Breve estudo da moralidade de Diderot a partir d’“O Sobrinho de Rameau”[1]

Filosofia | 09/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Félicien Rops. “Le vice suprême”, 1884.

Félicien Rops. “Le vice suprême”, 1884.

 

Neste breve estudo mostro algumas fragilidades da moralidade de Denis Dirderot (1713-1784), incluindo paradoxos dela mesma, partindo de uma obra romanesca dele, “O Sobrinho de Rameau”, escrito entre 1762 e 1773. Diderot, além de filósofo, foi também escritor. Jean-Philippe Rameau foi um importante compositor do período Barroco Rococó. Diderot usa o sobrinhho deste músico como personagem no romance, que se dá entre ele e um “Eu”. Vamos ao texto.

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Na disciplina de “Tópicos Especiais de Estética III” que cursei em 2011, ministrada pelo Prof. Dr. Roberto Romano, foram vistos os aspectos estéticos que podem ser extraídos da obra O Sobrinho de Rameau. Meditamos, longamente inclusive, em aspectos políticos a ela relacionados, como a questão do favor e da lisonja. Como foi visto também, a obra é rica em termos de conteúdo, assuntos, imagens e variadas referências a que se reporta, a começar, e principalmente, pela música. À parte a questão estética, uma questão que não escapa da obra é a moral. Franklin de Mattos, citando Georges May, escreve em A cadeia secreta:

Georges May examinou certa vez as causas e os efeitos do desprestígio do romance nos séculos XVII e XIII. As reservas então formuladas eram fundamentalmente de dois tipos: estéticas e morais. A acusação de imoralismo transparece na suspeita de que o romance constitui uma ameaça para os costumes, e deve-se principalmente à predominância que confere ao tema do amor. A idéia surge, por exemplo, em Diderot, que associa ao gênero a um passatempo ilícito (“perigoso para os costumes”, dirá o autor do Elogio de Richardson) (Mattos, 2004, p. 17).

Moral em pelo menos dois sentidos: primeiro, porque vários aspectos da obra tocam na moralidade. E segundo, porque o próprio Diderot – segundo Mattos – chamou suas obras “romanescas” de “contos morais” (Ibid., p. 33). De fato, como se pode observar na diversificada bibliografia disponível sobre Diderot, sempre encontramos um estudo inteiro, capítulo ou alguma referência à moral do filósofo, como em Schmitt (Diderot, ou la philosophie de la séduction, Albin Michel, 1997) e Lefebvre (Diderot, capítulo 4, parte A, “Hier et Aujourd’hui”, 1949), para citar apenas dois exemplos.

Feitas estas considerações, nosso interesse pelo Sobrinho é a moralidade. Mas em que sentido abordamos a moralidade da obra? Olhamos para seu aspecto intrínseco ou extrínseco, isto é, pela moralidade embutida na obra em si mesma (a devassidão de Rameau, p.ex.) ou a moralidade que o autor quis transmitir com a obra (que pretendia Diderot, em termos morais, com o Sobrinho)? Podemos ir pelos dois caminhos, sendo talvez mais fácil o primeiro. Mas este primeiro sentido é bastante patente na leitura do diálogo: todos que o lêem percebem a imoralidade de Rameau, das primeiras às últimas páginas, bem como, e até mesmo, um certo consentimento imoral do filósofo que com ele dialoga. Por outro lado, contrariamente, o que não fica tão patente na obra é seu aspecto moral extrínseco. Por essa razão, nosso interesse é versar sobre este aspecto, tentando deixá-lo com certa clareza.

Contudo, sabemos que isso é de grande dificuldade para ser realizado em um trabalho pequeno como este, mas nossa intenção aqui, por termos consciência da dificuldade, não é alcançar o estado da questão do problema, nem chegar a um ponto final. É – como foi dito – tentar deixá-lo com certa clareza, de modo a explorar um pouco mais a temática pretendida.

A bibliografia sobre Diderot, como pude observar nas breves pesquisas que fiz, é enorme. Citemos como exemplo o nome de alguns estudiosos, como Roger Kempf, Jacob Guinsburg, Eric-Emmanuel Schmitt, Pierre Lepape, Yves Benot, Henri Lefevbre, Roberto Romano, a grande maioria escrevendo no século passado, mas também trabalhos muito recentes, como os de Franklin de Mattos (A cadeia secreta, Cosac&Naify, 2004) e James Fowler, editando o New Essays on Diderot (Cambridge U.P., 2011), que parece oferecer o status quaestionis das discussões atuais.

Para nortear nosso trabalho, os volumes que usaremos são os que conseguimos disponíveis na biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, ou na Internet.

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O trecho que citamos acima de Franklin de Mattos encontra-se no primeiro capítulo do referido livro, A cadeia secreta, e se chama “Três romancistas tardios: Voltaire, Rousseau, Diderot”. Nele, Mattos mostra como esses autores, num primeiro momento, não viam o gênero do romance com bons olhos, mas como algo ignóbil, sem muita relevância. Com o passar do tempo, porém, tornaram-se importantes romancistas de sua época e da literatura universal – até mesmo Rousseau, que antes criticava com vigor o gênero. Voltaire os classificava como “bagatelas filosóficas” e depois escreveu seu consagrado Cândido. Rousseau os considerava como “miseráveis” e, paradoxalmente enquanto os critica, parte de A nova Heloísa estava redigida, que posteriormente se consagrou, embora Rousseau (com suas contradições pessoais que muitos de nós conhecemos), depois de sua publicação, ainda mantinha reserva quanto aos romances, e aquilo que escrevia não se destinava a todos os tipos de leitores (Mattos, 2004, pp. 17-32). Já o caso de Diderot, segundo Franklin de Mattos,

é certamente mais simples; não apresentava nem o caráter tortuoso do exemplo de Voltaire, nem tampouco o páthos de Rousseau, mas revela a mesma adesão tardia ao gênero romanesco. Com efeito, ao considerar a trajetória de Diderot como homem de letras, constatamos que, a partir de 1760, torna-se cada vez maior o interesse do filósofo pelas formas narrativas. Se antes dessa data ele se ocupara apenas episodicamente do conto ou do romance (…), depois de 1760 as coisas mudam muito de figura (Mattos, 2004, p. 33).

Citamos estes pontos apenas para dar um panorama do texto de Mattos, mas o que nos interessa nele sobretudo é: o que Diderot pensava a respeito do romance? Como ele encarava esse tipo de escrita na qual estava incluso O Sobrinho de Rameau?

Diderot citado em Mattos (2004, p. 21) diz o seguinte:

Uma obra será romanesca, se o maravilhoso nascer da simultaneidade dos acontecimentos: se nela os deuses e os homens forem bons ou maus em demasia; se as coisas e os caracteres diferirem demais daquilo que nos é mostrado pela experiência e pela história; e principalmente se o encadeamento dos acontecimentos for extraordinário e complicado demais.

Chega a ser difícil não pensar no Sobrinho com esta definição do próprio autor. Não vemos no Sobrinho uma simultaneidade de acontecimentos quando Rameau faz suas pantomimas? A imoralidade de Rameau não é demasiada? Essa definição também lembra o modo como Romano aborda o Sobrinho em seu Silêncio e ruído, de 1996, quando fala do palavrório, da incomunicabilidade, da falta de sentido, do caos, da multiplicidade e do uno etc. (Romano, 1996, cap. 5, p. 131).

Outro ponto que Mattos observa é que em Diderot “o romance é tratado satiricamente como uma espécie de remédio de efeitos paradoxais” (Mattos, 2004, p. 20). Mas o que mais nos interessa – a moralidade – é quando Franklin diz que Diderot classifica seus escritos desse tipo não como romances ou sátiras, mas como “contos morais” (Ibid., p. 33). Isso mostra, com pouca ou nenhuma dúvida, que Diderot tinha um objetivo moral em seus romances, e isso não escaparia ao Sobrinho de Rameau.

Especificamente no caso moral, um trabalho de relevância é a comunicação de M. Lester G. Crocker no XII Congrès de L’Association [12º Congresso da Associação] em 26 de julho de 1960, intitulado “Le Neveu de Rameau: Une Experience Morale” [O Sobrinho de Rameau: Uma Experiência Moral]. Para Crocker,

Ce sont ses préoccupations morales qui donnent à tous les romans et dialogues de Diderot leur direction particulière. En effet, ils sont tous conçus (ses indiscrétions juvéniles mises à part) comme si Diderot suivait sa propre méthodologie scientifique, c’est-à-dire comme des expériences; et leur but est d’explorer la nature et la qualité de l’expérience morale humaine (Crocker, 1960, p. 133).

Ademais, esse grupo de escritos no qual se encontra O Sobrinho de Rameau

se caractérise par une méthode et une intention communes. L’intention, nous l’avons déjà dit, est d’explorer la nature et les possibilités de la vie morale; elle est aussi de mettre à l’épreuve les spéculations matérialistes de Diderot en les concrétisant sous forme de caractères, de problèmes, d’action (Ibid., p. 134).[2]

Crocker diz ainda que esses escritos são um eco, ou uma adaptação das teorias de metologia científica do filósofo, justamente porque tocam na experiência (Ibid., p. 134). Para estas afirmações, Crocker se baseia de modo especial nos Pensées sur l’interprétation de la nature, na qual encontra pontos que revelam uma justificativa para esta possibilidade da experiência moral:

Les expériences doivent être répétées pour le détail des circons tances et pour la connaissance des limites. Il faut les transporter à des objets différents, les compliquer, les combiner de toutes les manières possibles (Diderot, Pensées, XLIV)

Ou seja, para uma verdadeira experiência moral, é preciso “conhecer os limites” e combinar os objetos de “todas as maneiras possíveis”. Partindo dessas observações, é exatamente o que vemos no Sobrinho: altos e baixos, subidas e descidas, agudos e graves, múltiplas maneiras, em duas palavras, os extremos, os limites. Ainda segundo Crocker (1960, p. 135), diferentemente de Jacques, o fatalista, onde as experiências extremas estão separadas, “la première, dans les personnages de Jacques et de son maître; la seconde, dans les divers contes que Diderot tisse dans l’histoire des personnages principaux”, no Sobrinho essas experiências estão num mesmo personagem, no Ele, em Jean-François Rameau.

Mas e nossa pergunta inicial? Que Diderot pretende, em termos morais, com O Sobrinho? Antes de tentarmos respondê-la, é interessante vermos uma observação que Crocker faz:

Cependant, Diderot est un grand maître de l’art du dialogue. En quoi consiste cet art ? Il consiste — pour ne pas parler du style — en la capacité de l’auteur de donner une force presque égale aux antagonistes, de sorte que le lecteur n’est pas sûr avant la fin de quel côté penche l’auteur, ou peut-être ne l’est-il jamais. C’est justement le cas du Neveu de Rameau, grâce à l’art que Diderot possède au plus haut degré. Par conséquent, que ce soit ou non l’intention originelle de Diderot, Moi devient à son tour le sujet d’une expérience secondaire ; en tant qu’adversaire de Lui, il est éprouvé dans cette confrontation d’attitudes et d’idées. Moi, l’antagoniste, représente la respectabilité conventionnelle. Il affirme la validité, voire la nécessité, de ces notions morales développées par sa culture au nom d’un idéal qui revendique des restrictions aux demandes instinctives de l’égo, demandes qui ne s’expriment qu’au détriment de ce bien général qu’il faut favoriser si l’on veut préserver la société civilisée. Dans la joute qui s’engage, Lui sera donc le corrosif des valeurs acceptées, Moi le critique de l’anarchisme moral (Crocker, 1960, p. 138).

De fato, numa leitura leve do Sobrinho parece mesmo difícil decidir de que lado está o autor no diálogo. Como o próprio professor Romano sublinhou no curso acima referido, muitos pensam que o “Eu” no diálogo é Diderot, mas isso não corresponde à realidade, pois não há uma sobreposição exata entre o “Eu” e o Diderot concreto. Outro ponto que Crocker coloca no trecho acima é que “Moi, l’antagoniste, représente la respectabilité conventionnelle. Il affirme la validité, voire la necessite”. Discordamos desta afirmação. Apesar de na maioria do tempo o “Eu” representar a moralidade, a contrariedade da anarquia moral, há certos momentos em que esse mesmo “Eu” consente e concorda com o “Ele” em suas imoralidades. É o caso, por exemplo, de quando Rameau conta ao filósofo seus roubos e ainda afirma que roubava sem remorso. À descrição e à explicação que Rameau dá de ter roubado sem remorso, o filósofo responde que admira aquilo que Rameau lhe diz, que é imoral. Quando Rameau coloca o ouro, a fortuna, como um deus – e inclusive louva vícios a isso associados –, o “Eu” responde: “Não poderia ser melhor (…)”. Na resposta seguinte do “Eu” vê-se também certo consentimento com algo corrutível ou corruptor:

Apesar dessas considerações tão corajosas e sensatas, continuo achando que o melhor seria fazer dele um músico. Não conheço meio mais rápido para se aproximar dos grandes, para melhor servir aos vícios deles e tirar proveito dos seus próprios.

Com esses exemplos, queremos ilustrar que a moralidade do “Eu” não é verdadeiramente exemplar, não é perfeita, nem unívoca.

Com relação à nossa pergunta principal, Crocker acredita – segundo lhe parece – que se Rameau vive uma vida moral a seu modo, e isso não lhe traz remorso, nesse sentido Diderot concluiria que isso não trai a natureza humana em tudo:

Mener une vie morale, n’est-ce pas trahir la nature humaine tout court, semble conclure Diderot, dans son portrait de Lui. Certes, la morale conventionnelle, qui à la fois protège et limite les médiocres, contrecarre leurs vrais désirs (Cocker, 1960, p. 150).

Aprofundando a questão e concluindo seu estudo sobre a moral no Sobrinho, Crocker sublinha dois pontos. O primeiro é o caráter niilista de Rameau, que, não se importando com os outros, busca sua própria satisfação. O segundo é uma libido dominandi, um desejo, um sentimento que determina grande parte das pantomimas (Crocker, 1960, pp. 151-153).

Crocker admite que a questão da moralidade na obra de Diderot é complexa e não admite reducionismos, mas afirma que, “comme Diderot devait l’affirmer dans ses dialogues philosophiques, que vice et vertu n’existent pas ; comme les matérialistes le disaient à propos de la question du mal, c’est un point de vue subjectif, déterminé par l’intérêt” (Crocker, 1960, p. 152).

Observadas as questões acima colocadas, a imoralidade para Diderot não seria algo condenável. A moral tradicional, comum, poderia ser mantida em convivência com a incomum, com a imoral, e o que ele estaria tentando mostrar com O Sobrinho de Rameau, em termos morais, é justamente isso. Por esses termos, a hipótese mostra-se ao menos razoável, mas podemos ainda evocar outros elementos que a corroboram.

Essa moralidade contrária à tradicional, segundo Crocker, é a base da moral do interesse, principal solução dos filósofos humanistas e da qual Diderot se serve muito, e notavelmente numa passagem célebre da Refutação de Helvetius (Oevres, II, 35-5).

Uma evidência da própria obra: o personagem que encara a moral comum, o “Eu”, quase não fala no diálogo. A grande maioria das falas vem de Rameau, do devasso. Se Diderot estivesse interessado em transmitir a moral tradicional, aquela de que a virtude é a fonte da felicidade e o vício o seu contrário, certamente daria bem mais espaço, e bem mais explicações, fundamentações e argumentos da parte do “Eu”. Diante de tanto falatório, o “Eu” não tem vez. Você quase não o acompanha – ele se perde no meio das palavras de Rameau. Se, como o próprio Diderot afirma, esse tipo de literatura é de alguma forma diversão, o que traz uma diversão proeminentemente imoral senão a própria imoralidade? Não faz sentido pensar que Diderot esteja contra a moralidade do sobrinho.

Pode-se ainda pensar em outra hipótese, a de que Diderot estaria fazendo um l’art pour l’art, mostrando a realidade nua e crua do homem. Mesmo assim, vendo que ele toca sem receio os extremos da imoralidade e em demasia, ele se mostra, no mínimo, como alguém que não está preocupado com a moralidade comum. Mas, para não restar dúvidas, tomemos um exemplo muito claro do próprio Diderot citado por Henri Lefebvre (1949, p. 278):

J’ai vu de savant sythèmes, j’ai vu de gros livres écrits sur l’origine du mal, et je n’ai vu que des rêveries. Le mal tient au bien meme ; on ne pourrait ôter l’un sans l’autre ; et ils sont tous deux leur source dans le memes causes. C’est des lois données à la matière, lesquelles entretienent le mouvement et la vie dans l’univers, qui derivens les desordres physiques, les volcans, les treblements de terre, les tempêtes, etc. C’est de la sensibilité, source de tous nos plaisirs, que resulte la douleur. Quant au mal moral, qui n’est autre que le vice ou la préférence de soi aux autres, il est un effet nécessaire de cert amour-propre, si essentiel à notre conservation, et contre lequel tant de faux raisonneurs ont déclamé. Pour qu’il n’y ait point de vices sur la terre, c’est aux législaterus à faire que les hommes n’y trouvent aucun intérêt (Note, Assézat, II, 85).

Portanto, do ponto de vista da moralidade comum, Diderot é imoral. Mais do que isso. Observando com atenção a passagem acima, Diderot mostra-se um relativista, algo que condiz completamente com as conclusões de Crocker, de que a moralidade nesse sentido é subjetiva.

Mas como pode um filósofo se dizer ilustrado, propor algo para os homens de letras e até para a sociedade (como foi visto na disciplina), adotar uma posição filosófica relativista e não enxergar a contradição na qual se encontra com estas mesmas posições? Isto é, se ele não acredita que há uma moralidade objetiva, por que se preocupa com as luzes, com o esclarecimento, algo que considera como digno e bom e que lhe custou décadas de trabalho? Como pode Diderot se colocar como um ilustrado ao mesmo tempo em que mente sobre Rousseau, sobre suas convicções, suas obras e várias outras questões que mostram sua incoerência entre atos e palavras? (Cf. Benot, 1970, cap. 2, pp. 24-39).

O “como”, o que motivou Diderot não o sabemos. Talvez o encontremos nas obras completas, uma declaração, correspondência, enfim, ou jamais saberemos. O que sabemos, contudo, pela breve investigação que fizemos, apoiando-nos inclusive nos originais, é que O Sobrinho de Rameau é um dos ramos de aplicação da filosofia de Diderot, e que ele claramente se coloca contra a moralidade comum e adere a um tipo de relativismo. Nesse sentido, consideramo-lo um moralista da imoralidade.

Sabemos, pela História e pela lição de Richard M. Weaver (1984), que idéias têm conseqüências. Porque não estudamos este ponto, não sabemos se de fato (ou até que ponto) o pensamento de Diderot influenciou a Revolução Francesa e outros movimentos modernos de desordem, violência, libertinagem ou caos social. Mas podemos fazer uma legítima pergunta: se idéias têm conseqüências, e, portanto, tem o poder de moldar as pessoas, a sociedade, o curso das coisas etc., as idéias do ilustrado Diderot são de fato benéficas para o homem e para a sociedade? É sustentável sua moralidade imoral ou seu relativismo?

Com a filosofia e com as pesquisas históricas que se sucederam à modernidade em que Diderot estava inserido, e que encontram lugar na época contemporânea, a resposta é certamente não. Para desenvolvermos esta resposta, seria necessário pelo menos o dobro do tamanho deste trabalho, o que não é viável para a ocasião, mas fiquemos com algumas indicações do caminho desta resposta.

O relativismo, em suas diversas formas, já foi amplamente refutado, por diversos estudiosos e filósofos do século XX. Em termos históricos, um dos estudos mais relevantes é o A Treasury of Traditional Wisdom, de Whitall N. Perry, uma enciclopédia que mostra, entre outros, a comum unidade de valores entre os homens dos mais diferentes tempos e lugares. Em termos filosóficos, temos Insight: a study of human understanding, do filósofo canadense Bernard Lonergan, uma obra de quase 800 páginas que nos faz compreender por que compreendemos e, nesse processo, toca na questão do relativismo num determinado ponto e o refuta em contraste com as demonstrações cognitivas e epistemológicas (Insight, Cap. 11). Em termos filosóficos e históricos ao mesmo tempo, os cinco volumes do Order and History de Eric Voegelin. Obras menores, mas que dão conta do problema de forma suficiente, são: A Abolição do Homem, de C.S. Lewis que, além de escritor, foi um notável pensador; e A Refutation of Moral Relativism, do filósofo americano vivo e atuante, Peter Kreeft. E entre vários outros, apenas mais um, em termos antropológicos: Verità o fede debole?, um debate entre o antropólogo e filósofo francês René Girard e o filósofo italiano Gianni Vattimo; e, por extensão, todas as obras de René Girard.

Nos termos morais sobre os quais discorremos, do ponto de vista do benefício da filosofia de Diderot nesse sentido (afinal, para que fazer filosofia senão para trazer benefícios?, do contrário estaríamos nos alinhando com filosofias a favor de um Führer), não podemos admitir que uma proposta relativista seja benéfica, porque em termos concretos isso não é viável no que se refere à ordem do corpo social. Se não há um reconhecimento comum dos valores humanos (e esse reconhecimento é possível, basta, por exemplo, A Abolição do Homem de Lewis ou o Natural Right and History de Leo Strauss) – valores esses que começam no princípio da responsabilidade, na preservação da vida, na caridade (sem boa sociabilidade não há comunidade alguma), entre vários outros valores comuns que encontramos muito bem demonstrados e fundamentados nas obras acima –, eu dizia, se não há um reconhecimento desses valores, do direito natural dos clássicos, qualquer moralidade se torna possível, da moralidade de Rameau à moralidade de Hitler e Stálin. Admitindo o relativismo de Diderot, qualquer moralidade que se torna possível acaba por tornar possível a ascensão de coisas que nenhum de nós deseja: totalitarismos, ditaduras, opressão e injustiça. E isto não é teoria ou devaneio, é História.

 

REFERÊNCIAS

BENOT, Yves. Diderot: de l’athéisme à l’anticolonialisme. Paris: François Maspero, 1970.

CHERNI, Amor. Diderot. L’ordre et le devenir. Paris: Droz, 2002.

CROCKER, Lester G. « Le Neveu de Rameau », une expérience morale. In: Cahiers de l’Association internationale des études francaises, 1961, N°13. pp. 133-155.

DIDEROT, Denis. O Sobrinho de Rameau. Tradução: Bruno Costa. São Paulo: Hedra, 2007.

_______. Oeuvres complètes de Diderot. Tome 20 (Correspondance Générale II, Appendices, Table Générale et Analytique). Paris: Garnier Frères, Libraires-Éditerus, 1877 (reimpressão por Kraus Reprint Ltd. Em 1966).

LEFEBVRE, Henri. Diderot. Paris: Hier et Aujourd’hui, 1949.

ROMANO, Roberto. Silêncio e ruído: a sátira em Denis Diderot. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.

WEAVER, Richard M. Ideas have consequences. 2ª ed. Chicago and London: The University Of Chicago Press, 1984.

 

NOTAS:

[1] A primeira versão deste texto foi apresentada como “Trabalho Final” na disciplina de Tópicos Especiais de Estética III no 1º semestre de 2011, ministrada pelo docente Prof. Dr. Roberto Romano, IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas), UNICAMP, durante meu curso de Graduação em Filosofia. Tendo o trabalho sido bem avaliado, foi elaborada uma segunda e aprimorada versão que foi apresentada no VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP, no dia 15 de maio de 2012, na sessão de comunicação oral, na mesa-redonda de Filosofia Moderna I, com moderação de João Antonio de Moraes, sala 49. A terceira e atual versão (Dezembro de 2014) contém apenas alguns ajustes para publicação no site IFE Campinas.

[2] É bom salientar: Crocker adiante diverge claramente de Georges May (cit. em Mattos, 2004, p. 20), que acredita na inverosimilhança desses escritos, chamando-os de romanescos. Diz Crocker: “Si je dis « trouvaille » c’est que, dans tous ces écrits, les personnages et les intrigues ne sont fictives qu’en partie; ils sont tirés de personnes et d’événements de la vie réelle — ce qui confirme le fait que le but de Diderot est de soumettre la théorie à l’épreuve de la vie, et d’évaluer la vie par la théorie” (Crocker, 1960, p. 134, grifo nosso).

João Toniolo é graduado e licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), mestrando por esta mesma universidade e gestor de Núcleo de Filosofia do IFE Campinas.