Corações racionais

Opinião Pública | 20/05/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print
Share Button

Vivemos em tempos emotivos. Para todos os gostos e sentidos. Se o leitor tem alguma dúvida, faça o teste: mande uma foto em clima familiar, com um amigo ou abraçado a um animal de estimação numa rede social. Em poucos minutos, o número de curtidas alcançará níveis estratosféricos. Resolva fazer o mesmo com um bom artigo sobre política ou economia. Muito provavelmente, surgirá a tentação de apagar a postagem, dada a baixa receptividade nas curtidas.

Se o leitor não é dado à interação social, então, pode ligar a televisão e assistir a um programa de utilidade familiar ou de entretenimento. A emoção, mais cedo ou mais tarde, vai tomar conta da tela, a ponto de até o âncora do programa ficar com os olhos marejados. Para quem, caracteriologicamente, é não-emotivo, como eu, esse admirável mundo novo da emotividade é uma tarefa e um desafio cognitivos.

Há pouco, tive que defender, numa entrevista, a prioridade dos créditos trabalhistas de um processo falimentar. Porém, durante a conversa, a par de outros argumentos legais, a eles me referi com um frame mais emotivo e menos racional e, nem por isso, falso: não eram créditos trabalhistas, mas “histórias de vida cifradas”. Quando percebi que isso captou a inteligência emocional do repórter, a entrevista tomou um rumo bem mais favorável. Vivendo e aprendendo.

Desde a modernidade, a interpretação do mundo lembra uma espécie de rígida quadratura da realidade: racionalidade instrumental, aquisição, poder, cientificismo e domínio sobre a natureza. Com a crise da modernidade, de uns tempos para cá, a emoção tomou uma tal ascendente magnitude que, em razão disso, todo o pensamento ocidental parece estar empenhado a revisar essa leitura insípida da realidade das coisas, inaugurado com o Iluminismo.

O crescente protagonismo das emoções na sociedade contemporânea trouxe uma série de aspectos positivos, como o rearranjo das relações entre mulheres e homens, pais e filhos e no âmbito dos recursos humanos da empresas. Boa parte dos mais jovens está disposta a ganhar um pouco menos em prol de uma maior realização profissional. Uma parcela considerável da sociedade prefere comprar produtos ou contratar serviços de de empresas que assumam algum tipo de responsabilidade social ou ambiental.

No fundo de todas essas posturas, existe uma sincera busca de empatia e de estabelecimento de vínculos sinceros e generosos com os demais. Socraticamente falando, ao ver como os outros e as coisas nos afetam na vida real, de certa forma, damo-nos a conhecer algo de nós mesmos. É certo que a fugacidade das emoções impede-nos de discernir, muitas vezes, aquilo que corresponde à uma situação momentânea e aquilo que se arraiga nos estratos mais profundos de nosso ser. Esse sempre foi, historicamente, o efeito mais imediato e comum das emoções na dimensão humana.

Contudo, a cultura emocional que nos cerca vai mais além da vida interior do homem e passa a influenciar outras dimensões, por meio dos chamados “marcos inconscientes” da linguística. Na política, a vinculação da vontade do eleitor ao candidato já não mais se estrutura em torno de uma convicção racional, mas considera uma certa adesão emocional. Na educação, uma série de propostas pedagógicas sentimentalistas ocupam o centro das políticas estatais educacionais.

No direito criminal, o populismo penal em torno da redução da maioridade define a postura de certos mandatários que pretendem capitalizar politicamente em cima de um justo sentimento de indignação coletiva acerca da generalizada impunidade social. No direito de família, os afetos expulsaram o amor do núcleo fundante do matrimônio e da família e passaram a justificar o reconhecimento público de qualquer forma de convivência a dois ou a três, do “gênero sexual“ que for. Em todos esses casos, notamos que as emoções pautam propostas de envergadura social, sendo que boa parte delas perderiam seu apelo se submetidas ao crivo de uma reta razão.

”As emoções têm razões que a razão desconhece”, cantava o poeta de minha geração para Eduardo e Mônica, onde a emoção crescia, como tinha que ser. Por outro lado, isso não autoriza a concluirmos pelo total eclipse da razão. Em outras palavras, em alguns campos da realidade, quero dizer que, quando a emoção toma o lugar da razão, uma verdade objetiva foi abandonada e substituída por uma verdade subjetiva que, ao cabo, é capaz de personalizar-se a limites insuspeitáveis. Ou melhor, inacreditáveis. Por isso, para uma era emocional, nada como um ”coração racional”. Não é, Bia? Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 20.05.2015, Página A-2, Opinião.