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A política e a morte (por Joseph Bottum)

Política e Sociologia | 22/08/2016 | | IFE CAMPINAS

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Imagem: Paulo von Poser. Reprodução da ilustração que acompanha este artigo traduzido na versão impressa da revista Dicta&Contradicta.

The communication
of the dead is tongued with fire
beyond the language of the living.

T.S. Eliot

São Francisco é uma cidade sem túmulos. Em 1900, os seus vereadores aprovaram uma lei proibindo enterros dentro dos limites da cidade. Em 1912, anunciaram a sua intenção de eliminar os cemitérios já existentes e, em 1914, todos os campos-santos receberam uma ordem de despejo em que eram declarados “um transtorno público e uma ameaça à saúde e ao bem estar dos habitantes da cidade”.

Seguiu-se uma longa série de batalhas judiciais, mas, por volta de 1937, os vereadores de São Francisco triunfaram e as covas se foram. O subúrbio de Colma – um vilarejo de uns cinco quilômetros quadrados, 73% dos quais são cemitérios – recebeu muitos dos corpos, mas não todos. É possível que cerca de onze mil cadáveres continuem a repousar despercebidamente sob o campo de golfe do Lincoln Park, próximo à praia. No Buena Vista Park, as lápides quebradas foram usadas como cascalho e ainda é possível ler fragmentos dos epitáfios nos muros de contenção e nas sarjetas.

As últimas exceções remanescentes são uns poucos túmulos da época da colonização espanhola na Missão Dolores, um cemitério militar federal no Presidio e um pequeno columbário no distrito de Richmond, deixado para trás quando o cemitério dos Odd Fellows que o circundava foi evacuado. Nos últimos anos, foi criado na cidade um novo cemitério de animais: são fileiras e mais fileiras de pequenas placas indicando o falecimento de cães, gatos e papagaios de estimação. As sepulturas humanas, todavia, permanecem ilegais e, para a maior parte dos moradores, o único marco público que ainda recorda a morte é a Golden Gate Bridge, famoso ímã dos suicidas, cujos corpos esmagados submergem na corrente, indo perder-se no Pacífico Norte.

À sua maneira, a revolta de São Francisco contra os sepulcros constitui uma bela sinopse do século XX, de todas as forças dos tempos modernos dirigidas para um único fim. Assim, por exemplo, por mais que os políticos pensassem que governavam, as cidades americanas foram, em grande parte do século XX, movidas na verdade por uma avalanche de urbanistas e oficiais de saúde cujos olhos brilhavam com as suas visões de uma imaculada metrópole de Torromowland. Também o grande motor das finanças modernas pressionou enormemente o mercado imobiliário nesta direção – arranha-céus!, torres bancárias!, o escritório no centro! -, mesmo em espaços urbanos minúsculos como a península Golden Gate.

Nessa matéria, porém, São Francisco não fazia senão repetir a convicção generalizada do século XX de que a época anterior havia levado a morte demasiado a sério – aquela crença eduardiana de que os seus pais vitorianos tinham sido pessoas profundamente doentes, tão fascinadas com mostrar a morte como obcecadas com esconder o sexo.

No entanto, mesmo o modernista mais ardoroso tende a hesitar diante de uma rejeição tão completa dos mortos como a ocorrida em São Francisco. E essa apreensão reflete, embora de maneira vaga, uma profunda intuição política, pois uma cidade sem cemitérios deixou de cumprir uma das razões mais primordiais para a própria existência das cidades. Em algum lugar daqueles cemitérios banidos havia um espaço metafísico para a política, e neles estava enterrada uma verdade que um número excessivamente grande de teorias políticas modernas parece ter esquecido: os vivos dão-nos multidões; os mortos dão-nos comunidades.

 

I.

“A sociedade está baseada na morte dos homens”, declarou certa vez o juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes Jr. É provável que apenas quisesse fazer um comentário ácido sobre a maioria da humanidade, esse bando de seres violentos, infantis e desagradáveis em quem nunca se pode confiar totalmente. Mesmo assim, é uma formulação muito curiosa. Em que sentido poderia a sociedade estar baseada na morte dos homens, ao invés de ser abalada e ameaçada pela mortalidade humana?

Trata-se na verdade de um assunto composto de um número excessivamente grande de peças soltas para que seja possível esclarecê-lo num piscar de olhos. É como um daqueles quebra-cabeças gigantes, com milhares de peças espalhadas sobre a mesa; só que perdemos a embalagem e não conseguimos lembrar-nos muito bem da figura que deveriam formar.

Eis, por exemplo, uma das peças: a questão da propriedade privada sempre foi uma das preocupações centrais da filosofia política. Se política e morte se unem na própria raiz da experiência humana, então teríamos de encontrar a morte envolvida de alguma maneira nas idéias sobre a propriedade, invadindo e imiscuindo-se em qualquer teoria a esse respeito.

E, com efeito, a morte logo aparece, uma vez que as questões de propriedade sempre levantam questões de herança. Na verdade, a relação provavelmente começou no sentido contrário. Como o próprio Holmes nota no seu famoso estudo de 1881 acerca da common law, a análise legal da herança surgiu historicamente antes das definições de propriedade e dos contratos, pois no direito inglês antigo estas se originaram daquela: do desejo dos pais de passarem as suas posses aos filhos, do desejo dos filhos de preservarem as aquisições dos pais falecidos. Holmes estava interessado primordialmente na transposição da common law inglesa para o contexto americano, e por isso não se deteve nesta realidade; mas basta que nos atenhamos apenas ao fato bruto para ver que é muito sugestivo para a nossa tese da prioridade da morte na experiência da organização social.

Infelizmente, sugestivo é tudo o que pode ser, pois nenhuma peça isolada será capaz de revelar toda a imagem ou resolver o quebra-cabeça. A maior delas talvez seja o fato de que, em um nível lógico bastante abstrato, o livre-arbítrio está intimamente ligado a um mundo em que há morte. Se nada morre realmente, então não temos liberdade de escolha; e se carecemos de uma liberdade de escolha significativa, então também a morte se mostrará irreal.

O argumento, se examinado a fundo, é mais complexo do que isso, e mesmo depois de provado não é suficiente nem de longe para provar a conexão entre morte e sociedade política. Revela, contudo, um padrão que se repetirá em níveis muito menos abstratos. O estoicismo de Roma Antiga é um bom exemplo: uma filosofia que habitualmente despreza a dor e menoscaba a morte, cedo ou tarde acabará por chegar à negação do livre-arbítrio. E o islamismo otomano pré-moderno, bem como o budismo tibetano, talvez possam constituir outros exemplos em sentido contrário: uma cultura que adere ao fatalismo tenderá também a negar que a morte possa ser repleta de significado.

Encaremos também este tema à luz da violência louvada por uma gama surpreendentemente vasta de teorias políticas modernas: Por que a morte aparece como um poder inesperado, milagroso, formador de cultura, sempre que um pensador se rebela contra o Iluminismo? Que lógica compele os filósofos políticos, da mais radical direita à mais radical esquerda, a aderir ao assassinato quando renunciam à pobreza e superficialidade da cultura moderna? E por que a literatura moderna mostra-nos uma e outra vez personagens que imaginam poder resolver as angústias da modernidade afogando-as em sangue?

Ou pensemos no papel da morte nessas passagens estranhas e perturbadoras que encontramos freqüentemente nos textos antigos: Qual é exatamente o ultraje cometido por Aquiles quando arrasta o cadáver de Heitor em círculos furiosos ao redor de Tróia? E por que Aquiles – Aquiles de coração de ferro, destruidor de homens / que não havia de viver muito (Auden) – escolheu a imortalidade da fama pela morte na batalha ao invés da vida longa, pacífica e feliz, mas em breve esquecida, que os deuses lhe ofereceram?

E pensemos neste tema também com relação à família. Em todas as culturas ocidentais, uma pessoa “reunia-se a seus pais”. Mas as contínuas mudanças de casa e o desgosto urbano pelos cemitérios dificultaram o cuidado dos túmulos. Como não esperar um enfraquecimento das relações familiares num momento em que os jazigos familiares começam a desaparecer?

De fato, essa lógica volta-se sobre si mesma para entrar numa espiral descendente: a falha em manter os jazigos familiares esvazia cada vez mais o significado do nome da família, e o nome esvaziado de significado torna-se uma razão para não se terem jazigos familiares. A falência do funeral nos tempos modernos é tanto uma causa como um sintoma da desintegração da cultura, primeiro em famílias nucleares, depois em indivíduos atomizados, e finalmente no nada – veja-se, por exemplo, a crescente difusão da “morte anônima”, uma inovação européia que agora começa a aparecer nos Estados Unidos e que consiste em abandonar os mortos sem qualquer ritual em túmulos não-identificados, ou em cremar os corpos e espalhar as cinzas em vastos espaços indiferentes.

 

II.

Nenhuma dessas peças soltas – as origens do direito de propriedade, a lógica do livre-arbítrio, as tendências assassinas das políticas extremistas, os presságios literários da Antigüidade, a família enfraquecida – é suficiente em si mesma para mostrar a exata relação da morte com a comunidade política. Mas o simples fato de reuni-las faz com que comece a surgir uma imagem.

O que proponho é uma completa reavaliação da teoria política: o retorno a uma fundamentação extra-política, metafísica até, para o pensamento político. A morte – não a nossa própria morte, mas a dos outros – torna-se a chave para entender os agrupamentos humanos quando chegamos a compreender três proposições acerca da relação entre política e morte:

(1) as perdas sofridas pelos seres humanos são a razão mais profunda para a cultura;

(2) o modelo básico de qualquer comunidade é a congregação em um funeral;

(3) uma sociedade saudável requer um sentido bem vivo da realidade e da presença continuada dos mortos.

Consideremos a primeira proposição. Os teóricos da política sempre tenderam a tomar o medo – a apreensão perante a nossa mortalidade pessoal – como a principal manifestação da morte no reino político. Há muito que o liberalismo moderno rejeitou os relatos mágicos sobre a formação política: os deuses que teriam estabelecido eles mesmos a cidade de Gilgamesh, por exemplo, ou que a unção sacerdotal de Menes, o primeiro faraó, teria santificado o governo do Egito. Em conseqüência dessa guinada liberal, é inegável que as nossas explicações para os começos pré-históricos da cultura ficaram ralas. No entanto, a visão moderna (a da leitura padrão do Leviatã, de Hobbes) ainda nos parece suficientemente plausível: a civilização teria começado quando os homens abriram mão de certas liberdades naturais em troca de proteção cívica mútua contra tudo o que representasse uma ameaça para as suas vidas.

No entanto, o medo da nossa morte pessoal não consegue dar conta de tudo, porque a evidência arqueológica aponta esmagadoramente para o luto, não para o medo. A grande maioria dos vestígios dos primeiros assentamentos humanos são mausoléus, túmulos, sepulcros e cenotáfios (como Fustel de Coulanges foi o primeiro a observar, há mais de cem anos, na sua obra clássica A cidade antiga [1]). Na medida em que as pedras antigas nos dizem alguma coisa, as civilizações antigas não parecem ser essas fortalezas armadas que o hobbesianismo prevê, mas o exato contrário: cultos religiosos aos mortos e associações para o cuidado comunitário dos seus túmulos.

É difícil fixar qual a relação exata entre as religiões primitivas e os antigos monumentos. Ambos parecem ter-se fortalecido mutuamente nos primeiros momentos da civilização: os funerais foram um fator-chave para o translado da religião de um contexto rural para um contexto urbano, e a religião urbana foi um fator-chave para a definição dos funerais litúrgicos. Mas pouco importa se foi a religião que se desenvolveu graças ao cuidado dos mortos ou se foi o cuidado dos mortos que se desenvolveu graças à religião; tanto em um caso como no outro, as relíquias humanas mais antigas sugerem uma origem ampla: as raízes mais profundas da civilização estão nos seus funerais e monumentos. Os mortos definem a cultura.

Mas a influência da morte não se limita às origens da civilização. Consideremos a nossa segunda proposição: O modelo básico de qualquer comunidade é a congregação em um funeral. Neste caso, a questão está em que, sem os mortos compartilhados, não há um sentimento forte de comunidade, o que nos deixa apenas com associações ao estilo dos clubes de boliche – ou, pior, com a degeneração dos clubes de boliche naquilo que o popular escritor de sociologia Robert Putnam chamou, em 1995, de “o boliche solitário” do americano contemporâneo: uma cultura com um senso de comunidade tão aleijado que tem dificuldade até em manter pequenas associações de amigos com interesses comuns.

No entanto, tal como os seus colegas comunitaristas – os escritores que, a partir de 1980, começaram a perceber com clareza que uma enorme quantidade de benefícios políticos e sociais se perde quando as associações voluntárias desaparecem -, Putnam parece não querer chegar às causas metafísicas dessas comunidades pelas quais suspira. Com efeito, os comunitaristas geralmente parecem imaginar que as comunidades se formarão praticamente sozinhas quando as pessoas compreenderem o bem sociológico que lhes advém da existência dessas mesmas comunidades.

É patente que isso não é verdade, ou apenas o é em alguns casos tão raros que vem a dar na mesma dizer que não o é. As sociedades para o enterro dos mortos e as congregações de oração por eles são as associações humanas que se dedicam ao tipo de trabalho metafisicamente vital para que uma comunidade pareça importante e relevante aos seus membros. Nem todos os membros de uma sociedade – nem mesmo uma porcentagem grande da sua população – precisam estar diretamente a serviço dos mortos, mas precisamente as comunidades mais duradouras e influentes de uma cultura sempre o estarão – das igrejas às confrarias beneficentes. Quer se trate dos grandes funerais públicos na Catedral Nacional de Washington, quer do Dia da Memória no Elks Club de Ottumwa, Iowa, são as associações funerárias que estabelecem o modelo de comunidade do qual se beneficiam as outras associações da sociedade.

E a causa disso está na nossa terceira proposição: Uma sociedade saudável requer um sentido bem vivo da realidade e da presença continuada dos mortos.

O significado da vida deriva da presença do futuro, enquanto a riqueza da vida deriva da presença do passado. A maneira como vivemos só é importante quando vemos vir na nossa direção um futuro que seja conseqüência dos nosso atos – a começar sempre pelo fato de que morreremos e temos de preparar os nossos filhos para assumirem o fardo da cultura. A maneira como vivemos só é rica e cheia de sentido quando vemos um passado importante, os fantasmas antigos, a morar entre nós – a começar sempre pelo fato de que os nossos pais morreram e deixaram os seus corpos aos nossos cuidados. A morte é a âncora de todas as associações humanas, da família aos estados nacionais: dá-nos uma razão para nos associarmos, e evita que nos lancemos à deriva atando-nos a uma realidade temporal maior, mais rica e mais significativa, do que o nosso mero presente individual.

Muitos dos problemas contemporâneos revelam novos aspectos se analisados à luz dessa relação entre política e morte. O estranho mal-estar que acompanha as fabulosas promessas de imortalidade feitas pela biotecnologia, por exemplo. Ou a crise da família, que agora se mostra fortemente relacionada com o aumento dos suicídios assistidos, da eutanásia e de todas as nossas tentativas de ocultar à nossa vista os enfermos e moribundos. Ou a falta de densidade da cultura moderna, que leva os seus membros mais instáveis a procurar sentido e importância nos assassinatos em massa.

Nada disso deveria ser surpresa. O fato de as pessoas morrerem é o ponto de partida e o alicerce de uma comunidade política normal. A sociedade está baseada na morte dos homens.

Mesmo um exame superficial revela os vestígios da morte presentes na nossa vida em comum. As pessoas morreram – e por isso os cemitérios existem; e por isso também amplos trechos da história política humana podem ser interpretados simplesmente como a longa batalha por conter o sangue derramado pelas rivalidades entre famílias. As pessoas podem morrer – e por isso um governo deve forçar cada cidadão a proteger o outro e a proporcionar-lhe toda a defesa de que seja capaz contra a fragilidade do corpo. As pessoas morrerão
e por isso procuramos planejar o futuro, da imensa massa do nosso direito de herança às nossas tabelas de seguros.

O liberalismo moderno sempre desconfiou da metafísica. Mas se de fato as relações políticas estão embebidas de morte, essa desconfiança é em grande parte um mero equívoco – porque nos cemitérios podemos discernir uma razão para a política que não está sujeita às críticas-padrão de que as afirmações metafísicas não passariam de uma questão de preferência pessoal absolutamente privada ou de um espécime do sentimento religioso irracional. Talvez até descubramos aqui uma maneira de diluir o cáustico ceticismo do pensamento moderno. A tentativa de construir uma política apenas em torno da morte pode ser uma idéia infeliz – sociologicamente incompleta e politicamente perigosa -, pois seria necessário acrescentar-lhe outros temas de densa consistência metafísica, como o amor, a procriação, o trabalho e o sentido da vida humana. Mas uma era da suspeição tem de contentar-se com o que tiver, e a morte é o fato inamovível que ceticismo algum é capaz de dissolver.


III.

A morte sempre foi o grande problema do homem, mas nos tempos modernos, com um lugar apenas vago e incerto na ética, na arte e nas relações sociais, parece ter-se tornado um novo tipo de problema. Os registros antigos aludem uma e outra vez a um entrelaçado de funerais, cultura, política e morte; na modernidade, porém, essas alusões desaparecem – quer porque parece já não haver mais nada a que aludir, quer porque se pensa que chegou o tempo de deixar de lado as alusões e tornar explícito o que a teoria política dos antigos e dos medievais tinha deixado implícito.

Podemos ler pilhas enormes dos textos filosóficos que marcaram o advento do mundo moderno sem encontrar uma só palavra sobre a mortalidade. Por exemplo, o ensaio-chave de Immanuel Kant, “O que é o Iluminismo?”, de 1784, não menciona uma única vez a morte e os funerais, embora fale continuamente da religião e da ordem pública. Às características comumente atribuídas à alta filosofia iluminista – a preferência pela ordem racional, o desprezo pela da superstição, o fascínio com o método científico, a substituição da metafísica pela epistemologia -, podemos acrescentar mais uma: a desaparição do conhecimento cultural sobre a morte.

No entanto, a era moderna também nos deu os autores que pela primeira vez vinculam explicitamente política e morte na história da teoria política. Com efeito, essa ligação tornar-se-ia rapidamente uma regra do pensamento contra-iluminista: cada uma das revoltas contra o Iluminismo, cada um dos filósofos que buscam alternativas para o vazio da cultura moderna, fatalmente topa com a idéia da morte, que será então erguida ao alto em meio a exclamações de triunfo.

Mas o uso político da morte, desvinculada dos elementos que a restringiam nas culturas primitivas, torna-se cruel e monstruoso. Não há dúvida de que, em todas as épocas, os políticos ativos concluíram que um assassinato político podia ser muito útil, da mesma forma que perceberam ocasionalmente que uma nação pode unir-se como efeito da guerra; mas entre isso e os pensadores que teorizam sobre a necessidade de execuções ou de fazer mártires de guerra – os filósofos que propugnam a morte por propósitos políticos –
há um abismo de diferença.

Embora o seu cristianismo geralmente os impedisse de abraçar os resultados a que chegaram, os conservadores do contra-iluminismo do século XIX perceberam a força social do assassinato. Joseph de Maistre, por exemplo, no seu tratado de 1821 sobre os sacrifícios, escreve: “Nenhuma nação jamais duvidou de que havia uma virtude expiatória no derramamento de sangue […]. Isso está arraigado nas profundezas da natureza humana, e toda a história não mostra uma só voz dissidente a este respeito”. De Maistre acrescenta, contudo, que a Revelação Cristã refreia a cultura de cometer esses assassinatos: “Onde quer que o verdadeiro Deus não seja conhecido e servido por virtude de uma revelação explícita, um homem abaterá o outro e não raramente o devorará”.

O passo seguinte – não apenas observar o efeito da violência, mas defender o seu uso para criar a unidade social – é freqüentemente atribuído ao Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo, escrito em 1854 por Juan Donoso Cortés. No fim das contas, porém, também Donoso Cortés, como De Maistre, afirma que uma cultura não deve recorrer à morte – pelo menos não de maneira consciente. Foi apenas a partir da década de 1920 que os conservadores contra-iluministas, já agora libertos do cristianismo, aceitaram integralmente a política dos assassinatos, como se vê na afirmação protonazista de Carl Schmitt, de que uma nação teria uma necessidade “existencial-ontológica” de inimigos para matar.

Socialistas e anarquistas radicais já tinham chegado muito antes à mesma conclusão. Aquilo que poderíamos chamar de “contra-iluminismo de esquerda” fez com que, no século XX, a teoria da utilidade social do assassinato se mostrasse mais sangrenta do que nunca. O exemplo mais claro são, provavelmente, as Réflections sur la violence escritas em 1908 por Georges Sorel, que, com o seu enfoque sindicalista, vê a insurreição como uma força criativa pela qual o proletariado inventa a “imagem física” da sua classe mediante o apocalíptico “mito de uma greve geral”.

Em Humanisme et terreur, de 1947, Maurice Merleau-Ponty faz uma análise semelhante para defender os julgamentos públicos da Moscou de Stálin, afirmando a necessidade das execuções (pouco importando a culpa ou a inocência do acusado) para limitar e definir o estado socialista. E Frantz Fanon, em Les condamnés de la terre (1961), rejeita todos os eufemismos e proclama orgulhosamente os benefícios psicológicos e sociais do assassinato por motivos políticos na guerra argelina contra o colonialismo francês; como explicava Jean-Paul Sartre na sua outrora famosa “Introdução” a essa obra, para os habitantes do terceiro mundo “atirar num europeu significa matar dois pássaros com uma só pedrada, pois desaparecem ao mesmo tempo o opressor e o oprimido: sobram apenas um homem morto e um homem livre”. Mais recentemente, o filósofo canadense Ted Honderich tentou restabelecer essa linha no seu livro de 2002, After the Terror, e na palestra em louvor do efeito político do jihadismo, “Terrorismo pela humanidade”.

Suponho que os pós-modernos estejam em algum lugar no rebanho dos contra-iluministas, embora seja difícil precisar filosoficamente se à esquerda ou à direita. (A sua política, especialmente a política sexual, tendia à extrema-esquerda, mas Jean-Paul Sartre viu nas suas obras algo de profundamente não-marxista e os rotulou de “jovens conservadores” quando surgiram pela primeira vez). Seja como for, de Roland Barthes a Michel Foucault, são todos fascinados pela morte; e Jacques Derrida, o mais desconstrutivista de todos, chegou por fim à conclusão de que pelo menos a morte não pode ser desconstruída.

Ao fim e ao cabo, porém, os pós-modernos parecem ter folgado demais com o seu próprio ceticismo cáustico, com a comédia de mostrar uma e outra vez como a racionalidade infundada do Iluminismo desembocava na irracionalidade. E, embora tenham seguido a regra geral contra-iluminista de desvelar a morte, lidaram com ela de uma maneira fundamentalmente leviana: em última análise, ela apenas lhes proporcionava mais um motivo para serem cáusticos. Ali onde o pensamento ocidental falhava em não reconhecer a centralidade da morte, zombavam dele por não enxergar como a morte desfazia toda a sua obra; e ali onde o pensamento ocidental reconhecia a centralidade da morte, zombavam dele por ser um negador mortal da vida. Contrastem-se, por exemplo, o livro Donner la mort, em que Derrida acusa o cristianismo de negar a morte, com o seu livro anterior, Apories, em que acusa Martin Heidegger de ser obcecado pela morte.

A chave de tudo isso é que o contra-iluminismo tem razão – ou melhor, razão pela metade: é horrivelmente preciso, está mortalmente certo. A pobreza e a superficialidade da cultura moderna podem mesmo resolver-se com a morte; o sangue realmente enriquece o solo sobre o qual brota a civilização. Mas se a morte necessária às sociedades fortes é ordinariamente a dos pais e amigos – mortes comuns, domésticas, que nos atam à extensão temporal da civilização e conferem à vida um significado consistente -, nas sociedades doentes ganham importância as pessoas profundamente dissociadas e com distúrbios psicológicos, que não possuem um passado a que possam estar ligadas por essas mortes. Ou talvez fosse melhor dizer que essas pessoas têm um passado, mas a sua relação com ele é inteiramente negativa. Ao rejeitar as próprias origens, precisam refazer-se a si mesmas, e acabam por encontrar a morte necessária à renovação da comunidade e da cultura, não na união no luto, mas na união no assassinato.

Seja como for, a regra continua válida: comunidade e cultura erguem-se sobre os cadáveres do passado, que nos estendem pelo tempo. A questão é que tanto o revolucionário como o contra-revolucionário necessitam de sangue novo para a sua obra nova.

 

IV.

Nem sempre foi assim. Estão espalhados pelos registros literários antigos indícios da forte conexão entre a justiça política e o respeito dos vivos pelos mortos, em paralelo com as relações que apontam entre as origens da cultura e a finalidade dos funerais.

Podemos começar com os textos mais antigos: o luto de Gilgamesh por seu amigo Enkidu é tão grande que chega a ameaçar a civilização, e o Livro dos mortos egípcio confere ao bom tratamento dos mortos um lugar central na sua lista das ações moralmente boas. As descrições das diversas práticas funerárias feitas por Heródoto nas suas Histórias são muitas vezes citadas como uma prova do relativismo cultural e do pouco valor atribuído aos funerais; mas o mesmo Heródoto considera a violação de túmulos praticada por Cambises durante a conquista do Egito uma evidência da insanidade do líder persa. Ou seja, as formas de enterro variam de uma cultura para outra, mas o respeito devido aos mortos não varia.

Sempre que lemos um texto antigo, deparamo-nos com momentos de estranheza, passagens que parecem escapar à nossa compreensão moderna. Muitas coisas contribuem para com essa característica alienígena, mas entre elas está o fato de os textos antigos assumirem consistentemente que a morte está próxima da superfície da ordem política.

Pensemos na estranha conclusão da Odisséia, em que Ulisses, antes de reassumir o poder em Ítaca, deve tomar um remo e reencenar alguns elementos do enterro de Elpenor, um dos seus marinheiros perdidos. Ou vejamos a história relatada por Heródoto acerca do líder espartano Pausânias: quando um habitante de Egina lhe sugere pôr no alto de um poste a cabeça do general persa Mardônio, Pausânias vê nessa sugestão um ato que ameaça as próprias raízes da civilização: “Tais atos são mais próprios de bárbaros que de gregos, e mesmo nos bárbaros nós os detestamos […]. Não tornes a apresentar-te diante de mim com tais conselhos, e agradece à minha clemência que eu não te puna”.

Nesse sentido, pensemos também em todos os mitos sobre Tebas. Os trágicos gregos tinham fascínio por essa cidade, e com razão, pois a história mítica de Tebas transborda de narrativas em que política e morte se encontram relacionadas: do seu começo com Cadmo e os guerreiros assassinos nascidos dos dentes do dragão, passando pelo reinado de Édipo e a tragédia de Antígona, até a história dos cadáveres insepultos depois da expedição falhada dos sete contra Tebas. A versão da guerra civil tebana narrada por Heródoto menciona brevemente que Atenas se vangloriava de ter forçado Tebas a cuidar dos mortos insepultos, mas é a peça As suplicantes, de Eurípides, escrita provavelmente cinco anos mais tarde, que afirma com mais veemência o papel de Atenas como tutora moral do mundo: “Quando os mortos não recebem os funerais e os ritos que lhes são devidos, tens de usar do teu poder para compelir os homens violentos a cumprir esse dever”, diz Aetra a seu filho Teseu, rei de Atenas, quando Tebas não permite que se enterrem devidamente os seus agressores derrotados. “Tens de reprimir os que envergonham os costumes de toda a Grécia, pois são esses costumes o que mantém unidos os estados dos homens”.

A noção de que os ritos funerários são o que mantém unidos os estados aparece uma e outra vez nos textos antigos. Na literatura latina, por exemplo, vão desde o curioso final do De rerum natura, de Lucrécio – com o colapso político que se segue ao colapso cultural da ausência de funerais durante uma praga -, à descrição de ritos funerários em cada um dos pontos-chave da luta de Enéas por estabelecer uma nova cidade e levar os deuses à Itália. Depois que César proibiu a realização de funerais para os seus inimigos mortos em Farsália, Lucano sugere de maneira poética que seriam desnecessários para honrar os mortos, uma vez que o próprio céu é a sua mortalha; mas a Eneida de Virgilio testemunha da antiga tradição romana quando a sibila alerta Enéas de que a sua descida aos Infernos será retardada devido à corrupção do corpo insepulto de um dos seus companheiros, Misenus.

Também na Bíblia encontramos esses elementos estranhos, passagens que põem a morte ao lado da ordem política e os funerais ao lado da cultura. No Antigo Testamento, os textos vão desde o translado dos corpos de Jacó e José na saída do Egito à associação feita nas profecias de Jeremias entre exílio, corpos insepultos e injustiça. No Novo Testamento, esses textos vão do homem com espíritos impuros que habitava entre os túmulos, no Evangelho de Marcos, aos mortos insepultos que estarão nas ruas de uma grande cidade, no Apocalipse. O breve tratado de Santo Agostinho, De cura pro mortuis, contém um longo catálogo das passagens bíblicas que mencionam enterros. Agostinho baseia a sua análise principalmente no uso dos túmulos tanto para recompensa como para castigo na história dos profetas que falaram contra o rei Jeroboão, no primeiro livro dos Reis.

No seu estudo de 1970, Sans feu ni lieu: signification politique de la grande ville, Jacques Ellul chamou a atenção para Gênesis 4, 17, onde se diz que Caim, o assassino, é o fundador da primeira cidade, o que liga a cultura urbana à morte e anuncia a suspeita contra as cidades que encontramos nos primeiros livros da Bíblia. O segundo capítulo de Isaías entretece o tema da suspeita contra as cidades com o contra-tema do seu elogio: “No fim dos tempos acontecerá […] que todas as nações acorrerão para lá”, para a Cidade Santa, “porque de Sião deve sair a Lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor”. Ao que segue imediatamente a grande descrição da paz universal: “Das suas espadas forjarão relhas de arados, e das suas lanças, foices. Uma nação não levantará a espada contra outra, e não mais se arrastarão para a guerra”. Vale notar, entretanto, que isso acontecerá apenas “nos últimos dias” – pois apenas a Cidade Santa definitiva “desce do alto”, não se origina da violência que está na raiz das cidades humanas nem depende dela.

Os temas da violência e da morte na Bíblia desempenham um papel central nos escritos de René Girard, e não seria possível refletir sobre as questões da morte e das origens da cultura sem mencionar a sua obra fascinante. Numa entrevista biográfica dada em 1995, o escritor declarou que os temas que havia desenvolvido nas últimas quatro décadas estavam presentes na sua mente desde o final dos anos 1950 como uma “intuição densa”, um “bloco” a ser penetrado aos poucos. As suas publicações começaram a aparecer em começos dos anos 60, com exposições amplamente aclamadas sobre a maneira como se tendem a formar relações triangulares entre personagens de romance, especialmente os de Dostoievski. Depois, Girard dedicou-se à antropologia, sustentando a idéia de que as culturas antigas se baseiam na violência sacrifical contra um bode expiatório.

A conexão veio com os seus estudos crescentes de psicologia e a sua tese de que o desejo é “mimético”: que aprendemos o que queremos observando o que os outros querem. Os exemplos mais simples envolvem as inúmeras histórias antigas, do Egito a Roma, que falam de irmãos, geralmente gêmeos, um dos quais é destruído no processo de fundação de uma cidade. Girard insiste em que leiamos esses mitos como registros de assassinatos humanos verdadeiros: na espiral insana da violência mimética, com cada vingança sendo por sua vez vingada, a cidade nascente amea-çaria devorar-se a si própria, mas com a escolha de um bode expiatório a ser sacrificado essa espiral poderia ser rompida graças a um acordo inconsciente que dirigisse toda a vingança dessa cultura contra um alvo único.

Em resposta a essa violência que ameaçaria voltar todos contra todos, portanto, os velhos mitos fundacionais proporiam outra violência como solução: a violência de todos contra um, a violência na qual uma vítima seria escolhida como fonte do colapso cultural e sacrificada. A vítima sacrifical, escreve Girard, “conjura sem o saber uma força maligna e infecciosa, que a sua morte – ou triunfo – transformará em garantia de ordem e tranqüilidade”.

Alguns dos seguidores de Girard parecem vislumbrar um estado pré-cultural de violência primitiva, deixando o pensamento de Girard sujeito à crítica de que o pouco que sabemos da história antiga não oferece evidência alguma de que as cidades realmente tenham nascido no meio da revolta e do caos. Contudo, não precisamos postular uma fúria original para interpretar os mitos sacrificais; basta perceber que a cultura antiga manifesta, nos seus mitos, um terror profundo diante dessa possível escalada mimética da violência.

A guinada final de Girard para a teologia cristã explícita permitiu-lhe encontrar uma solução adicional: no centro do seu pensamento está a Cruz, o Sacrifício que quebra o ciclo dos sacrifícios, da violência e dos assassinatos miméticos. Para ele, o problema de formar uma cultura – de prevenir e conter a desastrosa espiral do assassínio intestino e do colapso cultural – seria como uma equação de segundo grau com duas soluções: a negativa seria a da mitologia sacrifical, e a positiva é a da não-violência, tornada possível pela revelação bíblica. O sacrifício de Cristo escancararia a mecânica do bode expiatório para que todos vissem o assassinato presente na raiz desse mecanismo.

Girard sem dúvida tem razão ao afirmar que a moderna teoria política subestimou a força social da vingança, e a sua teoria lança luzes verdadeiras sobre o modo como os antigos usavam o sacrifício e o porquê de os pensadores do contra-iluminismo recorrerem à morte quando buscam um novo fundamento. O problema, porém, é que Girard parece carecer muito de teoria política – ao menos de uma teoria política que não seja a de Isaías (“No fim dos tempos acontecerá […] que todas as nações acorrerão para lá”), porque a escatologia é um péssimo guia para a política comum. No fim das contas, na leitura girardiana da história, a revelação judaico-cristã só teria aumentado ou até criado os nossos problemas políticos modernos, porque o mito do bode expiatório – solução negativa para o problema da cultura – já não funciona bem uma vez que se tenha compreendido o seu funcionamento.

Se, como Girard insiste, o mecanismo antigo começou a falhar ao ser substituído por um mecanismo novo que só funcionará no fim do mundo, o que então poderá ajudar-nos agora? O girardianismo força-nos a concluir que a cultura moderna é, na sua essência, irrecuperavelmente inconsistente e autocontraditória, ao passo que o Estado moderno tornou-se fundamentalmente ingovernável. O mecanismo do bode expiatório acaba por provar coisas demais: a explicação psicológica dada por Girard de que a rivalidade mimética seria a causa do sucesso da morte na formação de comunidades, deixa-nos apenas com o assassinato e a mudança apocalíptica como alternativas – as duas únicas soluções de uma equação de segundo grau.

Precisamos voltar a um uso mais ordinário e sensato da morte, que enriqueça a vida diária com a extensão temporal. Precisamos, penso, de uma nova teoria da força cultural do luto para esse entreato em que vivemos. Precisamos de um entendimento intermediário – e propriamente político – da dívida que os vivos têm para com os mortos.

 

Artigo traduzido da revista First Things, junho-julho de 2007. Copyright © First Things, 2007. Todos os direitos desta tradução reservados a Dicta&Contradicta.

Joseph Bottum é editor da First Things. Diversas partes deste ensaio foram lidas, como versões prévias, em Princeton University, Boston College, na University of Tulsa, e no Loyola College de Maryland, a quem o autor agradece.

Tradução de Cristian Clemente. O tradutor é licenciado em Letras pela FFLCH – USP.

Texto publicado na revista-livro do IFE, Dicta&Contradicta, Edição nº 1, Junho/2008.

Aprisionados em caixas

Opinião Pública | 06/06/2016 | | IFE CAMPINAS

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Imagem: Richard Croft (no Wikimedia Commons).

 

Tempos de crise política e econômica evidenciam tendências sociais que, em períodos de maior bonança, não se expressam com tamanha notoriedade. O posicionamento político dualiza-se. Fato que não consiste em uma mera consequência da exaltação de paixões ante um contexto de crise, mas em uma exteriorização da dualidade de pensamento disseminado nas instituições de ensino superior e, a partir delas, a toda sociedade.

A adesão incondicional a ideologias e o ódio a ideologias contrárias têm, por consequência, a busca de se distanciar ao máximo de possíveis pressupostos comuns. Ao caminhar em sentidos opostos, cria-se uma padronização dual do pensamento.

O conhecimento, assim, deixa de ser um processo complexo e pessoal. Torna-se uma escolha – limitadíssima – de ideologias. A universidade, ao invés de possibilitar um debate divergente e construtivo, converte-se num local onde as alternativas se restringem a algumas “caixas prontas”, cada qual já traz consigo todos seus pressupostos, argumentos, frases de efeito e conclusões. A tarefa do estudante é simples: escolher uma das “caixas”.

O pensamento simplifica-se em posicionamentos rivais e qualquer indivíduo passa a ser enquadrado em uma de duas características: direita ou esquerda, liberal ou conservador, progressista ou reacionário, feminista ou machista, coxinha ou petralha etc.

O problema não é, no entanto, a inexistência de divergências, mas a forma como são encaradas. Divergências de cunho superficial em relação a certa ideologia até são aceitas para o debate. Porém, dificilmente se progride com questionamentos superficiais. Já divergências que questionam as bases de determinada ideologia são desqualificadas de imediato, enquadradas na “caixa rival”, com a qual não se dialoga. No máximo, dirigem-se aos tidos como adversários intelectuais, as repetidas críticas, que mais se baseiam em deboche que em argumentos.

Configura-se, assim, uma guerra fria intelectual: teorias antagônicas se desenvolvem sem diálogo. Estruturam- se dois monólogos independentes. Para que haja diálogo, não basta que dois lados se expressem, é preciso que troquem ideias e analisem seriamente as críticas recebidas, para assim, não necessariamente chegando a um consenso, progredir no pensamento crítico. Ao contrário do que julgam muitos intelectuais – que pautam seus caracteres na constância ideológica – a crítica ao pensamento divergente, sem a autocrítica, não constitui um pensamento crítico.

Universidade evoca liberdade de pensamento. Mas, o que se verifica são pensamentos aprisionados a ideologias. Poucos são os que enfrentam a forte coerção para que tomem um posicionamento, poucos são os que conseguem conviver sendo hostilizados de ambos os lados. Poucos são os que não aderem a nenhum dos lados do muro, não porque estão em cima do muro, mas porque, para eles, não há muros para o pensamento. O pensamento pressupõe liberdade, sem ela, torna-se repetição de ideias. E para isso – pasmem! – crie uma universidade para papagaios, não para homens!

Ainda há, no entanto, seres pensantes que defendem que discutamos ideias e deixemos a tosca função mecânica de selecionar a qual “caixa” pertencem: A favor do “Bolsa Família”? Esquerda. A favor do impeachment da presidente? Direita. Diz “presidente”? Machista. A brilhante filósofa Hannah Arendt, que considera a perda da capacidade de reflexão um dos piores males da modernidade, expressa: “Meus amigos progressistas me chamam de conservadora; meus amigos conservadores, de progressista. Não creio que as verdadeiras questões deste século XX receberão qualquer tipo de esclarecimento dessa maneira.”

Aqueles que resistem ao aprisionamento do intelecto suplicam: “Não tentem enquadrar meu pensamento em suas caixas. Quero argumentos, não rótulos. O primeiro estimula o debate, o segundo mata-o.” Estou, pois, entre estes alunos que ousam dizer: “Agradeço, mas não quero nenhuma dessas caixas. Caixas prontas já fizeram muito mal à humanidade. Prefiro usar minha caixola!”

Beatriz Figueiredo de Rezende é graduanda em Ciências Econômicas na Unicamp e membro do IFE Campinas.

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Popular, edição de 28 de Maio de 2016, Página A2 – Opinião.

Pequeno ensaio sobre a devastação – por Luiz Felipe Pondé

Filosofia | 27/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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Retrato de estúdio de Edmund Burke por Joshua Reynolds, óleo sobre tela (1767-1769).

Retrato de estúdio de Edmund Burke por Joshua Reynolds, óleo sobre tela (1767-1769).

 

Neste pequeno ensaio pretendo dar uma versão, muito pessoal, do meu encontro com o pensamento conservador na minha experiência de formação.

Mas, antes de mais nada, o que é formação?

Entendo formação, sobretudo, como a preparação para o enfrentamento da condição humana em si mesma. Portanto, o próprio conceito de condição humana é princípio organizador da idéia de formação. Formar-se é encontrar a humanidade em nossa alma: coração e intelecto em agonia reparadora, como diriam muitos pensadores cristãos ortodoxos antigos.

* * *

A formação não é o foco principal da educação no mundo contemporâneo, o que é uma pena.

Infelizmente, grande parte da vida acadêmica contemporânea sucumbiu ao medo e à preguiça, a ponto de poder dizer que hoje a educação é um misto de preguiça, oportunismo e medo. Na realidade, uma das idéias que têm dominado meu pensamento é que o medo tornou-se parte essencial da vida de quem se dedica a atividades de formação.

Certa feita, na faculdade de medicina, perguntei ao professor como um paciente portador de câncer terminal se via diante da possibilidade de estar indo em direção ao Nada. O professor foi taxativo: “O senhor está na aula errada, devia fazer filosofia”. Boa época aquela, em que professores não tinham medo dos alunos nem se preocupavam com teorias pedagógicas.

Hoje, já não acho que meu professor estivesse tão certo. A formação em medicina é uma boa chance de você se medir com essa emoção essencial da vida, o medo, enquanto as ciências humanas podem facilmente cultivar a covardia travestida de grandes e vazias aventuras teóricas sem carne ou sangue – e por isso mesmo sem riscos de se sujar com a vida, que está sempre imersa em carne e sangue. Tenho certeza de que grande parte do que penso hoje como filósofo é devida aos cadáveres que abri durante a noite, aos cérebros que espalhei sobre a mesa de metal, às pessoas que morreram pelas mãos de minha ignorância, e à estranha sensação de que algo de misterioso faz a ponte entre a matéria, sempre fracassada, espalhada sobre o metal, e a alma, sempre em espanto.

* * *

Vejo o advento da modernidade como se tivéssemos entrado no grande delírio da denegação, da denegação do mal – como os freudianos dizem –, de um modo cultural e universal. Isso criou uma espécie de fúria do homem moderno em se auto-afirmar como centro do universo, uma negação da sua condição.

Mas a formação que daí resultou – grosso modo dos jacobinos para cá – trouxe consigo um esgotamento dos instrumentos intelectuais para compreender o mundo. Simplesmente não tem mais elementos para lidar com o mundo tal como ele se apresenta. E o esforço para lidar com ele, a partir das categorias que temos à mão, é excessivo; por isso, o retorno, a reação perante todas as idéias que não estão alinhadas com esse pensamento, é violento, grosseiro.

Essa dialética sempre me chamou atenção. Eu tinha já uma percepção muito concreta do mal, apesar de não conseguir falar disso, quando estava na faculdade de medicina. Porque, antes de fazer filosofia, fiz medicina; depois, entre uma e outra, ainda quis fazer formação em psicanálise, pensando em salvar a carreira médica, mas depois mudei de idéia.

Quem fez essa passagem para mim foi Pascal. Fui fazer o doutorado em Paris – vinha de cinco anos de estudo, e queria escrever a tese sobre a concepção trágica do ser humano de Freud –, e quando cheguei ali meu orientador foi atropelado por um caminhão na A1 e morreu. Furou um pneu, ele parou no acostamento, abriu a porta, um caminhão passou e o levou. Como se diz em francês, ficamos todos “catastrofados”

Fiquei órfão de orientador, na primeira semana de doutorado em Paris! E isso criou um vácuo em que comecei a ler outros autores que trabalhavam uma visão trágica. Comecei a ler Pascal, e não parei mais.

Em algum momento em que eu estava trabalhando com ele, alguma coisa começou a virar. Isso mudou completamente a minha forma de ver o mundo; não que tenha perdido de forma alguma a minha herança anterior, científica e biológica – tanto assim que continua presente no meu trabalho –, mas me levou às minhas reflexões atuais.

Devastação e ceticismo

E o que ficou do médico em mim, afinal? A consciência de um fracasso fisiológico essencial como condição humana. Esta experiência de fracasso é minha ontologia do humano.

E por que o medo? Porque conhecer é correr o risco de visitar mundos devastados. Visitar mundos devastados é contemplar a fronteira do sentido das coisas. O ceticismo (a dura suspeita da existência desse fracasso no plano do conhecimento) tem sido evidentemente uma ferramenta essencial.

Ceticismo, para mim, é a vigília contínua sobre este mundo em pedaços. Contra o domínio das teorias abstratas, escolho o risco da vida autoral. A coragem é virtude essencial quando se contempla a devastação.

* * *

Qual a relação entre este sentimento de devastação e o encontro com a tradição conservadora? A experiência humana fala de uma ontologia frágil; por isso, antes de tudo, devemos ter cuidado ao lidar com esta fragilidade.

Segundo a fortuna crítica [1], o pensamento conservador tem três grandes raízes, o ceticismo de David Hume (seu “Iluminismo às avessas”), em meados do século XVIII; a crítica de Edmund Burke à Revolução Francesa no final do mesmo século; e a viagem de Alexis de Tocqueville aos Estados Unidos (laboratório da democracia moderna nascente) na primeira metade do século XIX –
mesmo que nenhum dos três autores tenha usado especificamente o termo “conservador” em suas obras. Há controvérsias quanto ao estabelecimento destas origens, mas não vou me ater a elas porque não ferem o conteúdo deste pequeno ensaio.

Segundo Russel Kirk, os termos “conservatif” ou “conservative” [2] surgem na França nos primeiros anos do século XIX para se referir àqueles que se opunham à “era napoleônica” e à sua herança revolucionária. Grosso modo, o ethos da atitude conservadora era preservar as instituições políticas, sociais e morais que estavam no alvo dos desdobramentos de 1789. No limite, tratava-se de combater a dissolução das instituições e dos comportamentos ancestralmente cultivados.

Vemos, portanto, que o foco era uma defesa da sociedade em face da devastação em processo. Reencontramos assim, a oposição entre devastação e conservação a que fiz referência acima.

* * *

Este ethos me pareceu significativo [3]. A relação histórico-filosófica entre ceticismo e importância da ancestralidade data da Grécia [4]:
diante da dúvida acerca da operacionalidade da Razão [5], hábitos e costumes se revelam como opção contra o erro. Hábitos e costumes são comportamentos e instituições de razoável sucesso diante das pressões sofridas pela humanidade em sua agonia ancestral.

No restante deste pequeno ensaio, discutirei introdutoriamente alguns traços do que seria um “espírito conservador” ou mesmo uma atitude, ou sensibilidade, ou caráter conservador. Para tal, dialogarei com Russel Kirk em seu The Conservative Mind. Pessoalmente, gosto cada vez mais da idéia de um temperamento conservador [6].

Ao contrário de grande parte das pessoas que se aproximam da tradição conservadora, o que me levou à leitura e ao confronto com esta tradição (ou pelo menos com uma parte significativa dela) não foi qualquer sentimento religioso (apesar de tê-lo), mas sim minha experiência cética. Se não conseguimos justificar racionalmente o mundo (nem moral nem epistemologicamente) e incorremos facilmente em abstrações, como não nos destruímos ainda?

O “temperamento conservador”

1. Os problemas humanos são essencialmente morais e religiosos e não políticos, como pensa a tradição moderna de raiz iluminista francesa. Quando tentamos “resolver” a vida politicamente, incorremos facilmente em simplificações da realidade. A política é bem-vinda quando se apóia nos hábitos e não quando inventa soluções para a vida humana.

No fundo, somos seres atormentados pela falta essencial de sentido das coisas. Esta marca é moral e religiosa, não política. Suspeito que forças maiores do que nosso entendimento seja capaz de compreender marcam nosso destino. Todavia, esta suspeita se materializa muito mais, para mim, na adesão a hábitos que as supõem e as respeitam, do que a rituais que imaginam acessá-las ou abstrações racionais que visam a dissolvê-las.

2. Acredito profundamente na máxima “radicais amam a humanidade e detestam seus semelhantes”. Isso porque esses radicais se relacionam com uma idéia do humano que responde à homogeneidade de uma abstração lógica (suas abstrações de gabinete).

Ao mesmo tempo, tenho uma atração natural (sem sustentá-la em nada que postule uma “dignidade intrínseca do ser humano”) pelos seres humanos reais e sua rica e intratável heterogeneidade. A própria possibilidade de podermos estabelecer uma “lógica definitiva” do ser humano, me tornaria profundamente desinteressado pelos meus semelhantes. Relaciono esta variedade, como diz Kirk, com um certo mistério que perpassa esta multiplicidade.

3. Os seres humanos não são iguais; uns poucos são melhores do que os outros. Estas diferenças demandam tempo pra se revelar, mas são essenciais. A insistência em negar este fato (igualitarianismo) fere a relação entre as pessoas e a organização da vida.

4. Não existe “a liberdade” como idéia, mas apenas formas materiais que evitam a violência de uns sobre os outros. Homens não são ovelhas. No seu limite mínimo, a propriedade privada marca esta materialidade da liberdade possível; por isso, a tentativa de igualdade abstrata fere a defesa concreta contra a violência que visa a destruir a propriedade privada.

5. A famosa frase de Burke sobre a desconfiança para com “sofistas, calculadores e economistas” resume a dúvida conservadora contra designs abstratos da sociedade. Aqui a relação entre dúvida e hábito se revela na sua face mais evidente: engenharias (sofistas, calculadas ou econômicas) sempre põem em risco esse equilíbrio frágil da vida no tempo e no espaço duramente compartilhado. Se duvido dessas engenharias, por conseqüência duvido das mudanças calculadas por elas.

Em conseqüência…

6. Duvido da possibilidade de fabricarmos novos homens pela educação, legislação ou engenharias culturais de qualquer tipo. O homem não é passível de perfectibilidade projetada e acumulativa; daí a recusa da noção de “meliorismo” por parte dos conservadores.

7. Prefiro o conhecimento ancestral às “novidades da Razão”. Radicais desprezam a tradição, optam pelo império do racionalismo. O racionalismo desvaloriza o hábito ancestral em nome de sua força de cálculo. Neste sentido, a religião é preservada contra a sua crítica apressada.

8. A democracia direta é um risco e leva a fúria da sem-razão, travestida de “political levelling”, “nivelamento político”, para o interior do tecido cotidiano.

9. A idéia de justiça social, atacada também por David Hume, é um risco na medida em que dissolve a fronteira entre a violência da liberdade abstrata e o cuidado com esta violência presente na defesa irrestrita da propriedade privada.

10. Por último – resumo da posição burkeana e central para a definição de Kirk –, a sociedade é uma comunidade de alma que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram.

Os mortos são nossa sabedoria ancestral viva na memória e nos hábitos. Os vivos são o presente; diante da insegurança estrutural de nossa Razão, são responsáveis por legar aos ainda não nascidos o cuidado com a vida da humanidade, sob a ameaça ancestral de nossa ontologia do fracasso.

Luiz Felipe Pondé é Doutor em Filosofia Moderna pela USP, professor de Ciências da Religião na PUC-SP e titular de Filosofia na Fundação Armando Álvares Penteado. Escreve semanalmente no jornal A Folha de São Paulo. Já publicou os livros Conhecimento na Desgraça (Edusp), Crítica e Profecia (Editora 34), Guia politicamente incorreto da filosofia (LeYa, 2012), entre outros.


NOTAS:

[1] Muller, J. Z. Conservatism, an Anthology of Social and Political Thought from David Hume to the Present (Princeton University Press, Princeton. 1997). Kirk, R. The Conservative Mind, from Burke to Eliot (Regnery Publishing, Inc., Washington DC. 2001). Id. The Conservative Reader (The Viking Portable Library, New York. 1982).

[2] Kirk, R. Edmund Burke, a Genius Reconsidered (Intercollegiate Studies Institute, Wilmington, 1997).

[3] A dúvida sistemática com relação ao alcance da Razão, marca do ceticismo filosófico, lega um sentimento de grande risco com relação aos malabarismos racionais diante da realidade. A dúvida conservadora de Burke com relação às engenharias sociais herdadas do jacobinismo se aproxima muito desta intuição cética. Ambas tendem a ser econômicas no que se refere à confiança nos produtos concretos destas engenharias (produtos da Razão que pretende moldar o mundo).

[4] Hankinson, R.J. The Sceptics (Routledge, London. 1995).

[5] É importante lembrar, contra o senso comum corrente, que o ceticismo filosófico desde a Grécia, passando por autores como Montaigne (séc. XVI), Pascal (séc. XVII) – naquilo em que ele “usa” o ceticismo -, Hume (séc. XVIII) e Oakeshott (já no século XX), atacam a validade da Razão, e não a validade de crenças ditas “religiosas”. Não porque essas devam ser preservadas, mas porque simplesmente são “fáceis” de ser atacadas (objeto de fé apenas), enquanto a Razão, sim, demonstra sua arrogância dogmática travestida de evidência universal. Por isso é tão comum, como por exemplo em Montaigne e Pascal, o convívio, até certo ponto, entre fé e ceticismo. Em Hume ou Oakeshott (para referências, ver nota 1), a fé está contida no hábito que conduz a vida para fora dos dogmas da Razão frágil. Em Burke, a fé se inscreve na vali

dade da aceitação de uma dimensão de mistério na condução da história (Providência divina opaca à Razão de ethos jacobino).

[6] Não vou aqui citar o texto de Russel Kirk propriamente dito. Remeto o leitor para o The Conservative Mind (para referências, ver nota 1), págs. 8 a 10.


Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Ed. nº 4, Dezembro de 2009, link da edição aqui.