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A antiga e a nova ética da virtude – por Maria Cecília Leonel Gomes dos Reis

Filosofia | 08/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Atribui-se a Hannah Arendt – filósofa alemã nascida em 1906 – um comentário perfeito para apresentar a ética antiga e realçar em quê esta perspectiva distingue-se da moralidade de senso comum. Coloque-se a pergunta celebrizada no romance Crime e Castigo de Dostoiévski “Por que eu não deveria matar uma velha agiota a quem devo dinheiro?”, e compare as seguintes respostas. Um indivíduo religioso poderia alegar que “Não o faria para não ser condenado ao inferno” (seja objetivo, seja subjetivo). De um ponto de vista laico e distanciado, um outro talvez admitisse que “Ninguém gostaria de ser morto futilmente por outra pessoa, e por esta razão tal conduta deve ser interdita e severamente punida para a vida em sociedade”. Ora, a resposta da ética antiga teria um enfoque completamente diferente: “Já que tenho de viver comigo mesmo pelo resto de meus dias, não gostaria de estar para sempre na companhia de um assassino”. Esta maneira de ver o problema, embora incorra em algum anacronismo, coloca na perspectiva correta a moralidade antiga e sugere que seu foco esteja no caráter do próprio agente.

À luz desta breve introdução, na primeira parte deste artigo será apresentado um panorama geral da ética antiga que tentará subsidiar, em seguida, tanto um esboço das principais diferenças que ela guarda com a filosofia moral moderna, como uma pequena defesa de sua relevância para a atualidade.

I.

É a pergunta socrática – “Como viver?” – que, de fato, inaugura na Grécia do século V a.C. a investigação de questões humanas. E o faz na chave da moralidade pessoal e em tom auto-reflexivo – Que tipo de pessoa tenho sido? Que tipo de pessoa aspiro ser? –, ao mesmo tempo em que, de alguma forma, coloca na meta da estimativa de si próprio a noção antiga de virtude ou areté, i.e., toda a forma de mérito individual ou de excelência, em qualquer atividade.

Na concepção tradicional de Homero, há evidências da areté dos heróis, em particular numa forma comum de epitáfio – “um homem tornado nobre morreu” – e na locução kalós kai agathós, que se refere às qualidades de valentia e habilidade guerreira, ou seja, à eficácia naquela nobre função.

A perspectiva socrática, por outro lado, além da coragem, elege como valores morais a justiça, a temperança, a piedade e a sabedoria. Tais são, efetivamente, as noções que animam a busca (frustrada) por definições dos primeiros diálogos de Platão, nos quais Sócrates figura como personagem central. A teoria moral, em Sócrates, inclui algumas teses bem difundidas. A virtude é conhecimento, ou seja, o indivíduo só alcança a excelência humana quando tem uma visão singular e permanente do que é o bem para o homem. Afinal, as virtudes formam uma certa unidade. E é este lampejo sobre o bem em geral que guia a pessoa nas circunstâncias particulares de sua vida, para que aja como alguém de valor – mostrando-lhe, por exemplo, quando o direito dos outros deve ser respeitado, quando a moderação é necessária, quando atos de coragem lhe são requeridos. E por esta razão, não basta procurar regras externas que pautem a conduta dos homens. É preciso olhar para dentro de si e perceber por si mesmo o justo, o bom e o belo em cada circunstância. Os homens precisam, enfim, cuidar da alma, pois é a qualidade boa ou má de sua própria alma que fará de cada um uma pessoa boa e feliz ou, pelo contrário, má e infeliz. Donde a observação socrática da máxima apolínea “Conhece-te a ti mesmo”.

A doutrina socrática implica, contudo, uma nova concepção de alma: a psykhé agora é vista como a sede das faculdades intelectuais e morais, e não mais como o mero sopro da vitalidade que abandona o indivíduo no instante da morte. Aos olhos modernos, essa filosofia moral parece sofrer de um intelectualismo exagerado. Se virtude é conhecimento, então a ação correta segue o conhecimento correto, e a incorreta é fruto da mera ignorância e não daquilo que chamamos de fraqueza da vontade. É preciso lembrar, no entanto, que a perspectiva socrática parece entender que os homens, quando agem mal, estão sempre persuadidos por algo que imaginam como bom e vantajoso – e é nisto que está a falha cognitiva. Além do mais, o conhecimento do bem não consiste na posse de proposições abstratas, mas numa visão direta pelos “olhos internos da alma” que compele à ação.

A ética e a psicologia de Aristóteles são tributárias da teoria moral de Sócrates. A questão “Como viver?” indaga como me tornei a pessoa que sou e como vejo agora minhas atitutes diante do pano de fundo de meus planos futuros, o que implica pensar na vida como um todo. E, de fato, todas as escolhas e ações humanas têm por finalidade algo considerado bom para o próprio agente. Mas, segundo Aristóteles, os fins subordinam-se uns aos outros, formando uma hierarquia. Há fins imediatos – como o preparar-se para a vida profissional –, mas estes não dão uma explicação completa da razão pela qual o agente os pratica. Pois nossas motivações organizam-se de modo a haver um objeto último de desejo – o fim ao qual todas as nossas escolhas aspiram. E aquilo que buscamos como um valor absoluto deve ser também alcançável por nossas ações. Este sumo bem é, evidentemente, ser feliz. Pois a felicidade (eudaimonia) é procurada em si mesma e torna a vida desejável e carente de nada. Com isso Aristóteles sugere que, se você advoga que a felicidade consiste no prazer, por exemplo, mas admite que uma vida capaz de combinar prazer e sabedoria é ainda superior, então reconhece que faltava algo em sua primeira noção de felicidade. Ora, a felicidade é algo auto-suficiente. Mas, já que existem várias concepções de felicidade, como fazer de minha vida uma existência feliz?

Há basicamente três modos de vida – a vida devotada ao prazer e entretenimento, aquela dedicada ao serviço público e, ainda, a vida voltada ao conhecimento e à filosofia – ligados, por sua vez, a três razões para preferir a vida à morte – desfrutar dos mais altos prazeres; ganhar um nome respeitado aos próprios olhos e aos dos demais; apreciar uma compreensão do mundo em que nos encontramos.

Aristóteles sustenta que a felicidade será alcançada no exercício das virtudes morais e intelectuais – o que parece favorecer a vida pública e a contemplativa. Pois, assim como o bem de um flautista, por exemplo, é o desempenho competente de sua habilidade específica – tocar flauta bem –, já que aquilo que faz dele um flautista é justamente tocar o instrumento; do mesmo modo, o bem para o ser humano é o desempenho excelente das disposições que fazem dele o que é, a saber, um ser racional. Ser feliz, em suma, é viver e agir bem, é realizar-se como ser humano. Ora, o homem tem uma natureza particular: é um ser vivo dotado de capacidade intelectual, e a função própria da inteligência é contribuir para a sua felicidade. Segundo Aristóteles, nossa felicidade estará, então, na atividade inteiramente excelente de nossa capacidade de pensar – seja em seu aspecto prático, seja no teórico –, acompanhada de moderada boa sorte e ao longo de uma vida completa. Pois é difícil ser feliz e ter uma vida bem sucedida se você, por exemplo, é horrível, chucro das idéias, nascido para ser escravo ou pai de filhos que o desonram, embora a boa sorte seja apenas uma condição para a felicidade. E, numa vida bem vivida, o prazer será uma espécie de coroamento: algo bom quando advém da atividade não impedida e própria ao homem em condição moral adequada.

As virtudes éticas ligam-se ao aspecto emocional do indivíduo – a elementos irracionais como a raiva, o medo, a lascívia, a inveja, o ressentimento –, bem como aos estados mentais de prazer e dor, que acompanham hábitos adquiridos a fim de que a pessoa expresse uma resposta emocional adequada diante de dada circunstância. A moralidade não é algo que possuímos por natureza, segundo Aristóteles. De qualquer modo, a partir desses fatores configuram-se quatro modos de caráter – quem faz o certo com prazer; quem age corretamente, mas a duras penas; quem faz o errado e sofre por isso; quem age mal e sente-se inclusive satisfeito com isso.

As virtudes intelectuais, por sua vez, ligam-se ao aspecto racional da conduta – à sabedoria prática (phronesis) que põe para o indivíduo tanto uma apreciação geral do que é o bem para o homem enquanto tal, como uma estimativa daquilo que está próximo e é exeqüível, na cadeia do raciocínio prático.

A sabedoria reside não apenas no deliberar bem sobre o que é útil e bom para si mesmo por levar ao viver bem em geral, mas em certas qualidades da própria conduta, examinadas por Aristóteles de forma detalhada. Entre elas estão as assim chamadas virtudes clássicas – a coragem, no que diz respeito às situações que suscitam medo; a moderação na busca dos prazeres físicos, e a justiça na distribuição daquilo que cabe a cada um –, bem como outras, inteiramente novas para o escopo da teoria moral socrática. A liberalidade e a magnificência, por exemplo, no uso do dinheiro (seja em pequena, seja em grande escala); a honradez no mérito pretendido para si mesmo e a dignidade na noção do próprio valor; a afabilidade nas relações sociais e a amizade nas pessoais; a espirituosidade na maneira de conversar; e por fim, a calma no que diz respeito à raiva. Cabe notar, inclusive, que a relação de qualidades éticas constituintes da sabedoria prática segundo Aristóteles talvez esteja na raiz de muitas virtudes morais exaltadas pela cristandade: no lugar da moderação encontramos agora o elogio da castidade, e das demais, sucessivamente, a igualdade, a generosidade, o recato, a modéstia, a solidariedade, a fraternidade, a pureza e a paz.

Fica claro, por fim, o motivo pelo qual o tratamento das questões éticas se fará, segundo Aristóteles, apenas em linhas gerais. A moralidade, por assim dizer, carece de fixidez. Pois os próprios agentes devem considerar, em cada caso, o que é mais apropriado à ocasião, ainda que se deva obervar um preceito constante – a boa conduta pode ser arruinada tanto pelo excesso como pela carência, isto é, a qualidade de uma ação sempre será preservada pela busca do meio termo.

II.

Na interpretação de alguns filósofos – Henry Sidgwick (1838-1900) e Bernard Williams (1929-2003), por exemplo –, o pensamento ético antigo e o pensamento ético moderno são nitidamente irreconciliáveis. Pois o ponto de partida dos antigos é a noção de bem, ou melhor, de bem humano ou felicidade (eudaimonia). Contudo, se o bem de um ser é determinado por sua função natural; e se para o homem esta é a atividade intelectual excelente – seja teórica, seja prática (phronesis ou ação correta); e se a ação correta, por sua vez, depende da percepção que um agente excelente terá daquilo que é exigido pelas circunstâncias; então não haverá um corpo de regras universais de conduta.

A filosofia moral moderna, por outro lado, tem como ponto de partida a noção de certo e errado e o código ético que nos foi legado pela cristandade medieval, ou seja, um sistema de normas gerais de conduta, fundamentado na lei divina. Ora, com as disputas religiosas da Reforma e o surgimento de uma sociedade secular, bem como da ciência moderna, o conteúdo específico daquele código não podia mais ser justificado por qualquer apelo à Revelação. E, mesmo que alguns admitissem como base da conduta certos sentimentos humanos, a grande tarefa do Iluminismo no campo da moralidade foi procurar fundamentos para o nosso sistema de deveres em princípios universais determinados pela razão natural.

A ética moderna – a deontologia e o utilitarismo, em particular – nutre, de fato, o desejo de alcançar um conhecimento certo com fundações inabaláveis, e assim oferecer princípios universais a partir dos quais a solução prática de problemas éticos possa ser racionalmente deduzida. Ora, tal exigência parece essencialmente irrealizável pelos traços característicos da ética antiga.

O mais claro empreendedor de uma moralidade com feições universais foi o alemão Immanuel Kant (1724-1804), para quem a ética deve e pode fundar-se completamente na razão humana. O homem distingue-se pela autonomia moral – capacidade de comprometer-se voluntariamente com fins racionalmente escolhidos – em oposição à sua heteronomia física – sua fisiologia é comandada por leis naturais que não dependem de sua própria vontade. Mas o valor moral dos atos humanos liga-se justamente ao fato de terem sido livremente escolhidos: o indivíduo que tem seu comportamento controlado por causas além de seu próprio controle – sejam as subjetivas, como desejos e emoções, sejam as objetivas, como qualquer tipo de coerção física –, não é alguém que age livre e voluntariamente. Por isso mesmo, sua conduta é completamente desprovida de qualquer valor moral, não importa as conseqüências boas ou más que traga. A vontade, para Kant, é razão em ação. E deve purificar-se, então, de toda e qualquer influência sensível, pois a vontade só é efetivamente livre quando quer e busca aquilo que a razão determina – deveres logicamente deduzidos e, por isso mesmo, obrigatórios. Em suma, ser uma pessoa boa é difícil, pois envolve um verdadeiro conflito interior entre nossas inclinações – aquilo que eventualmente gostaríamos de fazer – e os imperativos inflexíveis da razão. Para Kant, enfim, moralidade nada tem a ver com felicidade do agente, tampouco com as conseqüências de suas ações.

De fato, a filosofia moral deontológica (assim chamada por conta do termo grego déon, “deve”) distingue-se radicalmente do utilitarismo, ainda que cada uma busque princípios universais para fundamentar a conduta dos homens.

Na ética utilitarista, que tem como precursor Jeremy Bentham (1748-1832), a melhor vida para uma pessoa consistirá naquela que apresente o melhor balanço entre prazer e dor: pode valer a pena suportar certos sofrimentos – como uma cirurgia – em vista de produzir ao longo prazo uma maior quantidade de prazer – saúde por muitos anos. O valor de diversos prazeres e dores resultantes de um curso determinado de ação pode ser calculado e então multiplicado pela probabilidade de a ação realmente ocorrer. Um de seus principais expoentes, John Stuart Mill (1806-1873), embora tenha aceitado a premissa de que o ser humano busca o agradável e evita o desagradável, para evitar certas implicações inaceitáveis do hedonismo de Bentham procurou distinguir certas qualidades nos prazeres. De qualquer forma, definiu-se como princípio universal a maximição da utilidade líquida estimada para todas as partes envolvidas numa tomada de decisão – seja lá o que se entenda por “utilidade”: prazer, bem-estar, preferência. Para os utilitaristas, enfim, as motivações do agente não podem ser conhecidas, e nem mesmo são importantes. Apenas as conseqüências da conduta contam na avaliação moral de seus atos.

III.

A influência da ética antiga na filosofia moral contemporânea não é gratuita. De fato, e a seu modo, a ética antiga convergiria para aquilo que, em poucas palavras, pode ser chamado de ‘crise de legitimação’: a atitude de dúvida e incredulidade que ganhou tantos adeptos nos últimos cem anos, ou mesmo antes, quanto à aspiração de universalidade da ciência e ética modernas, sobretudo por não acreditarem na possibilidade de identificar qualquer ponto externo aos sistemas para avaliá-los objetivamente, o que acarretaria uma inevitável multiplicação de perspectivas. No entanto, a visão ética antiga, ainda que não tenha regras de condutas absolutas – pois vê a conduta adequada como dependente sempre do singular – parece contornar os riscos do relativismo radical, tão premente em nossos dias. É, por fim, uma filosofia moral altamente analítica, bem como racional e lógica, voltada para o auto-aperfeiçoamento induzido pela criação de hábitos via punição e recompensa, com requisitos realistas quanto ao caráter do agente.

A título de conclusão, cabe ainda realçar algumas características da ética antiga muito afinadas com o mundo de hoje. Nascida para servir e educar a juventude com pretensões públicas, não desconhece a realidade da competitividade social. Pelo contrário, vê como postiva a rivalidade (a boa éris) entre iguais que disputam algo de valor (seja a coroa de louros nos jogos olímpicos, seja a opinião pública nas discussões políticas). É uma ética voltada para a moralidade individual – para aquilo que é um valor de ordem moral para o próprio agente. Baseia-se também na busca de excelência e de desempenho competente. E, mais do que isso, é uma ética da honra pessoal e da justiça segundo o mérito – e isto significa que o próprio mérito é visto como um aval para a recompensa individual.

Assim, não enfrenta as dificuldades práticas das éticas baseadas no altruísmo e na benevolência, sem ser uma teoria que advogue o egoísmo – já que o auto-interesse nada tem a ver com ambição crassa e oportunismo impulsivo – ou o hedonismo – pois o prazer, embora tenha um lugar na felicidade, não consiste na mera satisfação de carência, mas na experiência de bem-estar que emerge na atividade natural e excelente do homem.

Maria Cecília Leonel Gomes dos Reis é graduada em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado, Doutora em Filosofia pela USP e professora de Ética no Ibmec-São Paulo. Publicou uma tradução do Sobre a alma, de Aristóteles (De anima. São Paulo: Editora 34, 2006, 360 pp.) e, em 2008, o romance O mundo segundo Laura Ni (São Paulo: Editora 34, 2008, 192 pp.).

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Imagem: em Domínio Público no link <http://www.pdpics.com/photo/2247-ethics-pen/>. Acesso em 08/09/2015.

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Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº3, Junho/2009. Exemplares impressos das Dictas podem ser adquiridos nas grandes livrarias do País, como Cultura, FNAC, Saraiva etc.

Os Miseráveis (por Victor Bariani)

Cinema | 13/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Os Miseráveis (Les Misérables). Diretor: Tom Hooper.  Hugh Jackman, Russel Crowe, Anne Hathaway, Eddie Redmayne, Amanda Seyfried, Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter. 158 min. (2012)

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A realidade que nos cerca tem um grande poder de puxar-nos para baixo, fazendo com que olhemos apenas para o miserável e sufocante chão. No entanto, às vezes, a vida pode nos dar um belo presente erguendo-nos para cima para que, mesmo por uns instantes, olhemos de um ponto de vista mais alto e humano, respirando novos ares e aproximando-nos das virtudes e dos valores que nos motivam a viver e que, por muitos momentos, são esquecidos, pois não se encontram no chão que nos habituamos a olhar. O cinema é uma dessas cordas elevadoras de almas, e essa obra de arte da qual escrevo é um verdadeiro guindaste.

Através de um belíssimo musical, somos convidados a entender como um homem pode retribuir a injustiça, a dor e o sofrimento com o perdão, a caridade e o amor. O que, ao olhar para o chão, seria entendido como loucura é aqui a forma mais sublime de se chegar a Deus, revolucionando a si mesmo (que me perdoem os céticos, mas é impossível não falar de espiritualidade e, por conseguinte, de Deus, ao se pincelar impressões sobre esse filme). Afinal, qual é a melhor maneira de criar uma revolução? Por meio do convencimento das massas alguns diriam, ou talvez pegando em armas, diriam outros, ou ainda, fazendo algo incrivelmente revolucionário para suas cabeças, muitos iriam compartilhar a torto e a direito qualquer “post no facebook” relacionado à corrupção política. Contudo, existe outro meio de incitar uma revolução, o qual não envolve nada que se encontre na miséria do chão, mas está dentro de nós: a revolução do amor.

O intuito máximo de uma revolução é a mudança. Dito isso, é válido o seguinte questionamento: na obra em questão, quem de fato cumpriu com os objetivos da revolução? Aqueles que devolveram a dor e a violência na mesma moeda ou aqueles  que tiveram a coragem de estender sua caridade e compaixão ao inimigo? Jean Valjean não incitou as massas, não defendeu a guerrilha, nem muito menos ficaria navegando pela internet com a intenção de jogar pragas virtuais em seus inimigos reais. Em lugar dessas ações compreensíveis, mas ineficazes, ele fez sua parte: influenciou para o bem a vida das pessoas que conheceu, procurando amá-las incondicionalmente. Por que fez isso? Pois um dia fizeram isso para ele quando tiveram a oportunidade de pagar no “olho por olho” um crime desesperado que cometeu. E por que esse alguém retribuiu de maneira tão nobre a ação tão miserável de Jean? Pois um dia fizeram, possivelmente, o mesmo para essa pessoa, de modo que chegamos à conclusão que em cada um de nós existe um gancho que espera que alguma corda prenda nele para nos elevar, para tornarmos mais humanos.

Muita ilusão e idealismo, inaplicáveis à realidade? A questão é: de qual realidade estamos falando? Caso essa realidade seja acabar com as guerras e a miséria, sim, isso é um pensamento muito idealista. Entretanto, nossa realidade é aquilo que nos cerca, de modo que colocar um sorriso no rosto de uma criança, cumprir o dever com alegria e simplicidade, ajudar um homem preso em baixo de uma carroça e amar ao próximo como a ti mesmo são, dentre outros, genuínos atos revolucionários.

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2013/06/13/os-miseraveis/ 

O Ano mais violento: Liderança fecunda na serenidade (por Pablo González Blasco)

Cinema | 15/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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(A Most Violent Year). USA, 2014. Diretor: J. C. Chandor. Oscar Isaac, Jessica Chastain, David Oyelowo, Alessandro Nivola. 125 min.

Filme - O ano mais violento - 1Dispunha-me a assistir este filme relaxadamente, sem o compromisso de buscar mensagens, ou entrever desdobramentos. Algum comentário tinha-me chegado às mãos: um bom roteiro, com elementos colocados a modo de quebra-cabeças, orquestrados por J.C. Chandor, o mesmo diretor de Margin Call- O dia antes do fim. Aquele foi um filme que me agradou. Uma trama onde, moralmente falando, ninguém se salva. Corrupção, estelionatos, aproveitadores, jovens executivos aprendendo o caminho das pedras do sucesso. O mal caminho, entenda-se. Como tirar partido dos outros para sair triunfadores. E um cinismo blindado a qualquer possibilidade de compaixão pelas necessidades alheias. O preço de cada homem. E no final, a decepção, o vazio, a solidão.

Sob a batuta do mesmo diretor, e tratando-se de um empresário de sucesso acossado pela concorrência desleal, imaginei que seria uma variante sobre o mesmo tema. De fato, a trama de fundo é exatamente essa. O amplo repertório de ações espúrias que os concorrentes –e o poder constituído- empregam na tentativa de tirar do meio um imigrante empreendedor, que triunfa no seu negócio. Mas com tudo o que isso pode ter de interessante –e atualíssimo!!!- não seria motivo para sentar e escrever estas linhas. Divulgar e comentar o que não funciona, colocar a lama da corrupção no ventilador, não me atrai. É mais do mesmo, semelhante ao que todos os dias inunda nossas redes sociais. Nada disso me impulsionaria a compartilhar com os possíveis leitores, as reflexões que se acumulavam na mente e no coração enquanto assistia o filme.

Filme - O ano mais violento - 6O encanto do filme não está em denunciar a podridão que nos rodeia, mas na reação exemplar do protagonista, magnificamente interpretado por Oscar Isaac. O que lá encontrei, e me seduziu, foi a serenidade no comando, uma liderança que sabe tratar com as pessoas, com o tempo, que não se abala nas dificuldades. Liderança calma, atenta, delicada. Um homem que sob pressão não perde nunca a compostura. Trata com carinho os funcionários, interessa-se realmente por eles; sabe o valor das coisas, espera como se nada tivesse a fazer. E quando é obrigado a buscar recursos para enfrentar as canalhadas de que é objeto, rebaixa-se sem perder o estilo. Solicita dinheiro para o usureiro, aceita as condições, com quietude e aprumo. E jamais pactua com o mal, com os negócios turvos.

Algumas semanas depois tive ocasião de assistir um workshop com empresários. De entre as muitas ideias que lá surgiram –a gente frequenta estas reuniões para aprender a manejar as inúmeras ideias que pipocam desordenadamente na mente- uma evocou de imediato o protagonista do filme: um líder, mesmo sendo consumido pelo sofrimento, jamais transmite insegurança ou preocupação à sua equipe. Lembrei de Abel Morales, o nosso empresário íntegro e sereno. Lembrei do livro de Kennedy que li faz anos: “Profiles in Courage”, onde se recolhe o famoso pensamento de Hemingway, nunca tão oportuno como agora: A coragem é a graça sob pressão. Pressão variadíssima –o quebra-cabeças do roteiro- coragem inabalável, e toneladas de serenidade que é a graça que nos conquista.

Filme - O ano mais violento - 5Conforme o filme avança sentimos revolta contra a injustiça. Segue-se uma natural inclinação a buscar soluções alternativas. Se aqui ninguém respeita nada, porque eu vou ter que manter-me firme? Tentação forte, fundamentada, até com lampejos de ortodoxia. Mesmo entre os que transitam na desonestidade, invoca-se como argumento. Sem ir mais longe, os jornais destes dias recolhem exemplos surpreendentes. A polícia prende com as mãos na massa ao corrupto que, escandalizado, exclama: Que pais é este? Ou então: Porque somente eu? Onde estão os outros? Tão triste como real.

A tentação pode vir sussurrada no próprio âmbito familiar. A esposa de Abel Morales vem de família acostumada a fazer valer seus direitos pelas próprias mãos. “Vou chamar meu pai, meus irmãos” –confidencia ela. Mas o empresário opõe-se: “Vamos resolver isto do modo certo”. Ela insiste: “Mas isto é uma guerra”. Ele é inflexível: “Eles estão em guerra, mas eu não”. Sem pactos, sem recursos ilegítimos, no caminho da lei. A violência –como a mentira- tem pernas curtas, sempre são agarradas, voltam-se contra quem as pratica. A verdade é garantia de segurança, de que não se esconde nada, porque nada há para ocultar. O ministério público, omisso em conter a violência e a concorrência criminosa, monta uma operação para encontrar fraude fiscal na contabilidade do empresário. Num momento dado, o promotor conversa com a mulher, cuja família conhece de outros carnavais: “Conheço teu pai, tua família, já me deram muito trabalho”. Ela olha e afirma contundentemente: “Meu marido não é o meu pai. Nem parecido com ele. É um homem honesto”.

Filme - O ano mais violento - 4Sempre me impactaram os filmes onde a liderança se apresenta rodeada de serenidade e aprumo, sem teatralidades, numa versão aparente de low profile. Aparente, mas profunda. Imagino que a minha admiração responde a algo que, com o tempo e a maturidade, todos almejamos. Comandar no silêncio, na atitude, sem esbanjar excentricidades, mas mantendo o ritmo, as rotinas, a própria ordem estabelecida. Nem sempre boa, às vezes torta, mas passível de ser corrigida e melhorada. Todo um projeto de vida que visualiza não apenas resolver o meu problema mas instalar uma ordem justa, que facilita a vida de todos.

Impossível não lembrar de Thomas More, um dos grandes expoentes dessa liderança profunda, densa, silenciosa. “Eu daria ao próprio demônio o privilégio da lei, para com ela conquistar os meus direitos” –afirmava quando na família e no círculo dos amigos nobres da Inglaterra lhe sugeriam driblar a lei de sucessão, de todo ponto injusta e arbitrária. “Do contrário –dizia More- como vou me defender quando o demônio venha atrás de mim?”. A liderança requer observação, entender o que está acontecendo, despojar-se de preconceitos e desconfiar de diagnósticos pretensamente geniais, para então conseguir penetrar no cerne dos problemas humanos. Requer aprender a ouvir as pessoas até o fim, sem pressa. Demanda reflexão, “trabalhar” os silêncios, que também são manifestação de sabedoria e liderança. Por isso Thomas More, Lorde Chanceler da Inglaterra, mostra-se reflexivo e silencioso quando interpelado sobre “a questão do Rei” (o divórcio com a Rainha para poder se casar com Ana Bolena): “O silêncio de More ecoa por toda Europa” – queixava-se o Rei, Henrique VIII.

Filme - O ano mais violento - 3É o mesmo silencio, a assombrosa e fecunda passividade do protagonista, naquele filme inesquecível de Kurosawa, “Kagemusha- A sombra de um Samurai”. Morre o jovem imperador, e os anciãos colocam um sósia –que era um mendigo- no seu lugar. O objetivo, claro, é impedir que o primo do imperador falecido assuma o trono, porque carece das faculdades de comando. O mendigo-imperador assume o posto, fala pouco, observa de cima da montanha as suas tropas se debatendo no combate. E quando os seus soldados fraquejam na batalha, olham para cima e vem ele lá, sereno, em atitude de apoio, como uma referência inabalável. E recuperam terreno, vencendo a luta. O líder jamais transmite aos seus homens espasmos da própria insegurança. Não se envolve no operacional, porque confia na equipe. E está sempre lá, de braços abertos, acolhedor, impulsionando cada um nas suas responsabilidades. Com o passar do tempo, o primo herdeiro descobre a tramoia, destitui o mendigo impostor, e assume o trono. Mas, como previsto pelos anciãos, ele é incapaz de observar e manter uma atitude serena, de quietude no comando. Inerva-se, grita, envolve-se nas batalhas –naturalmente pensa que faz as coisas melhor do que os outros- e acaba perdendo a guerra e o império.

O ano mais violento trouxe-me esta magnífica surpresa embrulhada numa trama repetidamente apresentada no cinema. Trouxe-me aprendizados preciosos da mão da atitude de Abel Morales. Provocou-me reflexões, despertou emulação, desejo de imitar essa liderança inabalável. Reações análogas às que , em seu dia, despertou em mim o filme de Kurosawa. Não sei se J.C.Chandor, na sua direção magistral, contemplaria estes efeitos “colaterais”, mas são os que me servem, os que me levam a escrever. E a pensar. E a querer melhorar. Afinal, o cinema, como toda arte, serve-nos opções variadas das quais cada um toma as que quer, ou as que pode, ou talvez, as que anda buscando.

Filme - O ano mais violento - 2Escrevo estas linhas no meio de uma atividade educacional onde me foram assinadas algumas atuações. Impossível desprender-se destes pensamentos, enquanto abordamos outros temas que, sendo formativos, são sempre correlatos. Talvez por isso, até me tremeu a voz, emocionado, quando inclui na minha exposição uma frase que tinha lido no dia anterior. Diz assim: “Para tirares importância ao trabalho de outro, murmuras-te: ‘Não fez mais do que cumprir o seu dever’. Eu comentei: ‘Parece-te pouco?’. De fato, se conseguíssemos contabilizar nos dedos de uma mão, todos os dias, pessoas que simplesmente cumprem o seu dever –e nos incluir entre elas- o mundo seria um lugar melhor. Bem melhor.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/06/02/o-ano-mais-violento-lideranca-fecunda-na-serenidade/

 A crise financeira e a avareza – por Michael Pakaluk

Política e Sociologia | 10/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Avarice-Jesus SolanaTeria sido a avareza a causa da atual crise financeira? Não “causa” no sentido de que a avareza a produziu sozinha, mas no sentido de que, se não fôssemos avaros, a crise não ocorreria? Se a avareza fosse uma causa nesse sentido, então pelo menos parte da solução para a crise seria “moral”, ou seja, não adviria de políticas, planos e estruturas, mas de indivíduos que pensassem e emendassem as suas vidas. Para que isso se realizasse, precisaríamos antes chegar a um consenso sobre o que é a avareza. No entanto, “avareza” parece uma palavra antiquada, raramente usada por alguém. Quem teria qualquer idéia de como defini-la?

Dificilmente alguém teria se valido da “avareza” para explicar a crise, a não ser que tal palavra realmente desempenhasse um papel nos acontecimentos. Há já culpados suficientes: basta que citemos as hipotecas subprime, asdívidas securitizadas, os credit default swaps e o sobre-endividamento dos fundos livres bancários. Mas o fato de somarmos a avareza a isso tudo diz-nos algo muito interessante acerca do modo como pensamos a economia; baseados no senso comum, assumimos que o mercado se situa num universo moral; e esperamos que os prejuízos fiscais se originem na maldade, e a pujança fiscal na bondade ética.

Os políticos evocam a avareza de maneira insatisfatória, como a última campanha presidencial dos EUA deixou claro. Barack Obama declarou “A era da avareza e da irresponsabilidade em Wall Street e Washington conduziu-nos a um momento arriscado” e “Com demasiada freqüência nós desculpamos e mesmo aderimos integralmente a uma ética da avareza,  do caminho mais fácil, das tramóias, de coisas que sempre ameaçaram a estabilidade a longo prazo do nosso sistema econômico”. John McCain abordou o tema de maneira análoga: “Um número excessivo de pessoas em Wall Street esqueceu ou desprezou as regras básicas das negociações saudáveis. Na sua busca interminável por dinheiro, sonharam esquemas de investimentos que eles mesmos eram incapazes de compreender. Tentaram criar as suas próprias regras. A avareza recebeu a sua paga. O excesso recebeu a sua paga”.

Ao falarem desse modo, os políticos combinam a avareza e o poder de uma maneira que é de pouca serventia. Tanto para Obama como para McCain, a “avareza” ou a ganância é algo que convenientemente afeta as pessoas que estão longe, uns poucos privilegiados e poderosos “em Wall Street e Washington”. Segundo essa visão, ter dinheiro é ter poder, e qualquer um que tenha grandes quantidades de dinheiro (Wall Street) ou muita influência (Washington) é suspeito de agir visando ao seu engrandecimento próprio. A avareza é vista simplesmente como mais um exemplo da máxima de Lord Acton, só que nesse caso é o dinheiro que corrompe, e dinheiro ilimitado corrompe sem limites.

Mas esse modo de falar sobre a avareza não contribui para a reflexão e reforma moral do indivíduo. Discursos que jogam a culpa naqueles que estão longe falham ao provocar o arrependimento e a conversão. Além do mais, erram o alvo, uma vez que a maior parte de nós dispõe de pouco poder – embora todos estejamos sujeitos ao domínio e aos tormentos da avareza.

Fundamentalmente, se existe a tal da avareza, é com certeza uma falha moral particularmente ligada ao dinheiro. E toda a falha pode ser vista como uma expansão indevida de poder, assim como todo o pecado é tradicionalmente visto como uma expressão da vanglória. Um assaltante é um tirano em miniatura bem como um tirano é um assaltante em grande escala, disse Agostinho. Mentir é aumentar o próprio poder à custa da credibilidade e da verdade; cometer adultério é exercer um poder que não se possui sobre o cônjuge alheio. Mesmo bancar o covarde é uma maneira de arrogar-se poder, como, por exemplo, no caso da imunidade ou do direito de não se expor ao perigo da mesma maneira que os outros. Portanto, não é apenas a avareza que está ligada ao poder. E qual seria então o seu caráter distintivo?

Não quero dizer aqui que é incompreensível o porquê de dois políticos estarem dispostos a crer, baseados na própria experiência, que dinheiro equivale a poder. Na verdade, seria bastante razoável relutar a aceitar discursos moralistas sobre a avareza de dois políticos que, somados, levantaram e gastaram mais de um bilhão de dólares nas suas campanhas. Está bem claro o papel retórico da combinação que os políticos fazem entre avareza e poder: trata-se de um precedente para a intervenção governamental. Uma vez definido que a causa da crise foi algo tão moralmente repreensível como a avareza, fica implícito que os culpados dificilmente poderão queixar-se caso sofram ou sejam “punidos” por seus erros. E quando se sugere que essas pessoas irresponsáveis e avaras possuem poder sem limites, ficam justificados quaisquer medidas que se possa tomar para a redução de tal poder.

A avareza como um pecado capital

Uma boa educação nos torna livres e capazes de escolher por conta própria entre o que há de melhor no pensamento e na cultura, independentemente das circunstâncias de tempo e de espaço: ouvir, por exemplo, a melhor música e não a música de minha sociedade; conhecer as teorias que se mostram verdadeiras e não aquelas que por acaso me foram ensinadas. Tenho em casa café brasileiro, vinhos franceses, música vienense. Na minha biblioteca, posso ler os livros de física de Feynman, a crítica de Pound e a teoria dos números de Dedekind. Mas suponhamos que eu queira aprender algo acerca da avareza: a que fonte me voltaria para ter uma referência sobre ela?

Devemos assumir que há certa reciprocidade entre as culturas. Cada época prima por alguma coisa, e não por todas elas. Nosso tempo prima pela ciência e tecnologia. Suponhamos que um sujeito que recebeu boa educação fosse capaz de conhecer não só as culturas do passado, mas também as do futuro: seria ilógico que alguém do século XIII preferisse a física do seu tempo à física do século XX, simplesmente porque a teologia do século XIII era excelente. Da mesma maneira, seria ilógico para nós, aqui e agora, preferir o que os autores contemporâneos dizem sobre a avareza (se é que eles dizem algo sobre ela), simplesmente porque a nossa física é magnífica. Se quisermos uma reflexão sadia sobre as fraquezas e forças do caráter – as virtudes e os vícios -, é melhor olharmos muitos séculos para trás, particularmente para os clássicos e os chamados “Padres da Igreja”. O que Feynman é para a Física, Aristóteles e Cícero, Agostinho e Tomás de Aquino são para a teoria das virtudes e dos vícios.

A avareza aparece classicamente na lista dos “sete pecados capitais”, ao lado da luxúria, da gula, da vanglória, da inveja, da ira e da acídia. Talvez tendamos a pensar que qualquer coisa clássica e central é necessariamente familiar no sentido de que já nos teríamos apropriado dela de algum modo. Talvez presumamos que aquilo com que tivemos contato no passado ou foi incorporado às coisas que aceitamos hoje ou rejeitado com razão. E, contudo, a lista dos sete pecados capitais demonstra que as coisas não são bem assim, que podemos estar radicalmente alienados da nossa própria tradição.

Prova disso é, por exemplo, o fato de, na nossa linguagem cotidiana, não atribuirmos naturalmente esses “pecados capitais” a ninguém. De fato, quase ninguém tem idéia do que é “acídia”; e nunca nos repreendemos uns aos outros chamando-nos de “luxuriosos”, mesmo não se podendo negar que, não importa o sentido da palavra, a luxúria cerca-nos por todos os lados. Em vez disso, possuímos caricaturas desses pecados na nossa imaginação: representamos a avareza talvez como um homem contando e recontando suas moedas de ouro – o que equivale a dizer que não pensamos numa aplicação prática e simples para essas palavras.

A nossa alienação da tradição clássica também se demonstra no fato de abraçarmos uma escala diferente para a valoração das virtudes e dos vícios, o que não dá espaço para qualquer resquício do entendimento clássico. Cada cultura possui inevitavelmente um modelo de caráter ideal, uma vez que possui leis e costumes diferentes, o que supõe um caráter que os cumpra melhor que os demais e, portanto, uma lista dos vícios que lhe são mais opostos. Mas quais são as principais palavras usadas na crítica da nossa cultura contemporânea? O que um observador neutro identificaria como os nossos “pecados capitais” se tomasse como base as coisas que louvamos e as que condenamos? A maior parte do vocabulário que usamos para dizer que alguém é mau inclui um punhado de termos com conotações similares: uma pessoa é má se “julga” os demais, se é “intolerante”, “insensível”, “inflexível”, “ultraconservadora” ou “enviesada”. Seria interessante o projeto de pesquisa que procurasse explicar essa lista. Minha tese é de que essa lista é consideravelmente mais limitada que a lista dos sete pecados capitas e que, além do mais, não a supera. Perdemos a tradição clássica, não a incorporamos, e a substituímos com uma linguagem que rivaliza com ela – o que cria um problema considerável caso continuemos avaros, vaidosos, luxuriosos e inclinados à inveja, a despeito da mudança de linguagem.

Os pecados capitais foram identificados e dispostos numa lista de sete pelo papa Gregório Magno, em finais do século VI. Gregório refletiu sobre eles no seu livro Magna Moralia, que era de fato um comentário gigantesco ao livro de Jó que soma aproximadamente meio milhão de palavras (quase o mesmo tamanho do Antigo Testamento). Coube a escolásticos como Boaventura (Breviloquium) e Tomás de Aquino (Summa) a tarefa de racionalizar a lista. Lá pelo final da Idade Média, a identidade e o significado dos sete pecados capitais eram pressupostos e considerados óbvios para toda pessoa com instrução, como deixam claro o Purgatório de Dante e os Contos de Canterbury de Chaucer.

Gregório falou dos pecados “capitais” e das “filhas” desses pecados. A palavra “capital” vem da palavra latina caput, “cabeça”. Isto é: não no mesmo sentido em que alguns crimes são chamados de “capitais” (porque são considerados merecedores da pena de morte, o que poderia envolver a decapitação do criminoso); o significado está mais para a definição de CEO como a “cabeça” de uma corporação. Acredita-se que os pecados capitais direcionam e governam o comportamento de uma pessoa e que, ao fazê-lo, incitam essa pessoa a outros pecados que (na linguagem de Gregório) seriam as suas filhas. De modo que, de acordo com o conceito que Gregório faz da avareza, por exemplo, as suas filhas são: a trapaça, a fraude, a falsidade, o perjúrio, a inquietude, a violência, e a inclemência. As filhas da inveja, por outro lado, são: o ódio, a murmuração, a detração, a alegria pelas desgraças alheias e a dor diante da prosperidade do próximo. Gregório menciona 43 “filhas” no total. Note-se que, na visão dele, não eram todos os pecados que provinham dos sete pecados básicos, mas a sua quantidade era tal que, do ponto de vista da estratégia, valia a pena isolar estes últimos, classificando-os de “capitais”.

Os pecados capitais, por sua vez, subdividem-se naturalmente num grupo de quatro e noutro de três. Quatro deles supõe algum tipo de avidez desordenada e excessiva: a luxúria (avidez pelos prazeres sexuais), a gula (avidez pelos prazeres da bebida e da comida), a avareza (avidez por dinheiro) e a vanglória (avidez por honra). Ao passo que os outros três não supõem uma avidez, mas uma espécie de aversão: a inveja (dor diante do bem alheio), a ira (irritação diante do bem alheio) e a acídia (dor diante do que é verdadeiramente bom para si mesmo).

Os pecados capitais como origem dos pecados

Por que é valioso do ponto de vista da estratégia fazer a distinção entre esses sete pecados? Tomás de Aquino, na racionalização da lista que fez muito posteriormente, diz que isso se deve à estreita conexão entre os sete pecados capitais e a felicidade. Todos os pensadores antigos e medievais eram unânimes em afirmar que tudo o que fazemos, fazemo-lo com vistas à felicidade. O nosso desejo de felicidade, portanto, é o que motiva todas as nossas ações. Quando é entendida corretamente, diz Tomás de Aquino, a felicidade motiva ações boas e virtuosas – porque a felicidade é, na realidade, a posse e o gozo de Deus. Mas Deus só pode ser possuído por quem estiver purificado do pecado e for inteiramente virtuoso.

Os quatro pecados capitais “por avidez” ocupam um lugar estratégico porque todos procuram algo que é um simulacro da felicidade e que, portanto, pode ter nas nossas vidas um papel semelhante ao da verdadeira felicidade. Por exemplo: supomos que, se estivermos sempre buscando uma quantidade incalculável de dinheiro, estaremos livres dos cuidados e preocupações relacionados com a atenção das nossas necessidades diárias; ou seja: buscamos uma soma incalculável de dinheiro procurando a “auto-suficiência” que julgamos ser uma característica da felicidade. (Tomás de Aquino ecoa a tradição quando diz ser correto buscar a auto-suficiência, mas incorreto querer consegui-la por meio de posses, de vez que, na realidade, os nossos cuidados e necessidades aumentam na mesma medida das nossas posses.) Assim, as pessoas que amam o dinheiro perseguem uma imitação da felicidade, e esse fim ilusório organiza todo o seu comportamento, porque a felicidade é o fim último de toda a ação humana.

Igualmente, a luxúria tem por meta uma espécie de êxtase de prazer que esperamos com razão encontrar-se junto da felicidade, mas que não poderemos obter nas relações sexuais. A gula tem por meta uma espécie de apaziguamento de todos os desejos – inclusive todos os caprichos – que, de novo, esperamos com razão ser uma característica da felicidade, mas que a bebida e a comida não podem proporcionar de fato. E a vanglória é ávida por glória e fama, mas pode apenas ganhar um reconhecimento passageiro dos homens, não um tipo duradouro de fama e glória. Mais uma vez, estamos certos em supor que a felicidade traz consigo a fama e a glória; mas erramos ao tomar o louvor alheio como se fosse a honra que nos satisfará para sempre.

Se os quatro pecados capitais “da avidez” tiram-nos do caminho por nos conduzirem a imitações ilusórias da felicidade, os três pecados capitais “da aversão”, dentro do quadro clássico, tiram-nos do caminho por impedirem que procuremos a verdadeira felicidade. Segundo a teoria clássica, a verdadeira felicidade é obtida pela posse de “bens espirituais” (tais como um bom relacionamento com Deus e as virtudes) de que gozamos em companhia de outras pessoas. (A felicidade, nessa visão, é social, porque os seres humanos são sociais por natureza; fomos feitos para sermos felizes junto dos outros e não sozinhos e por conta própria.) Somos impedidos de procurar a verdadeira felicidade quando relutamos em buscar os bens espirituais para nós mesmos (o que é a acídia), e quando relutamos em endossar o bem do nosso próximo (pela inveja ou pela ira).

É impossível não afirmar algo, uma vez que o tenhamos como um bem. Portanto, esses pecados capitais “de aversão” levam-nos a rejeitar uma coisa boa por causa de algo incômodo ou desagradável que a acompanha. Deixamos de rezar, por exemplo, porque o silêncio e a quietude que lhe são necessários nos aborrecem. Entristecemo-nos com a prosperidade de um amigo porque fazemos uma comparação entre nós e ele, e associamos o seu bem com a nossa própria desdita. Ou ainda: o sucesso de alguém nos incomoda e irrita (“Mas que injustiça!”) porque consideramos que nós é que o merecíamos. (Note-se que dentro da tradição clássica, “acídia” não significa preguiça: de fato, não é incomum ver pessoas que demonstram aversão ao seu verdadeiro bem espiritual por meio de uma atividade que chega a ser frenética dirigida a outras realidades, como bem apontou Pascal no seu famoso diagnóstico acerca da nossa inclinação para os divertissements.) Todas essas aversões são irracionais – algumas delas o são porque é irracional rejeitar um bem incomensuravelmente maior por causa da presença de um mal menor (como rejeitar a oração por causa do aborrecimento); outras, porque é irracional assentir e agir baseando-se numa associação que é meramente ilusória (o sucesso do meu próximo comparado ao meu).

Avareza e vanglória

A avareza e a vanglória ocupam um lugar privilegiado dentro da teoria tradicional dos pecados capitais, uma vez que ambas são consideradas como o ponto de partida de todos os outros pecados, não apenas daqueles pecados a que incitam e que são suas “filhas”. Tal pensamento plasmou-se nas máximas “O amor ao dinheiro está na raiz de todo o mal” e “A vaidade é a origem de todos os pecados”. E não há contradição aqui, já que ambas trabalham juntas e de modo complementar.

Para compreender tal raciocínio, precisamos antes clarificar os conceitos de avareza e vanglória. Como os outros pecados “de avidez”, ambas envolvem um amor excessivo e “desordenado” por algo que é naturalmente amável e que é bom amar de maneira razoável. Isso é evidente no caso da gula: é natural que tenhamos fome e que desejemos uma comida saborosa, mas, quando exageramos nesse desejo, o excesso leva-nos à gula. Da mesma forma, desejamos naturalmente destacar-nos e sobressair-nos, naturalmente queremos reconhecimento pelos nossos feitos – isso é evidente quando notamos como as crianças, desde cedo, gostam de ganhar nos jogos e receber elogios dos seus pais. E, contudo, quando exageramos nisso, caímos na vanglória. Da mesma maneira, as crianças desde cedo querem ter posses, especialmente brinquedos e jogos, e também dinheiro assim que passam a entender o que ele é. E os excessos nesse campo são avareza.

Não é preciso refletir muito para perceber, baseados no senso comum, por que a natureza humana inclui esses desejos que nós, natural e inevitavelmente, desenvolvemos pelas posses e pelo reconhecimento alheio. Precisamos de posses e da orientação alheia para desenvolver-nos bem e florescer na sociedade. Não surpreende, portanto, sermos equipados com desejos de procurar diligentemente essas coisas de que necessitamos.

Mas também é evidente que desde a tenra idade as crianças demonstram com facilidade – e parece ser mesmo inevitável – um amor à distinção e ao dinheiro que é, nalguns aspectos, irracional por ser um tanto excessivo. Por exemplo: todos os irmãos que conheço e que têm aproximadamente a mesma idade brigam entre si por sua posição e ordem nas diversas situações do cotidiano. (Excluo do exemplo os irmãos que possuem uma grande diferença de idade entre si, porque em tais casos a posição é evidente e incontestável.) Se um pai está dirigindo para algum lugar e o banco do passageiro está vago, as crianças brigam para saber quem vai ocupá-lo, uma vez que o lugar é considerado mais importante por estar perto do motorista e ser na frente. É natural e razoável que uma criança queira sentar-se no banco do passageiro. Mas brigar por causa disso não é razoável para ninguém, uma vez que o banco do passageiro não é tão importante que mereça ser conquistado ao preço de uma contenda.  Mas as crianças o desejam de uma maneira tão excessiva que não pensam duas vezes antes de entrar numa briga sem fim por ele. Os pais devem então implementar algum sistema de revezamento ou valerem-se de uma ameaça de castigo que seja suficiente para suprimir, não o desejo, mas as expressões das crianças desse seu desejo de sentar na frente.

Importar-se em demasia com sentar-se no banco do passageiro é, literalmente, vanglória: um apego excessivo a um reconhecimento ou ponto de honra. Todos nós começamos a vida com a tendência de demonstrar a nossa vanglória dessa maneira (embora essa falta, em crianças, seja reconhecidamente menor); a questão é se conseguimos superá-la ou simplesmente mudamos o tipo de distinção pelo qual estamos dispostos a brigar – talvez uma cátedra universitária em vez do banco do passageiro num carro.

O amor ao dinheiro também desperta cedo nas crianças; é muito forte e deforma-se facilmente. Joseph, meu filho de oito anos, põe o lixo da cozinha para fora todos os dias e semanalmente põe o lixo na rua para que o lixeiro o possa levar, muitas vezes enfrentando chuva ou frio intensos. Tudo para ganhar uma recompensa de um dólar. Ele não faria tais coisas apenas por amor à sua mãe. Crianças mais novas podem fazer tarefas extremamente árduas para elas, como recolher os brinquedos espalhados num playground, se sabem que receberão como prêmio um pequeno brinquedo, um carrinho de fricção por exemplo.

Mas o dinheiro é a motivação mais forte por causa do seu caráter indefinido. O dinheiro pode ser gasto em qualquer coisa. Uma criança com alguns dólares no bolso sente-se capaz de adquirir, em princípio, quaisquer bens e serviços que possa querer. “Posso fazer o que eu quiser com esse dinheiro”, ela pensa de si para si. Enfatizemos o “o que eu quiser” dessa afirmação e veremos porque Gregório e Tomás de Aquino, fazendo eco a São Paulo, se referiam ao amor ao dinheiro como raiz de todos os males: é a raiz do mal, dizem eles, da mesma forma que a raiz de uma planta nutre e sustenta o seu crescimento. O caráter indefinido do dinheiro sugere que é possível usá-lo para satisfazer qualquer desejo que se tenha. O dinheiro por si só, considerado como algo indefinido e universalmente aceito como elemento de troca, não carrega consigo noção de limite ou subordinação a alguma regra ou bom propósito. Assim, o amor ao dinheiro, considerado por si só, dá-se simplesmente como um meio para levar a cabo outras coisas, não importando se estas estão sujeitas a uma regra correta ou a um fim bom. Com certeza o leitor terá ouvido o imperativo tecnológico: “Poder implicadever“; paralela a ele, mas precedendo-o, está a “sugestão financeira”: “Poder implica fazer, se eu quiser“.

O amor ao dinheiro

A avareza é algumas vezes definida como “amor desordenado ao dinheiro”, mas num sentido filosófico mais rigoroso o amor ao dinheiro já é desordenado de per se; não pode haver qualquer justo ordenamento dele. O motivo tem a ver com a maneira mais precisa em que os nossos afetos deveriam ser descritos. Se amamos uma coisa unicamente por causa de outra, então é precisamente esta que amamos. O dinheiro é um instrumento, o mais simples entre os mais simples meios. É por isso que o amor por algo bom que podemos levar a cabo graças ao dinheiro “flui diretamente por ele” e é um amor por aquele bem. Se, por exemplo, o meu filho Joseph deseja ardentemente ganhar a sua recompensa para poder comprar presentes de Natal para os seus irmãos e irmãs, então, nesse caso específico, ele não tem nenhum amor pelo dinheiro, mas pelo seus irmãos e irmãs.

Assim, ao perguntar-nos se somos avaros, devemos perguntar se consideramos o dinheiro algo que não seja meramente um meio para atingirmos um fim bom. E nesse sentido parece haver apenas quatro caminhos pelos quais nos podemos desviar. Os exemplos ficam mais claros quando nos detemos sobre o uso (ou gasto) do dinheiro em vez de deter-nos sobre a sua obtenção, de modo que podemos focalizá-los. Primeiro, podemos gastar o dinheiro em coisas que não são meio para nenhum fim bom: neste caso o usamos de maneira indolente, o que é um “capricho”. Segundo, o fim é bom, mas gastamos demasiado com ele, o que pode ser considerado uma “extravagância”. Por outro lado, o fim pode ser bom em si, mas as circunstâncias o tornam injustificado, irracional ou desordenado de alguma maneira. Se o bem que estimamos de maneira desordenada diz respeito ao corpo e ao seu bem-estar, então o gasto acaba por ser um mero “conforto” (e eis aqui o terceiro caso); se, por outra, o gasto está direcionado a um bem psicológico amado desordenadamente, então se trata de “vaidade” (o nosso quarto caso).

Podemos agora ver como a vanglória e a avareza trabalham juntas como se tivessem nascido uma para a outra. Querer dinheiro para um fim que seja indefinido ou hipotético, apenas para poder dizer “posso fazer o que eu quiser com isso”, implica inicialmente uma susceptibilidade à afirmação de que “tenho um motivo para ter isso” que quase sempre traz consigo uma idéia de bajulação – já que eu me gabo de os meus desejos serem o único padrão aceitável para qualquer gasto. A minha ânsia ilimitada por dinheiro é já um tipo de presunção, como se eu pudesse justificar-me por não usar o dinheiro de acordo com qualquer princípio ou limite. Ou ainda, por meio da vanglória, desejamos reforçar e sinalizar a nossa distinção com relação aos outros: e gastar dinheiro em algo que nós podemos, e os outros não, é o melhor meio de fazê-lo (daí o uso do termo “exclusivo” para tornar que um produto é desejável). A primeira manifestação de vaidade nas mulheres aparece em gastos com a aparência e moda e, nos homens, aparece em gastos com instrumentos e acessórios.

Quatro entre as sete tradicionais “filhas” da avareza envolvem uma injustiça direta levada a cabo por variados meios: trapaça, fraude, falsidade, violência, falsidade e perjúrio. Não surpreende que a avareza faça surgir a injustiça. A justiça consiste na aplicação de uma medida adequada para a justa distribuição do dinheiro; implica certo tipo de padrão e limite. Mas amar o dinheiro por si mesmo, como vimos, é amá-lo sem entender que a sua obtenção e o seu uso estão sujeitos a regras e limites. Isso não quer dizer que qualquer pessoa avarenta cometerá inevitavelmente uma injustiça; muito menos que a avareza sempre supõe uma injustiça. O que, sim, isso quer dizer é que, do ponto de vista da pessoa movida pela avareza, considerações sobre a justiça parecerão sempre externas, arbitrárias e impostas. Não há nada na avareza para evitar que se cometa uma injustiça, ao passo que há muito nela que dispõe à obtenção e gasto de dinheiro sem qualquer preocupação acerca da justiça ou da injustiça. Por outro lado, uma pessoa que concebe obter dinheiro para um fim e sob alguma regra achará natural a adoção de alguma regra que trate da justiça. Alguém pode perguntar se um princípio de justiça não deve estar implícito em qualquer fim bom a que se destinará o dinheiro: a criança que quer ganhar dinheiro para comprar presentes para a sua família já supõe que, por exemplo, deve gastar mais dinheiro em presentes para os seus irmãos do que em presentes para colegas.

A avareza e a ética social

Já foi dito que a doutrina dos sete pecados capitais – e outras doutrinas clássicas semelhantes a ela – são de pouca valia nos dias de hoje porque são totalmente individualistas, enquanto todos os mais importantes “pecados” atuais têm um caráter social. Temos uma tendência para acreditar nisso, o que decerto explica a pequena tempestade midiática desencadeada no ano passado quando um cardeal vaticano, Gianfranco Girotti, sugeriu que “novos pecados surgiram no horizonte da humanidade como um corolário do processo inexorável de globalização”. E ele citou como exemplos a “destruição do meio ambiente”, as “experiências com embriões”, o “tráfico de drogas”, e “riqueza obscena”. O Times Onlinenoticiou logo em seguida, e bastante enganado, que o Vaticano tinha identificado os “novos sete pecados capitais”, e outras agências de notícia logo estavam dizendo coisas parecidas. E todas erraram: o bispo unicamente quis chamar a atenção para os novos e importantes tipos de pecado sem negar os antigos. “Se ontem o pecado tinha uma dimensão bastante individual, hoje possui um impacto e uma ressonância que é, sobretudo, social, por causa do grande fenômeno da globalização”, disse o bispo.

No entanto, as duas maneiras mais comuns de entender o contraste entre o “individualismo” da tradição antiga e as dimensões sociais das faltas modernas parecem estar equivocadas. Com certeza, as sociedades mais antigas e tradicionais não careciam da noção de que os pecados privados conduziriam cumulativamente a conseqüências sociais desastrosas. A Bíblia é repleta de exemplos de sociedades que entram em colapso ou são atingidas por catástrofes por causa dos pecados da sua população. São Tiago chega mesmo a pôr a guerra como conseqüência da avareza e da inveja (4, 1-2).

Em tempos mais recentes, Bernard Mandeville escandalizou os seus contemporâneos com a sua Fábula das abelhasprecisamente por sustentar, paradoxalmente e contra a crença padrão, que “vícios privados são virtudes públicas”. E parece que, quanto mais uma cultura crê firmemente na realidade da Providência, mais prontamente procurará por uma ligação entre a fibra moral de um povo e a sua prosperidade com o passar do tempo. Nesse sentido, lembremos do segundo discurso inaugural de Lincoln, que põe a calamidade da Guerra Civil como conseqüência da injustiça de cada um dos proprietários de escravos:

 “Se supomos que a escravidão americana é uma dessas ofensas que, segundo a Providência de Deus, deve necessariamente sobrevir, mas que, continuando além do tempo por Ele determinado, Ele quer agora extirpar, e que ela dá tanto ao Norte como ao Sul esta guerra terrível como pena devida àqueles pelos quais veio a ofensa, veremos nisso algum distanciamento dos seus divinos atributos e que os crentes num Deus vivo sempre reconheceram nEle? Esperamos amorosamente, oramos fervorosamente para que esse poderoso flagelo possa passar rapidamente. Contudo, se Deus deseja que continue até que toda a riqueza empilhada pelos escravos em duzentos e cinqüenta anos de trabalho não remunerado desmorone, e até a última gota de sangue derramada pelo látego seja paga por um outra derramada pela espada, devemos dizer hoje o que já foi dito há três mil anos: Os juízos do Senhor são todos justos e verdadeiros“.

 Também não é o caso de os pecados parecerem mais sérios aos nossos olhos se for levado em conta o seu aspecto social. Pode-se supor que o “consumismo” é o equivalente moderno e social da avareza, bem como o “hedonismo” o é da gula e da luxúria. Ainda assim, podemos nos perguntar se há alguém motivado a evitar o “consumismo” ou mesmo que o perceba e o veja como algo errado sem vê-lo sob o mesmo aspecto que aquilo que muito naturalmente designaríamos pela palavra “avareza”.

De fato, não é claro que o “consumismo” é uma falta – é por isso que as pessoas falam de “consumismo desenfreado” quando querem fazer uma crítica. Entre as filhas tradicionais da avareza está a insensibilidade à misericórdia, que é a falha em perceber que os outros passam necessidade e, quando se percebe, a falta de vontade de sacrificar um pequeno luxo para aliviar a condição do outro. Se dissermos que isso é o resultado da avareza, que por sua vez tem a ver com a vanglória e o orgulho, remontamos a coisas muito abomináveis e a qualificamos, por conseguinte, de abominável. Mas o consumismo, pelo que sabemos, é uma coisa boa, e uma palavra, enquanto indicadora de uma condição social, que nos remonta apenas à nossa própria sociedade, que terá aspectos bons e maus e não será de todo má.

Avareza e negócios

Uma questão pertinente é se a avareza, enquanto um pecado capital, tem qualquer relação com a ética. Isso porque é possível ler dezenas de livros sobre ética nos negócios sem encontrar qualquer referência à avareza.

Em certo sentido há um bom motivo para isso, porque apesar de todo o falatório sobre a influência da avareza na economia moderna, há estruturalmente pouco espaço para a avareza nos negócios hoje em dia. Procurar dinheiro em troca de um produto ou serviço, por um valor aferido e aceito pelo consumidor depois de uma justa exposição, não tem nada que ver com a avareza, uma vez que implica querer receber dinheiro apenas sob uma condição e dentro de alguns limites (a saber, que o bem ou o produto seja aquele com que o consumidor concordou).

As modernas economias de mercado foram ainda além na direção de resolver o problema da avareza por meio de uma nova profissão votada especialmente, por assim dizer, à neutralização da avareza: os contadores e auditores, cujo papel específico na economia de mercado é oferecer serviços de “auditoria”, como se costuma dizer. Isso quer dizer que o contador ou auditor é posto em circunstâncias que o tornam financeiramente “independente” das decisões que ele toma sobre a apresentação que uma companhia lhe faz da sua situação econômica, de tal maneira que o seu julgamento, para a validade das informações divulgadas por tal companhia, não possa ser afetado por distorções oriundas da avareza. Os contadores resolvem o problema da avareza na condução de uma empresa por meio de uma separação entre aqueles que fazem dinheiro e aqueles que divulgam oficialmente quanto dinheiro foi feito e como ele foi feito.

Contudo, parece que a avareza pode entrar no sistema e subvertê-lo. Mas curiosamente parece que o único a fazê-lo é aquele único membro do público investidor que parece não ter o juízo viciado pela avareza. Não foi a “avareza de Wall Street” a primeira responsável pelas maiores fraudes e quebras das últimas duas décadas, mas a avareza do investidor individual. Em todo o caso, os investidores admitiram estar conseguindo prazos e retornos que eram “bons demais para ser verdade”, e, contudo, nunca fizeram qualquer pergunta sobre isso – um sinal clássico de ganância -, portanto a sua condescendência com tal esquema foi essencial para que o aparecimento da fraude e do abuso.

Por exemplo, as pessoas que investiram na Enron não tinham idéia de como ela produzia os seus lucros; compravam as ações unicamente porque o preço delas não parava de subir. É por isso que sete meses antes do colapso da companhia, a analista Bethany Mclean escrevia na 5 Magazine uma matéria em que se fazia essa pergunta e não conseguia responder: “Como exatamente a Enron ganha dinheiro? É difícil chegar a detalhes porque a Enron mantém sob sigilo os dados específicos… e os analistas não têm a menor idéia…”

Ou ainda, no caso da fraude de Bernie Madoff, alegou-se que os investidores foram roubados em mais de cinqüenta bilhões de dólares num caso que não passava de um esquema Ponzi: os investidores continuaram a investir com Madoff fundados na afirmação de que ele tinha uma estratégia de investimento que geraria sempre um lucro de 12% independentemente das tendências do mercado. Isso era impossível, como qualquer um poderia perceber se se desse ao trabalho de averiguar devidamente. Mas os clientes de Madoff, que se gabavam por serem parte de um grupo exclusivo de pessoas ricas que tinham acesso a Madoff, nunca fizeram as perguntas mais óbvias ou céticas.

Finalmente, a recente crise financeira poderia não ter ocorrido se os corretores de hipoteca não tivessem concedido milhões de financiamentos imobiliários insustentáveis; porém, para cada analista de crédito inescrupuloso que concedia tais empréstimos havia centenas de proprietários de casa que sabiam claramente dos riscos do empréstimo e, não obstante, o contraíram, ou que emprestaram dinheiro sem grave necessidade para evitar uma suposta perda no equilíbrio da sua casa.

Esses últimos exemplos mostram porque mesmo hoje ainda é melhor continuarmos a chamar de “avareza” a nossa principal falta com relação ao dinheiro. Ou seja: é melhor reconhecer que essa falha pessoal tem uma dimensão social do que tentar substituí-la pelas muito faladas forças sociais de grande escala como o “consumismo” e o “materialismo”. O que os exemplos citados indicam é que a contribuição de um indivíduo para o comportamento de um grupo muito grande será tão pequena que estará sujeita a problemas criados por aproveitadores. Não faz diferença para a crise financeira se um indivíduo que precisa pagar a sua hipoteca toma dinheiro emprestado responsavelmente ou não. A crise não será consideravelmente mitigada se ele for responsável, nem consideravelmente agravada se for irresponsável.

E, no entanto, a sociedade não pode caminhar bem a não ser que cada membro veja a si mesmo como responsável por evitar problemas relevantes. E é precisamente a isso que uma reflexão sobre a avareza e a sua irracionalidade vai conduzir os membros de determinada sociedade. Curiosamente, evitar um pecado tão “individualmente” que a pessoa o evita sem se preocupar com os seus efeitos na sociedade mostra-se melhor para a sociedade do que evitar algo concebido como um “pecado social”.

 Michael Pakaluk é professor de filosofia no Institute for the Psychological Sciences (Arlington, VA). É graduado e Ph.D. pela Universidade de Harvard, onde teve a sua dissertação orientada por John Rawls. Foi bolsista Marshall para estudar David Hume na Universidade de Edimburgo. Já lecionou na Universidade Clark, e foi professor visitante em Brown, Cambridge, Universidade Católica da América, Harvard e Universidade de St. Andrews. Entre os seus inúmeros artigos e livros acadêmicos estão The Clarendon Aristotle Volume on Nicomachean Ethics VIII and IX (1998); Aristotle’s Nicomachean Ethics: An Introduction (Cambridge University Press, 2005); e Understanding Accounting Ethics, 2ª. ed., com Mark Cheffers, CPA (Allen David Press, 2007).

Tradução de Cristian Clemente, licenciado em Letras pela FFLCH-USP.

Publicado em português na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Edição nº 3, Julho/2009, disponível no link <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/avareza-aqui-e-agora/>

Imagem do post: “Avarice” by Jesus Solana from Madrid, Spain – [http://www.flickr.com/photos/pasotraspaso/6953271968/ 29-52.Uploaded by PDTillman. Licensed under CC BY 2.0 via Wikimedia Commons – http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Avarice.jpg#mediaviewer/File:Avarice.jpg

47 Ronins: Uma avalanche de virtudes que carecemos!, por Pablo González Blasco

Cinema | 02/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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47 Ronins. Diretor: Carl Rinsch. Keanu Reeves, Hiroyuki Sanada, Min Tanaka, Kou Shibasaki, Tadanobu Asano, 119 min. (2013)

47ronins-capa     Reconheço que minha sensibilidade é insuficiente para apreciar a fascinante cultura oriental; escapam-me muitos dos detalhes, riquíssimos, que embrulham suas historias. Mesmo assim, aventurei-me com este filme, apesar de ter ouvido comentários não muito favoráveis. “Uma mistura de lenda épica com fantasias fora de lugar: bruxas, criaturas raras, excesso de imaginação. Um filme esquisito.”. Apertei o play e já nos primeiros fotogramas escutei o recado que me seduziu. “No Japão Feudal as províncias eram governadas por um Shogun, e a paz mantida pelos Samurais a qualquer custo. Se um Samurai fracassasse ou decepcionasse o seu senhor, sofria a pior vergonha em toda a comunidade japonesa: tornava-se um Ronin. Saber a história dos 47 Ronins significa saber a história de todo o Japão”.

Não pude menos de lembrar uma outra experiência que vivi há 10 anos, quando assisti O Último Samurai, e me emocionei com as lendas do Japão Feudal, e com a enxurrada de virtudes humanas que ornam a vida dos Samurais. Muitas vezes usei cenas desse filme nas minhas conferências, sempre com alto impacto. Recordo um aluno de medicina que se aproximou de mim no final de uma palestra, quando eu estava recolhendo o meu computador e me disse emocionado: “Professor, eu quero ser um Samurai”.

47ronins-2     Os 47 Ronins são Samurais degradados pelo Shogun porque o Samurai líder decepcionou com o seu comportamento, atacando um hóspede. Naturalmente o hóspede não era um inocente, mas um ser invejoso, mancomunado com uma bruxa malvada que arquitetou toda a farsa. Como não é possível provar a conspiração, e a queixa não é recurso contemplado no catálogo de atitudes de um Samurai, o líder aceita o castigo e o desterro. Juntam-se a ele todos os seus homens –Samurais genuínos- que decidem correr a mesma sorte do seu chefe.

A cena do desterro evocou na minha memória aquela outra onde se desterra um inocente que também está carregado de razão: El Cid. O filme entrava num clima que, também pela similitude com a Espanha medieval, me agradava. Relaxei e me dispus a saborear essa historia que as minhas lembranças atrelavam à Reconquista espanhola nas terras de Castela. E não poderia faltar até uma personagem que apresenta analogia com Dona Ximena –a filha do líder desterrado- e os amores impossíveis com um Keanu Reeves que sintoniza bem com o ambiente nipônico. “Eu te buscarei nos mil mundos possíveis, em todas as vidas”…..A voz de dona Ximena aproximando-se de Rodrigo de Vivar, o único homem em Castela capaz de humilhar um Rei e partilhar o cantil com um leproso, ecoava nas minhas lembranças. “Rodrigo, leve-me com você. Estando juntos serei feliz”. El Cid diz: “Não tenho onde te levar, vou para o desterro”. E Ximena –aquele olhar quase oriental da Sofia Loren envolvido na inesquecível trilha sonora, acrescenta: “Já que o meu homem não é um homem comum, o meu destino também não será comum”.

Estou convencido que cada filme tem o seu momento, o tempo certo para ser visto. Nesta ocasião o meu plano temporal estava definido por duas retas. Uma, a primeira, um vídeo que assisti e recomendo vivamente (vídeo abaixo). Trata-se de um comentário à sugestiva obra do Prof. Antonhy Esolen, do Providence College: “Dez maneiras de destruir a imaginação do seu filho” (Ten ways to Destroy the Imagination of your Child).

Os conselhos lá comentados são, naturalmente, um recurso para apontar as atitudes erradas e cada vez mais comuns, que pais e educadores empregam e que conduzem ao desfecho fatal: destroçar a imaginação da criança, fazer dele um produto meia boca, em série, que infelizmente contemplamos diariamente.

Lá pelo meio do vídeo, destacam-se dois “conselhos” que estão relacionados: difame o heroico e o patriótico, diminua todos os heróis, ensine os seus filhos a rir e a desacreditar das virtudes difíceis de conseguir (aquelas que naturalmente você mesmo não tem), ridicularize a excelência, ou melhor, democratize-a: todos são excelentes, todos são heróis, mesmo por fazer o café da manhã na hora. Há muitos outros conselhos nesse vídeo que são suculentos, sugestivos, e desafiantes: um verdadeiro gabarito para tirar a limpo os modos como se educam –quer dizer, se deformam- os jovens hoje. Por exemplo, as explicações prosaicas sobre os fenômenos transcendentes ou notáveis reduzindo-os com um sorriso e rebaixando-os com a frase chavão: “é somente isso, não esquente”. É claro, que não há nenhuma obrigação de concordar com o educador americano; podem se ignorar as advertências ou desprezá-las por parecerem exageradas. Mas tudo indica que desconhecer o tema que ele coloca acabará por levar até à via fácil que conduz à mediocridade.

47ronins-4     A segunda reta é por conta da enxurrada de virtudes que o filme destila. Virtudes das que carecemos no mundo de hoje. Lealdade, fidelidade, compromisso, cumprimento do dever, consciência de missão. Não se trata de ser pessimista; a virtude sempre foi um desafio a ser conquistado, um divisor de águas que separa as pessoas de acordo com a sua fibra moral, com a sua estatura como cidadão e ser humano. Mas vivemos momentos onde as atitudes virtuosas –que comprometem toda a existência- brilham pela ausência. Nunca se falou tanto de ética, em momentos onde o sentido do termo está desbotado. Ortega falava do clamor ético num mundo que não se rege por esses parâmetros, assemelhando-o à dor do membro fantasma. A dor do membro que foi amputado, e continua doendo: a dor da ausência.

47ronins-3     Sim, é verdade que os 47 Ronins convivem com um universo de monstros, bruxas, criaturas diabólicas e fantasiosas. Mas também são notáveis as prioridades e o valor da virtude: da palavra empenhada, da sinceridade de vida, da lealdade a toda prova, da integridade. Um Samurai feito Ronin encontra-se degradado no seu status, mas conserva as virtudes que viveu como Samurai. Conserva-as porque as incorporou, fazem parte do seu ser, não são um apêndice, ou uma habilidade comportamental treinada num curso de liderança feito no final de semana. São constitutivas. Por isso, assinam o compromisso com tinta e com sangue, sublinhando que vida e missão são inseparáveis. A missão é a razão de ser da própria vida. “Triste de quem é feliz, e vive porque a vida dura –escreve Fernando Pessoa- nada na alma lhe diz, mas que a lição de raiz: ter por vida a sepultura”. Quem não tem missão, vive como um morto vivo.

Hoje convivemos com a mentira –a nível institucional- que nega o óbvio; com homens públicos que se desdizem, com uma nutrida fauna do “deixa disso”, com argumentos de articulação que não convencem nem aos próprios autores dos mesmos. E com a deslealdade a todo e qualquer nível: basta cair na desgraça –quer dizer, que apareçam teus podres- que em poucos minutos se dá a fuga de todos os que andavam do teu lado (também repletos de podres, é claro, mas ainda ocultos) e negam te conhecer. É o salve-se quem puder dos medíocres. Integram-se nas artimanhas nefastas –aquilo que Balzac chamava a secreta maçonaria das paixões- e desparecem quando o bicho pega.

47ronins-1     Os 47 Ronins relatam, no dizer do narrador, a história do Japão. Até hoje se celebra a data em sua honra, e têm a admiração desse povo que devolve para a Cruz Vermelha Internacional 150 milhões de dólares que lhes emprestaram para reconstruir os desastres causado pelo Tsunami anos atrás, e que sobraram. Devolver o que sobra, depois de reerguer-se da tragédia. Está tudo dito.

Sim, tinha razão o meu aluno: eu quero também ser um Samurai, um Ronin que seja. Sinto a dor do membro fantasma, da ética que –trazida e levada- nos é amputada diariamente nas notícias que lemos no jornal, nas ponderações da mídia, no péssimo exemplo de quem está no comando e carece por completo das virtudes que constituem a integridade do ser humano. E ainda dão risada dos heróis –como a raposa da fábula, para quem as uvas estavam verdes, fora do seu alcance. E desaparecem quando a coisa fica difícil. Que história vamos contar para as gerações futuras? A opção cabe a cada um de nós.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005). 

Fontehttp://www.pablogonzalezblasco.com.br/2014/05/23/47-ronins-uma-avalanche-de-virtudes-que-carecemos/