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Entrevista do IFE São Paulo com Anthony Daniels (Theodore Dalrymple)

Filosofia | 30/11/2016 | | IFE SÃO PAULO

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dalrymple-copyO IFE São Paulo entrevistou Anthony Daniels – também conhecido como Theodore Dalrymple – em sua recente passagem pelo Brasil, promovida pela Editora É Realizações. Em nossa conversa com o médico psiquiatra inglês, autor de livros como A Vida Na Sarjeta, Em Defesa do Preconceito e Nossa Cultura…ou o que restou dela, foram tratados diversos temas sobre sua vida e obra:

Em seus livros você costuma fazer análises baseadas em sua experiência pessoal. Por que a opção por esta abordagem ao invés de um estilo mais formal, teórico ou acadêmico?

Em primeiro lugar, não sou qualificado para escrever academicamente.  Depois, a maioria dos acadêmicos escreve muito mal (risos). Além disso, a vantagem de escrever dessa maneira é que as pessoas podem ver que não se trata apenas de teoria, mas de uma espécie de experiência vivida. É uma dialética entre experiência pessoal e considerações mais amplas. Não acredito que a experiência pessoal seja um guia completo para a vida ou a resposta para perguntas difíceis, mas ela deve estar em uma espécie de diálogo com fontes de conhecimento mais amplas. O problema com os acadêmicos é que eles não acreditam que a experiência pessoal seja importante, e, assim, fazem violência até mesmo à sua própria experiência pessoal, o que pode levá-los a acreditar em qualquer tipo de disparate.

Mas é claro que a experiência pessoal não é a única guia. Deve haver um tipo de diálogo entre a experiência pessoal e considerações mais amplas. Assim, por exemplo, vamos supor que você seja vítima de um crime. Há crime em todas as sociedades, e o fato de ser vítima de um delito não o torna especialista neste assunto. Mas usando a sua experiência do medo do delito que aconteceu com você ou com seus amigos, você pode começar a pensar sobre crime e, em seguida, olhar estatísticas e assim por diante.

Sempre achei que uma das maiores causas do crime é a criminologia. Criminologistas no meu país, diante do aumento fenomenal da criminalidade, negaram que o medo que as pessoas sentem em relação aos delitos se baseava em qualquer tipo de realidade. As pessoas comuns foram mais precisas em sua compreensão do que os criminologistas, que se esforçaram para negar o aumento da criminalidade. Então eles consideram que o medo do crime é o problema, e não o crime em si. Qualquer um que vive em um alojamento público na Inglaterra saberá que o medo do crime não é irracional. Minha mãe, uma senhora muito idosa, não podia sair à noite. Os criminosos impuseram um toque de recolher a pessoas comuns. Aqui no Brasil ocorre a mesma coisa: disseram-me que não devo sair depois das 22 horas. Isto é um toque de recolher, e é imposto por criminosos. Suponhamos que eu saia às 22 horas. Provavelmente em nove entre dez vezes nada vai acontecer. Mas a vez em que algo ocorre é mais importante do que as nove vezes em que nada aconteceu. Então tento evitar em meus livros esse tipo de negação da experiência comum a que se inclinam muitos acadêmicos quando escrevem apenas academicamente.

Em seu livro Admirable Evasions (ainda não traduzido para o português) você afirma que correntes psicológicas não conseguem fornecer boas respostas sobre a natureza humana e questões importantes para a vida, apenas reconhecendo conquistas para problemas pontuais. Você vê alguma corrente ou escola psicológicas atuais que forneça boas bases para a compreensão da pessoa humana?

Não, porque não acredito que poderia haver uma escola assim. Acho que é impossível por razões metafísicas. Os problemas da existência humana são permanentes e acho que de certa forma insolúveis. Se voltarmos mil anos, não acredito que os seres humanos entenderiam mais a vida do que nós, assim como não entendemos mais sobre a vida do que Shakespeare ou os gregos e assim por diante.

Vem a minha mente a obra de Viktor Frankl e sua logoterapia. Qual é a sua opinião sobre isto?

Depende do que você quer chamar de terapia. Acho que para Frankl é algo mais como um diálogo socrático. Não o chamo de médico; seu ponto de vista é mais filosófico.

Claro que existem exceções, mas as exceções não fazem a regra. Como eu disse no meu livro: você não pode tratar a vida como se fosse um caso de aracnofobia. A aracnofobia pode ser tratada psicologicamente – isso eu aceito. Mas você não pode tratar os problemas da existência como se fossem aracnofobia. É isso que nego neste livro: que a psicologia será capaz de nos dizer algo importante sobre a vida como um todo. Pode ser que auxilie em alguns problemas específicos. Tomemos as fobias como exemplo: quanto mais específica a fobia, mais a psicologia pode ajudá-la. Mas isso também significa que a psicologia é menos importante em relação ao todo.

Então ela pode abordar certas questões específicas. Mas não fornece …

A resposta sobre a vida.

Em seu livro Qualquer Coisa Serve você afirma acreditar, embora não seja religioso, que devemos viver a vida como se certas coisas fossem sagradas. Qual seria a fonte ou o fundamento dessa sacralidade?

Eu diria que a necessidade, porque se não nos sentirmos assim, qualquer coisa vai servir. Não consigo fornecer uma justificativa metafísica completa para isso. É uma espécie de intuição. Não posso dar-lhe um princípio indubitável a partir do qual você pode deduzir que o que digo é verdade. Mas se não temos essa atitude, então qualquer outra coisa realmente serve. Não conseguiriamos dizer o que há, por exemplo, de errado com o genocídio.

Então é uma abordagem consequencialista?

Sim, mas não sou um consequencialista por completo. Se considerarmos, por exemplo, a justiça, não acho ela que possa ter uma explicação consequencialista. Não sou filósofo, então talvez tenha perdido algo. Mas se adotássemos uma visão completamente consequencialista da justiça seria perfeitamente correto punir pessoas inocentes caso as consequências de fazê-lo fossem desejáveis. Nós não o faríamos porque seria injusto, portanto a questão da justiça não pode ser observada apenas consequentemente.

Você escreve artigos para o City Journal. Você acha que a Política das Janelas Quebradas poderia dar boas respostas para problemas criminais em países diversos dos Estados Unidos?

A teoria é intuitivamente plausível. Pensei nas pessoas na Grã-Bretanha, por exemplo, que têm jogado muito lixo na rua. Quando o lixo torna-se geral, adicionar mais não faz qualquer diferença, porque não se pode dizer como o lixo estava antes de receber mais lixo. Então acho que é verdade, e não vejo razão para não ser verdade no Brasil também.

O problema na Grã-Bretanha é que realmente não percebemos os pequenos atos de desordem. Sei disso por causa do meu trabalho com prisioneiros, que muitas vezes começaram com crimes menores, e progrediram no seu repertório criminoso. Há naturalmente muitos que nunca cometem um grande crime, é verdade. Mas não há nenhum grande criminoso que não cometa crimes pequenos. Não creio que seja diferente com os brasileiros.

Relacionado a este assunto, qual a sua opinião sobre a questão da legalização das drogas? E quais seriam as consequências da legalização?

Primeiro é preciso esclarecer o que se entende por legalização, e a maioria das pessoas não é clara em relação a isto. Quando se fala em legalização das drogas, quer-se dizer que você poderia entrar em uma loja e comprar seu crack, sua cocaína, sua anfetamina, sua fenciclidina, sua cetamina, sua heroína, da mesma forma que poderia comprar seu café ou seu pão? Isso parece intuitivamente absurdo. Não me parece ser um cenário plausível em qualquer lugar no mundo. Esse é o primeiro ponto.

No mais, alega-se que todas as consequências ruins do consumo de drogas surgem da ilegalidade e não das drogas em si. Sabemos que isso não é verdade. Por exemplo, nos Estados Unidos há hoje 24.000 pessoas morrendo de overdose de opiáceos prescritos, drogas quimicamente semelhantes ao ópio, como a heroína, que são legais. Elas são prescritas por medicos – e acho que muito mal prescritas. Os médicos são completamente irresponsáveis, mas o entorpecente é legal, e 24.000 pessoas morrem por ano nos Estados Unidos por causa dele. Assim, podemos ver que os problemas decorrentes dessas drogas não são puramente a consequência da ilegalidade. Há mais pessoas morrendo em decorrência destas drogas do que em razão de entorpecentes ilegais. Então é falsa a ideia de que se tudo é legal, tudo está bem. A legalização do crack não significaria que não ocorreriam as consequências que, de fato, se verificam nos usuários.

Talvez pudéssemos fazer uma distinção entre legalização e descriminalização?

A descriminalização também não resolverá o problema. Não acho que resolveu o problema em Portugal. O índice de criminalidade não caiu em Portugal como resultado. Não subiu, mas também não caiu. Na verdade, em nossas sociedades, o consumo de drogas já foi descriminalizado, porque, pelo menos na Grã-Bretanha, as pessoas não são presas por usar drogas. Traficar drogas ainda é crime. Os descriminalizadores não estão dizendo que deveríamos descriminalizar o tráfico de drogas, que ainda é ilegal em Portugal. É ilegal produzir essas drogas, é ilegal distribuí-las, é ilegal vendê-las, mas de fato temos a descriminalização de qualquer maneira. Creio que ninguém esteja na prisão na Inglaterra ou nos Estados Unidos meramente por fumar maconha. E os descriminalizadores não sugerem descriminalizar o fornecimento, então nada muda na prática.

Subjacente à descriminalização está a idéia de John Stuart Mill do princípio do dano. O problema é que é muito difícil, na sociedade moderna, isolar o dano que um indivíduo faz a si mesmo do mal que faz a outras pessoas, e também fazê-lo pagar por isso. Creio que seria impossível e desumano conceber uma sociedade que não tentaria ressuscitar alguém que consumiu heroína e teve uma overdose simplesmente porque aquela foi a decisão da pessoa. Não deixaríamos de levar alguém ao hospital caso o problema fosse uma overdose. Não diríamos “Nesse caso podemos deixá-lo morrer”. Ninguém iria querer viver nesse tipo de sociedade.

Já que você mencionou John Stuart Mill, estou certo em dizer que você é cético em relação ao libertarianismo?

Sim, precisamente porque o libertarianismo é uma espécie de utopia – e não acredito em utopias. Como eu disse, existe um grande problema: a ideia de que todos, na condição de indivíduos, podem fazer o que quiserem, contanto que não afetem os outros. São muito poucos atos que não afetam ninguém. Além disso, há algumas passagens de John Stuart Mill muito citadas, mas as pessoas não o citam quando ele diz: “Se um pai não sustenta o seu filho, ele pode legitimamente ser colocado para trabalhar à força a fim de sustentá-lo”. Se ele não quer trabalhar para prover ao filho, então podemos, de fato, escravizá-lo. E isso mostra o lado perigoso do libertarianismo, fazer as pessoas absolutamente responsáveis por si mesmas tem a consequência de que qualquer dano que fazem deve ser reprimido. Como disse Dostoiévski: “Partindo do princípio da liberdade absoluta, chegamos à tirania absoluta”.

O que há de correto nos libertários é que eles percebem que no mundo moderno estamos cada vez mais sendo geridos e deixamos cada vez menos espaço para o julgamento individual e para a confiança nas pessoas. Por exemplo, os professores – e acho que provavelmente acontece o mesmo no Brasil – têm uma enorme quantidade de obrigações burocráticas que torna difícil que deem o seu melhor. Acho que seria muito mais desejável dar liberdade aos professores para que pudessem fazer o seu melhor.

Acho que o libertarianismo é a tentativa de produzir um mundo perfeito em que tudo vai de acordo com uma doutrina.

Então, neste sentido, promete uma utopia como o socialismo, mas uma utopia diferente?

Sim, é uma utopia diferente. Como todas as utopias, não é muito realista e ninguém iria querer viver nela. Há muitas coisas que aceitamos, presumimos, mas que são produtos de regulação. Por exemplo, assumimos que a água é limpa. Não queremos ter de testar nossa água todas as vezes que a tomamos. E o fato de isto ser regulamentado nos liberta. Claro que os libertários diriam: “Na sociedade libertária, aqueles que fornecem água a testariam”, mas sabemos que não é realmente esse o caso. Se as pessoas tiverem oportunidade de vender água contaminada, elas o farão. Na verdade, elas o fazem em lugares como a Índia.

Aprendemos a partir da experiência prática, não da especulação…

Exatamente. É experiência prática.

Em seu livro Podres de Mimados você destaca o sistema educacional como uma causa da diminuição da alfabetização, da promoção da violência entre os jovens e de diversos problemas que o Ocidente começou a viver. Atualmente, o governo federal brasileiro está tentando implementar reformas no sistema educacional brasileiro. Estudantes, porém, estão rejeitando as reformas e ocupando escolas. Como resolver este círculo vicioso no qual estudantes que são o produto deste sistema educacional problemático se recusam aceitar reformas?

Qual é a idade destes estudantes que estão ocupando? E deveríamos chamá-los de pupilos, não de estudantes. Isso é parte do problema. A palavra “pupilo” quase desapareceu. Um estudante é alguém que, em parte, dirige seus próprios estudos. Ele escolhe o que estudar. Um pupilo é uma pessoa mais jovem a quem é dito o que vai aprender. E o ponto em que um pupilo se torna um estudante não é perceptível. Tradicionalmente é quando ele deixa a escola e vai para a universidade. Mas o problema é que agora a autoridade passou da pessoa mais velha para a pessoa mais jovem. A criança se torna uma autoridade. Vejo isso em coisas pequenas, como os pais na Inglaterra (eu não sei sobre a situação no Brasil) que perguntam aos filhos o que eles querem comer. Isto é errado. Você não pergunta à criança o que ela quer comer. Você dá à criança algo e diz: “Isso é o que você vai comer.” Exceto, talvez, em alguma ocasião especial. Há uma consequência enorme para a criança. Entre outras coisas, uma das razões para a existência de tanta obesidade é o fato de as pessoas comerem como crianças pelo resto de suas vidas. Elas puderam escolher desde muito cedo, na verdade, antes que tivessem qualquer base para fazer essa escolha.

Não sei qual é a situação no Brasil. Eu me pergunto se os pupilos que estão ocupando as escolas sabem o que estão fazendo e até onde estão sendo manipulados pelos professores em sindicatos. Não sei exatamente qual é a situação. Mas enfrentamos o mesmo problema na Inglaterra, onde por décadas os professores foram mal intruídos em métodos para ensinar as crianças a ler. Estabeleceu-se que qualquer criança, praticamente qualquer criança, pode aprender a ler bem, mesmo que venha de um lar desfavorável, mesmo que viva em circunstâncias muito ruins. E, no entanto, nossos professores não fizeram isso por décadas. Mas está começando a mudar.

Agora, imagino que o mesmo aconteceu no Brasil. E, possivelmente, de maneira pior, porque aqui é ainda mais ideológico. Então acho que o problema está, provavelmente, nos professores e não nos pupilos. E é claro que é um círculo vicioso. É muito difícil mudar um sistema altamente burocrático. O governo central pode dizer o que quiser, mas as pessoas que vão realmente determinar o que acontece estão muito abaixo na escala burocrática. Uma das possíveis soluções poderia ser abrir o sistema educativo à concorrência. Há um livro muito interessante escrito por James Tully sobre o estabelecimento de escolas particulares pequenas e baratas em Lagos, Bombai e outros lugares muito pobres, onde as pessoas em situação de pobreza estão dispostas a pagar algo para ter seus filhos educados. O problema com o sistema burocrático é que as pessoas mais vulneráveis às suas imbecilidades são, naturalmente, os pobres. Porque se você pertence à classe média, ou não vai aceitar essa situação ou vai tomar uma ação alternativa. Portanto, são os pobres que ficam vulneráveis. Dito isto, desde que cheguei ao Brasil conheci vários professores que estão trabalhando no sistema público, e pareciam ser pessoas muito boas. Estavam realmente tentando fazer o seu melhor, mas disseram que tudo está contra. Os professores estão contra, o ministro da educação é contra. Então, é um problema muito difícil.

Ainda sobre seu livro Podres de Mimados, nesta obra você descreve aspectos do sentimentalismo e destaca que, se algo ocorre apenas do âmbito privado da vida de alguém, é como se não tivesse ocorrido, a menos que essa pessoa o demonstre em público. Você acredita que o surgimento das redes sociais é consequência ou causa deste fenômeno?

É uma relação dialética, sem dúvida. Uma relação na qual a possibilidade se torna necessidade. Não sei exatamente, pois não uso redes sociais. Mas parece haver um pacto entre certas pessoas: eu finjo estar interessado na sua futilidade se você fingir que se interessa pela minha. Colocar o que acontece com você em um espaço no qual milhões de pessoas podem ver de alguma forma confere a estes acontecimentos uma importância maior. Ouvi dizer que diversas pessoas publicam coisas como: “Estou em uma loja” ou “Estou aqui, tomando café”. Por que alguém se interessaria por isto? É muito estranho para mim. De qualquer forma, eu diria que existem meios sensatos de usar estas mídias, mas muito delas é futilidade e somente tem por consequência aumentar a presunção e uma espécie de individualismo sem individualidade.

Sobre seu livro A Nova Síndrome de Vichy, você escreveu esta obra antes do Brexit, certo? Qual a sua opinião sobre a saída da União Europeia?

Em primeiro lugar, em muitos casos representou um protesto contra a classe política. Se o Sr. Cameron não tivesse dito nada é possível que o voto tivesse sido no sentido contrário. Se os políticos não tivessem dito nada, especialmente aqueles que eram favoráveis à permanência, é possível que o voto tivesse sido no sentido contrário.

E, na minha visão, a União Europeia está construindo a próxima Iugoslávia. Eu não sei se você já ouviu alguém dizer no que consiste o Projeto Europeu. Eles costumam falar do Projeto Europeu, mas você nunca ouve ninguém dizendo o que ele é. E somente pode significar uma coisa: a construção de um estado unitário. E é extremamente perigoso impor políticas a países do tamanho da Espanha ou da Itália sem que haja nenhum sentimento real de união entre eles. É algo extremamente perigoso e terminará em conflito.

E os alemães estão em uma situação complicada…

Os alemães estão em uma posição muito complicada porque eles são poderosos, mas não todo-poderosos. Então, por exemplo, se a França, a Espanha e a Itália fizerem uma coalisão contra a Alemanha – porque o interesse dos países são diametricamente opostos -, algo será imposto à Alemanha. E isto não é bom. Na verdade, não poderia haver melhor forma de fazer crescer o nacionalismo alemão. Ainda assim, eles me parecem preparados para continuar nesta rota, o que é muito perigoso.

Agora, em relação ao Reino Unido, é existencialmente importante para a União Europeia que o Brexit seja um desastre econômico, porque se não o for, se não houver deterioração, ainda que ocorra apenas estagnação, as pessoas na Europa vão dizer: “Qual é o ponto da União Europeia se sair dela não faz nenhuma diferença, não leva ao desastre?”. Então é necessário para eles que o desastre seja produzido.

Entendo que o Reino Unido tem salvado a Europa desde as Guerras Napoleônicas. Você acredita que é isto que vai acontecer novamente?

A questão é que nós temos diversos problemas no Reino Unido e não podemos pensar que eles decorrem da União Europeia. Isto não é verdade. Nossos problemas não têm por origem fundamentalmente a União Europeia. Mas se o Brexit levar à quebra da UE, então terá salvado a Europa de novo, sim, porque o futuro da Europa é o desastre, a menos que mudem de rota.

Se eu tivesse que resumir seu livro em uma frase, esta seria: a Europa está perdida. Estou correto?

Eu não acho que seja inevitável. Depende do que você quer dizer por perdida. Continentes não se perdem simplesmente. Mesmo depois da queda do Império Romano continuou havendo vida, e provavelmente não era tão ruim como costumamos imaginar. Então, nesse sentido não está perdida. E eu não quero dizer que a vida na Europa é um inferno, porque obviamente não o é. Mas estamos trilhando um caminho que vai levar ao desastre, provavelmente não no meu tempo de vida, pois não vou viver tanto tempo, mas eu acho que você verá desastre na Europa, caso continue se movendo nesta direção. Mas eles podem mudar de caminho por outras razões.

Já que estamos falando da Europa, não podemos deixar de mencionar o Islamismo. E me parece que você é mais otimista em relação ao Islã na Europa do que a maioria dos analistas, pois entende que, ainda que o Islã influencie a Europa, a cultura secular também influencia o Islamismo. Você, então, não enxerga o Islã como uma ameaça real?

Às vezes penso que sim, às vezes penso que não. A questão é que o Islã é intelectualmente muito fraco. E o Islamismo é a resposta a esta fraqueza extrema do Islã. O fato é que o Islã não tem nada a dizer ao mundo moderno, não pode cooperar com ele. E, ao mesmo tempo, pessoas que são muçulmanas percebem o que acontece com as religiões quando há total liberdade de inquirição, criticismo e assim por diante.

Assim como com o cristianismo…

O cristianismo desmoronou, ao menos na Europa. Talvez não no Brasil, mas provavelmente irá ocorrer aqui também. Veja a França, por exemplo. Eu estava lendo uma edição de Flaubert voltada para crianças de 16 anos nas escolas e neste livro os editores entenderam que precisavam explicar a doutrina da trindade. Eles entenderam que não era possível ter expectativas de que as crianças soubessem o que era a doutrina da trindade ou a confissão, e assim por diante. E esse é o país que é chamado de “a filha mais velha da Igreja”. Se os editores deste livro estão certos, e eu acredito que devem estar, significa que ocorreu uma destruição praticamente completa do cristianismo na França. E o mesmo é verdade na Inglaterra.

Então se eu fosse um muçulmano e quisesse manter o Islã, eu iria pensar que a única forma de fazê-lo é o extremismo. É a única solução para o Islã. A menos que seja mantido pela força, irá se tornar apenas mais uma crença pessoal – não mais do que a crença nos chakras da terra ou nos poderes curadores dos cristais. E, claro, sempre houve em si um elemento de força: na doutrina aceita na Sunnah – e não estou certo sobre o islamismo xiita – da pena de morte para apostasia. Para mim, soa um pouco como a Máfia (risos).

Como eu disse, eles entendem que, a menos que seja mantido pela força, o Islã irá desmoronar. De certa forma esta violência representa um entendimento implícito de quão frágil é o Islã. Isto significa que ocorrerão incômodos terríveis nos anos que estão por vir. Mas não é uma ameaça existencial real, pois irá desmoronar.

Você acredita que movimentos da extrema direita europeia, como o Front National na França, podem usar essa ameaça do Islamismo como meio para ganharem poder?

Sim, é claro. Se eu fosse um líder de extrema direita eu iria me aproveitar de todo exemplo de conduta islâmica que nós não gostamos. Por exemplo, existem ruas em Paris que são bloqueadas por pessoas rezando. Eu também não gosto disto. Eu acho que essas pessoas deveriam ser retiradas. Deveria ser dito a elas “Não faça isso, pois se o fizer será preso por criar obstruções”. O fato de que ninguém toma essa atitude obviamente dá força ao Front National. Mas você disse que é uma organização de direita. Em certos aspectos, porém, é claro que é também de esquerda, pois evidentemente não é economicamente liberal. Muitas de suas prescrições econômicas são exatamente aquelas desejadas pela esquerda ou, ao menos, por parte da esquerda.

Ao final do livro você menciona os Estados Unidos e se este país poderia ou não seguir o mesmo caminho que a Europa adotou. Roger Scruton deu uma palestra na Heritage Foundation e mencionou o livro A Decadência do Ocidente de Oswald Spengler. De acordo com Scruton, o que Spengler não previu foi a emergência dos Estados Unidos e a ajuda dada pelos EUA à Europa após a Segunda Guerra. Parece-me que no século XXI os Estados Unidos estão mais fracos do que antes. Qual seria o papel dos EUA no mundo neste século?

Em certo sentido, esta perda de poder é inevitável, assim como o foi a perda de poder britânico. Disraeli disse que “o continente europeu não permitiria que o Reino Unido fosse a oficina do mundo para sempre”. Em outras palavras, você não pode manter sua dominação econômica para sempre, e isto já está acontecendo com os Estados Unidos. Eu sequer acredito que, estritamente falando, continue sendo o poder militar dominante que era. Eu não acredito que os Estados Unidos iriam à guerra contra a China, por exemplo. Se a China invadisse Taiwan eu não acredito que os EUA iriam protegê-la. Isto significa que não é mais o superpoder único que o foi. Os EUA sequer iriam atacar a Rússia caso ela invadisse áreas como a Geórgia, a Criméia ou os Países Bálticos. Os Estados Unidos viriam ajudar os Países Bálticos? Faria muito barulho, imporia sanções econômicas, passaria resoluções, mas não iria para a guerra, e é por isso que o povo nestes países está nervoso.

Mas eu não culpo os Estados Unidos, pois isso é uma consequência da situação. Não acho que pudessem fazer muito melhor. Contudo, muito do orgulho dos Estados Unidos consiste exatamente em ser este grande poder e, quando este poder está evidentemente perdido, a moral do país pode deteriorar.

Você tende a ser cético quanto à ideia de excepcionalismo americano, certo?

Ah, sim. Eu não acredito em excepcionalismo americano. Quero dizer, todo país é excepcional, pois todo país é único. O Brasil é diferente de todos os outros países. A América é um pouco diferente porque ao contrário da maioria dos países é um país ideológico. É fundado em uma ideia, ao menos em teoria, fato que não ocorre com a maioria dos países. A França, de forma similar, é um país ideológico. E o sentimento de excepcionalismo é perigoso. O orgulho vem antes da destruição, um espírito arrogante antes da queda, como diz a Bíblia.

Um tema recorrente de sua obra é o dos intelectuais e sua influência na sociedade. Muitos problemas da sociedade ocidental parecem ser resultado de certas ideias promovidas por intelectuais. Você entende que estes intelectuais eram moralmente corruptos ou estavam buscando a verdade e foram incapaz de o fazê-lo?

Acredito que uma mistura dos dois, assim como provavelmente a maioria dos seres humanos. Inclusive, eu mesmo. Eu não quero atribuir más ideias de pessoas ao fato de elas serem más ou corruptas, apesar de ser possível traçar a origem das suas ideias em fatores pessoais, como ocorre com qualquer um.

Se pegarmos Foucault, por exemplo, e isto é apenas uma teoria: o pai dele era um cirurgião e costumava acordar às 03 horas da manhã para salvar a vida de pessoas, e ele era de direita. Este era um tipo de humanidade prática que eu não acho que Foucault poderia ter igualado. Não acho que Foucault iria levantar alguma vez às 03 horas da manhã por causa de alguém. Esta é a minha teoria, pode ser absurda e não posso provar. Mas pode ser que isto tenha o levado a ver naquilo que aparentava ser uma atitude humanitária algo por baixo que é menos respeitável. Assim, o pai dele acordando às 03 horas da manhã para salvar alguém, na verdade, seria apenas um exercício de poder, com o fim de se fazer importante.

Qual a sua opinião sobre o livro Pensadores da Nova Esquerda, de Roger Scruton?

É eficaz, pois ele leva os pensadores a sério. Devo dizer que é admirável que ele tenha se dado ao trabalho de ler centenas de páginas de Habermas (risos). É algo que vai além do dever, é heroico. É absolutamente impressionante que ele tenha pinçado o pouco de sentido de milhares de páginas de verborragia. Eu não o faria. Meu amigo Myron Magnet costuma dizer que você não precisa comer um pacote inteiro de manteiga para saber que está rançosa, mas Scruton comeu todo o pacote, e ele ainda se esforçou para ser justo. Scruton passou por esta enorme pilha de verborragia e manteve sua sanidade. Isto é admirável.

Na sua obra Em Defesa do Preconceito você emprega ao termo “preconceito” um sentido diferente daquele usual, certo?

Imagine que você está andando por uma rua em uma noite escura e vê se aproximando um homem jovem, com determinado modo de andar. Você sente medo. Agora, você não sente se ver uma velha senhora caminhando em sua direção. Isto é preconceito. Você está pensando em estereótipos. Por óbvio, na maioria das vezes o jovem não fará nada com você. Mas, ainda assim, é muito mais provável que ele o ataque do que a idosa. Se não tivéssemos este tipo de ideias, estaríamos no mundo como bebês. Você não pode limpar sua mente destas preconcepções, é impossível fazê-lo. Qualquer um que alegue não ter preconceitos é um mentiroso. O importante é ser capaz de controlá-los e de adaptá-los em resposta às situações.

O problema em dizer “Eu não tenho nenhum preconceito” é que se está fazendo violência a algo que se sabe ser verdade. Eu poderia te dar diversos exemplos de preconceitos que tenho, mas que preciso mudar à luz da experiência. Tenho preconceito contra tatuagem. Mas não é possível que a tatuagem tenha hoje o mesmo significado que tinha quando eu era criança, ou até mesmo o de 20 ou 30 anos atrás, porque um terço da população agora é tatuada. Então, eu tenho que controlar o meu preconceito. Eu ainda o tenho, tenho plena consciência disto. Eu tenho uma oposição estética à tatuagem também, mas originalmente meu preconceito tem por base meu entendimento de que 99% dos criminosos britânicos brancos são tatuados, e não acredito que seja apenas coincidência.

Qual ambiente mais te influenciou? Sua escola, sua comunidade, a universidade?

O que mais me influenciou foi ser médico e também viajar fez uma grande diferença para mim. Existe um verso em Kipling, no qual ele diz: “what should he know of England, who only England know?” E isto é verdade, pois, como afirmou Dr. Johnson: todo julgamento é comparativo. É preciso comparar as coisas. E viajar foi uma forma de conseguir fazer comparações. Por exemplo, eu trabalhei na Tanzânia, que é um dos países mais pobres do mundo, e lá descobri que as pessoas eram extremamente educadas. Eu não tinha nenhuma espécie de medo delas. Eles não tinham nada, absolutamente nada, mas eram muito educados. Então isto me levou a pensar sobre os efeitos da pobreza e que ela não necessariamente torna as pessoas brutais e agressivas.

As pessoas costumam me perguntar também qual autor mais me influenciou. Mas tenho dificuldade para responder. Eu nunca fui discípulo de ninguém, talvez porque seja muito egoísta.

Mas você acredita ter sido mais influenciado pela literatura do que por intelectuais?

Acho que sim. Chequei a esta conclusão tarde, mas Skakespeare disse praticamente tudo que qualquer um poderia pensar. Não há quase nada que alguém tenha pensado que não esteja em Shakespeare. E o que é assombroso em sua obra é que não é apenas o exterior que ele revela, mas também do interior. Ele te faz sentir aquilo que os personagens estão realmente sentindo. Não conheço nada parecido com isso.

Pergunta final: em seu livro O Prazer de Pensar, pelo exemplo de um incêndio, você demonstra que a primeira edição de um livro vale mais do que as demais, apesar de possuir o mesmo conteúdo. De forma similar, se você tivesse que salvar apenas um livro da sua biblioteca em um incêndio, qual salvaria?

É uma escolha estranha, mas salvaria o livro Sozaboy, de um escritor nigeriano chamado Ken Saro-Wiwa. Eu costumava encontrá-lo na Nigéria e quando ele vinha a Londres. Sozaboy é uma narrativa feita através da visão de um soldado nigeriano semialfabetizado, que é recrutado para a guerra civil ocorrida na Nigéria nos anos 70. Ele é capturado e luta pelo outro lado, sem ter ideia do porquê todos estão lutando. É um livro maravilhoso, é uma grande obra contra guerras. Quando eu estava na Nigéria, Saro-Wiwa fez uma dedicatória para mim no livro. Ele era originário de uma pequena tribo na Nigéria, na qual se localiza boa parte do petróleo do país. E a política da Nigéria se resume a quem controla o petróleo, assim como na Venezuela. Então ele iniciou um movimento político e lembro-me de ter dito a ele para não se tornar político, pois ele era um bom escritor e a Nigéria precisava mais de escritores do que de políticos. Ele, porém, insistiu e me disse “eles vão me matar”. De fato, ele foi enforcado. Criaram história sobre ele e o executaram. Então, eu salvaria este livro.

 

Mundo, pensamento e linguagem (por Luiz Antônio Lindo)

Filosofia | 25/11/2016 | | IFE BRASIL

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Ilustração que acompanha a edição impressa, por Paulo von Poser.

Ilustração que acompanha o artigo na edição impressa, por Paulo von Poser.

 

A discussão sobre a natureza da linguagem tem um passado tão longo, foi empreendida por tantos homens de ciência e de arte, e de tantos modos diferentes segundo a vontade e as circunstâncias de cada um, que ao examiná-la tem-se a impressão de navegar pelos vastos e vagos horizontes do alto-mar. Nestas circunstâncias, é natural que se escolha algum estudioso em concreto para servir de ponto de referência.

Uma figura fascinante neste sentido é Friedrich Ludwig Gottlob Frege (1848- 1925), considerado um dos fundadores da escola analítica, situado bem na encruzilhada da qual partem a filosofia da linguagem e a lógica modernas, bem como diversas teorias matemáticas. Antes de examinar mais em detalhe algumas das suas idéias, porém, teremos de tentar situá-lo dentro de um esboço de panorama histórico.

Mundo, pensamento e linguagem desde sempre formam um trio; a grande difi culdade encontrada pela filosofia, e que recebeu soluções diversas ao longo da história, consiste em saber como ordenar os vértices desse triângulo na mente, no papel e na realidade.

Com os pensadores do racionalismo iluminista, o “pensamento” reinou soberano na história das idéias, e por um momento pareceu que o mundo cairia no esquecimento, pois o mergulho radical e exclusivo nas nossas potências racionais pretendia fazer dele um mero simulacro. As “idéias claras e distintas” de Descartes foram elevadas ao patamar do conhecimento mais perfeito: formidável era vigiar a minha mente, depurá-la da ganga de obscuridades e lançar-me no infinito da razão especulando e ordenando tudo que penso segundo o critério da melhor idéia.

Era natural, nesse contexto, que a linguagem recebesse pouca atenção e fosse rebaixada a um segundo plano. Era vista como um código, nada mais que expressão do pensamento. A partir do que se conhecia pensando, se falava. A chave da linguagem estaria no conhecimento do que se levava à interlocução, pois se achava que por meio do compartilhamento do código lingüístico seria possível realizar o que a telepatia não conseguia, isto é, a perfeita comunicação do pensamento…

O problema que essa concepção teve de enfrentar mais tarde, e que não passaria despercebido a Frege, foi que distinguia entre a apreensão do conceito e a sua “posterior” expressão na linguagem. Conceito e símbolo codificador eram considerados duas realidades distintas e independentes, que poderiam ser vinculadas arbitrariamente. Era natural, porém, que neste ponto surgisse a dúvida: como seria possível apreender o conceito sem expressá-lo em palavras?

No século XIX, coincidindo mais ou menos com o estudo das línguas orientais na Europa, entre as quais o sânscrito, e o surgimento da filologia, começa a haver uma compreensão por assim dizer mais evolutiva das línguas. “Descobrem-se” o “vernáculo” – para usar essa expressão no sentido de língua mais vulgar ou mais chã -, os dialetos regionais, os contos populares. E passa-se então a entender a linguagem como uma espécie de atividade orgânica, “natural”, que não se explica simplesmente pelos conceitos apreendidos e expressados. A chave do conceito parece já não abrir todas as portas do significado.

O vernáculo é ao mesmo tempo algo mais e algo menos que um mero código conceitual. Algo mais, porque apresenta uma vitalidade e expressividade que faltam ao conceito: por exemplo, mal-entendidos de todo gênero, jogos de palavras, trocadilhos, lapsos, são “rebarbas” significativas ou epistêmicas, e no entanto representam funções lingüísticas legítimas. Algo menos, porém, porque o vernáculo quotidiano, em comparação com o léxico ou a terminologia científica (com a sua correspondência idealmente de “um para um” entre conceito e termo), deixa muito a desejar em precisão expressiva.

No entanto, podia-se ver na língua vulgar o universo mais abrangente da linguagem, dentro do qual a terminologia se elevaria triunfal por estar dotada de uma capacidade semântica superior; considerava-se que o termo científico possuía uma profundidade maior que a do vocábulo trivial por originar-se de um estudo deliberado e detalhado e estar destinado a ser desenvolvido ou validado por meio de comprovações.

Nessa linha de desenvolvimento da filosofia, passou-se portanto a considerar a linguagem como algo que subsistia por si só, de maneira quase independente do pensamento. À medida que se rejeitava a noção de que fosse simples código, e paralelamente se experimentava um crescimento inaudito das ciências experimentais e matemáticas, chegou-se a considerá-la, a ela e não ao pensamento, veículo essencial para o conhecimento do mundo. Se no racionalismo pensamento e linguagem se opunham a um mundo evanescente, agora mundo e linguagem por assim dizer se opunham ao pensamento, ou ao menos o condicionavam.

Com Frege nasce uma nova tentativa, que será rica em resultados, de integrar o mundo e a ciência através da lógica, mais exatamente de uma linguagem lógica concebida nos moldes da characteristica universalis de Leibniz. Essa tentativa, que seria levada adiante por Bertrand Russell nos Principia mathematica e por Wittgenstein no Tractatus logico-philosophicus, pretendia aprimorar os meios de prova nas ciências e inspirava-se na função organizadora da matemática e no seu poder de unificar o conhecimento. Representou a criação de uma nova lógica, que formulava em linguagem matemática a lógica proposicional de Aristóteles e dos estóicos, levando-a adiante, tornando-a mais precisa e abrindo-lhe alguns campos inteiramente novos.

Como geralmente se dá nessas descobertas que abrem novas perspectivas, Frege não se opôs simplesmente aos conceitos que vigoravam no seu tempo, mas realizou uma nova síntese que integrava tanto a noção da linguagem como código quanto a sua compreensão como entidade por assim dizer “independente” do pensamento. A racionalidade do pensamento, desde os primórdios da invenção grega do pensar por teses, era encarada na filosofia e nas ciências como a base de todo progresso. A partir de Galileu e Newton, encontrou um grande aliado na matemática: a quantificação cada vez mais precisa das medidas e a matematização crescente dos conceitos científicos permitia confirmar ou descartar as hipóteses dedutivas ou intuitivas; ao mesmo tempo, as diversas notações matemáticas constituíam por assim dizer autênticas “línguas”, essas sim conformes com a concepção da linguagem como código.

Frege, que tinha tido uma formação predominantemente matemática, geométrica e científica, como vimos, voltou-se muito cedo para o campo das relações entre a matemática e a lógica. Na sua Begriffsschrift (“Escrito sobre os conceitos”), de 1879, voltou-se para a análise lógica da indução matemática, pois tinha a intenção de provar que a matemática nascia da lógica. Já esta obra de juventude foi considerada o ponto de inflexão na história dessa disciplina.

Nas Grundlagen der Arithmetik (¨Fundações da aritmética”), de 1884/1890, trata do conceito de número. Na Introdução dessa obra, formulou três princípios que se mostrariam fundamentais tanto para o desenvolvimento da filosofia da linguagem como da lógica:

– sempre distinguir claramente o psicológico do lógico, o subjetivo do objetivo;

– nunca perguntar pelo sentido de uma palavra isolada, mas apenas no contexto de uma proposição (é o chamado “princípio do contexto”); e

– nunca perder de vista a distinção entre conceito e objeto (Begriff e Gegenstand).

O primeiro será retomado e trabalhado por Popper, e servirá para refutar o psicologismo de Freud e outros autores, que viam no pensamento unicamente uma função de processos mentais mecânicos ou químicos ocorridos no cérebro ou sistema nervoso, como se não houvesse um conteúdo nesse pensamento. Em essência, se a própria noção de que o pensamento se explica inteiramente por esses processos fosse verdadeira, seria ela mesma resultado desses processos, e o seu conteúdo seria inválido.

Em filosofia da linguagem, a distinção entre psicologia e lógica resguarda uma percepção antiga mas fundamental: que o conceito, aquilo que a linguagem transmite e é objeto ou conteúdo do pensamento, é algo essencialmente distinto de um mero processo psicológico físico-químico; que na linguagem se cruzam, quase se poderia dizer, duas dimensões de ser.

O segundo, o princípio do contexto, diz que o significado duma palavra deve ser procurado no contexto duma proposição e não isoladamente. Contrariamente, o sentido completo de uma proposição não é simplesmente a soma dos sentidos dos termos que a compõem. Uma proposição qualquer, como por exemplo “Fulano é um gênio”, significa uma coisa quando usada apenas de maneira afirmativa e praticamente o contrário quando usada de maneira irônica; é preciso levar em conta o contexto lingüístico e extralingüístico, que inclui o tom de voz, as intenções do falante etc.

O terceiro princípio retoma o antigo tema da distinção entre o singular (objeto) e o universal (conceito), que já tinha sido abordado pela filosofia medieval na oposição entre haecceitas (literalmente “istidade”, o fato de ser isto) e quidditas (literalmente “oqueidade”, aquilo que define o que uma coisa é). Frege define o objeto, logicamente, como um nome próprio ou um termo geral acompanhado de artigo definido; e o conceito como um termo geral apenas (com ou sem pronome indefinido). Não deixou, porém, de dar-se conta que isso conduz a “estranhezas” lingüísticas, que exemplifica com a frase “o conceito ‘cavalo’ não é um conceito, ao passo que a cidade de Berlim é uma cidade”: este conceito, individualmente, é segundo a sua definição um objeto singular.

Frege elaborou toda uma notação que reunisse lógica e linguagem, à semelhança das notações matemáticas. Neste campo, porém, o seu código não foi levado para a frente, sendo substituído pela notação mais simples e funcional de Russel e Whitehead.

Em 1892, Frege publicou um artigo que talvez represente o principal marco miliar que lançou: Über Sinn und Bedeutung (“Sobre o sentido e a referência”). A tese central amplia o trabalho iniciado com a distinção entre conceito e objeto, indicando que há dois aspectos diferentes do significado de toda expressão, quer se trate de nomes próprios, de locuções ou sentenças completas. Nesse ensaio, Frege afirma que uma expressão “exprime o seu sentido” e “representa ou designa [aponta para] a sua referência”. Bedeutung, no caso de nomes próprios, indica o portador do nome, o objeto que representa (a pessoa que se chamava, por exemplo, “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac”); Sinn aquilo a que chama o “modo de apresentação” do objeto (no caso, “poeta parnasiano”).

Essa distinção refuta a tese literalista de John Stuart Mill que negava qualquer significado a um nome próprio além do objeto a que se refere (no caso, a pessoa de Olavo Bilac). A principal objeção levantada por Frege reside em que, se fosse assim, as duas expressões “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac” e “poeta parnasiano”, pelo princípio da identidade (a = b), deveriam significar precisamente a mesma coisa, o que claramente não acontece. Como os distintos sentidos podem ser comunicados, o sentido é algo objetivo, não uma mera atribuição subjetiva individual.

Juntamente com a de conceito / objeto, esta distinção funda consistentemente uma ontologia racional que estende o seu alcance sobre o próprio mundo. Os grandes racionalistas como Hegel e Kant tinham absorvido o mundo, realidade extramental, na realidade intramental ou pensamento; depois de Frege, Russel, o último Wittgenstein (não o primeiro, do Tractatus) e, em um plano diferente, Gadamer, tentarão novamente dissolvê-lo no conjunto lógica e linguagem, estabelecendo a concepção da linguagem como mero instrumento da práxis humana. Mas nenhum deles consegue explicar de maneira satisfatória que possa haver diversos sentidos com a mesma referência, isto é, objetos exteriores independentes do nosso conhecimento. Frege recoloca o mundo na ordem das considerações epistemológicas e metafísicas, e além disso o faz relacionando-o diretamente com a linguagem.

Em termos de uma teoria ontológica da verdade, essa análise da linguagem presta serviços inestimáveis. Frege partiu dos números que, como sabia a partir da sua formação científica e matemática, estão plenamente representados na estrutura física do mundo (como o revelam quer os métodos de validar os achados científicos, quer os processos de elaboração das obras tecnológicas, em que o cálculo subjaz fundamentalmente), e chegou à descoberta de que o nome próprio condivide com o número essa relação intrínseca com a realidade, revelada por uma teoria da significação que estabelece um elo entre a língua natural e a lógica.

Com relação às teorias da linguagem como entidade “orgânica” independente do pensamento, Frege mostrou como há uma epistemologia e uma lógica que subjazem à significação, e com isso reintroduziu o pensamento na linguagem, ao menos como pólo da conceitualização. Mundo, pensamento e linguagem revelam-se firmemente unidos, mas cada qual estabelecido por direito próprio num âmbito seu.

Luiz Antônio Lindo é Doutor em Letras Clássicas pela USP. Leciona Filologia Românica e História Social na FFLCH-USP.

Publicado originalmente na revista-livro do IFE, Dicta&Contradicta, Edição 1, Junho/2008.

[FILME] “O Mestre dos Gênios” – Um convite ao renascimento da comunicação (por Pablo González Blasco)

Cinema | 19/11/2016 | | IFE BRASIL

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O mestre dos gênios - capaFILME: “Genius”. 2016. 104 min. Dir: Michael Grandage. Colin Firth, Jude Law, Nicole Kidman, Laura Linney

Já me disseram -várias vezes- que os meus comentários de filmes são excessivamente longos. Sim, dizem, são interessantes, destilam conteúdo, mas nem sempre o leitor se anima com tudo o que você escreve. Quem sabe, algo mais curto, direto, objetivo. Afinal, o que as pessoas querem é uma recomendação específica de um bom filme para assistir. Não estou muito convencido de ser esse o meu papel, recomendar filmes. Nunca pretendi ser um crítico de cinema; vejo-me mais como quem pensa em voz alta e escreve as reflexões que um filme proporciona, os desdobramentos. Mesmo assim, é bom seguir os conselhos dos amigos.

Este filme notável brinda-me a ocasião de inaugurar um estilo de comentários mais palatáveis. Não sei quanto vai durar este propósito porque, afinal, para essa conquista -a síntese enxuta das palavras é uma verdadeira conquista- eu precisaria de um editor. Como o protagonista que aparece neste filme de época. Um editor em estado puro: Max Perkins, que enxuga, corta sem piedade páginas e páginas, muda títulos, mesmo não sabendo se com isso transforma os livros em algo melhor ou, simplesmente, em algo diferente.

O mestre dos gênios - 2E as vítimas das suas correções -a mágica do editor- não são outros que Hemingway, F. Scott Fitzgerald e, em primeiro plano, Thomas Wolfe. Jude Law dá vida à personagem do escritor prolixo, uma enxurrada de ideias e palavras, sensações e magníficas descrições estéticas de pessoas e sentimentos. Todas são necessárias -no seu entender- até que caem sob a guilhotina impiedosa de Perkins, incarnado por um Colin Firth em estado de graça.

Escrever não é fácil. Editar o que outro escreveu se me apresenta como muito mais difícil. Eu mesmo não consigo cortar meus textos, e tenho de recorrer aos editores-jornalistas quando me solicitam entrevistas por escrito. Difícil dizer o que tem de ficar, o que deve sair, o que pode mudar e como reduzir vários parágrafos a quatro ou cinco linhas magicamente editadas. Aos que nos atrevemos a escrever pode nos acontecer como a Thomas Wolfe: a cachoeira de ideias, sonhos, pensamentos, embaçam a escrita, desfocam o objetivo. Como se a multidão de árvores nos impedissem de ver o bosque. É preciso de uma poda criteriosa, para que a paisagem aparece diáfana.

O mestre dos gênios - 5Não. Não é fácil escrever, nem bastam as melhores intenções. O recente prêmio Nobel de literatura, adjudicado a Bob Dylan, rendeu um magnífico comentário de um escritor consagrado, o cubano Leonardo Padura. Vale a pena ler com vagar seu texto, e pensar o que significava para Hemingway -que também aparece no filme- mudar quarenta vezes o final de um romance, porque não encontrava a ordem adequada das palavras. E muitos outros exemplos lá citados, assim como a perplexidade dos escritores diante do prêmio da academia Sueca.

Se escrever não e fácil, a mágica da edição parece-me muito mais difícil. Talvez porque requer habilidades específicas que, claramente, eu não possuo. Meu amigo Albert foi durante muitos anos editor associado de uma importante revista médica Americana. Sempre que nos encontramos e passeamos por Washington, surpreende-me a facilidade com que usa as palavras, sem nenhum pedantismo, com elegância comedida e convidativa. Falando com ele, ou vendo o que ele escreve numa simples resposta a um e-mail, sempre tenho a impressão de como a expressão é algo simples, e ao mesmo tempo, tão difícil de encontrar. A palavra certa, le mot juste, dizia, se mal não lembro, Flaubert.

O mestre dos gênios - 6Albert diz que os editores são limpadores de janelas: deixam o vidro transparente para que brilhe a luz do escritor-autor. Até o exemplo é simples, quase simplório. Mas, na prática, como é difícil limpar as janelas, e desaparecer sem fazer barulho. Porque um bom editor sempre desaparece, para que o escritor se projete. Vidros limpíssimos, sem marca pessoal. Se o vidro se transformasse em espelho – o editor estrela- o resultado é catastrófico. Talvez por isso, a postura do editor mistura de modo único uma atitude decidida e enérgica com um respeito que é quase veneração pelo material que lhes chega às mãos.

Isso me comentava outra amiga, que além de editora é escritora e poeta. Johanna, assim se chama, utiliza um inglês elegante e ao mesmo tempo compreensível, porque desempoeira termos de raiz latina, e te surpreende com a claridade. “Sempre trato com muito respeito os textos que me chegam, quando quero ajudar os outros a se expressarem. Um respeito que aumenta quando sei que eles escrevem numa língua que não é a deles”. Esse foi o delicado comentário que acompanhava a correção do primeiro artigo que publiquei em inglês, após maravilhar-me com a forma que ela conseguiu dar à minha escrita tosca. Pedindo licença, é claro, para ver se eu concordava com as mudanças!

O mestre dos gênios - 7Comentando sobre o filme com outro amigo, leitor voraz, me fez chegar uma entrevista onde a escritora e jornalista Janet Malcolm descreve o trabalho do seu marido, Gardner Botsford, que era seu editor na revista The New Yorker. Utilizando as palavras que ela mesmo disse no funeral de Botsford, Malcolm relata como ele cortava, marcava, sublinhava sem piedade os textos da escritora. E o resultado era algo romântico, como um quadro que emergia, ou uma ária de ópera, enfim, uma obra de arte. “Sinto-me desamparada sem ele. Como é difícil escrever sem este apoio”. Naturalmente, enviei a entrevista para Albert, e a recomendação do filme que nos ocupa e do qual quase nada comentamos.

Na verdade, há pouco que comentar. Sigamos o exemplo de eficaz low profile dos grandes editores, e apontemos: um belíssimo filme, uma interpretação magnífica, em todos os registros. Uma experiência estética, que começa visualmente e se desdobra num apetitoso convite para ler, e mergulhar no mundo dos livros. Quem sabe esse é o primeiro passo para tentar escrever.

O mestre dos gênios - 8As pessoas cada vez escrevem menos, e escrevem pior. Emitem grunhidos e interjeições nas redes sociais, veiculados em alta tecnologia e velocidade supersônica, mas numa linguagem equiparável aos seres pré-históricos. Também não leem, passeiam os olhos pelas telas e pensam estarem informados. E quando o espasmo da emoção lhes alcança, tem de fazer uso de emoções fast-food, congeladas em forma de “emoticons”, para dar a entender o que sentem, embora também não tenham muita certeza. Uma penúria cultural lamentável. O que um editor teria a fazer com esse menu de expressões? Nada sobraria, seria uma debacle com sabor bárbaro, como a queima da biblioteca de Alexandria.

Quem sabe se este filme, como um convite a um renascimento da comunicação humana, pode frear -nem que seja em pequena medida- o analfabetismo digital que nos rodeia, e nos embrutece. Mesmo sendo –como dizia um famoso professor de filosofia – um analfabetismo bilíngue ou trilíngue.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em http://www.pablogonzalezblasco.com.br, em 15/11/2016.

Hayek e os intelectuais (por Roger Kimball)

Política e Sociologia | 12/11/2016 | | IFE BRASIL

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friedrich_august_von_hayek_1981

Friedrich August von Hayek em 1981.

Um sistema de governo que, em teoria, pode parecer extremamente
vantajoso para a sociedade, bem pode revelar-se, na prática,
totalmente pernicioso e destrutivo.
David Hume

Um dos espetáculos mais desalentadores de nosso tempo é ver
até que ponto algumas das coisas mais preciosas que a Inglaterra […]
legou ao mundo agora são desprezadas na própria Inglaterra.
Friedrich A. Hayek

Fomos os primeiros a afi rmar que, quanto mais complexas as
formas assumidas pela civilização, mais restrita deve tornar-se a
liberdade do indivíduo.
Benito Mussolini

 

Na verdade, Benito, você não foi o primeiro. Os louros pela promulgação desse princípio em toda a sua atrocidade moderna vão para V.I. Lênin, que já em 1917 se vangloriava de que, quando terminasse de construir o seu paraíso dos trabalhadores, “a sociedade inteira se terá tornado um só escritório e uma só fábrica, com igualdade de trabalho e igualdade de salários”.

O que quer que Lênin não soubesse acerca da restrição das liberdades individuais, certamente não valia a pena sabê-lo. Tudo bem, as coisas não andaram exatamente do modo como ele esperava – ou dizia esperar -, uma vez que, à medida que a União Soviética avançava aos trancos e barrancos, havia cada vez menos trabalho e salários cada vez mais desvalorizados. (Aceita trocar alguns destes dólares por rublos, camarada?). Na prática, a única igualdade que Lênin e seus herdeiros conseguiram foi a igualdade na miséria – o empobrecimento para todos, com exceção de uma minúscula e variável porcentagem da nomenklatura.

Trotsky foi direto ao ponto prático em jogo ao comentar que, quando o Estado é o único empregador, o velho adágio “quem não trabalha, que não coma” é substituído por “quem não obedece, que não coma”. Mesmo assim, os intelectuais ocidentais organizaram uma longa fila para virem, verem e serem conquistados: quantos escritores, jornalistas, artistas e ensaístas bien pensants não caíram de amores pela URSS, como Lincoln Steff ens, que dizia da sua visita de 1921: “Passei pelo futuro, e ele funciona”!

 

Evidentemente, não se pode fazer um omelete sem quebrar alguns ovos. Mas é notável a imensa pilha de cascas de ovos que amontoamos ao longo do último século. (Além de que sempre há a pergunta constrangedora de Orwell: “E onde é que está o omelete?”). Já não lembro quem foi o sábio que descreveu a esperança como o último dos males que restou no fundo da caixa de Pandora; talvez tenha sido injusto para com a esperança, mas o dito não é de todo inadequado àquela adamantina “fé em um mundo melhor” que sempre habitou o coração da empreitada socialista. E venham falar-me de plantas resistentes a todos os climas! A experiência socialista nunca funcionou como anunciaram, mas continua sempre a florir no coração humano – ao menos nas parcelas colonizadas pelos intelectuais, aquela tribo palpitante que Julien Benda memoravelmente denominou “clercs”, como na expressão “trahison des”. Mas por quê? Que têm os intelectuais que os torna tão prodigamente suscetíveis ao canto de sereia do socialismo?

Em seu último livro, The Fatal Conceit [1]. The Errors of Socialism (“A vaidade fatal. Os erros do socialismo”, 1988), Friedrich Hayek sublinhava com ironia esse paradoxo:

 

“A vã busca dos intelectuais por uma comunidade verdadeiramente socialista, que resultou primeiro na idealização de uma seqüência aparentemente interminável de ‘utopias’ – União Soviética, depois Cuba, China, Iugoslávia, Vietnam, Tanzânia, Nicarágua – para depois acabar na desilusão com todas elas, deveria ser suficiente para sugerir que há alguma coisa no socialismo que não bate com certos fatos”.

 

Deveria, mas não o fez. E o motivo, sugere Hayek, está no tipo peculiar de racionalismo em que uma certa espécie de intelectuais está viciada. A sua “vaidade fatal” consiste em crer que, pelo exercício da razão, a humanidade seria capaz de reformar a sociedade de um modo que fosse a um só tempo eqüitativo e próspero, ordenado e orientado para a liberdade política.

Hayek identifica esta ambição já em Rousseau e, antes dele, em Descartes. Se o homem nasce livre, mas em todo lugar encontra-se acorrentado – afirmava Rousseau -, por que simplesmente não rompe seus grilhões, a começar pelo fardo incômodo das restrições sociais tradicionais? Talvez se possa discutir se Descartes merece ser citado como réu na ação de paternidade por essa afirmação, mas entendo o que Hayek quer dizer. Do sonho cartesiano de fazer do homem o “senhor e dominador da natureza” por meio da ciência e da tecnologia, faltava apenas um pequeno passo para fazer dele o senhor e o possuidor da segunda natureza do homem, a sociedade. Tudo o que resistisse a isso na experiência humana e no mundo tinha de ser tornado líquido e negociável para poder sequer enveredar por esse caminho! Tudo o que se resumia em palavras como “bons modos”, “moral”, “costumes”, “tradição”, “tabu” e “sagrado” foi subitamente posto à venda. Mas é inerente à natureza embriagadora da vaidade fatal – ao menos, mais uma vez, para os que são suscetíveis aos seus encantos – que nenhum obstáculo pareça forte o suficiente para se opor à sedução exercida pelas engenhosas prestidigitações da humanidade. Segundo o célebre dito de Marx, “tudo o que é sólido dissolve-se no ar”.

John Maynard Keynes – ele mesmo uma vítima patente da vaidade fatal – resumiu
o metabolismo psicológico desse orgulho na sua descrição de Bertrand Russell e dos seus amigos de Bloomsbury:

 

“Bertie, concretamente, sustentava ao mesmo tempo duas opiniões disparatadamente incompatíveis. Afirmava que na prática os negócios humanos são conduzidos de um modo absolutamente irracional, mas que o remédio para isso era extremamente simples e acessível, uma vez que tudo o que tínhamos de fazer era conduzi-los de maneira racional”.

 

Que prodígios de prestidigitação existencial não se ocultam nesta frase “tudo o que tínhamos de fazer”. F. Scott Fitzgerald afirmou certa vez que o teste para “uma inteligência de primeira categoria” era “a habilidade de sustentar duas idéias opostas na mente ao mesmo tempo”, e ainda assim ser capaz de funcionar. A bem da verdade, esta habilidade é tão comum quanto o pó. Olhe à sua volta.

 

Friedrich Hayek (ele abandonou o “von” com o qual nascera) era um esplêndido anatomista desta espécie de desvarios intelectuais ou intelectualistas. Nascido em uma próspera família de Viena em 1899, Hayek já havia forjado para si um modesto renome como economista quando partiu para a Inglaterra e a London School of Economics, em 1931. Ao longo da década seguinte, publicou meia dúzia de livros técnicos sobre economia (a título de amostra, Monetary Theory and the Trade Cycle – “A teoria monetarista e o ciclo comercial”). Mas sua vida mudou em 1944, quando The Road to Serfdom (“O caminho da servidão”), publicado primeiro na Inglaterra e alguns meses depois nos Estados Unidos, o catapultou rumo à fama.

O lançamento da nova edição do livro realizada pela Universidade de Chicago [2] – o segundo volume da série de vinte previstos para as “obras completas” – é uma boa ocasião para nos lembrarmos tanto da força da crítica de Hayek quanto da inamovível persistência das atitudes contra as quais argumentava. É preciso ter coragem, ou algo do gênero, para declarar que o produto que se oferece é “a Edição Definitiva”. “Definitivo”, nestas matérias, é um elogio enganoso e fugaz; no entanto, eu não hesitaria em descrever essa edição como excelente. As linhas mais longas fazem com que o texto seja levemente mais difícil de ler do que na bela Edição do Quinquagésimo Aniversário publicada pela mesma Universidade de Chicago, mas a nova edição corrige uma série de erros tipográficos e acrescenta um material suplementar útil, incluindo notas identificando os personagens citados por Hayek.

A história deste livro curto, mas extraordinário – que é menos um tratado de economia do que um cri de coeur existencial – é bem conhecida. Três editores o recusaram nos Estados Unidos – um dos analistas chegou a considerá-lo “inadequado para uma casa de boa reputação” – antes de a Universidade de Chicago, não sem uma certa hesitação, resolver assumi-lo. Um dos seus analistas, embora recomendasse a publicação, prevenia que o livro tinha pouca probabilidade de “atingir um mercado amplo neste país” ou de “mudar a opinião de muitos leitores”. Na hora H, porém, a Editora da Universidade de Chicago mal conseguiu atender à demanda. Em poucos meses, tinham sido impressos 50.000 exemplares. A seguir, o Reader´s Digest publicou uma versão condensada, que levou o livro a mais 600.000 leitores. E, alguns anos mais tarde, uma versão ilustrada da Look aumentou ainda mais o seu alcance.

 

Traduzido para mais de vinte línguas, O caminho da servidão transformou um acadêmico aposentado em uma celebridade internacional. Nos anos seguintes, a influência de Hayek  passou por altos e baixos, mas na ocasião de sua morte, seis semanas antes de seu nonagésimo terceiro aniversário, em 1992, ele tinha-se tornado finalmente um dos “queridinhos” do establishment acadêmico. Fora professor na London School of Economics, na Universidade de Chicago e na Universidade de Freiburg, e recebera numerosos títulos honoríficos. Em 1974, recebeu o Prêmio Nobel de Economia – o primeiro economista defensor do livre mercado a receber esta honra -,
e as suas teorias ajudaram a estabelecer os alicerces intelectuais da revitalização econômica levada a cabo por Margaret Thatcher e Ronald Reagan nos anos 80.

Em um sentido mais profundo, porém, Hayek permaneceu um outsider, às margens do filão principal dos meios intelectuais ou, ao menos, acadêmicos. A mensagem de O caminho da servidão mostra por quê. O livro tinha dois objetivos: por um lado, era um hino à liberdade individual; por outro, era um ataque vigoroso ao planejamento econômico centralizado e à diminuição das liberdades individuais que este tipo de planejamento impõe.

Na esteira das revoluções de Reagan e Thatcher, pode parecer estranho descrever um ataque ao planejamento centralizado ou uma defesa da liberdade individual como obra de um outsider. Na prática, porém, embora as teorias de Hayek tenham vencido “no campo de batalha” algumas escaramuças importantes, no mundo da opinião da elite intelectual as suas idéias são tão discutidas hoje como o eram em 1940. Ainda hoje, há uma vasta resistência ao principal insight de Hayek: o de que o socialismo é um berçário para o desenvolvimento de políticas totalitárias.

Com o exemplo da Alemanha Nazista diante dos olhos, Hayek pôde testemunhar com que naturalidade o socialismo, à medida que dissolve mais e mais a iniciativa individual para transferi-la para o Estado, se transforma pouco a pouco em totalitarismo. Uma das principais teses do livro é que a escalada do fascismo não foi uma reação contra as tendências socialistas dos anos 20, como freqüentemente se afirma, mas, pelo contrário, o resultado natural dessas tendências. O que tinha começado como a convicção de que o planejamento, se queria ser “eficiente”, tinha de ser “tirado dos políticos” e entregue aos especialistas, terminou com a falência da política e o abraço dado à tirania. “Hitler não precisou destruir a democracia”, observa; “ele simplesmente tirou partido da decadência da democracia e, no momento crítico, obteve o apoio de muitos que, embora o detestassem, nele viam o único homem forte o suficiente para fazer as coisas acontecerem”.

A Grã-Bretanha, alertava Hayek, já tinha percorrido longo trecho do caminho que conduz à abdicação socialista. “As conseqüências imprevistas mas inevitáveis do planejamento socialista”, escreve, “criam um estado de coisas no qual […] as forças totalitárias acabam levando a melhor”. E cita inúmeros ensaístas influentes que advogam frivolamente não apenas o planejamento econômico em grande escala, mas a rejeição aberta das liberdades. Em 1932, por exemplo, o influente teórico político Harold Laski afirmava que não se deve permitir que “a derrota nas urnas” crie obstáculos para o glorioso progresso do socialismo. Isso de votar está muito bem – desde que as pessoas votem certo, isto é, na esquerda.

Em 1942, o historiador E.H. Carr afirmava com entusiasmo que “o resultado desejado por nós só poderá ser conquistado por meio de uma reorganização deliberada da vida européia, tal como a que foi levada a cabo por Hitler”. O eminente biólogo e ensaísta C.H. Waddington também propunha que a sociedade fosse entregue nas mãos dos especialistas, observando que a liberdade “é um conceito muito problemático para merecer ser discutido pelos cientistas, em parte porque, em última análise, eles não estão convencidos de que exista tal coisa”. Sir Richard Ackland, arquiteto do “movimento Commonwealth“, escreveu com falsa simpatia que a comunidade diz ao indivíduo: “você não precisa preocupar-se de ganhar o seu sustento”; a “comunidade” como um todo cuidará disso, determinando como, quando e de que maneira cada indivíduo será empregado. Além do mais, acrescentava, ela também providenciará campos de trabalho para os vagabundos, mas não se preocupe, pois “a comunidade” cuidará de que ali reinem “condições bastante toleráveis”. Tal como Carr, Ackland achava muito o que admirar em Hitler, que, segundo dizia, tinha “tropeçado com […] uma pequena parte, ou talvez se devesse dizer um aspecto particular, daquilo que em última análise se exigirá da humanidade”. Isto, diga-se de passagem, foi escrito em 1941, em um momento em que o mundo estava descobrindo que seguir Hitler de fato exigia bastante da humanidade.

 

As duas grandes influências que presidiram à elaboração de O caminho para a servidão foram Alexis de Tocqueville e Adam Smith. De Tocqueville, Hayek tomou emprestado tanto o título quanto sua sensibilidade para aquilo que o pensador francês, em uma célebre passagem de A democracia na América [3], denominou “despotismo democrático”. Assim como Tocqueville, Hayek via que nas sociedades burocráticas modernas as ameaças à liberdade freqüentemente se apresentam disfarçadas de benefícios sociais. Se o despotismo à antiga tiranizava, o despotismo democrático infantiliza. “Seria semelhante”, escreve Tocqueville,

 

“ao poder paterno se, tal como ele, tivesse o escopo de preparar homens para a maturidade; mas, pelo contrário, busca apenas mantê-los irrevogavelmente fixados na infância; agrada-lhe que os cidadãos se divirtam, desde que pensem somente em divertir-se […]. Trabalha com gosto pela sua felicidade, mas quer ser o único agente e o árbitro exclusivo dela; provê segurança para todos, prevê e atende às suas necessidades, facilita-lhes os prazeres, conduz-lhes os negócios mais importantes, dirige os seus afãs, regula-lhes as propriedades, divide para eles as suas heranças; quem sabe não chegará a poupar-lhes inteiramente o problema de pensar e a dificuldade de viver? [… Esse poder] estende seus braços sobre a sociedade como um todo; cobre-lhe a superfície com uma rede de regras pequenas, complicadas, meticulosas e uniformes, através das quais as cabeças mais originais e as almas mais vigorosas não conseguem abrir caminho para sobressair da massa; […] não tiraniza, mas limita, compromete, enerva, extingue, entontece e, por fim, reduz cada nação a não ser nada além de um rebanho de animais tímidos e laboriosos que o governo pastoreia”.

 

Fazendo eco a Tocqueville, mas indo além dele, Hayek afirmava que os efeitos mais importantes da tutela abrangente por parte do governo eram psicológicos, “uma alteração do caráter das pessoas”. Somos as criaturas, bem como os criadores das instituições nas quais habitamos. “A questão fundamental”, concluía, “é que os ideais políticos de um povo e a sua atitude perante a autoridade são tanto o efeito quanto a causa das instituições políticas sob as quais vive”.

A maior parte de O caminho da servidão é negativa ou crítica. Pretende expor, descrever e analisar a ameaça socialista à liberdade. Mas há também um lado positivo na argumentação de Hayek: pode-se encontrar, diz ele, o caminho que afasta da servidão abraçando aquilo que denominava “a ordem estendida da cooperação” – em outras palavras, o capitalismo. Em A riqueza das nações, Adam Smith apontava o paradoxo, ou aparente paradoxo, do capitalismo: quanto mais se deixasse os indivíduos em liberdade para perseguirem seus próprios fins, mais as suas atividades seriam “conduzidas por uma mão invisível a promover” fins que auxiliassem o bem comum. Empreendimentos privados conduzem a bens públicos: eis a alquimia benéfica do capitalismo. O insight fundamental de Hayek, ampliando o pensamento de Smith, é que a ordem espontânea criada e mantida pelas forças de um mercado competitivo levam a uma prosperidade maior do que a economia planejada.

O sentimental não é capaz de envolver este dado com a sua mente ou o seu coração. Não é capaz de entender por que não deveríamos preferir a “cooperação” (expressão que soa bem) à “competição” (muito mais áspera), uma vez que em toda competição há perdedores, o que é ruim, e vencedores, o que pode ser ainda pior. O socialismo é uma versão do sentimentalismo. Mesmo um observador realista como George Orwell deixou-se infectar por ele. Em The Road to Wigan Pier (1937), Orwell argumentava que, uma vez que o mundo, “ao menos em potência, é imensamente rico”, se o desenvolvêssemos “como deve ser desenvolvido […], poderíamos todos viver como príncipes, supondo que o queiramos”. Deixemos de lado o fato de que ser príncipe implica, ao menos em parte, que os outros, a imensa maioria dos outros na verdade, não são da realeza…

O socialista, o sentimental, não consegue compreender por que, se as pessoas foram capazes de “gerar um sistema de regras para coordenar seus esforços”, não seriam igualmente capazes de, conscientemente, “projetar um sistema ainda melhor e mais gratificante”. Central ao ensinamento de Hayek é o fato indiscutível de que a ingenuidade humana é limitada, de que a elasticidade da liberdade exige a atuação de forças situadas além de nosso domínio, e de que, no fim das contas, as ambições do socialismo são uma expressão da hybris racionalista. Uma ordem espontânea gerada pelas forças de mercado pode ser tão benéfica à humanidade quanto você quiser; pode ter uma vida muito longa, e produzir – como de fato produziu – riquezas enormes que, há apenas algumas gerações, seriam inimagináveis. Mesmo assim, não é perfeito: os pobres continuam entre nós, nem todos os problemas sociais foram solucionados. No fim das contas, porém, aquilo que realmente custa aceitar na ordem espontânea produzida pelos mercados livres não é a sua imperfeição, mas a sua espontaneidade: o fato de ser uma criação que não nos pertence. Transcende a direção consciente da vontade humana e é, portanto, uma afronta ao orgulho humano.

A veemência com que Hayek condena o socialismo está na proporção direta do que está em jogo. Como explica em The Fatal Conceit, “a disputa entre a ordem do mercado e o socialismo é nada mais, nada menos que uma questão de sobrevivência”, porque “seguir a moral socialista destruiria grande parte da humanidade atual e empobreceria boa parte do resto”. Temos um aperitivo do que Hayek diz em toda a parte onde as forças do socialismo triunfam: nesses lugares, tal como a noite se segue ao dia, segue-se um crescimento da pobreza e uma diminuição
da liberdade individual.

 

O que intriga é que este fato tenha tido tão pouco efeito sobre as atitudes dos intelectuais. Nenhum mero desenvolvimento prático, ao que parece – repitamo-lo até a saciedade – é suficiente para minar os prazeres do sentimentalismo socialista. Esse distanciamento do mundo está ligado a outro traço comum nos intelectuais: seu desprezo pelo dinheiro e pelo mundo do comércio. O intelectual socialista despreza o “sórdido motivo do lucro” e recomenda o aumento do controle governamental da economia. Parece-lhe, nota Hayek, que “empregar cem pessoas é […] exploração, mas comandar o mesmo número [é] louvável”.

Não é que os intelectuais, como classe, não gostem tanto de ter dinheiro como todos nós. O que acontece é que olham toda a maquinaria do comércio como algo distante dos seus mais íntimos desejos, algo indescritivelmente inferior a eles. Evidentemente, há um certo sentido em que isto é verdadeiro. Mas muitos intelectuais não conseguem compreender duas coisas: primeiro, o fato de que o dinheiro, como diz Hayek, é “um dos maiores instrumentos de liberdade jamais inventados”, uma vez que abre “um leque inacreditável de opções ao homem pobre – um leque maior do que aquele que, há não muitas gerações, estava à disposição dos mais ricos”; segundo, a extensão em que a organização do comércio afeta a organização de nossas aspirações. Como aponta Hilaire Belloc em The Servile State, “o controle da produção de riqueza é o controle da própria vida humana”.

A questão realmente assustadora que a maioria dos planejamentos econômicos levanta não é se somos livres para ir atrás dos nossos fins mais importantes, mas quem determina quais devem ser estes “fins mais importantes”. “Quem quer que tenha o controle exclusivo dos meios”, observa Hayek, “também tem de determinar que fins devem ser buscados, quais os valores que devem ser preferidos e quais os desprezados – em uma palavra, aquilo em que os homens devem acreditar e pelo que devem lutar”. Assim, embora possa “soar nobre dizer, ‘que se dane a economia, vamos construir um mundo decente’, […] na verdade é mera irresponsabilidade”.

No fim das contas, o apelo socialista é um apelo emocional. E como um dos principais meios de expressão das nossas emoções é a linguagem, as perversões do socialismo têm seu correlato em uma perversão da linguagem. “Do mesmo modo que a sabedoria se encontra freqüentemente escondida sob o sentido das palavras”, nota Hayek, “o mesmo se dá com o erro”. Em conseqüência, a tarefa de defender a liberdade implica a tarefa de defender a linguagem.

Ao longo de seu trabalho, Hayek presta considerável atenção à “nossa linguagem envenenada”, mostrando como a sentimentalidade socialista distorceu quase a ponto de desfigurá-las palavras básicas como “liberdade” e “igualdade”. Para além de todo o significado definido que elas possam comunicar, essas palavras são elogiosas: solicitam automaticamente o nosso apoio, mesmo que tenham sido recrutadas para servir a realidades diferentes das coisas que denominavam originariamente, ou mesmo opostas a elas. Como nota Hayek, a “técnica mais eficiente” para atingir a transformação semântica almejada é “utilizar as palavras antigas, mas mudando seu sentido”. A frase “República do Povo” resume o processo, mas basta ver o que aconteceu com termos como “liberal”, “justiça” e “social”.

Em The Fatal Conceit, Hayek apresenta uma breve lista de 160 nomes aos quais se adicionou o termo “social”, desde “contabilidade”, “administração”, “era” e “consciência”, até “pensador”, “utilidade”, “opiniões”, “desperdício” e “trabalho”. Antigamente, dizia-se que uma doninha era capaz de esvaziar um ovo sem deixar marcas, e “social” é neste sentido uma “palavra-doninha”: uma casca fonética com pouco mais do que um eco de significado. É, escreve Hayek, “freqüentemente usada como uma exortação, um tipo de palavra-chave da qual a moral racionalista se vale para deslocar a moral tradicional, e agora suplanta gradualmente a palavra ‘bom’ como designação daquilo que é moralmente correto”. Basta pensar na odiosa fórmula “justiça social”: de facto, passou a significar injustiça, uma vez que atua manipulando o maquinário legal da justiça a serviço de fins pré-determinados. Os partidários da “justiça social” desprezam a justiça “meramente formal”; e, ao fazê-lo, substituem o império da lei – tradicionalmente representada como cega precisamente porque “não fazia acepção de pessoas” – pelo império de uma (pseudo)-“eqüidade”.

Não surpreende que Hayek tenha sido freqüentemente descrito como “conservador”. A bem da verdade, ele poderia replicar com razão que sua posição poderia ser descrita mais adequadamente como “liberal”, entendendo-se este termo não em sua deformação contemporânea (isto é, estatizante ou esquerdista), mas no sentido vigente na Inglaterra do século XIX, segundo o qual Burke, por exemplo, era um liberal. Há um sentido importante em que os liberais genuínos são (conforme a fórmula de Russell Kirk) conservadores precisamente por serem liberais: compreendem que a melhor possibilidade de preservar a liberdade está na preservação das instituições e práticas tradicionais que, por assim dizer, abrigaram a liberdade. Embora cauteloso quando se trata de inovações políticas, Hayek acreditava que o conservadorismo tradicional dos Torys era excessivamente comprometido com o status quo. Seu liberalismo era, neste sentido, um liberalismo ativista ou experimental.

Esta é uma faceta do pensamento de Hayek que o filósofo Michael Oakeshott discernia com precisão ao observar que a “principal importância” de O caminho da servidão não estava na coerência interna da doutrina de Hayek, mas “no fato de ser uma doutrina”. “Um plano para resistir a todos os planejamentos talvez seja melhor que os seus opostos”, prossegue Oakeshott, “mas pertence ao mesmo estilo político”. Talvez seja assim. Mas o valor inestimável de Hayek consiste em ter dramatizado a farsa sutil da empreitada socialista. “Raramente a liberdade, seja de que tipo for, se perde de uma vez”: a frase de Hume serve de epígrafe a O caminho da servidão. É tão pertinente hoje quanto no tempo em que Hayek a transcreveu em 1944.

 

Artigo traduzido da revista The New Criterion, vol. 25, n. 9, maio de 2007. Copyright © Roger Kimball, 2007. Todos os direitos desta tradução reservados a Dicta&Contradicta.

Roger Kimball é crítico de arte e editor executivo do The New Criterion Magazine. Publicou, entre outros, os livros The Rape of the Masters: How Political Correctness Sabotages Art (Encounter Books, 2004), The Long March: How the Cultural Revolution of the 1960s Changed America (Encounter Books, 2000) e Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher Education (HarperCollins, 1990).

 

Tradução de Marcelo Consentino. O tradutor é Bacharel em Direito pela PUC-SP, mestre em Filosofia pela Ponteficia Università della Santa Croce (Roma) e Doutor em Filosofia da Religião pela PUC-SP. É o atual presidente do Instituto de Formação e Educação (IFE).

Tradução publicada originalmente na revista-livro do IFE, Dicta&Contradicta, Edição 1, Junho de 2008.

 

NOTAS:


[1] O termo inglês conceit transita entre os nossos “vaidade” e “arrogância” (n. do. t.).

[2] The Collected Works of F.A. Hayek, vol. II: The Road to Serfdom: Text and Documents – the Definitive Edition, ed. Bruce Caldwel (Chicago: University of Chicago Press), 1994, 283 págs. [Traduzido no Brasil como O caminho da servidão, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1987. N. do t.].

[3] Edição brasileira Alexis de Tocqueville, A democracia na América, 4ª. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2005,
2 vols. (n. do t.).

[RESENHA] Caçadores de mitos (por Marcio Antonio Campos)

História | 05/11/2016 | | IFE BRASIL

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LIVRO | Dados técnicos: Ronald Numbers (org.), Galileo goes to jail and other myths on science and religion. Harvard University Press, 2009, 302 pp.

No começo de 2009, enquanto aguardava a divulgação do resultado do vestibular da Universidade Federal do Paraná, fiz um teste: abordei alguns vestibulandos e perguntei o que eles tinham aprendido sobre Galileu Galilei no ensino médio ou no cursinho. Apenas um adolescente se lembrava de algo: que o italiano tinha sido perseguido por afirmar que a Terra era redonda. Desde então não faço mais esse tipo de enquete, até porque a Harvard University Press lançou uma coletânea abrangente das respostas que inevitavelmente sairão da boca de vestibulandos, professores, jornalistas e “intelectuais”: é Galileo goes to jail and other myths on science and religion, organizado por Ronald Numbers.

A relação entre ciência e religião é um dos temas mais importantes do século XXI, ao menos na metrópole, onde a cada ano são lançados inúmeros livros sobre o assunto e organizam-se debates televisivos em universidades envolvendo gente como Michael Shermer, Dinesh D’Souza, Richard Dawkins e John Lennox (basta procurar no YouTube). Por aqui, o mercado editorial ignora solenemente autores como Karl Giberson, Kenneth Miller, Ian Barbour e John Polkinghorne (apenas um livro de cada um desses dois últimos autores recebeu edição brasileira), enquanto publica a rodo as obras de ateístas militantes, fazendo à sensatez uma única concessão ao ter lançado A linguagem de Deus, de Francis Collins. Como conseqüência, por pouco ler e muito repetir, o cérebro dos “formadores de opinião” secou a ponto de perpetuar irrefletidamente os mitos do livro de Numbers, apesar das evidências contrárias – que não são poucas.

Os 25 ensaios – escritos por 12 ateus ou agnósticos, 5 protestantes tradicionais, 2 protestantes pentecostais, 1 católico, 1 judeu, 1 muçulmano, 1 budista e 2 autores com “um lado espiritual independente de religiões”, como dizem no Orkut – estão ordenados cronologicamente, iniciando com o surgimento do Cristianismo e terminando com os debates sobre o criacionismo e a secularização da cultura ocidental moderna. Isso significa que o desfile de cérebros parte de Agostinho, com o seu De Genesi ad litteram, e passa por Avicena, Giordano Bruno, Copérnico, Descartes (descrito como “o mais incompreendido dos filósofos”), Newton, até chegar a Darwin (nada menos que 9 dos 25 mitos abordam a teoria da evolução) e Einstein – sem falar, claro, de Galileu, a cujo respeito foi lançado, também este ano, um livro muito completo sobre seu processo inquisitorial: Galileu, pelo copernicanismo e pela Igreja, de Annibale Fantoli.

O objetivo do livro não é defender nenhuma religião em especial – sequer tenta defender a religião em si: um dos ensaios questiona a “lenda piedosa” sobre uma suposta reconversão de um Darwin moribundo, e outro desmente a crença de Einstein em um Deus pessoal. O capítulo 9 diminui o impacto do Cristianismo na construção da ciência moderna, mas recorrendo a um espantalho: não consta que Rodney Stark, Stanley Jaki ou Thomas Woods considerem o Cristianismo a única base da ciência moderna, desprezando as contribuições clássicas, judaicas ou islâmicas. Ainda assim, no fim das contas a religião sai ganhando nesse trabalho de desconstrução, mas apenas porque na maioria das lendas os vilões andam de batina e não de jaleco branco.

Alguns mitos, à primeira vista, parecem simplórios demais para merecer ensaios no livro. Os cristãos medievais acreditavam que a Terra era plana? Mas Stephen Jay Gould já não tinha dedicado um trecho de seu Pilares do tempo, na década passada, para desmentir essa idéia? Pois Lesley Cormack, autora do texto sobre a “Terra plana”, mostra que, no mesmo ano em que Gould publicava sua obra sobre ciência e religião, eram lançados livros didáticos de ensino médio nos Estados Unidos reforçando a lenda – que, a julgar pela resposta do vestibulando da UFPR, segue firme e forte. Aliás, todos os capítulos têm como epígrafes textos que deram origem ou que mantêm viva a mitologia. Assim, vemos que em 2006 há quem ainda afirme que os calvinistas escoceses se opunham à anestesia durante o parto porque ela contrariava a determinação divina de Gênesis 3;16, ou que a Igreja Católica havia proibido a dissecação de cadáveres.

Entre os criadores de mitos, no entanto, os mais citados no livro editado por Numbers são os norte-americanos Andrew Dickson White e John William Draper, autores de A History of the Warfare of Science with Theology and Christendom (1896) e History of the Conflict Between Religion and Science (1874) respectivamente. Podemos dizer que são os pais do conflito entre fé e ciência. A invenção – ou reinterpretação – dos fatos feita por White e Draper continua tão popular que só é possível concluir que seus discípulos, defensores modernos da guerra entre ciência e religião, os Hitchens, Dennetts e Dawkins da vida, podem até pensar que estão levando seus leitores ao século XXI, mas na verdade estão é mantendo todo mundo preso no século XIX.

Marcio Antonio Campos é jornalista, editor da Gazeta do Povo, em Curitiba, e mantém o blogue Tubo de Ensaio, sobre ciência e religião (http://www.gazetadopovo.com.br/blog/tubodeensaio).

Resenha publicada na revista-livro do IFE, Dicta&Contradicta, Edição 4, Dezembro de 2009.