Idéias e consequências

Opinião Pública | 25/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Enquanto nos distanciávamos da costa continental, minha filha perguntou o que iria fazer em Punta del Leste, a primeira parada de nosso cruzeiro, no dia seguinte, rumo aos mares do Sul. Naquele momento, só uma coisa passou-me pela cabeça. O Uruguai é o país da moda, segundo o prêmio concedido por uma famosa revista econômica europeia, em razão da onda de reformas libertárias dos últimos anos: descriminalização do aborto, união civil gay e a legalização da maconha. Então, ative-me ao último fato, não me contive e respondi jocosamente: “Vou fumar marijuana livre e impunemente!”. Ela ouviu, fez cara de mal entendida e nada respondeu.

A visão libertária da sociedade tem uma premissa bem clara: não à qualquer legislação de conteúdo moral. As leis não podem promover noções de virtude ou expressar uma convicção moral da maioria, ainda que fundada racionalmente, porque seria uma coerção indevida. No caso uruguaio da maconha recreativa, um grande laboratório para outro novo e sofisticado experimento sociológico nascido na cabeça de meia-dúzia de bem-pensantes, a proposta passa pela regulação estatal da produção e do comércio da droga, que já desagradou os consumidores, a julgar pelo emaranhado de condições legais, como a necessidade de cadastro prévio do maconheiro, e de restrições administrativas, como a compra de “parcos” 40 gramas mensais.

O desejo humano de tomar substâncias que alteram a mente é tão velho quanto a própria sociedade, assim como as tentativas de regulação de seu consumo. Mas suponho que nenhuma outra época teve de lidar com um duplo dilema: a disponibilidade de inúmeras drogas naturais e sintéticas que alteram a mente e a demanda crescente de um conjunto de cidadãos, desejoso do exercício de seu direito de gozar de seus próprios prazeres de sua própria maneira.

Por outro lado, segundo a ideologia libertária, a lei deve permitir que os adultos possam fazer o que bem quiser, contanto que eles assumam as consequências de suas próprias escolhas e não causem danos diretos aos outros. A ideia remonta a Stuart Mill, cuja obra principal seria uma espécie de lei mosaica para libertários, aprimorada pelo recente trabalho intelectual de Nozick, cujo livro mais importante faria as vezes de um novo testamento.

O principal postulado libertário gera um individualismo radical impede a sociedade de conceber qualquer código moral. No limite, seria como se não tivéssemos nada em comum, mas nosso “contrato social” de não interferência mútua permanece enquanto nós buscamos nossos prazeres privados: a sociedade perde seus laços mais profundos, como a solidariedade e a busca por um bem comum, e transforma-se num aglomerado de realidades atomizadas.

Ademais, na prática, é muito difícil obrigar as pessoas a assumir todas as consequências de suas próprias ações e, mesmo o uso recreativo das drogas afeta não apenas o usuário, mas sempre levam junto o cônjuge, filhos, amigos e parentes. Ninguém, exceto um eremita, é uma ilha existencial. Por isso, a aplicação do princípio libertário às ações humanas é de pouca utilidade, quanto mais para justificar o consumo recreativo de entorpecentes.

A liberdade que prezamos não se resume à satisfação de uns apetites biológicos. Quem pensa assim, tem uma visão antropológica da realidade bem mutilada. Não somos crianças que se irritam com as restrições porque são restrições, mas porque muitas delas servem para nos tornar mais livres. Somos homens, em sua acepção mais integral, que pensam por conta própria e que sabem que as ideias têm consequências. Venham dos miolos do cérebro de um imanentista abstrato ou da vontade de poder de um revolucionário reformista.

E, por falar em ideias, a resposta libertária, que dei à minha filha durante o café, foi testada no mesmo dia no jantar em que dividimos a mesa com um casal de senhoras. Uma delas a questionou sobre a programação em solo uruguaio, emendada pela seguinte resposta: “Vou fumar marijuana com meu pai!”. Seguiu-se uma longa pausa. Tentei me explicar. Em vão. Ao menos no dia seguinte, o dito casal não deu o ar da graça em nossa comilança noturna. De fato, as ideias têm consequências e, as más ideias, as piores consequências. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, dia 25.02.2015, Página-A2, Opinião.