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Idéias e consequências

Opinião Pública | 25/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Enquanto nos distanciávamos da costa continental, minha filha perguntou o que iria fazer em Punta del Leste, a primeira parada de nosso cruzeiro, no dia seguinte, rumo aos mares do Sul. Naquele momento, só uma coisa passou-me pela cabeça. O Uruguai é o país da moda, segundo o prêmio concedido por uma famosa revista econômica europeia, em razão da onda de reformas libertárias dos últimos anos: descriminalização do aborto, união civil gay e a legalização da maconha. Então, ative-me ao último fato, não me contive e respondi jocosamente: “Vou fumar marijuana livre e impunemente!”. Ela ouviu, fez cara de mal entendida e nada respondeu.

A visão libertária da sociedade tem uma premissa bem clara: não à qualquer legislação de conteúdo moral. As leis não podem promover noções de virtude ou expressar uma convicção moral da maioria, ainda que fundada racionalmente, porque seria uma coerção indevida. No caso uruguaio da maconha recreativa, um grande laboratório para outro novo e sofisticado experimento sociológico nascido na cabeça de meia-dúzia de bem-pensantes, a proposta passa pela regulação estatal da produção e do comércio da droga, que já desagradou os consumidores, a julgar pelo emaranhado de condições legais, como a necessidade de cadastro prévio do maconheiro, e de restrições administrativas, como a compra de “parcos” 40 gramas mensais.

O desejo humano de tomar substâncias que alteram a mente é tão velho quanto a própria sociedade, assim como as tentativas de regulação de seu consumo. Mas suponho que nenhuma outra época teve de lidar com um duplo dilema: a disponibilidade de inúmeras drogas naturais e sintéticas que alteram a mente e a demanda crescente de um conjunto de cidadãos, desejoso do exercício de seu direito de gozar de seus próprios prazeres de sua própria maneira.

Por outro lado, segundo a ideologia libertária, a lei deve permitir que os adultos possam fazer o que bem quiser, contanto que eles assumam as consequências de suas próprias escolhas e não causem danos diretos aos outros. A ideia remonta a Stuart Mill, cuja obra principal seria uma espécie de lei mosaica para libertários, aprimorada pelo recente trabalho intelectual de Nozick, cujo livro mais importante faria as vezes de um novo testamento.

O principal postulado libertário gera um individualismo radical impede a sociedade de conceber qualquer código moral. No limite, seria como se não tivéssemos nada em comum, mas nosso “contrato social” de não interferência mútua permanece enquanto nós buscamos nossos prazeres privados: a sociedade perde seus laços mais profundos, como a solidariedade e a busca por um bem comum, e transforma-se num aglomerado de realidades atomizadas.

Ademais, na prática, é muito difícil obrigar as pessoas a assumir todas as consequências de suas próprias ações e, mesmo o uso recreativo das drogas afeta não apenas o usuário, mas sempre levam junto o cônjuge, filhos, amigos e parentes. Ninguém, exceto um eremita, é uma ilha existencial. Por isso, a aplicação do princípio libertário às ações humanas é de pouca utilidade, quanto mais para justificar o consumo recreativo de entorpecentes.

A liberdade que prezamos não se resume à satisfação de uns apetites biológicos. Quem pensa assim, tem uma visão antropológica da realidade bem mutilada. Não somos crianças que se irritam com as restrições porque são restrições, mas porque muitas delas servem para nos tornar mais livres. Somos homens, em sua acepção mais integral, que pensam por conta própria e que sabem que as ideias têm consequências. Venham dos miolos do cérebro de um imanentista abstrato ou da vontade de poder de um revolucionário reformista.

E, por falar em ideias, a resposta libertária, que dei à minha filha durante o café, foi testada no mesmo dia no jantar em que dividimos a mesa com um casal de senhoras. Uma delas a questionou sobre a programação em solo uruguaio, emendada pela seguinte resposta: “Vou fumar marijuana com meu pai!”. Seguiu-se uma longa pausa. Tentei me explicar. Em vão. Ao menos no dia seguinte, o dito casal não deu o ar da graça em nossa comilança noturna. De fato, as ideias têm consequências e, as más ideias, as piores consequências. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, dia 25.02.2015, Página-A2, Opinião.

“Cool evil”: O mal bacana (por Bruce Frohnen)*

Filosofia | 03/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Evidentemente que Bruce Frohnen escreve sobretudo para americanos. Contudo, seu ensaio revela elementos que estão além da cultura americana, podendo ser encontrados na cultura européia dos dias de hoje e na nossa, brasileira. É o que ele chama de “cool evil”, algo como “mal bacana” ou “mal legal”, no sentido de o mal não ser tomado como mal, mas como algo bacana, interessante. Contudo, para o autor, esse “cool evil” dos dias de hoje só leva a degradação pública e privada. Abaixo, segue seu artigo traduzido.

***

“Cool evil”: O mal bacana

por Bruce Frohnen

Ouvi dizer que no mundo do wrestling profissional [N.T.: arte marcial popular nos EUA], os vilões populares são conhecidos como “calcanhares bacanas”. O wrestling profissional dificilmente encontra-se na fronteira da teoria moral ou das tendências da cultura popular. Mas a inclusão de caras maus como “bacanas/legais” em seu código moral violento é uma indicação, acredito, de quão longe chegamos na estrada que leva ao niilismo cultural. Cada vez mais os filmes e programas de televisão, sem mencionar os rappers e esportistas, parecem dispostos a lucrar com o “mau bacana”. Cada vez mais os americanos estão comprando a idéia de um niilismo pré-embalado, aparentemente revelando o sentimento de superioridade que se pode ganhar da ilusão de estar acima do bem e do mal.

Não quero dizer com isso que o vilão atraente é uma novidade. A literatura clássica está repleta de vilões que amamos ver em ação nos livros. Os atores dizem que o melhor papel em qualquer produção é o do violão, não o papel do herói adocicado. Também não quero dar a entender que os vilões, até nas décadas recentes, tem sido pouco atrativos, ou até mesmo relegados a papéis coadjuvantes. Os filmes das décadas de 60 e 70 estão cheios de anti-heróis, e os baby boomers [N.T.: geração do que nasceram na década de 50 e 60] procuravam esses filmes como cães selvagens.

Mas parece que as últimas décadas produziram uma proporção de vilões “bacanas” acima do padrão, que um número cada vez maior de filmes – e especialmente séries da TV a cabo – apresenta o mal implacável como normal e sexy, e que a tendência ao código de rua entre as pessoas famosas serviu para borrar os limites morais da grande audiência.

Quando  pediram a Ian Richardson que voltasse a fazer o papel do anti-Herói Francis Urquhart no drama cínico-policial inglês “House of Cards”, conta-se que ele recusou a proposta até chegar ao acordo de que o personagem seria assassinado. Richardson demonstrou suficiente senso moral para reconhecer que seu personagem, ainda que para ele fosse delicioso estar no seu papel, simplesmente fazia o mau parecer excessivamente atraente.  Isso se deve em parte por causa do modo como os outros personagens são caracterizados, mas nada disso é então novidade, antes é o antigo dito popular “o demônio é um homem sedutor”. A atratividade do mal também vem da crescente medida para a qual ele parece ser útil [1] na ficção contemporânea. Cada vez mais, os vilões não recebem o troco no final pelas suas más ações. A justiça poética nos roteiros, palcos e telas é agora vista como irrealista e até infantil. Em outros tempos, logicamente, isso era visto como absolutamente necessário para a preservação do senso moral da audiência, e as pessoas tinham de fato suficiente senso moral para reivindicar isso.

Infelizmente, esse senso moral parece ter morrido. Já não se percebe claramente o senso moral nas atuações de Kevin Spacey, que faz o papel do anti-herói na adaptação americana de “House of Cards” com uma satisfação malévola, e que fez carreira fazendo papéis de vilões inspiradores de alguma forma de admiração, sendo que os poucos heróis de sua carreira (como no filme “Pay it Forward” [N.R.: no Brasil, “A Corrente do Bem”]) são figuras simplórias.

Depois há a série “fantasia” “Game of Thrones”. Nesse carnaval de implacável degradação, adaptada da série igualmente repreensível de George R.R. Martin, o espectador é “tratado” com cenas de tortura, violência sexual e depravação agressiva que forma o núcleo de uma série centrada na obsessão por poder em um universo de estilo medieval.[2]

É fácil levantar uma série de causas para essa recente explosão do “mal bacana”. O declínio dos padrões morais na grande mídia, seguida da difusão da TV a cabo, associada à sua total falta de auto-regulação[3], e a competição para fazer chocar mais os espectadores para aumentar a audiência, fez da tortura coisa normal das noites de TV em casa (em programas como “Lost” e “24” [N.R.: no Brasil, “24 Horas”]) alguns anos atrás. Antes disso, a tendência entre os rappers de reproduzir o código de rua, tão bem parodiado por Chris Rock no filme “CB4”, foi amplamente difundida e por sua vez alimentou uma cultura de violência já infelizmente muito difundida nas nossas áreas urbanas. A violência rural, evidentemente, há muito é apresentada pela grande mídia, mas geralmente com a intenção clara de provocar repulsa pelo racismo e violência doméstica. Mesmo assim esses retratos perderam sua força depois que filmes ambientados em pequenas cidades (“Sons of Anarchy”, [N.R.: no Brasil, “Filhos da Anarquia”]), nos subúrbios (“Breaking Bad”, [N.R.: no Brasil, “Ruptura Total” ou “Breaking Bad: A Química do Mal”]) e mesmo no velho oeste (“Deadwood”) buscaram uma abordagem realista baseada em sangue jorrando por tudo para mostrar quão sofisticados se tornaram tanto produtores como espectadores.

Esse último desdobramento poderia ter sido previsto como uma extensão inevitável da desmoralização gradual do entretenimento. Nós passamos de “Leave it to Beaver” [da série “Veronica Mars: A Jovem Espiã”[4], com suas falsas imagens de felicidade suburbana, para comédias sexuais infantilóides como “Three’s Company” [N.R.: no Brasil, “Um é Pouco, Dois é Bom e Três é Demais”], com sua continuação previsível, “Three’s a Crowd”, uma sequência que teve pouca audiência sobre um casal em coabitação que compartilhava os aposentos com o pai da mulher. A moralidade sexual logo se tornou ultrapassada, mesmo com as críticas um tanto quanto moralistas que os grupos de pais e educadores dirigiram à violência veiculada tanto nas telas de cinema como na TV. É claro que agora o movimento do anti-herói no cinema tem sido um movimento de massas há décadas, embora talvez melhor resumido no herói de “Midnight Cowboy” [N.R.: no Brasil “Perdidos na noite”], um caipira mentecapto cujo objetivo de vida era se tornar um prostituto.

Libertinos sexuais sempre insistiram que sua forma de libertinagem traria paz e amor. Mas isso não ocorre; ao contrário, abre espaço para mais estrago em um mundo cada vez mais desordenado. A “liberação” sexual da onda [do momento] andava de mão dadas com a crescente marginalização, por parte dos meios de comunicação, de temas e figuras religiosos, assim como da moralidade. “M*A*S*H” pode ter retratado seu capelão militar como alguém ineficaz, mas o programa televisivo pelo menos reconhecia a sua existência – algo quase desconhecido dos dias de hoje.

Para onde tudo isso nos leva? Certamente não para além do bem e do mal. Antes, deixa muitas pessoas ao nosso redor enamoradas pelo mal. Isso não significa que qualquer um que veja “Breaking Bad” vá imediatamente considerar a vida de um traficante de drogas como uma forma legítima de pagar um bom tratamento médico.  Mas o “mal bacana” é uma parte ativa da degradação contínua do espaço público, que está longe de ser irrelevante para nossa vida privada e pessoal.

O moderno pensador político de Florença, Nicolau Maquiavel, foi reconhecido como o pregador do mal por ter defendido a necessidade de um príncipe que fizesse o trabalho sujo necessário para reunificar a Itália contra os bárbaros. É muito comum entre os entendidos em política de hoje dizerem que a má fama sobre Maquiavel é mera hipocrisia, já que todos na política agem como Maquiavel disse que agiriam, embora queiram parecer virtuosos. Não somente essa suposta “análise sofisticada” é factualmente incorreta – muitos homens de vida pública sacrificam seus gostos pessoais pelo bem comum e o fazem com a intenção de praticar e dar o exemplo da virtude –, mas é também perversa. O cinismo que diz “todos fazem isso” leva à auto-indulgência do vício. Nenhum filme, série de TV, ou qualquer outra forma de entretenimento pode criar uma cultura de vícios. Mas o flerte complacente e frequente com o mal pode, de fato, tornar o mal algo “bacana” na mente do grande público. O resultado será o agravamento da deterioração de uma moralidade pública já bastante debilitada.

Bruce Frohnen é contribuinte sênior no jornal on-line The Imaginative Conservative, é professor de Direito na Ohio Northern University College of Law e autor dos livros Virtue and the Promise of Conservatism: The Legacy of Burke and Tocqueville e The New Communitarians and The Crisis of Modern Liberalism e editor (junto com George Carey) do livro Community and Tradition: Conservative Perspectives on the American Experience.

Artigo publicado originalmente em 19 de setembro de 2014 no journal on-line The Imaginative Conservative, link:
http://www.theimaginativeconservative.org/2014/09/cool-evil.html.
Permissão da tradução e publicação em português neste site dada por Stephen M. Klugewicz, Ph.D., editor do journal. Para saber mais sobre este jornal, clique em The Imaginative Conservative.

Imagem extraída da publicação original, neste link.

Tradução: Marco Antonio.

Revisão e edição da tradução: João Toniolo.

 

NOTAS DA REVISÃO E EDIÇÃO DA TRADUÇÃO:

* As Notas do Tradutor estão indicadas com “N.T.” e as do revisor e editor da tradução como “N.R.” (ou numeradas).

[1] N.R.: A frase no original inglês aqui é “The attractiveness of evil also comes from the increasing extent to which it seems to ‘pay’ in contemporary fiction”. “Pay” tem o sentido de pagar, mas também de “ser útil”, entre outros. Parece que o autor joga com a multiplicidade de sentidos que esta palavra tem, pelo fato da cultura do “mal bacana” gerar dinheiro e ao mesmo tempo ser útil para o fim de ganhar dinheiro.

[2] N.R.: Como se na época medieval as coisas fossem somente assim como a série trata. A esse respeito, cf. os livros de Régine Pernoud, O Mito da Idade Média e Luzes Sobre a Idade Média.

[3] N.R.: Note que o autor fala em “auto-regulação”, que é diferente de regulação total da mídia pelo Estado.

[4] N.R.: “Leave it to Beaver” é 22º e último episódio da primeira temporada de “Veronica Mars: A Jovem Espiã”.

Elogio do jeitinho – por Henrique Elfes

Filosofia | 11/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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Não posso mais calar-me.

Tenho suportado a injustiça em silêncio ao longo de todos estes anos. Assisti sem dar um pio às calúnias e vilipêndios que choviam sobre uma das mais nobres instituições da brasilidade, verdadeiro esteio do caráter nacional. Não mexi um dedinho perante a feroz campanha promovida pela mídia contra essa qualidade ímpar e maravilhosa do brasileiro.

Mas não mais: antes que a pobrezinha seja escorraçada do cenário nacional, proponho-me empreender a sua defesa, reabilitá-la perante a opinião pública e, se for possível, devolver-lhe o lugar que merece na nossa visão de mundo.

O fato é que ela já anda severamente debilitada: esgueira-se envergonhada pelo canto da calçada, como os ratos, tem receio de elevar a voz e de olhar as pessoas nos olhos, e evita ao máximo sair em público. Essa nossa rejeição é a melhor maneira de empurrá-la realmente para a marginalidade a que de maneira tão injusta a vimos relegando.

Ela tem sido acusada de fomentar a corrupção, e é preciso reconhecer que às vezes foi usada indevidamente como desculpa pelos delinqüentes; mas nego enfaticamente que ela e qualquer tipo de desonestidade tenham a mesma raiz. Também tem sido identificada, sem a menor razão, com o que ficou conhecido maldosamente como “lei de Gérson”, o desejo de “levar vantagem em tudo”. E, pior ainda – porque neste caso a acusação tem algum fundamento -, tem sido considerada como a fonte dessa outra característica tão difundida do caráter nacional, a marretagem, a “lei de nascoxov”, a tendência à instalação no provisório e a viver de remendos.

Vários sentidos

Como descendente de alemães, sou daqueles que tendem a escrever Breves introduções ao tema do amor em dezoito volumes de duas mil páginas cada, e serei obrigado a controlar-me violentamente aqui (outra manifestação da injustiça reinante é que o editor só me concedeu quatro páginas para falar de um tema que, evidentemente, exige pelo menos 257; mas, que se há de fazer?). Mesmo assim, terei de pedir ao leitor que seja indulgente com a minha imperiosa necessidade de ser systematisch e me permita entrar no tema por meio de uma classificação.

A palavra “jeitinho”, pelo seu caráter popular e difuso, é das que têm vários significados aparentados entre si. Tentemos uma diferenciação entre três que parecem ser os principais:

– primeiro, um sentido que poderíamos chamar “metafísico”, que implica uma tomada de consciência da limitação da realidade como um todo e o respeito pelas características únicas de cada coisa;

– depois, um sentido “moral”, que aplica essa mesma tomada de consciência àlimitação da sociedade em geral e da lei e da justiça humanas em particular; tomado neste sentido, o jeitinho está muito próximo, e talvez se identifique, com uma das virtudes clássicas mais esquecidas, a epiquéia;

– e, em terceiro lugar, um significado “relacional” ou “comunicacional”, vá lá, que aplica essa consciência às relações entre as pessoas, e pode ser entendido também como senso de oportunidade ou sentido das conveniências.

Examinemos um pouco mais de perto cada um.

O jeitinho “metafísico”

Conta uma tradição familiar que, nos descuidados anos cinqüenta, os meus pais tomaram certa vez um avião da falecida Varig para ir de Maceió ao Rio de Janeiro. Como havia poucas estradas, e estas em geral não estavam em nível nem condições de Autobahn, andar de avião pinga-pinga era bastante comum. Antes da decolagem, porém, surgiu um problema: a porta do avião não fechava. Depois de algumas tentativas frustradas para resolver a falha, o piloto não teve dúvida: arrumou com um dos passageiros um barbante, desses de sisal para embrulhos reforçados, e amarrou a porta no lugar. E a viagem prosseguiu sem mais.

Imaginemos a mesma situação hoje: depois de esforços inúteis para convencer a porta obstinada, o comandante se entrincheira na cabine com ar de fim-de-mundo; meia hora depois (por não achar um mecânico), convida os passageiros a descerem; estes esperam tensos e sem notícia alguma mais duas ou três horas numa sala vip qualquer; e, no fim, talvez sejam convidados a passar a noite num hotel apertado e desconfortável. Os mais estressados, depois da décima quinta espera na fila do balcão de diversas companhias aéreas, talvez consigam transferir a passagem para outro vôo daí a mais umas três horas. Resultado: todos chegam ao destino com pelo menos cinco horas de atraso, e os inconformados provavelmente ainda se dedicarão a processar a companhia aérea por lucros cessantes (perderam aquela reunião importantíssima).

Tudo bem, de acordo, naquelas idades da pedra não havia ainda todos os avanços tecnológicos de que dispomos hoje – pense na pressurização dos aviões modernos!, na altitude de vôo!, na velocidade de transporte! -, os modernos padrões de segurança exigem isso, etc. etc. etc. Mas é inegável que, no primeiro caso, os passageiros tiveram de esperar bem menos e, se insistimos no tema da “velocidade”, também chegaram bem antes; e igualmente é inegável que o cenário moderno tem algo de neurótico, de muito mais tenso, desconfortável e desumano, que o “primitivo”. Ah, e quanto aos “critérios de segurança”, não parece que tenham impedido os aviões de cair; até que seria interessante um estudo estatístico desta questão, com um título do tipo “evolução da mortalidade por acidentes aéreos ao longo da linha cronológica”.

Não, não proponho retornos saudosistas ao passado, nem o abandono da ciência e da tecnologia. Só sugiro humildemente que relativizemos um pouco os nossos cânones do momento para tentarmos apreciar com justiça o jeitinho dado pelo velho piloto da Varig.

Façamos uma primeira constatação, que pode apoiar-se, penso, na experiência de todos e cada um: por mais que pretendamos enquadrar a realidade por meio de tecnologias e leis e padrões e regras perfeitos e absolutos, ela simplesmente se recusa a entrar no esquema. E isso porque é inesgotável, ou seja, sempre surge e sempre surgirá aquele ponto que não tínhamos previsto e não teríamos podido prever, aquela exceção que põe tudo a perder. E também porque ela, tal como os nossos esquemas e os seus autores – que por sinal também fazem parte dessa mesma realidade, ou por acaso não? -, é limitada, imperfeita, falível; ou seja, sempre há aquele processo ou aquele elemento ou aquele indivíduo que, por razões insondáveis e misteriosas, falha, não chega lá, não produz os resultados esperados.

Dizia-me um engenheiro eletrônico competente e experimentado: “Não sei por que dizem que a eletrônica é uma ciência exata; eu acho que ela está é na linha da feitiçaria! A gente faz um projeto perfeito; confere, tudo perfeito; roda uma simulação no computador, e funciona perfeitamente; monta na prática, no protoboard, e… não funciona! A gente quebra a cabeça, refaz o projeto, tenta daqui e dali e… nada. Chega o técnico, olha, dá uma cheirada, diz: ‘Acho que a gente podia pôr uma resistência de uns 2 ohm… aqui‘. E funciona!!!”

Em suma, o jeitinho “metafísico” (talvez fosse mais correto dizer “físico”, uma vez que se refere propriamente à realidade de um mundo material, intrinsecamente limitado) parte de uma aceitação simples dos limites do nosso conhecimento e da própria realidade. E leva assim à conclusão de que as soluções “perfeitas” e “definitivas” (a última versão do SAP ou dos computadores, o equipamento exatamente adequado e preciso e projetado para realizar a tarefa x ou y, etc.) às vezes podem ser descabidas ou desproporcionadas, e que bastam soluções provisórias, imperfeitas, parciais (basta uma volta da chave, não são necessárias duas; é melhor não apertar a torneira até o último, porque rompe a vedação de borracha e provoca o vazamento que se quer evitar, e assim até o infinito ou a náusea), até porque as “perfeitas” também são imperfeitas e as “definitivas”, no longo prazo, provisórias.

Trata-se, enfim, de aceitar o sub-ótimo no que fazemos, porque num mundo limitado não é possível ter o ótimo. Isso é o que indica também um provérbio popular que não é só brasileiro: “O ótimo é inimigo do bom”.

Tolerância zero?

Um corolário moral disto é que o perfeccionismo não é virtude, ao contrário do que indicam alguns comentários cheios de admiração sobre diretores de cinema, literatos, artistas diversos, empresários etc.: “Mel Gibson mandou refazer vinte e três vezes a cena tal do filme qual. É um perfeccionista”. Nas entrevistas de emprego, parece que é moda o candidato indicar com certa hesitação levemente hipócrita, quando lhe pedem que fale de alguns defeitos seus: “Eu… bem, eu sou perfeccionista… Dedico-me demais a que o meu trabalho saia perfeito… Não tolero imperfeições. Sabe aquilo da ‘tolerância zero’?”

O erro do nosso candidato está em confundir desejo ou esforço de perfeição com perfeccionismo; se o esforço é bom – sob pena de nos reduzirmos ao ideal de passar a vida como donos de um barzinho de beira de praia em Iguape (nada contra os barzinhos e muito menos contra a bela Iguape, mas há ideais, como dizer, talvez mais altos) -, o seu excesso em busca do inatingível é nocivo. Como estamos quase carecas de saber, a virtude é o ponto médio racional entre dois extremos irracionais, por excesso e por defeito; neste sentido, o perfeccionismo é um excesso irracional de esforço, um esforço exagerado aplicado a metas que não o merecem: às metas limitadas, parciais e relativas de um mundo material, e não ao fim, à felicidade, nem aos meios que a ela conduzem. Mas isso é outra história e fica para outra ocasião.

A questão está, pois, em que esse esforço, para ser racional, precisa ser moderado pela prudência, pelo realismo, e proporcionado às metas parciais e limitadas. Ora, o jeitinho “metafísico” (e essa é a minha tese central) é precisamente parte da virtude cardeal da prudência, base de todas as outras, o “olho” que enxerga o bem, o “auriga” (condutor) do carro da personalidade puxado pelas demais virtudes cardeais, na velha imagem platônica. É sabedoria prática, savoir-vivre. Usado neste sentido, consiste em contentar-se com o bom, aplicando apenas o esforço suficiente para atingi-lo (como no provérbio popular citado por Guimarães Rosa: “Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão”), e renunciando a um ótimo completamente desnecessário.

Por outro lado, já vimos que jeitinho não significa marretagem, que seria o extremo irracional, o vício por defeito, o fazer apenas “para inglês ver”, que consiste em usara aceitação da provisoriedade e da limitação como desculpa para a mera preguiça, a “tristeza diante do bem árduo” dos clássicos ou, em termos mais nossos, a fuga desvairada de tudo o que represente esforço. Bem é verdade que esse defeito sempre foi considerado característico, também, do caráter nacional (basta que nos lembremos da conhecidíssima piada sobre o “inferno brasileiro”), e que se abrigou muitas vezes sob o mesmo guarda-chuva do jeitinho; mas igualmente é preciso dizer que o vício oposto é ainda pior: ao que parece, o “inferno brasileiro” é bem mais suportável do que o suíço ou o japonês. Os índices de suicídio que o digam.

Fidelidade e flexibilidade

O segundo corolário e, ao mesmo tempo, a segunda característica do homem com jeitinho, é o respeito perante a unicidade e as peculiaridades individuais do real concreto.

O perfeccionista é um racionalista, isto é, pensa no mundo como uma série de abstrações teóricas (tecnicamente, diríamos: de essências ou naturezas e de outras formas lógicas) que por assim dizer flutuam numa espécie de espaço ideal, desligado do concreto (os “consumidores”, os “capitalistas”, o “mercado”, o “Estado” etc.), e por isso pretende aplicar-lhe as leis universais e gerais deduzidas a partir dessas mesmas abstrações.

Já o nosso homem do jeitinho sabe que ele mesmo e as coisas têm, sim, uma natureza; e que essa natureza estabelece para cada coisa limites objetivos além dos quais não pode passar, sob pena de se destruir a si mesmo ou às coisas (há falsos “jeitinhos” que não me posso permitir: “dar uma ligadinha” na televisão de 110 V em 220 V, levar a palm para “dar uma estudadinha” enquanto faço a ressonância magnética, “dar uma roubadinha” ou “uma interrompidinha” numa gravidez, etc.). Mas sabe também que essa natureza ou essência não existe in abstracto, e sim sempre individualizada em substâncias, em seres individuais e concretos (literalmente, não existem consumidores da classe A, B, etc. a não ser nos estudos marquetingológicos, e sim a Lindolfina, o Ubirajara, a Crislene, o Saturnino; não existe “o Estado”, a não ser em trabalhos de ciências políticas e jurídicas, etc., e simeste governo integrado por estes homens que pensam assim e assado e fazem isto e aquilo).

Portanto, também não há regras absolutas em tudo e para tudo (“as portas se fecham assim”); dentro dos limites definidos pelas relativamente poucas leis ou regras gerais que garantem a sobrevivência e o bom estado de conservação de nós mesmos e das coisas, há apenas uma infinidade de casos particulares, que precisam ser estudados até se dar com o jeito preciso para que funcionem perfeitamente (“esta porta precisa de atenção especial, porque a lingüeta não prende direito; depois de fechar, é preciso dar um puxão até ouvir um clique, porque, se não, ela abre de novo mais tarde”).

Isso é enormemente importante porque condiciona todo o nosso modo de olhar para a realidade, a tal “visão do mundo”: o que exigimos ou esperamos do nosso trabalho, de nós mesmos, dos outros, de Deus, das coisas, tudo. Num mundo que não é perfeito (que é contingente, diriam os clássicos), não faz sentido querer pautar a nossa vida e a dos outros, e sequer o trabalho com coisas materiais, por leis ou regras perfeitas e aplicáveis a todos os casos. A perfeição humana no trabalho, no quotidiano, na convivência familiar e social, a perfeição humana em si, e a própria vida, não consistem em cumprir ou seguir regrinhas, “o manual”, “as técnicas indicadas”, a “lei do mercado” ou “os cambau” que sejam, com precisão cada vez mais absoluta; consistem antes em encontrar os objetivos ou ideais certos, e dirigir-se a eles “surfando” sobre uma realidade sempre mutável e variada.

É mais ou menos o que dizia o saudoso quase-ex-presidente Tancredo Neves: que procurava agir “com completa fidelidade aos princípios e absoluta flexibilidade nos meios”. Só seria preciso lembrar que – e parece que Tancredo lembrava, como fica evidente pela sua ilibada reputação (sem ironia) – a flexibilidade não podia ultrapassar o âmbito das leis e regras mínimas que protegem a natureza das coisas.

Um terceiro corolário é que, enquanto o perfeccionista quer enfiar a realidade na camisa-de-força dos esquemas, e mergulha no desânimo e na amargura quando ela obstinadamente se nega a caber, o homem do jeitinho mantém sempre uma grande flexibilidade perante o real imperfeito. Para o perfeccionista, todas as coisas são concebidas em absolutos, em termos de “ou tudo, ou nada”; já para o flexível, não: há matizes suaves intermediários – muitos tons de cinza entre o branco e o preto -, meios-termos, “panos-quentes”… Por isso, o primeiro oscila entre a arrogância do conquistador triunfante (durante algum tempo, pelo menos) e o desespero depressivo ou cínico (a longo prazo), ao passo que o segundo mantém sempre portas abertas, saídas possíveis, uma esperança no fim do túnel: “Tem jeito para tudo, meu nego”, típica declaração das tias Anastácias do nosso interiorzão besta.

O jeitinho “moral”

Alegrou-me enormemente ver escrito, no alto da fachada de um típico prédio romano oitocentesco às margens do Tibre, Ministero di Grazia e Giustizia. Acho que não é preciso traduzir. Alegrou-me, sobretudo, porque me pareceu ver encarnado neste nome (ou “institucionalizado”, vá lá) – e por aqueles comoventes positivistas do Risorgimento, ancestrais não muito remotos dos nossos perfeccionistas! – o clássico aforismo summum ius, summa iniuria – “a justiça estrita é a pior das injustiças”. Ao lado da justiça pura e simples, diz esse nome, é preciso pôr sempre a “graça”: o perdão, o indulto, a exceção, a anistia…

Há alguma esperança de que, diante deste paradoxo, um dos meus dois leitores acorde e diga: “Hããã?” E terei de pedir-lhe que se lembre da sua infância, dos ardentes sentimentos de injustiça que experimentou quando lhe era aplicada a pura e simples justiça (- “Um doce para cada um, e pronto!” – “Aah, mas a Lindolfina foi ao cinema, e eu não!”) e do cálido senso de compreensão e acolhimento quando era objeto de “exceções” (meio veladas para não despertar o senso de injustiça dos irmãos…). É que a justiça das mães, atenta ao caso concreto de cada filho, levando em consideração as circunstâncias de cada um, talvez seja a única justiça, com perdão, realmente justa que experimentaremos em toda a vida.

Isso nos leva ao próprio centro do jeitinho “moral”, que consiste na consciência da relatividade das leis gerais. Se o jeitinho “metafísico” tem em conta a limitação constitucional da realidade, o “moral” tem sempre presente a inevitável limitação das leis humanas. (Advirto que, neste artigo, uso “lei” não apenas no sentido das leis escritas de um determinado país, mas de todos os regulamentos, códigos de ética, regras etc. de qualquer corpo social, família, turma, condomínio, escola, empresa, nação, o que o leitor quiser. E quando digo “sociedade”, refiro-me a todos esses grupos de seres humanos).

Não me canso de admirar a capacidade (talvez ingenuidade, inocência?) de alguns “nobres causídicos” e “batalhadores em outras lides públicas” de cantar indefinidamente as loas da “Lei” (usam audivelmente maiúsculas), como se “a Lei” fosse absolutamente intocável, irretocável e perfeita; e contrastá-la com as opiniões que eles mesmos costumam ter sobre os autores e aplicadores dessa mesma “Lei”. Esse contraste entre o caráter pessoal dos legisladores e a necessária obrigatoriedade das leis não é um problema apenas nacional ou de época: pensemos na frase de Bismarck acerca das leis e das salsichas (só recordando: “melhor não saber como são feitas”), ou leiamos Suetônio sobre os césares.

O que significa apenas que não se pode nem de longe partir do pressuposto de que as leis de qualquer país sejam moralmente justas e corretas, ou seja, estejam de acordo sequer com aquelas regras mínimas da natureza humana já mencionadas. Ou seja, a lei humana, embora seja necessária às vezes e geralmente útil para a convivência em sociedade, não pode nem muito menos deve substituir uma boa formação ética pessoal (como se vê, não estou exortando à revolução, à ruptura institucional, nem à desobediência civil, etc.). E mesmo no melhor dos casos, o de um legislador justo, não se pode pressupor que ele seja perfeito em todos os sentidos, e que as leis que “emane” possam servir para orientar sempre e satisfatoriamente a infinita variedade do agir humano.

Os direitos da alface

A figura que, neste âmbito, corresponde à do perfeccionista é o legalista, isto é, o homem que exige de si e dos outros um cumprimento literal e burro de toda a lei, até os seus mais recônditos intríngulis. Opõe-se aqui a um tipo virtuoso de que os clássicos ainda falavam (veja a Ética a Nicômaco, V, 10, 1137a-1138a), mas para o qual nem temos mais nome, tão esquecida anda a virtude em questão: a epiquéia, definida como aquela qualidade pela qual alguém deixa de cumprir o significado literal da lei para ser fiel ao sentido profundo dessa mesma lei, ou àquilo que alguns dos meus amigos juristas chamariam a “(boa) intenção do legislador”.

– “Ah, mas isso de um particular qualquer poder considerar-se acima da lei é muito perigoso. Daqui a pouco, qualquer um vai achar que pode fazer o que bem quiser. Isso é a anarquia! Além de que o império da lei, e não a vontade de qualquer particular, é a própria essência da democracia!” Realmente; talvez seja por isso que as sociedades democráticas vão começando a ficar tão sufocantes como algumas tiranias (Brasil, 1998: um pobrezinho qualquer é preso por crime inafiançável, porque matou uma garça para comer (sic); Suíça, 2008, lei para proteger os direitos das plantas domésticas (SIC!): não se pode mais, por exemplo, polinizá-las contra…, contra…, ia dizer “contra a sua vontade”…).

Mas, comentários ácidos à parte, sim, é preciso reconhecer que a anarquia é ainda muito pior que o pior governo. O que não tira o fato de que o legalismo, o furor legislandi (“empenho desorbitado por legislar”), o desejo de ABNTizar tudo e todos na sociedade, a ponto de pretender substituir a moral e a ética pela lei positiva, escrita, é simplesmente nefasto, porque afoga a liberdade humana. E aqui tocamos a sua fonte: medo, puro e simples medo da liberdade, da própria (não são o medo de errar, a insegurança, a tensão, características muito salientes da sociedade moderna?) e da alheia.

Certo cronista clamava, em um dos grandes jornais de São Paulo (não guardei o recorte, por isso terei de citar mais ou menos, de memória), por mais regulamentação; gostaria de que todos os aspectos da vida estivessem enquadrados em leis, dizia, todos os crimes e erros tipificados, tudo claro. Tudo claro? Tudo escuro. Por um lado, isso leva a um mundo kafkiano em que todo burocratelho vira um tiranete, sentindo-se na obrigação de normatizar o seu “reino”. Por outro, a uma multidão de cidadãos ou indivíduos infantilizados, que se eximem de responsabilidades desde que cumpram a Lei (a desculpa padrão dos carrascos nazistas em Nuremberg era: “Não cometi crime nenhum, segui as leis de meu país“); ou, em âmbito mais caseiro, se dedicam a prolongar indefinidamente a infância, morando na casa da supermamãe legisladora até os quarenta e, daqui a pouco, até os cento e dez anos.

Como sempre, não há soluções fáceis. Sim, a falta de lei lança na anarquia, no mar sem referências da ausência total de balizas; só que a lei “perfeita” (sempre pseudo-perfeita), hipertrofiada, infantiliza, gera infra-homens. Sim, a flexibilidade na aplicação serve de desculpa para a pura sem-vergonhice; só que o furor normativo sufoca e infantiliza.

Não escapamos, mais uma vez, do ponto médio racional, da virtude, que na verdade é um ideal, um ótimo comportamental sempre por atingir. O único jeito (eis que o nosso jeitinho retorna triunfante!) de salvaguardar e educar a liberdade é o critério ético racional pessoalmente formado – à base de estudo e observação, não do “chute”, que é outra característica nefasta, mas bem nossa; e levando em consideração que esse critério, para ser formado, exige um aprendizado experimental, tentativa e erro, ou seja, a tolerância de certa dose de “sub-ótimo”, de erros e pecados próprios e alheios no comportamento humano.

Critério e jeito “moral” virtuoso

A prudência – sabedoria – do legislador está, aqui, em reduzir a lei ao mínimo necessário para salvaguardar a natureza humana e a convivência, estabelecendo dentro dos limites mínimos amplos âmbitos de liberdade em que o legislador renuncia a intervir. Em quem aplica a lei aos outros, a prudência consiste naeqüidade, isto é, no reconhecimento da prioridade do indivíduo com relação à sociedade e aos seus construtos teóricos. E, em quem está sujeito à lei, essa sabedoria se traduz… em jeitinho, na nossa epiquéia, uma flexibilidade de aplicação que mostra inteligência, captação do sentido da lei.

O Brasil tinha uma instituição social única e maravilhosa, puro bom senso, que espero que não caia em desuso: as leis que “não pegam”, uma espécie de veredicto popular que dava a conhecer aos legisladores que aquela lei simplesmente estava sobrando. É evidente que o habitual para o “epiquéico” (horrível, mas passe) será o cumprimento das leis, e não uma revolta adolescentóide por princípio (“Hay gobierno? Soy contra!“) contra todas elas. A diferença virtuosa está em cumpri-las não com espírito servil (como se as leis de trânsito ou o horário da empresa fossem decretos emanados tão diretamente do Altíssimo como as leis sobre o homicídio), mas sim com espírito de liberdade. Umas, porque são importantes mesmo; outras, porque são úteis e práticas; esta ou aquela, para evitar discussões e perdas de tempo inúteis…

É evidente que a primeira preocupação tem de ser distinguir que peso tem a lei a cuja letra se desobedece. Nem toda desobediência é epiquéia: se for uma desobediência às leis que protegem a natureza (humana, não a da alface), é crime mesmo, puro e simples; mas uma obediência como a dos mencionados carrascos nazistas é igualmente criminosa. Se a desobediência for a meras convenções práticas, de utilidade, e não há pessoas reais lesadas, e de fato há um benefício real… bem, o bom senso sempre admitiu certa flexibilidade. Em tempos mais felizes, por exemplo, todos os guardas de trânsito brasileiros sabiam que havia horas em que não era o caso de reparar em todas as infrações…

Nesse sentido, a moça do caixa da padaria que, de vez em quando, dá um bombom de graça ao cliente, totalmente imerecido, sem qualquer necessidade, faz muito mais para fidelizá-lo (aaargh!, perdão por esse sacrifício do bom português sobre o altar da modernidade) do que todas as atendentes de sorriso padronizado do McDonald’s (suponho que usem régua durante o treinamento para medir a extensão permissível dos cantos da boca). Obedece, não à letra da regra do padeiro, mas ao seu sentido: aumentar os lucros.

O jeitinho “relacional”

Uma brevíssima pincelada sobre o jeitinho “relacional”, que também é virtuoso e parte da prudência, e terminamos. Como vimos, esse jeitinho aplica o senso da limitação e da prioridade do concreto à comunicação e, mais amplamente, a todas as relações entre as pessoas. Todos experimentamos, em maior ou menor grau, a enorme dificuldade de transmitir idéias e ideais a pessoas com todo um conjunto de experiências e convicções diferentes das nossas. Como dizia uma velha e venerável professora da USP (da Poli, não da ECA!), “Se a gente pensar bem, a comunicação é no fundo um milagre, não é mesmo?”…

Ora, o racionalista costuma considerar apenas se o que tem para dizer é verdade ou não, importante em si mesmo ou não; se tem ou deixa de ter razão. Por isso, as conversas entre racionalistas tendem a degenerar em conversas de surdos, cada qual falando daquilo que lhe interessa e nenhum deles produzindo a menor impressão ou mudança no outro…

O realista, por sua vez, sabe que ter razão não basta nem de longe; para que a mensagem chegue ao seu destino, o outro tem de querer ouvi-la e estar preparado para entendê-la. Há um momento adequado para falar de cada coisa a cada um, isto é, é preciso ter senso de oportunidade; e é necessário saber apresentar as idéias de uma maneira que não fira e não choque sem necessidade, usar um tom de voz adequado, que conecte com as preocupações e interesses do interlocutor, usar as palavras certas, atrair a atenção, etc.; em resumo, ter o senso das conveniências.

Tenho a impressão de que nestes dois sensos está aquilo que distingue uma pessoa com jeito para convencer, “diplomática” ou “política” no bom sentido destas palavras, daquelas outras, talvez inteligentíssimas e cobertas de razão da cabeça aos pés naquilo que defendem, mas que nunca terminam de realizar nada porque não sabem angariar as vontades alheias para as suas causas.

E penso também que aqui está o clássico “jeitinho feminino”, aquele das mães, eternas mediadoras entre maridos cabeçudos e filhos teimosos. Tem-se dito e escrito muito que nós, os homens, tendemos para a abstração e a generalidade racionalistas, e tentamos impor-nos pelas ordens e pela birra; já as mulheres, mais voltadas para o concreto, para as necessidades de cada pessoa, tendem a conseguir muito mais. Penso que há muita razão nisto. Talvez seja por isso que às vezes se define a família bem constituída como “aquela em que o homem manda… tudo aquilo que a mulher sugere”…

Bem, espero que as mulheres tenham reparado que, pouco mais ou pouco menos, eu as entronizei mais de uma vez nada menos que nos próprios cumes do jeitinho virtuoso, como paradigmas e modelos. Espero que se sintam devidamente elogiadas e envaidecidas por esse fato, por mais que tenha sido feito com aquela completa falta de jeito típica dos racionalistas e dos homens. Mas espero sobretudo que não percam o seu maravilhoso jeitinho por causa de algumas manias feministas, que parecem não exigir delas senão uma imitação servil dos homens.

*

Muito bem, encerremos este panegírico (sei que passei longe do número de páginas permitido, mas confio que o editor… dará um jeitinho). Espero ter conseguido mostrar quanto há de realismo, sabedoria e virtude nessa característica tão popular e despretensiosa da brasilidade. Defendamo-la com unhas e dentes – na sua parte virtuosa -, porque é vital. Numa sociedade que, como todos podemos experimentar com certa facilidade, mergulha pouco a pouco numa complexidade burocrática e numa rigidez impessoal e mecânica infernalmente fria, o bom e velho jeitinho suaviza e mantém humana a convivência, porque nos reduz – e reduz tudo o que nos cerca – à nossa verdadeira e precária e… confortável estatura.

Já que começamos com aviões, terminemos com aviões. Um amigo meu, comissário da Swissair, mudou-se certa vez para a Suíça (sei que a Suíça já compareceu antes aqui, mas não é birra, é pura coincidência mesmo), dizendo que “lá é muito melhor, tudo funciona”. Menos de um ano depois já estava de volta, morando aqui; quando lhe perguntei por que, confessou: “Não agüentei. Lá é horrível: tudo sempre funciona”…

Henrique Elfes é tradutor e editor de Dicta&Contradicta.

Texto originalmente publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, nº 3, Jul/2009.