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O lápis azul do imperador

História | 14/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Delfim-pedroII-MHN - Delfim da Câmara

No Império, implantou-se, a partir da Constituição de 1824, uma Monarquia Constitucional em terras tupiniquins. Havia três poderes que regiam a nação, tais como foram concebidos no século anterior por Montesquieu: Legislativo, Executivo e Judiciário. No entanto, Dom Pedro I instituiu ainda um quarto poder: o Poder Moderador, o qual deveria ser exercido pelo imperador no intuito de regular as relações entre os poderes e impedir trapaças e injustiças.

Na época, isso rendeu algumas chacotas, vindas da Inglaterra e de alguns grupos políticos que apelidaram nosso governo de “parlamentarismo às avessas”. Riam-se da interferência considerada demasiada do imperador em assuntos que competiam a outros poderes. Jocosidades à parte, já no governo de Dom Pedro II, o exercício do Poder Moderardor se dava de forma interessante, em especial no que toca às nomeações de ministros, governadores de províncias e outros cargos. Sempre que traziam indicações de nomes selecionados pelos eminentes senadores do império, D. Pedro observava um a um e passava a colher informações sobre cada candidato a fim de verificar se não teria um passado maculado por qualquer tipo de corrupção. Havendo indícios, ou seja, mesmo sem provas diretas dos fatos, o imperador, como medida cautelar, sublinhava os nomes suspeitos com um lápis azul, excluindo qualquer possibilidade de ocupação de cargo público por alguém desonesto.

Rui Barbosa, ferrenho defensor da República e Ministro da Fazenda do governo do Marechal Deodoro da Fonseca, anos após a derrubada do regime monárquico se lamentaria de ter defendido e lutado pela República, afirmando que o Império era uma “escola de estadistas”, enquanto a República se tornara uma “praça de negócios”.

De lá para cá, o mundo mudou, mas a “herança mercantil” da República “onde tudo se negocia”, permaneceu. Assistimos ao comércio de ideologias, projetos e até mesmo de valores. Vivemos em tempo de “panpartidarismo”, onde já não se consegue definir o que é esquerda ou direita. Cristalizou-se a mesma confusão do início da República e, nesse quesito ela deve ser elogiada, porque é sempre coerente: começou negociando tudo e segue fazendo o mesmo até hoje.

Ética, moral, honra, são palavras gastas pela profanação que sofrem constantemente. E seguirão sofrendo, porque ventos contrários sopram contra o Brasil, em especial depois da recente aprovação do Decreto 8.243, vindo a lume no último dia 23 de maio e no qual a presidente cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), supostos instrumentos para proporcionar e estender a participação direta dos cidadãos e grupos sociais nas decisões de governo. Aparentemente o projeto seria uma resposta às manifestações ocorridas no meio do ano passado, porém, na prática é uma ação que viola o sistema democrático de governo implementado pela Constituição de 1988. O pior disso tudo é que esses projetos acabarão (se o decreto for acolhido pelo STJ) por amplificar a voz de grupos sociais e organizações subvencionadas pelo próprio partido da presidente e de também de outros partidos e grupos afinados com suas propostas. Legislar por decreto não é algo novo, aliás, o velho discurso de que os movimentos sociais “são os legítimos representantes dos interesses do povo” fazem parte da cartilha bolchevique tão apreciada em nossos “democráticos” vizinhos latino-americanos, como a Venezuela e a Bolívia.

Que nomes de nossa política o lápis azul de Dom Pedro II riscaria hoje? Restaria alguém? A retidão do imperador brasileiro sirva de exemplo a nós cidadãos. D. Pedro, embora caluniado como “absolutista”, era tão democrático que permitiu que falassem abertamente contra ele e que contestassem publicamente suas decisões, a ponto de se chegar à derrubada da monarquia. Ofereceram-lhe a possibilidade de matar os revoltosos, mas ele se recusou e resignou-se para não derramar sangue brasileiro. Hoje o que se diz democrático, age de forma absoluta e o que se pensava no passado, ser absoluto, agia democraticamente. A dialética da História nos ensina a distinguir bem as coisas.

Luiz Raphael Tonon, professor de História e Filosofia, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas.

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, 18/07/2014, Página A2 – Opinião.

Imagem: Pedro II aos 49 anos de idade, 1875, de Delfim da Câmara (scan de Museu Histórico Nacional, Coleção Museus Brasileiros, edição Banco Safra). Imagem em Domínio Público disponível neste link.

Damos a vida, mas não a honra!

Teologia | 13/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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Hamilton-burr-duel

Em época de eleições os discursos prontos e as opiniões politicamente corretas reinam absolutas e não admitem qualquer interferência democrática de pensamento que ouse elaborar teses de forma diversa da sua.

Falas bem treinadas, argumentos de impacto, discursos que trazem em seu bojo conceitos pseudo ético-morais e toda a parafernália própria desta época em que vivemos a cada quatro anos nos cercam diariamente. E depois disso, o que resta? Pouquíssimos cidadãos monitoram seus candidatos e observam se seus interesses estão ou não sendo atendidos pelas propostas dos candidatos a cargos públicos. Fala-se muito de política, mas pouca gente se interessa de fato em conhecer o que fazem seus candidatos nos quatro anos em que não aparecerão tanto assim. Esse quadro todos conhecemos porque sempre se repete, mas há algo de interessante nisso. Cada candidato busca um nicho eleitoral e para conquistá-lo, não é raro que abrace causas politicamente corretas (mas que não necessariamente correspondem ao que de fato pensam), transitando entre a defesa dos animais, a “causa gay”, discursos religiosos, causa operária, direitos da mulher… Há uma infinidade de opções que visam obter ou quase negociar um voto que garantirá o emprego do candidato em questão pelos próximos quatro anos, período em que as coisas podem mudar muito e não raro, os que faziam campanha ontem defendendo a vida humana, poderão amanhã votar a favor de uma nova legislação sobre o aborto e mesmo que lhe cobrem a postura anterior e exibam provas materiais de que ele votou contra aquilo para que foi eleito, ainda assim não será estranho vê-lo negando solenemente que jamais fizeram isso, mesmo diante de provas categóricas.

Mas este não é um problema ético exclusivo da política, mas sim algo latente na própria sociedade brasileira de um modo muito mais abrangente e entranhado. Trata-se de uma dificuldade em firmar-se em opiniões claras e objetivas e lutar por elas.

Heródoto, conhecido sábio grego, escreveu em sua obra História uma passagem singular que tratava das relações entre persas e espartanos. Num dado momento dos vários conflitos entre espartanos e persas, os soldados de Esparta acabaram matando um arauto persa e rompendo uma regra elementar em tempos de guerra: jamais ferir ou matar os mensageiros inimigos, pois eles é que poderiam portar notícias capitais para o fim ou desenvolvimento da guerra. Por conta desse incidente, os persas exigiram uma reparação à altura do dano causado. Compadecidos pela situação embaraçosa em que sua pátria se encontrava, dois nobres espartanos se apresentaram e se ofereceram para resgatar o crime dando suas vidas. Chamavam-se Espértias e Bulis. A oferta foi aceita pelo governo espartano e os valentes cidadãos se dirigiram à costa da Ásia e se apresentaram a Hidarnes, governador persa. Frente tamanha coragem e valor, o governador admirou-se por encontrar homens tão valorosos e lhes propôs um “jeitinho” de não morrerem, ficarem amigos do soberano e ainda serem premiados na corte com o governo de uma província, sendo incorporados à própria cultura persa. De início, o “jeitinho” não parecia ser uma má saída a nossos corajosos espartanos, porém, durante as negociações os dois espartanos deveriam praticar um ritual de prostração diante do soberano persa e julgaram isso extremamente humilhante e terminantemente decidiram não cumpri-lo respondendo: “Viemos aqui, para dar a nossa vida; não a nossa honra! Temos um costume, uma lei, e esta nos impede de adorar um homem”. E ainda prosseguiram justificando aos persas: “Sugeris que assim procedamos… Porque sabeis ser escravos, mas nunca experimentastes a liberdade, ignorais, assim, se ela é doce ou não. Se já a tivésseis conhecido, estimular-nos-íeis a lutar por ela, não somente com lanças, mas até com machados” (Cf. História. L.VII-135,36).

O emblemático encontro entre o líder persa e os valorosos gregos tem muito a nos dizer ainda hoje, pois nos revela a grandeza de uma sociedade em que os cidadãos invocam sua dignidade de homens que vivem sob a égide da lei e que pautam suas relações por esta mesma lei, diferindo-se fundamentalmente de outros povos, como os próprios persas, sujeitos aos sátrapas, servindo-os como escravos e adoradores, abrindo mão da própria liberdade em troca de uma submissão que em nada lhes beneficiava. Os gregos não se submetiam cegamente ou adoravam a um homem, mas relacionavam-se com eles a partir da lei, reconhecendo direitos e deveres inalienáveis. Só se pode afirmar que existe civilização se houver uma consciência da lei expressa racionalmente e traduzida em atos concretos.

No século V o Império Romano ruiu sob pressão das invasões bárbaras e a civilização reformulou-se graças à ação profícua da Igreja. Essa ação da Igreja teve nos mosteiros, em especial os beneditinos, lugares privilegiados de reconstrução social e não seria absurdo dizer que essas mosteiros gestaram a nova civilização ocidental.

Com a avassaladora invasão bárbara muitos vestígios da decadente civilização romana foram redimidos pela sábia ação dos discípulos de São Bento que mesclaram o que havia de bom na civilização romana, com o que havia de bom no modo de vida bárbaro, plasmando uma nova civilização revitalizada pelos valores do Evangelho. Na Alta Idade Média nem tudo eram flores, mas a consciência de se viver de acordo com a lei que está dentro de cada homem (lei natural) e a lei que é elaborada visando o bem comum fora de nós, fez com que a luz da civilização voltasse a brilhar.

Em nossa realidade atual somos confrontados a todo tempo com o relativismo, a falta de clareza intelectual, a desonestidade dos manipuladores, a inocência dos idiotas úteis, a covardia dos bons, a audácia dos maus, o relativismo moral e tantos outros males que de forma inequívoca comprovam que a noção verdadeira de “lei” vai se apagando. Não obstante, isso não se constitui num motivo para desânimo ou desespero, mas para uma santa ousadia, como a dos beneditinos da Alta Idade Média que não consideravam os bárbaros como “incivilizados”, mas apenas como “ainda não civilizados”, tanto que apostaram naqueles que os romanos desprezavam e o fruto foi a organização de uma sociedade imperfeita, sim, mas coesa em sua fé, valores e ações. Como tudo, essa sociedade teve seu desenvolvimento, ápice e declínio, e hoje nos serve como exemplo inspirador para cultivar a esperança frente à neo-bárbarie em que vivemos. A História, aliás, serve para isso: olhamos para o passado a fim de compreender o presente e alterar o futuro evitando os mesmos erros. Nem sempre nossa visão é lúcida o suficiente para evitar o mal, porém, vale o princípio de São Bernardo de Claraval: “Esforçar-se para ser perfeito já é um sinal de presença da perfeição em si”. Jamais conseguiremos atingir perfeição social, cultural, espiritual ou de qualquer natureza que seja nesta vida e neste mundo, porém, isso não nos exime de buscá-la incessantemente.

Luiz Raphael Tonon é professor de História e Filosofia e gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphael.tonon@ife.org.br).