Na última semana, o STF suspendeu o julgamento sobre a extensão dos efeitos sucessórios do casamento para a união estável. Caso a maioria decida por isso, quem não tem nem vínculo de parentesco e nem vínculo conjugal, graças a uma mera relação de afeto com o falecido, passará a ser herdeiro com direitos iguais aos dos filhos do mesmo morto.
A tese, esdrúxula por si só, é mais um capítulo da deriva radical que a afetividade tem propiciado ao direito de família. Se a afetividade fosse o fundamento e a razão de ser desse ramo jurídico, não restaria evidente um critério objetivo que impulsionaria a sociedade e o próprio direito a se ocupar da normatividade de tais situações.
O problema reside no fato de que há muitas situações de afetividade que nunca buscaram a força atrativa do direito, salvo para efeitos periféricos, a saber, para atribuir algumas consequências jurídicas acidentais, como, por exemplo, no passado, em que se indenizava o cônjuge pela dedicação exclusiva aos afazeres domésticos no caso de dissolução da união estável.
Logo, o fato de duas pessoas estabelecerem laços de afetividade não nos parece suficiente, por si só, para justificar toda uma regulação jurídica tão densa e fecunda, que possa ser erigida à condição de direito de família, cuja finalidade, desde sempre, foi a de regular e proteger uma estrutura antropológica objetiva.
Ainda que se argumente que, concomitantemente, o direito conceda notável relevância a um desejo psicológico comum a duas pessoas, de fato, a afirmação procede, mas não é, juridicamente, o elemento estritamente essencial do ser da família. Mas não é só. Se a bandeira do afeto é levantada a prumo no território do direito de família, logo, convém apreciar sua situação na estrutura do ente humano.
A afetividade, estudada pela antropologia filosófica desde a Grécia Antiga, é uma potência humana, pareada pela razão e pela vontade. Impulsionada pela fenomenologia no século XX, seu estudo chegou a novos patamares de conhecimento que vieram a reforçar os delineamentos daquela antropologia e, também, provocaram uma nova vitalidade na compreensão de sua efetiva importância e de sua ação recíproca com a vontade e a razão humanas.
Contudo, no direito de família, a afetividade passou a confundida com sua versão reducionista, conhecida por sentimentalismo, o qual restringe a dimensão afetiva, esta nobre realidade da natureza humana, a uma mera tendência permanente e, em geral, consciente, que dirige e incita a atividade do indivíduo para um fim, como, por exemplo, as pulsões do prazer sexual e as da atração para a morte.
Assim, conhece-se muito da cadeia mecânica das sensações, imprescindível para o estudo da afetividade, mas pouco ou nada se sabe sobre seus fundamentos existenciais. A depender do caso concreto, o sentido e o alcance dos afetos podem ser maximizados ou minimizados, quando estão desamparados da luz da antropologia filosófica. E esse excesso ou essa falta podem proporcionar prejuízos.
No direito de família, a louvação desmedida e errônea da afetividade é nociva às estruturas familiares. A afetividade, na estrutura antropológica do ser humano, sem os arreios da razão (escolha prudente) e da vontade (compromisso de amor), no momento de tomada de uma decisão a dois, provoca um juízo menos livre e mais suscetível de manipulação, pois tende a justapor aquela deliberação à satisfação imediata dos prazeres sensíveis.
Um famoso romancista britânico já dizia que todo amor humano, em seu apogeu, possui a tendência de reivindicar uma autoridade divina, porque sua voz tende a soar como se fosse a vontade do próprio Deus. Segundo esse romancista, essa voz passa a nos dizer para não medir o custo, exige de nós um compromisso total, tenta superar todas as outras reivindicações e insinua que todo ato feito sinceramente “por causa do amor” é, portanto, bom e até meritório.
Sabemos que o amor erótico e o amor patriótico tentam, dessa forma, “tornarem-se deuses”. Mas os afetos podem fazer o mesmo. Quando duas pessoas, no seio de uma relação familiar, permitem levar-se pela dimensão afetiva única e exclusivamente, elas perdem sua natureza, porque os afetos se desnaturam, na medida em que se tornam os eixos absolutizantes dessa mesma realidade familiar. Entronizar a afetividade como fundamento do vínculo familiar é o mesmo que pleitear do direito que se faça mais do que a realidade permite e sem fazer o que a realidade pede. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)
Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 05/04/2017, Página A-2, Opinião.