Arquivo da tag: História

image_pdfimage_print

[resenha de livro] “1914, El año que cambió la historia”, de Antonio López Vega (por Pablo G. Blasco)

História | 15/04/2016 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

1914-el-ano-que-cambió-la-historia-189x300Recebi o exemplar autografado das mãos do autor. Somos amigos faz anos e veio ao Brasil para dar umas conferências num congresso de Humanidades Médicas que estávamos organizando. Construir o médico humanista implica ajudar a inseri-lo na realidade social onde se movimenta, facilitar o entendimento do mundo. Dai a importância do tema, amplo, que este livro aborda e que também foi pauta das conferências comentadas.

Não é propriamente um livro de história. É um passeio, quase um trailer de cinema,  pela história contemporânea –a modernidade- com ênfase no século XX, e um grande zoom em 1914 de onde o autor realiza elegantes flashback e projeções para o futuro. Um livro original  centrado no tema que Lopez Vega domina, e sobre o qual leciona na Universidade de Madrid.

Cada um dos doze capítulos se corresponde com os meses do ano. Arranca de um fato concreto em cada mês do ano 1914, e sobre ele desenvolve a temática e o corpo do livro. O resultado é um banho de cultura, ou melhor, um índice para adentrar-nos nos diversos temas. Como já disse um trailer de cinema que te provoca e te incita a saber mais.

Temos na ouverture, a mudança de percepção, com Einstein e Freud, minando os valores absolutos, com a relatividade científica e novos paradigmas morais.  Agudizam-se os desentendimentos entre Igrejas e Estados, entre a fé e a razão. Os valores clássicos –aquilo que racionalmente vemos- se questiona e surge o existencialismo e o racio-vitalismo, como modo de lidar com as incertezas.

Seguem-se os intelectuais, palavra que passou de ser um adjetivo a constituir-se em substantivo, personalizou-se. Os intelectuais surgem como voz pública, convertendo-se num referencial da vida coletiva e social. No dizer de Ortega –santo da devoção do autor- os intelectuais saíram da apatia política à praça publica.

A entrada das mulheres na vida pública, tanto como profissionais como na conquista do direito ao voto. Um premio Nobel duplo para Marie Curie; o premio Nobel da paz para Bertha von Suttner, que foi por um breve período secretária de Alfred Nobel. Ela foi quem inspirou ao descobridor da dinamite, para promover a fundação que outorgaria os prêmios que levam seu nome, como um modo de compensar a riqueza que amealhou às custas do seu invento destrutivo.

A primeira guerra mundial, onde se pratica um novo modo de fazer a guerra: os lideres nos gabinetes –Londres, Paris, Berlim- enquanto os oficiais e soldados permanecem no campo de batalha sem terem ideia clara de “a quantas está a guerra e as batalhas”. A emergência da super potencia americana (do canal do Panamá às entradas nas duas guerras) e o contraponto soviético com a Guerra Fria.

Comenta-se em outros capítulos a experimentação artística, abrindo infinidade de vias à criatividade individual;  os nacionalismos como elemento desestabilizador dos sistemas políticos, as massas e o movimento operário e sindical, aspirando a uma maior justiça social. Um mundo conectado e globalizado, a guerra total com o assassinato em massa de civis, a a queda do euro centrismo e a emergência de um mundo além da realidade europeia.

No capítulo final oferece um belo resumo do amplo espectro do livro que é, insisto, apenas um índice da história do século XX.  Depois de ler o livro, o efeito é previsível: o desejo de adentrar-se com calma em cada um dos temas sugeridos, de conhecer mais, para entender o mundo que nos rodeia. Um mundo de pós modernidade e, em palavras extraídas das conferências do autor, de trans humanismo. Um desafio que nos toca viver. Cumpre preparar-se à altura.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

LIVRO
Autor: Antonio López Vega.
Título: 1914, El año que cambió la historia.
Publicação/ano: Madrid: Taurus, 2014.
Páginas: 239 págs.

Publicado originalmente no site do autor em 26/01/2016, link: <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/01/26/antonio-lopez-vega-1914-el-ano-que-cambio-la-historia/#more-2575> Acesso em 15 de Abril de 2016.

Joaquim Nabuco e a reforma do estadista (por Martim Vasques da Cunha)

Política e Sociologia | 04/04/2016 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

ABLJoaquimNabuco_1282058979044

“Todos os seres, desde o primeiro instante do nascimento, são, por assim dizer, marcados pela natureza, uns para comandar, outros para obedecer”. (Aristóteles, Política)

 

Sem dúvida, a seguinte cena poderia fazer parte de uma peça de Tom Stoppard. Em uma das salas de leitura do British Museum, de Londres, por volta de 1883, onde o teto igual a uma cúpula circular dava a impressão – junto com as escrivaninhas que formavam uma série de pequenos círculos e a ausência de janelas que criava uma atmosfera sufocante – de que se estava dentro do inferno de Dante Alighieri, encontrava-se um rapaz esbelto, formoso (apelidado de “Quincas, o Belo” pelos colegas de Pernambuco e do Rio de Janeiro), admirado com os 600 mil livros à sua disposição, pronto para arregaçar as mangas e começar a escrever a obra que, segundo ele, denunciaria o sistema de escravidão sobre o qual o seu país se sustentava. Ao seu lado, enquanto pesquisava dados e estatísticas para fundamentar a sua argumentação política e econômica, havia um outro senhor, todo desalinhado, com a barba enorme e grisalha encostando na madeira da escrivaninha, mexendo-se sem parar na cadeira devido aos furúnculos que incomodavam as suas nádegas, soterrado entre livros e mais livros. Seu nome era Karl Marx, e o livro que estava a escrever era O Capital.

“Quincas, o Belo” tinha o nome completo de Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo e nasceu em 19 de agosto de 1849. Mais tarde, cerca de sessenta anos depois, quando morreu em 17 de janeiro de 1910, era conhecido somente como Joaquim Nabuco. Nesse meio tempo, transformou-se de filho de senador do Império em exemplo de estadista e defensor de uma política que deixava a todos intrigados, porque não se prendia a abstrações e a sistemas organizados perfeitamente. Para muitos, era falta de coerência; para alguns poucos, era ausência de profundidade; para o próprio Nabuco, significava ouvir o chamado de uma alma dilacerada entre o desejo de ter uma vida contemplativa e o impulso de viver uma existência agitada, calcada no cotidiano, sem perder a noção de que o país de onde viera necessitava de reformas profundas para continuar a sobreviver.

Por isso, seria interessante se acontecesse de fato o encontro entre Marx e Nabuco. Ambos eram filhos do seu tempo, mas o primeiro criou uma obra inteira baseada na revolução que, quando chegou, destruiu tudo o que existia antes, enquanto o segundo baseou a sua vida na constante e delicada reforma de estruturas tão arraigadas na alma do povo brasileiro, que não seria exagero dizer que esta se encontrava literalmente escravizada.

Este é o tema oculto que atravessa O Abolicionismo, a primeira tentativa de estabelecer uma síntese interpretativa sobre o que seria o Brasil. Publicado em 1883, depois do breve exílio de Nabuco em Londres, em que a campanha mundial pela abolição dos escravos negros atingia o máximo de fermentação política, o pequeno livro marcou a carreira do filho de Nabuco de Araújo, então um dos homens de maior prestígio da época, como o representante de um movimento que logo o catalogaria como “liberal” e “progressista”. O jovem Quincas, dividido entre as cirandas amorosas da alta sociedade e a obrigação moral de observar o Brasil tal como era, decidiu pela última opção – e pagou um preço caro por isso: nada mais nada menos que a incompreensão de seus pares e, claro, também a de seus inimigos, que nunca entenderam que aquele o seu combate contra a escravidão não era um momento de oportunismo e sim a única forma de descrever um triste estado de coisas.

E qual era este estado? Segundo as palavras do próprio Nabuco, quando se falava em escravidão, dever-se-ia entendê-la sempre no sentido lato. Não significava apenas “a relação entre o senhor e o escravo”. Significava muito mais: “a soma do poderio, influência capital, e clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no interior; a dependência em que o comércio, a religião, a pobreza, a indústria, o Parlamento, a Coroa, o Estado enfim, se acham perante o poder agregado da minoria aristocrática, em cujas senzalas centenas de milhares de entes humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regímen a que estão sujeitos; e por último, o espírito, o princípio vital que anima a instituição toda, sobretudo no momento em que ela entra a recear pela posse imemorial em que se acha investida, espírito que há sido em toda a história dos países de escravos a causa do seu atraso e da sua ruína”.

Portanto, não estamos a falar de uma escravidão ligada a um povo ou a uma raça específicos. Trata-se de algo que aniquila a alma, o espírito e a mente. É claro que Nabuco tinha plena consciência do problema da raça negra – e ele ternamente simpatizava com as questões humanitárias – mas o problema, como diria o vulgo, estava mais embaixo: o Brasil apresentava-se ao mundo com a psicologia de um escravo, e é justamente esta preocupação que guiará Nabuco nas páginas de O Abolicionismo.

Seu ataque contra a escravidão não evocava o ressentimento de uma luta de classes, muito menos de uma ação afirmativa avant la lettre. Suas preocupações eram práticas: a escravidão era um sistema econômico viável e lucrativo? O movimento abolicionista era uma causa que já estava vencida ou tinha algum futuro? E, por fim, o que se pode fazer pelos negros de maneira eficaz a partir do momento em que conseguirem a sua liberdade? Para cada uma delas, Nabuco tentava dar uma resposta igualmente prática, mesmo que se deparasse com o obstáculo que era a influência psíquica da escravidão em cada fissura da estrutura desumana que moldava o país. A partir disso, suas inquietações aumentavam cada vez mais porque percebeu que a resposta a essas perguntas só poderia terminar na negativa.

Tal diagnóstico aparentemente pessimista – outros diriam que não passava de um realismo precavido – mostra, na verdade, um anseio pela reforma estrutural do Brasil. A maior prova disso está na análise implacável que Nabuco faz da equivalência moral entre a escravidão do negro e a do funcionário público. Se, na primeira escravidão, apenas uma raça é atingida, na segunda é toda uma suposta elite a cair na armadilha que ela mesma preparou. São palavras duras – tão duras que nenhum outro intérprete tupiniquim, talvez fascinado pela mesma arapuca, ousou repeti-las: “A estreita relação entre a escravidão e a epidemia do funcionalismo não pode ser mais contestada que a relação entre ela e a superstição do Estado-providência. Assim como, neste regímen, tudo se espera do Estado, que, sendo a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e distribui-o, entre os seus clientes, pelo emprego público, sugando as economias do pobre pelo curso forçado, e tornando precária a fortuna do rico; assim também, como conseqüência, o funcionalismo é a profissão e a vocação de todos. Tomem-se, ao acaso, vinte ou trinta brasileiros em qualquer lugar onde se reúna a nossa sociedade mais culta: todos eles ou foram ou são, ou hão de ser, empregados públicos; se não eles, seus filhos”.

A descrição de Nabuco é tão atual que qualquer brasileiro se reconheceria nestas linhas. Afinal, ele se via na mesma situação: seu pai era senador e Nabuco, quando jovem, teve de ser adido de legação diplomática para pagar as suas contas (que, não por acaso, eram um tanto perdulárias). Contudo, desde cedo, tinha plena consciência de suas limitações e nunca hesitou em descrevê-las – especialmente para si mesmo. Em uma anotação de seu diário em setembro de 1877, quando estava nos Estados Unidos, Nabuco expunha o dilema entre viver o carrossel da agitação diplomática e querer a reclusão necessária para pensar os assuntos do espírito: “O homem sociável pode ser muito diverso do homem solitário? Posso eu no fundo ser inteiramente outro do que pareço quando na sociedade? A minha natureza pode ser melancólica sem que os que vivem comigo o saibam pelo simples fato de que a presença deles afugenta o homem solitário. Meses e meses eu não penso em religião nem em poesia, mas quando volto a elas, o prazer que sinto revela-me que a tristeza do pensamento solitário é a pedra-de-toque de minha natureza”.

Com uma divisão psíquica tão intensa, era urgente, como o próprio Nabuco já teria percebido, fazer uma reforma interna, uma reforma da própria alma. Eis aí a diferença entre um simples funcionário público e um estadista. Durante a juventude, Nabuco observou como seu pai procedia nas consultas para o Imperador D. Pedro II, nas sessões do Senado, nas redações de jurisprudência e do projeto do Código Civil (jamais terminado depois da morte do senador), e, sem saber, cultivava uma imagem própria do que deveria ser um político: alguém que respeita sempre as tensões do real e que evita, ao realizar qualquer espécie de reforma, que o ideal abstrato da revolução elimine todo elo com o passado, conservando o que este tem de bom para a sua continuidade no futuro. Esta imagem amadureceria de vez somente após a morte do pai em 1878, quando, quase vinte anos depois, Nabuco publicaria Balmaceda (1895)[1], seu relato sobre o golpe de Estado que o presidente chileno de mesmo nome queria realizar sob um parlamento que nunca aceitaria tais demandas “jacobinas”. As linhas seguintes, escritas no mesmo período em que elaborava sua obra máxima, Um Estadista do Império, e sua outra polêmica contra a República de Floriano Peixoto, A intervenção estrangeira durante a Revolta de 1893, mostra o Nabuco que sabe que a verdadeira política, feita pelos estadistas, recusa qualquer espécie de escravidão do espírito, em especial a de uma teoria com pretensões de ser científica e repleta de certezas:

“Não há em política pretensão mais fútil do que essa apresentada em nome da ciência. A ciência pode criar tanto uma sociedade como a glótica pode inventar uma língua, ou a filosofia uma religião. A política chamada científica propõe-se poupar a cada sociedade as contingências da experiência própria, guiá-la por uma sabedoria abstrata, síntese das experiências havidas, o que seria enfraquecer e destruir o regulador da conduta humana, que é exatamente a experiência humana de cada um. Certas leis existem em política que se podem chamar científicas, no sentido em que a economia política, a moral, a estatística, são ciências, mas a política em si mesma é uma arte tão prática como a conduta do homem na vida. O estadista que aprendeu a governar nos livros é um mito, e provavelmente os Pitts, os Bismarcks, os Cavours do futuro hão de se formar na mesma escola que eles. Conhecer o seu país, conhecer os homens, conhecer-se a si mesmo, há de ser sempre a parte principal da ciência do homem de Estado. Era um rei sábio o que dizia que para castigar uma província, o melhor seria entregá-la a filósofos políticos. Entre o espírito de reforma levado mesmo à utopia e o de sistema, há a mesma diferença que entre a fisiologia e a matemática. Há até diferença de temperamento. Os reformadores pertencem principalmente a duas classes, os sentimentais e os juristas. A tradição toda da palavra reforma, tomada primeiro à mais tranqüila de todas as histórias, a dos mosteiros, é conservadora, e encerra em si dois grandes sentimentos: o de veneração e o de perfeição. Perguntaram a Pausânias por que entre os lacedemônios não era permitido a ninguém tocar nas antigas leis: ‘Porque as leis’, respondeu ele, ‘devem ser senhoras dos homens e não os homens senhores da lei’. Este é o espírito de imobilidade voluntária, espírito enérgico de uma raça forte. ‘Há um povo’, diziam os deputados de Corinto, ‘que não respira senão a novidade, que não conhece o repouso, e não pode suportá-lo nos outros’. Este é o espírito de inspiração transbordante e de eterno movimento das raças de gênio, como a ateniense, a florentina e a francesa. Entre os dois extremos há o espírito combinado de conservação e aperfeiçoamento, privilégio superior das instituições muitas vezes seculares, como é, por exemplo, o Papado, na ordem religiosa, e, na ordem política, a constituição inglesa, ou a democracia suíça.

“Entre esse espírito de aperfeiçoamento gradual e o espírito sistemático, científico, radical, não há afinidade; há pelo contrário antagonismo, mesmo, como eu disse antes, de naturezas. O reformador em geral detém-se diante do obstáculo; dá longas voltas para não atropelar nenhum direito; respeita, como relíquias do passado, tudo que não é indispensável alterar; inspira-se na idéia de identidade, de permanência; tem, no fundo, a superstição chinesa – que não se deve deitar abaixo um velho edifício, porque os espíritos enterrados debaixo dele perseguirão o demolidor até a morte. A natureza intransigente é exatamente o oposto; mesmo o Racionalismo Jacobino de 1793 não é porém sistemático, arrasador, como o metodismo científico. Não há paixão, por mais feroz, que se possa comparar em seus efeitos destruidores à inocência da infalibilidade. Os Terroristas de Paris, ‘massacravam’ brutalmente como assassinos ébrios; os Teoristas inovadores amputam com a calma e o interesse frio de cirurgiões. Estes não conhecem a dificuldade que sentia Catarina da Rússia; escrevem as suas constituições na pele humana tão bem como no papel; lavram suas utopias na sociedade, a tiros de canhão, quando é preciso”.

Neste trecho exemplar, digno de um Edmund Burke (o único pensador político com quem Nabuco pode ser comparado, devido às semelhanças de temas abordados e de postura perante a vida), escrito em linguagem que não fica nada a dever a um Machado de Assis ou a um Eça de Queiroz (sim, Nabuco é um dos grandes estilistas da língua portuguesa), percebe-se o tom de um homem desiludido com qualquer campanha “abolicionista” que possa mudar o seu país. Afinal, o Brasil estava novamente tomado por outra teoria de escravos: o positivismo, esta ideologia disfarçada de ciência e que faria a cabeça dos defensores da República. É um período em que ele sente na própria carne a ironia da História: acusado de ser um dos responsáveis pela queda do regime que apoiava – o Império que se dissolvia aos poucos devido à Guerra do Paraguai e ao sistema escravocrata que, por fim, o sugou completamente -, agora era considerado um homem da oposição porque atacava a República com as únicas armas que possuía: a inteligência e as palavras.

Esta é a fase que Nabuco chamaria como a do “ostracismo”, mas ele não se acostumou com o ócio. Em apenas uma década (1889-1900) produziu os pilares de sua obra – além de Balmaceda e de A Intervenção Estrangeira durante a Revolta de 1893 (dois livros que devem ser lidos juntos), temos o já citado Um Estadista do Império, biografia monumental de seu pai, e os relatos autobiográficos Minha Formação e Minha Fé (conhecida com o título francês de Foi Volue). Não são livros simples ou os relatos de um homem amargo, também classificado por seus algozes como “nostálgico”. Vistos como um todo, formam um painel complexo de um Brasil indeciso entre a reforma e a revolução e que, por motivos inexplicáveis (pelo menos para Nabuco), escolheu esta última.

Nabuco foi na contramão do seu país. Decidiu-se pela reforma, definida da seguinte forma neste trecho de Minha Formação, memória autobiográfica que Gilberto Freyre não hesitou em comparar com A educação de Henry Adams: “(…) As reformas, as modificações serão governadas por algumas regras elementares. Uma destas será conservar do existente tudo o que não seja obstáculo invencível ao melhoramento indispensável; outra, que o melhoramento justifique – e para justificar não basta só compensar – o sacrifício da tradição, ou mesmo do preconceito que o embarga; outra regra é respeitar o inútil que tenha o cunho de uma época, só demolir o prejudicial; outra, substituir tanto quanto possível provisoriamente, deixando ao tempo a incumbência de experimentar o novo material ou a nova forma, para consagrá-lo ou rejeitá-lo; uma última, esta rara e extrema, será reformar no sentido originário da instituição, o mais antigo, procurando o traçado primitivo. Dessas regras resulta o dever de demolir com o mesmo amor e cuidado com que outras épocas edificaram. Nenhum explosivo é legítimo, porque a ação não pode ser de antemão conhecida; é preciso demolir a nível e compasso, retirando pedra por pedra, como foram colocadas”.

Na comparação entre a reforma e a revolução, segundo as palavras expostas por Nabuco, fica claro que a revolução só tem uma única regra: a de explodir tudo o que veio antes, sem nenhum critério. A defesa pelo resquício da tradição não tem o intento “conservador” (no sentido lato e distorcido que conhecemos). Trata-se somente de um fato prático que o reformador jamais pode esquecer, pois uma vez que se explode o passado, não podemos sequer imaginar construir um futuro. Nabuco percebeu isso na sua década de ostracismo, ao aproximar-se do catolicismo de que se afastara na juventude, culpa de sua admiração por Renan, o avô espiritual dos positivistas que ele criticaria na República de seu país. Novamente exilado em Londres – e com dívidas que ameaçavam o sustento de sua recém-constituída família – ele visitava constantemente o Oratório de Brompton e lá começou a refletir sobre como Cristo exige do homem uma constante reforma de seu próprio ser. Pouco a pouco, seu pensamento político se harmonizava com um pensamento religioso próprio de alguém que nunca aceitou ser um escravo da sua época. A religião era a substância que faltava, segundo ele, para que qualquer reforma fosse realmente eficaz: “A razão pela qual freqüentemente brilhantes reformas mais não fazem que aumentar a sede que pretendiam estancar consiste, via de regra, no exíguo conteúdo religioso que há nos movimentos políticos. Para homenageá-Lo, muitas vezes chamaram Jesus de revolucionário. Existem, em política, pouquíssimos revolucionários de sua escola. Revolucionários aspiram ao poder; Jesus a ele renuncia. Revolucionários têm as mãos cheias de leis; Ele as tem cheias de sementes. Revolucionários, se os matam, sua morte clama por vingadores; a morte de Jesus suscita Franciscos de Assis ou Vincentes de Paulo”.

Portanto, o seu retorno à religião foi um passo coerente para um político que nunca quis ser um funcionário público e sim um exemplo de estadista. Não seria isso apenas mais uma exibição de narcisismo, uma característica já marcante do jovem que outrora era conhecido como “Quincas, o Belo”? Neste nosso Zeitgeist, qualquer político que apareça com um senso de missão calcado nas dificuldades do real (e não nas mistificações de uma mudança inatingível), logo é classificado com os piores adjetivos possíveis. Quando alguém surge com magnanimidade natural nas ações e nas palavras, querem classificá-lo apressadamente com rubricas a que não podemos dar outro nome senão o depusilâmines. Não há nenhuma observação moralista no uso destas palavras; trata-se apenas de usar duas medidas de alma, a primeira aberta às exigências de uma situação concreta que deve ser analisada com o compasso da habilidade e da delicadeza, e a segunda fechada a qualquer detalhe do real que obstrua a coerência artificial de seu sistema.

O homem que escolhe não ser um escravo, seja da sua própria alma ou do espírito do seu tempo, é quem vive a magnanimidade; o pusilânime é aquele que se escraviza, apela para qualquer superstição e torna-se aquilo que T. S. Eliot chamou de carbuncular man. Por isso, não há nada errado em ser um exemplo de estadista. Contudo, apenas poucos podem dar-se ao luxo dessa escolha, feita nos recantos mais íntimos da pessoa e que, infelizmente, não possui nenhuma testemunha além dessa mesma pessoa para comprová-la.

Mas é possível uma outra maneira de vislumbrarmos essa decisão: através dos exemplos que escolhemos para nossa própria vida. Joaquim Nabuco procurou ninguém menos que o próprio pai, Nabuco de Araújo, para que o Brasil tivesse uma amostra do reflexo de sua vida interior na vida política – tanto de suas qualidades quanto do principal dilema que, oculto por anos, quase o deixou novamente escravizado.

Em Um Estadista do Império, publicado em três tomos entre 1898 e 1900 e concebido durante a crise da Revolta da Armada de 1893, Nabuco faz, na verdade, uma longa meditação sobre esta encruzilhada política chamada conciliação. A partir da biografia de seu pai, surge a seguinte pergunta: Como podemos conciliar visões de mundo opostas e que, no fundo, são inegociáveis? A busca por uma harmonia entre posições contrárias sempre foi uma característica marcante da política nacional, segundo Paulo Mercadante em seu admirável A Consciência Conservadora no Brasil. Esta tendência foi acentuada por Nabuco de Araújo, que, inclusive, ficou célebre no Império justamente por proferir no Senado um discurso sobre a conciliação entre “liberais” e “conservadores”, apelidado a ponte de ouro. O filho mostra, em quase mil e quinhentas páginas de uma biografia minuciosamente documentada e repleta de perfis saborosos de outros políticos da época, que o pai pautou a vida e a carreira política por um pragmatismo que nunca foi oportunista e que atendia a um ideal de excelência que a República jamais conseguiria alcançar.  Os críticos de Nabuco perguntam se seria realmente uma biografia confiável ou apenas uma hagiografia. Tal dúvida tem raízes na malícia: Nabuco admite que o pai, quando ocorreu o assunto da Questão Religiosa[2], não conseguiu fazer a tão desejada conciliação – pois ainda guardava alguns sabores anticlericais em sua visão de mundo e, mesmo sendo um católico praticante, entre a Igreja e o Estado, sempre teria pendores pelo último.

O fato é que Nabuco descobre em seu pai, talvez inconscientemente, que a busca pela conciliação pode-lhe trazer a ruína – ou, o que é pior, a sensação de impotência, sentimento que consumiu o herdeiro do senador imperial no final da vida, quando era embaixador republicano (ah, as ironias da História…) em Washington no início do século XX. No final de Um Estadista, Joaquim Nabuco faz suas as palavras de Edmund Burke, quando este tentava convencer um jovem francês de que a Revolução de 1789 era o começo de um mundo que prometia apenas a revolução pela revolução – e nada mais: “Não espero com as minhas opiniões modificar as vossas. Não sei mesmo se deveria fazê-lo. Sois jovem; não podeis guiar, deveis acompanhar a fortuna do vosso país. Mais tarde, porém, aquelas opiniões vos poderão talvez ser úteis em alguma futura forma que a vossa república possa tomar. Na forma presente ela mal pode continuar. Antes, porém, da sua resolução final há de passar, como disse um dos nossos poetas, por grandes variedades de existência nunca ensaiada e em suas transmigrações poderá ser purificada pelo fogo e pelo sangue”.

O jovem jamais entenderá o que o senhor mais velho disse – e Nabuco tentou fazer o oposto com a biografia de seu pai, buscando a conciliação entre o passado e o futuro. Entretanto, ele próprio percebeu-se como o resto de um passado. No seu interior, não havia conciliação entre a imagem de estadista sereno que queria passar ao público – talvez um reflexo do antigo Quincas, o Belo? – e o tormento da sua alma ao sentir a proximidade das garras da morte sem ter vivido plenamente a contemplação espiritual que desejava desde jovem. Nas anotações de seu diário da maturidade, escritas enquanto estava em Washington, ele descreve os efeitos da surdez na sua compreensão das pessoas e do mundo, o isolamento psíquico, os sonhos terríveis com cavalos negros que espreitam casas cobertas de nuvens carregadas de presságio. Temos a sensação de lermos as notas de um sobrevivente de guerra, especialmente ao testemunhar a partida de tantos amigos queridos. Nem mesmo a religião católica lhe dá o alento que espera: ele medita sobre A Imitação de Cristo, as vidas dos santos, inclusive sobre os diálogos de Platão, mas a inquietação permanece, borbulhando, à espera de um fim repleto de impasse.

Jamais saberemos se houve um desenlace – mas isso pouco importa. Afinal, a maior prova de que um homem jamais foi um escravo é justamente a sua capacidade de continuar a luta, seja externa ou internamente. Aquele que suporta até o fim o combate do espírito, sem dúvida contradiz o dito de Aristóteles sobre quem comanda e quem obedece, pois escolheu a liberdade interior que só a mudança constante lhe pode dar. A questão é, como diria um certo príncipe da Dinamarca, fazer a escolha. Joaquim Nabuco nunca imaginou, quando estava no British Museum, nos idos de 1883, que a decisão do país que procurava tanto aperfeiçoar estava ali, ao seu lado, encarnada no homem barbudo que escrevia uma obra contra tudo aquilo em que ele acreditava. Ao morrer, em 1910, o mundo estava prestes a abraçar a revolução de Marx. Enquanto isso, a reforma do verdadeiro estadista, aquele que escolhe conhecer-se a si mesmo, conhecer os homens e conhecer o seu país, entrava em um lento e doloroso eclipse. Como isto terminará? Certamente nenhuma atitude de conciliação poderá nos dizer.

 

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, mestre em Filosofia da Religião pela PUC-SP e Doutor em Ética e Filosofia Política pela USP (Universidade de São Paulo)

 


 

[1] Balmaceda foi republicado em uma edição primorosa pela Cosac Naify em 2008.

[2] “Em 27 de dezembro de 1872, o novo bispo de Olinda, dom frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira, jovem capuchinho pernambucano, ordenou ao vigário da paróquia de Santo Antônio, no Recife, que exortasse o Dr. Costa Ribeiro, membro da Irmandade do Santíssimo Sacramento e maçom conhecido, a abjurar a maçonaria, ‘seita condenada pela Igreja’, acrescentando: ‘Se por infelicidade este não quiser retratar-se, seja imediatamente expulso do grêmio da irmandade, porquanto de tais instituições são excluídos os excomungados’. No mesmo sentido, expediu ordem aos vigários de outras freguesias, indicando outros membros de irmandades, que eram maçons conhecidos. A Irmandade de Nossa Senhora da Soledade, na Boa Vista (outro bairro da cidade do Recife), negou-se logo a expulsar do seu grêmio os irmãos que não quiseram abjurar a maçonaria, e imediatamente, em 5 de janeiro de 1873, frei Vital lançou contra a irmandade e a sua capela pena de interdito, que só deixaria de ter vigor pela retratação ou eliminação dos irmãos filiados à maçonaria. Como a matriz da Boa Vista, estavam as outras principais igrejas do Recife, e assim o interdito das capelas de irmandades importava a suspensão do culto público em toda a cidade por tempo indefinido.

“A agitação que se seguiu a esse ato no Recife foi grande, e sendo a maçonaria uma só em todo o país, levantou-se, de todos os focos maçônicos, o mesmo clamor contra o prelado que se mostrava resolvido a separar a maçonaria da igreja”. In: Um Estadista do Império. Topbooks, pp. 945-946.

 

Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, edição n. 3, junho de 2009.

 

Lançamento do livro “O Prazer de Pensar”, de Theodore Dalrymple

Filosofia | 24/03/2016 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Capa_Frente_O Prazer de PensarUma jornada pelos prazeres e surpresas da bibliofilia para curiosos incuráveis, no inconfundível estilo de Dalrymple.

Por que ditadores adoram histórias em quadrinhos? Como um pênalti pode causar uma guerra entre dois países? Os livros garimpados da biblioteca de Dalrymple contam casos curiosos não com as histórias dos textos originais que carregam, mas com a sua própria trajetória. São elas que fazem o pensamento do autor viajar e trazer à tona, em seu estilo instigante, memórias e observações críticas sobre literatura, história, política, filosofia, medicina, sociedade, viagens etc. 

Por meio de uma série de histórias sobre anotações feitas a mão, cartas esquecidas e frases sublinhadas, Theodore Dalrymple conduz o leitor pelos prazeres e surpresas que certos livros especiais de sua biblioteca pessoal guardam. Em capítulos curtos, essas trajetórias são acompanhadas suas próprias memórias e apontamentos críticos sobre os mais diversos assuntos em seu estilo já conhecido do leitor. 

“Encontramos coisas em livros velhos: principalmente insetos mumificados, é claro, mas também manchas de sangue, flores secas prensadas, bilhetes velhos de ônibus, listas de compras, fichas de embarque, orçamentos de consertos a serem feitos, contas de açougue, marcadores de página de livros anunciando seguros de vida, festivais de arte e livrarias e alguns chegam a chamar o leitor para a fé e o arrependimento.”

O Prazer de Pensar, página 23 

“Agradáveis descobertas feitas por acaso são um dos maiores prazeres de folhear livros, e nada substitui a sensação de poder ter um livro físico nas mãos. […] A alegria de descobrir algo que não sabíamos existir e que está profunda e inesperadamente conectado a algo que nos interessa no momento é uma das recompensas de folhear livros ao acaso, uma recompensa desconhecida para aqueles que têm uma visão apenas instrumental das livrarias, indo embora delas assim que descobrem que o livro que desejam não está disponível.”

Theodore Dalrymple, em artigo para The Telegraph em 2/2/2016

Sobre o autor

Theodore Dalrymple é um dos pseudônimos de Anthony Daniels, nascido em 1949, em Londres. Além de ensaísta, é médico psiquiatra, trabalhou em quatro continentes e atuou até 2005 no Hospital da Cidade e na Winson Green Prison, ambos em Birmingham, Inglaterra. Escreve para o City Journal, publicado pelo Manhattan Institute, e para veículos como The British Medical Journal, The Times, The Observer, The Daily Telegraph, The Spectator, The Salisbury Review, National Review e Axess. Possui diversos livros publicados, entre eles A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou o Que Restou Dela, Podres de Mimados – As Consequências do Sentimentalismo Tóxico, e Em Defesa do Preconceito – A Necessidade de se Ter Ideias Preconcebidas, editados pela É Realizações Editora.

Fonte: imprensa@erealizacoes.com.br

Viagem de um ao mesmo lugar (G.K. Chesterton)

Literatura | 28/09/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

images (1)

Alguém que me pareceu ser um viajante, a julgar pelas aparências, aproximou-se de mim e indagou-me: “Qual é o caminho mais curto para se ir de um lugar ao mesmo lugar?”

O sol ocultava-se atrás de sua cabeça, de modo que não pude decifrar-lhe o rosto.

— Certamente, respondi, é permanecer no mesmo lugar.

— De modo algum, replicou. O caminho mais curto para se ir de um lugar ao mesmo lugar é dar volta ao mundo.

E foi-se.

White Wynd vivia com a família na Fazenda Branca, ao pé do rio. Ali mesmo nasceu, cresceu e contraiu casamento. A Fazenda era cercada pelo rio por três lados, como um castelo. No quarto havia estábulos e além dos estábulos uma horta, e além da horta um pomar, e além do pomar um muro baixo, e além do muro uma estrada, e além da estrada um pinheiral, e além do pinheiral um campo de trigo, e além o campo de montanhas furando o céu, e além… mas não devemos, a despeito da tentação, catalogar o mundo inteiro.White Wynd não conhecia outro lar senão o seu. O seu mundo estava confinado àquelas paredes. O céu era o telhado.

Tudo isso é que torna tão estranho o seu procedimento.

Nos últimos anos ele já raramente transpunha a soleira da porta. A indolência deixava-o inquieto e mal humorado. Vivia ansiando pelo próximo momento.

A esposa e os filhos, muito embora fossem ótimas pessoas, eram os que mais sofriam com as mudanças de seu temperamento. Mesmo para eles seu coração tornara-se árido e amargo. Recordava-se, confusamente, dos dias difíceis de luta pelo pão, quando, regressando à noite do trabalho, via sua casa brilhar como ouro, como se estivesse povoada de anjos. Mas a lembrança esfumava-se como um sonho.

Cada dia que passava sentia-se mais capaz de compreender outros lares, menos o seu. O seu era apenas uma casa. A nostalgia tomara conta dele, fechando-lhe os olhos e os ouvidos.

Alguma coisa, enfim, se passava dentro dele: um vulcão; um terremoto; um eclipse; uma aurora; um dilúvio; um apocalipse. Não será o apêlo a palavras grandiosas que nos desvendará o mistério de seu coração.

Muitas e muitas vezes a manhã surpreendera a pequena familia reunida na cosinha para a primeira refeição. Na última vez o pai, interrompendo o café, falou cismadoramente:

— Aquele campo verde, brilhando ao sol, como que me lembra um campo de meu próprio lar.

— Seu próprio lar? perguntou a esposa. Esse é o seu lar.

White Wynd ergueu-se e sua figura parecia cobrir toda a sala. Apanhou o chapéu e o bordão, cobertos de pó.

— Pai! exclamou um dos filhos. Aonde vai?

— Para casa.

— Como assim? Se esta é sua casa. Aonde vai, pai?

— Para a Fazenda Branca, ao pé do rio.

— Mas é esta!

Ele as olhava tranqüilamente quando a filha mais velha leu a verdade nos seus olhos.

— Oh! Ele está louco, gritou.

E enterrou o rosto nas mãos.

White Wynd falava calmamente.

— Você, acrescentou dirigindo-se à filha, você me lembra um pouco a minha primogênita… mas não tem o mesmo olhar dela, aquele olhar que era como uma benção depois do trabalho.

— Senhora, disse, voltando-se cortesmente para a esposa boquiaberta, agradeço-lhe a hospitalidade, mas receio que já haja abusado muito dela. E meu lar…

— Pai! Pai! responde-me. Não é este o seu lar?

O velho brandiu o bordão no ar.

— Os portais estão cobertos de teias de aranha e as paredes estão marcadas pelas chuvas. As portas dobram-me e as vigas esmagam-me. Só há ninharia, disputa e rancores atrás dessas rótulas onde tenho vivido há tanto tempo. Lá na casa onde nasci, longe do mundo, há pão e água, fogo e roupa, e todos os mistérios e artifícios do amor. Há descanso para os pés fatigados e rostos tranqüilos para repouso dos corações famintos.

— Onde? Onde?

— Na Fazenda Branca, ao pé do rio.

E atravessou a porta, o sol brilhando-lhe na face. E os moradores da Fazenda Branca olharam-se com espanto.

White Wynd, na ponte de madeira sobre o rio, sentiu o mundo a seus pés. Um grande vento veio-lhe ao encontro, do outro lado do céu (da terra de maravilhosos reverberos). Quem pode saber o que significa para o homem o efeito do primeiro vento soprando em campo aberto? Ele, pelo menos, sentia-se como se Deus houvesse puxado sua cabeça para trás e beijado-lhe a fronte.

Wynd gastara-se no repouso, sem saber que o remédio está no sol, no vento e no próprio corpo. Estava propenso a acreditar que usava agora a bota de sete léguas.

Ia para casa. A Fazenda Branca devia estar atrás de cada bosque e além de cada montanha. Procurava-a como procuramos o país das fadas, em cada volta do caminho. Só não a buscava numa direção, lá onde, a uma milha atrás, erguia-se a Fazenda Branca, fulgurando contra o céu brumoso da manhã.

Sentia-se como um gigante comparado com os dentes-de-leão e os grilos ao seu redor. É um velho costume nosso medir-nos pelas montanhas. Todo objeto pode ser infinitamente grande como infinitamente pequeno. E Wynd cresceu como um crucificado na sua incontida grandeza.

— Ó Deus, vós que me criastes e a todas as coisas, ouvi quatro cantos de louvor. Um por meus pés, que fizestes fortes e ligeiros sobre vossas margaridas; um por minha cabeça, que vós erguestes e coroastes acima dos quatro cantos do céu; um por meu coração, que fizestes igual ao coração dos anjos entoando a vossa glória. E um por aquela nuvenzinha pálida ao longe, sobre as colinas.

E White sentiu-se como um novo Adão recentemente criado. Era o senhor de todas as coisas, inclusive do sol e das estrelas.

Devia ser uma epopéia a história da viagem de White Wynd. Ele viveu esquecido e esmagado nas grandes cidades. Contudo não esmoreceu. Trabalhou nas pedreiras, nas docas de todos os países por onde passou. Viveu inúmeras existências, como uma alma errante. Até entre vagabundos, forçados, marinheiros e pescadores. Cada um contou-lhe o acontecimento decisivo de sua vida. Até o homem alto e magro, de olhos iguais a duas estrelas, estrelas de uma velha obstinação.

Mas ele nunca se desviou dos limites da terra. Uma tarde suave de verão, todavia, sucedeu-lhe a coisa mais estranha de toda a viagem. Esforçava-se penosamente para galgar uma enorme duna, que tudo ocultava, como se fosse a própria cúpula do mundo, quando, de súbito, invadiu-o uma sensação estranha. Olhou para trás a ver se descobria qualquer sinal de fronteira, pois a sua sensação era de quem acabasse de ingressar no país das fadas. Com o espírito abrasado por novos sentimentos, assaltado por lembranças confusas, marchou penosamente no topo da colina. O sol no ocaso raiava na sua glória universal. Entre ele e o sol, à altura dos campos, uma como nuvem branca surgiu ante seus olhos marejados. Não, não era uma nuvem. Era um palácio de mármore. Não, era a Fazenda Branca, ao pé do rio.

Chegara ao fim do mundo. Todo lugar na terra é o começo ou o fim, segundo o coração do homem. Eis a vantagem de se viver num planeta esférico.

Anoitecia. Toda a extensão da terra onde estava fundira-se em ouro. A relva transformara-se em fogo sob seus pés. White Wynd estava tão quieto que os pássaros pousaram no seu bordão.

A terra inteira na sua glória parecia rejubilar-se com a volta do homem pródigo, os pássaros reconheciam-no. A própria Natureza estava na posse do seu segredo, o homem que tinha viajado de um lugar para o mesmo lugar.

Apoiou-se com fadiga no cajado. E mais uma vez ergue a sua voz.

— Ó Deus, vós que me criastes e a todas as coisas, ouvi quatro cantos de louvor. Primeiro por meus pés, que estão feridos e vagarosos, agora que se aproximam de minha casa. Um por minha cabeça, que está dereada e encanecida, agora que a coroastes com o sol. Um por meu coração, porque lhe ensinastes na tristeza e na esperança sempre adiada, que é a estrada que faz a casa. E um pelas margaridas a meus pés.

Desceu a encosta da colina e penetrou no pinheiral. Os raios vermelhos e dourados do sol agonizante derramavam-se sobre as casas da fazenda e os galhos verdes das macieiras. Era agora o seu lar. Mas ele só ficou sendo o seu lar depois de o ter abandonado. Só agora que voltava de uma longa viagem. Era o Filho Pródigo.

Saiu do pinheiral e atravessou a estrada. Transpôs o muro baixo, errou através do pomar e da horta, passou pelos estábulos dos animais. E no pátio de pedra viu sua mulher puxando água.

Gostou do artigo? Curta nossa página e encontre cultura e conhecimento:www.facebook.com/ifecampinas

“Estado da Arte”: Tolerância

Filosofia | 10/08/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print
O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 01 de dezembro de 2014.

Tolerância

violence-e1318269512280

Em 1648 as potências continentais europeias ratificavam a chamada Paz de Westphalia, encerrando trinta anos de guerra civil no Sacro Império Romano-Germânico e oitenta anos de conflitos entre o Reino Espanhol e a República dos Países Baixos. Ainda que os príncipes se comprometessem a garantir a liberdade de culto para todos os seus súditos cristãos, o mundo teria de esperar até 1782 para testemunhar a última execução legal de uma bruxa na Suíça protestante, e até 1826 para o derradeiro herege vitimado pela Inquisição Espanhola. Entrementes, em 1789 a Assembleia Nacional Francesa regulamentava em sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão a liberdade irrestrita de culto e de opinião. Mas, entre setembro de 1793 e julho de 1794, o Tribunal Revolucionário jacobino executaria mais de 40.000 cidadãos franceses, acusados de “inimigos da liberdade”. Do outro lado do canal da mancha, os católicos ingleses teriam de esperar até 1829 para se verem completamente reintegrados à sociedade civil, enquanto a emancipação dos judeus avançava a duras penas em todo o Ocidente. Contudo, caberia ao século XX revelar a face mais brutal do antissemitismo, com cerca de um terço da população judaica sendo dizimada nos campos de concentração nazistas, junto a prisioneiros políticos, padres, ciganos, homossexuais e deficientes físicos e mentais. Logo depois, os 48 países signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos se obrigavam a garantir o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião. Mas isso não foi suficiente para impedir o extermínio de milhões de dissidentes políticos durante os regimes stalinista e maoísta, nem o apartheid ou os genocídios no Timor Leste, Coreia do Norte, Ruanda, Bósnia-Herzegovina entre tantos outros. E, hoje, enquanto muitos secularistas se surpreendem de que a religião sequer exista, testemunhamos uma epidemia do extremismo islâmico, que conta com um número cada vez maior de fanáticos dispostos a mutilar suas mulheres, decapitar seus inimigos e explodir seus corpos e os de milhares de inocentes em nome de Deus.

Estes são só alguns capítulos da história da Tolerância. Seria possível prever os próximos? Como a tolerância se transformou de um sinal de fraqueza em um valor hegemônico? Como ela é ameaçada por novas formas de intolerância? E acaso deveríamos ser irrestritamente tolerantes com tudo e com todos, ou, como diz a refugiada somali Ayaan Hirsi Ali, a “tolerância com intolerantes é covardia”?


Convidados

– Paula Montero, antropóloga, professora na Universidade de São Paulo e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

– Cicero Araujo, doutor em filosofia e professor de Teoria Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

– Lucas Petroni, editor do site de teoria política Liga da Justiça e pesquisador da Universidade de São Paulo com tese sobre Os Fundamentos Morais da Justiça Social.


Referências

  • Da Tolerância (On Toleration) de Michael Walzer (Editora Martins Fontes).
  • Dossiê Tolerância Novos Estudos n. 84 (http://novosestudos.uol.com.br/v1/issues/view/142).
  • “Tolleranza”, “Liberalismo”, “Libertà”, “Libertà politica”, “Locke”, “Mill”, “Rawls”, “Comunitarismo”, “Multiculturalismo”, “Dignità umana”, “Diritti umani”, “Pluralismo” e outros na Enciclopedia Filosofica Bompiani.
  • “A política do reconhecimento” (Multiculturalism: Examining the Politics of Recognition) em Argumentos Filosóficos de Charles Taylor (Editora Loyola).
  • Die Einbeziehung des Anderen, Jürgen Habermas (Neuauflage).
  • “Temos o dever de tolerar?” de Lucas Petroni : (http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n15/0103-3352-rbcpol-15-00095.pdf).
  • Liga da Justiça: um blog de teoria política : (http://ligajus.blogspot.com.br/)
  • Il problema della tolleranza religiosa nell’età moderna, Massimo Firpo (Loescher).
  • Toleration in conflict de Rainer Forst (Cambridge University Press).
  • “Tolerância”, “Liberalismo”, “Liberdade de expressão”, “Locke”, “Mill”, “Rawls”, “Comunitarismo”, “Dignidade” e outros no Dicionário de Ética e Filosofia Moral (Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale) organizado por Monique Canto-Sperber (Editora Unisinos).
  • “Tolleranza” e outros na Enciclopedia delle Scienze Sociali : (http://www.treccani.it/enciclopedia/tag/scienze-sociali/Enciclopedia_delle_scienze_sociali/)
  • O Liberalismo Antigo e Moderno de José Guilerme Merquior (Ed. É Realizações).   
  • “Toleration” e outros na Stanford Encyclopedia of Philosophy (http://plato.stanford.edu/).
  • Liberalismo político: uma defesa, dissertação de Lucas Petroni  (http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-13032013-123653/pt-br.php).
  • “Tolerância” e outros no Dicionário de Política (Dizionario di Politica) organizado por N. Bobbio, N. Matteucci e G. Pasquino (Universidade de Brasília).

Produção e apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Echo’s Studio

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/tolerancia/