é individual; por isso, nada pode corresponder na realidade a nossas idéias universais.

Segundo explica Gilson, Ockham chegou a uma “posição pura”, e quando isso acontece, dá-se habitualmente uma revolução filosófica. Como nossas idéias não têm nenhuma relação com a realidade, podemos levá-las ao paroxismo. A partir da negação dos universais, o filósofo inglês reconstruirá toda a filosofia e a ciência sobre o individual. Para Ockham, qualquer explicação não contraditória é válida, já que Deus poderia fazer as coisas diferentes do que são em virtude da Sua onipotência. Por isso, os filósofos não devem perder tempo em especular sobre as causas hipotéticas das coisas atualmente existentes, pois no fundo são como são em função da vontade divina.

Antecipando Hume, Ockham destruirá também a causalidade. Porque empurrei uma bola, não posso por isso concluir que a causa do movimento dela foi a minha ação. Afinal, poderia ter havido outro resultado. O que existe é uma mera associação de idéias entre a minha ação e o movimento da bola, que não representa efetivamente que um foi a causa do outro. O conhecimento se torna algo vazio, sem relação com a realidade. Estão abertas as portas para o ceticismo.

De fato, Gilson termina de explicar o experimento medieval mostrando a sua queda no ceticismo, que é a recusa a filosofar, e não propriamente uma filosofia. As várias escolas medievais, que não se entendiam, propiciaram um clima de desconfiança da filosofia. Os pensadores do “outono da Idade Média” (a bela expressão de Huizinga…) querem salvar a religião cristã não na filosofia, mas propondo a simples leitura do Evangelho e dos Padres da Igreja, bem como a adesão a uma moralidade compartilhada com os autores pagãos – daí a fortuna do estoicismo nessa época. Não convinha mais filosofar para buscar entender os problemas profundos da existência humana e do universo.

Nicolau de Cusa e Petrarca seguiram essa linha e a tornaram popular. A douta ignorância tornou-se uma meta a ser atingida, e não um estado incompleto a ser vencido. Nas palavras de Gilson: “quando os escolásticos abandonaram toda esperança de dar resposta aos problemas filosóficos à luz da pura razão, cessou o brilhante e longo caminho da filosofia medieval”. Esse cansaço intelectual irá desembocar no mais famoso dos céticos, Montaigne.

Descartes e a matemática universal

O segundo experimento examinado por Gilson é o cartesiano. O homem não é um ser dubitativo, e por isso o ceticismo não dura muito tempo como atitude dominante. Surge habitualmente alguém que procura reconstruir tudo de cima a baixo. O remédio a Montaigne, cujos Ensaios foram publicados em 1580, foi oDiscurso do Método. Aliás, várias passagens desta obra são um eco ao escrito de Montaigne. Não se trata de uma mera briga entre franceses, mas do começo de uma nova era filosófica que se propõe enfrentar toda uma sucessão de erros, sendo ela mesma bastante equivocada. Ah, se os homens tivessem ouvido Tomás… Mas não o fizeram, e deu no que deu: da indigestão de Montaigne cairemos no porre de Descartes.

Afirma Gilson: “Montaigne foi e é ainda para muitos um mestre, mas a única coisa que se pode aprender dele é a arte de não aprender. Essa arte é muito importante e em nenhum lugar é aprendida melhor que nos Ensaios; o mau dosEnsaios é que não ensinam outra coisa”. No ponto! E Descartes procurará sair desse atoleiro através da matemática, que seria a única ciência que nos dá certezas evidentes e inatacáveis.

Não estranha que Descartes tenha partido da matemática, porque era um matemático genial. Em algumas horas, foi capaz de resolver uma série de problemas que há muito aguardavam resposta e fundou a geometria analítica. Nas palavras de Gilson: “Efetivamente, a filosofia de Descartes não é mais que um experimento temerariamente realizado para ver o que se torna o conhecimento humano quando se modela de acordo com a evidência matemática”.

A razão da postura cartesiana não é outra que o cansaço do ceticismo. Não há outro motivo para essa “matematização”, que não consegue justificar-se a si mesma. Mas Descartes estava convencido do que fazia, e julgou que, assim como fora capaz de unificar a álgebra e a geometria na geometria analítica, poderia unificar todas as ciências, que seriam no fundo a mesma ciência. Há algo de louco nisso tudo, mas não se pode negar a força dessa louca idéia. Uma grande ambição absurda, e por isso mesmo atraente, levada a cabo por um gênio: realmente, o cartesianismo tem poder de atração em uma época em que nenhuma outra filosofia se apresentava com solidez para enfrentá-lo.

Gilson disseca o pensamento de Descartes, que chegou a uma série de aporias. O célebre filósofo terminou separando a mente do corpo humano de tal forma que não foi possível para ele explicar como seriam verdadeiras as sensações que conhecemos a partir dos sentidos. O conhecimento humano fica então prejudicado, e Descartes solucionará esse problema dizendo que Deus, sendo bom, garante a veracidade daquilo que recebemos pelos sentidos.

Contudo, não demorou para que um discípulo de segunda geração, Berkeley, acabasse afirmando que não há coisas externas, mas apenas o nosso pensamento. Diz a lenda que essa afirmação matou Malebranche, discípulo de primeira geração de Descartes, que a discutiu com Berkeley no leito de morte; foi uma morte por metafísica – má metafísica, sem dúvida, e talvez por isso mesmo mais venenosa.

Locke foi outro autor que contradisse Descartes, sustentando que não há idéias inatas, as quais eram uma das bases do sistema cartesiano. Em pouco tempo, o pensamento do inglês se sobrepôs ao do francês na Inglaterra, e Voltaire – que nele percebeu um acesso ao materialismo, o que muito lhe interessava – levou-o à própria França, onde também acabou por triunfar. Em pouco tempo, Descartes passou de filósofo predominante e supremo a um derrotado; grandioso, sem dúvida, mas superado. Sorte dele que não viveu para ver sua derrocada, e morreu convencido que fizera todas as ciências progredirem extraordinariamente.

O fim do experimento cartesiano é Hume. De maneira espirituosa, Gilson reconhece nele um Montaigne melancólico, que confessou: “Estou… afligido e confundido pela desamparada solidão em que me deixa a minha filosofia”. Ao considerar os raciocínios sobre a causa e o efeito mera derivação do costume, Hume acaba destruindo a própria possibilidade de filosofar. Afinal, nada pode dizer sobre as coisas nem sobre o conhecimento. O fantasma de Ockham volta a aparecer com a sua navalha, assombrando a filosofia e deixando-a à mercê de novos pesadelos.

O experimento moderno: Kant, Hegel e Comte

Para Kant, Hume demonstrou que a metafísica estava morta. Com um começo desses, fica difícil fazer filosofia. Surpreendentemente, foi exatamente isso que Kant realizou, tomando como base o esquema da física de Newton, considerada então a verdade científica suprema.

A tentação de usar uma ciência como método para a filosofia volta a fazer sucumbir uma mente brilhante. Depois de Abelardo com a lógica, Boaventura com a teologia, Descartes com a matemática, surge Kant com os Principia na mão e uma filosofia na cabeça. Nas palavras do sábio de Koenisberg: “O verdadeiro método da Metafísica é fundamentalmente o mesmo que Newton introduziu na ciência natural e que tão excelentes resultados produziu nela”.

Aí está a grande limitação do fisicismo como método filosófico. A filosofia kantiana não poderia durar mais do que a física em que se baseava. Com essa base, formulou a sua Crítica da razão pura, que é um dos mais importantes livros sobre teoria do conhecimento, chegando à conclusão que efetivamente não conhecemos as coisas, mas apenas seus fenômenos. É uma ótima estrada que leva para o buraco do incognoscível.

Ao lado da razão pura, Kant construiu uma teoria da razão prática, que se fundava no dever. Através da moral, o homem poderia chegar a Deus, ainda que fosse impossível demonstrar a sua existência. A moralidade não podia ser justificada pela racionalidade, mas como é um fator inseparável da vida humana, justifica-se por si mesma. É a apoteose do dever, que obriga apenas pela sua força intrínseca.

Ao separar a racionalidade pura da prática, Kant jamais conseguiu unir de novo as duas. Criou estruturas inconciliáveis, mas ambas necessárias para solucionar problemas filosóficos. O homem estaria preso em um mundo de necessidade física no nível sensível e físico, mas, ao mesmo tempo, seria livre no âmbito inteligível e moral. Um homem são em uma camisa de força: panorama não muito animador. Além disso, o dever nada tem que ver com o prazer, e a virtude não pode ser agradável, mas simplesmente virtuosa. Um asceta de gelo é a meta kantiana.

O grande castigo de Kant foram os seus discípulos. Fichte e Schelling tentaram conciliar as duas Críticas; não foram aceitos pelo Mestre e acabaram brigando também entre si. O caos kantiano foi acertado por Hegel; com um acerto assim, parece melhor continuar no erro… Como disse o mesmo Hegel: “Só um homem poderia ter me entendido, e nem ele me entendeu”.

O filósofo alemão que culmina o idealismo considera que a verdade é a luta entre as verdades, as antinomias que combatem, dando origem a novas soluções, que por sua vez gerarão outras antinomias que serão resolvidas na luta. Diz Gilson: “Se a realização da Idéia é a marcha de Deus através do mundo, a rota do Deus de Hegel está semeada de ruínas”. A guerra entre filósofos e idéias é a lei. Não é à toa que essa filosofia descambou no fascismo e no marxismo, visões beligerantes e violentas da sociedade e da vida humana. Mais uma vez, o sonho da razão produziu monstros.

Outra faceta do experimento moderno é Comte, que contribuiu propondo uma filosofia fundada em outra ciência, a sociologia. O amor pela Humanidade deveria levar a que os cientistas e filósofos se concentrassem em estudar o que serviria para o progresso da mesma. Como era impossível fazer uma síntese objetiva de todos os conhecimentos, ficaríamos então com uma síntese subjetiva, do ponto de vista do homem e das suas necessidades sociais.

Sobre o projeto comteano, escreve Gilson: “A condenação inicial da Metafísica em nome da ciência, que estas filosofias consideram o único tipo de conhecimento racional, culmina invariavelmente na capitulação da própria ciência diante de algum elemento irracional”. No caso de Comte, esse elemento irracional seria a subordinação da ciência ao coração (?), isto é, ao amor pela Humanidade.

O pensador francês tem muito de abstruso, e algo de comovente. Percebeu que era preciso fundar uma religião para difundir suas idéias morais e o conhecimento positivo que advogava. Não se afastou do ridículo; antes, mergulhou nele até o fundo, para ser coerente e assim cumprir a sua missão. Isso não o justifica como filósofo, mas o torna o caso exemplar de onde leva a patologia filosófica assumida em toda a sua inteireza.

Gilson descreve a decadência do experimento moderno de modo tocante. Deu-se quando a sociedade afastou-se do “credo ocidental”, cujo traço mais fundamental é uma firme crença na eminente dignidade do homem. Seu segundo traço é a convicção definida de que a razão é a diferença específica do homem. Ambas características foram deixadas de lado, e o êxito de então do marxismo e do fascismo era a prova disso.

A terrível afirmação de Marx é o que sobra depois que as filosofias se digladiaram, matando com isso a verdade: “a história de todas as sociedades que até agora existiram é a história da luta de classes”. Estamos acostumados com essa afirmação, depois de a termos ouvido nos bancos escolares, muitas vezes como se fosse a suma sabedoria do pensamento ocidental. Mas ela é simplificadora, falsa e niilista. A história humana é muito mais do que isso, graças a Deus!

A constatação de Gilson de que o ceticismo moderno abriu as portas ao marxismo, que teve um enorme êxito entre os seus contemporâneos por ser o único dogmatismo que consideravam vivo, leva-o a sugerir uma saída para a filosofia, para que esta torne a ser relevante.

A metafísica como filosofia do ser: um remédio indispensável

Após ter nos levado pela mão da filosofia medieval até o pensamento moderno e contemporâneo, Étienne Gilson concluiu seu livro com algumas leis que podem ser inferidas a partir dos vários experimentos filosóficos que descreveu. São bastante interessantes, e serviriam de base para a renovação da metafísica.

A primeira é que a filosofia sempre enterra seus coveiros. Cada desaparição da filosofia é seguida regularmente pela sua ressurreição, com um novo dogmatismo a se apresentar para explicar a realidade. Isso acontece porque o homem tem uma autêntica necessidade de metafísica, que não é saciada nem pode ser elidida.

Chegamos assim à segunda lei: o homem é um animal metafísico por excelência. Sua própria estrutura de razão termina por exigir a metafísica, a explicação da realidade pelas primeiríssimas causas.

A terceira lei é que a Metafísica é o conhecimento ganho por uma razão naturalmente transcendente na busca dos princípios primeiros ou das causas primeiras do que é dado na experiência sensível. Esta última é importante, não pode ser desprezada, como propõem os vários idealismos; contudo, não explica toda a realidade, como consideraram os empirismos e materialismos de diversos matizes.

Por sua vez, a quarta conclusão é como a Metafísica aspira a transcender todo o conhecimento particular, nenhuma ciência particular é competente para solucionar os problemas metafísicos ou julgar as soluções metafísicas. De certo modo, esta é a lição especificamente demonstrada na obra, pois Gilson percebe nos vários experimentos filosóficos mal fadados exatamente o desrespeito a essa conclusão.

A última lei é que todos os fracassos da Metafísica devem atribuir-se ao fato de que se passou por alto ou se abusou do primeiro princípio do conhecimento humano, que para Gilson e o tomismo é o próprio ser ou, melhor ainda, o ente. Não é pelo pensamento que devemos começar a pensar; seria como se preocupar principalmente com a colher de pau na hora de mexer o doce no tacho. O ente é a meta do nosso conhecimento, e o pensamento e seus conceitos são antes de tudo instrumentos para o atingir.

As leis de Gilson levam não a um novo sistema de pensamento, mas sim a uma postura de abertura diante da realidade, semelhante à que tiveram os maiores metafísicos da história, isto é, Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino. Nosso pensamento jamais será capaz de esgotar a realidade, mas pode refleti-la de maneira sempre perfectível. Isso é uma lição de humildade e de verdadeira sabedoria.

Renato José de Moraes é advogado, mestre em direito e membro do IFE.


NOTAS:

[1] Trad. Eduardo Brandão (São Paulo, Martins Fontes, 1998).


 

Texto publicado originalmente na revista-livro Dicta&Contradicta, nº 4, Dez/2009.

 

ANEXO:

Obras de Étienne Gilson traduzidas em português do Brasil (lista atualizada em Outubro de 2014):

O espírito da filosofia medieval, Martins Fontes, 1ªed. em português por esta editora, 2006.

Heloísa e Abelardo, EdUSP, 1ªed. em português por esta editora, 2007.

Introdução ao estudo de Santo Agostinho, Paulus, 1ªed. em português por esta editora, 2007.

O Filósofo e a Teologia, Paulus, 1ªed. em português por esta editora, 2008.

Introdução às artes do belo, É Reazaliações, 1ªed. em português por esta editora, 2010.

Por que São Tomás criticou Santo Agostinho – Avicena e o ponto de partida de Duns Escoto, 1ªed. em português por esta editora, 2010.

A Filosofia na Idade Média, Martins Fontes, 3ªed. em português por esta editora, 2013.

 

Outras obras em francês e em inglês de Gilson pouco conhecidas, que não receberam tradução ainda (com tradução livre dos títulos para português):

Peinture et réalité (“Pintura e realidade”), Vrin, 1958,

La Paix de la sagesse (“A Paz e a sabedoria”), Aquinas, 1960.

Trois leçons sur le problème de l’existence de Dieu (“Três lições sobre o problema da existência de Deus”), Divinitas, 1961.

L’Être et Dieu (“O Ser e Deus”), Revue thomiste, 1962.

La société de masse et sa culture (“A sociedade de massa e sua cultura”), Vrin, 1967.

Linguistique et philosophie (“Linguística e Filosofia”), Vrin, 1969.

D’Aristote à Darwin et retour (“De Aristóteles a Darwin e retorno”), Vrin, 1971.

Le réalisme méthodique (“O realismo metódico”), Téqui, 1935.

Les Idées et les Lettres (“As Idéias e as Letras”), Vrin, 1932.

God and Philosophy (Deus e a Filosofia), Yale, University Press, 1941, 1969.

The Unity of Philosophical Experience (A Unidade da Experiência Filosófica), Scribner’s, 1937.

The Terrors of the Year Two Thousand (“Os Terrores do Ano de Dois Mil”), Toronto, St. Michael’s College, 1949.