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Pensar o Direito (Parte II de VI): “Direito e Ordem Natural”

Direito | 09/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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II – DIREITO E ORDEM NATURAL

A realidade histórica aponta que não há sociedade sem direito, nem direito sem sociedade. A existência de normas jurídicas, mais do que fundada numa obra da consciente vontade dos homens, resulta de uma necessidade natural: a vida em comunidade gera naturalmente uma ordem social, fato que pode ser observado mesmo nas sociedades de malfeitores. Não há sociedade humana sem uma ordem.

Como a política, a realidade e a disciplina que trata dos problemas do poder, a existência de normas jurídicas não foi fruto de um contrato social, mas decorre da natureza social do homem. E ele, como ser racional e transcendente, precisa de uma ordem, porém, não de uma ordem instintiva, como numa colmeia ou numa colônia de formigas, mas de uma ordem justa, aspiração esta inscrita no coração do homem e atestada por expoentes diversos como São Paulo e Rousseau.

A busca de uma ordem justa, que se dá por meio das leis, é fruto de uma construção humana voluntária no seio da interação social. Mas essa tarefa não é imune ao erro e, logo, o direito pode até tornar-se injusto, principalmente hoje, em que a noção de direito está, a nosso ver, na prática, concretizada pela ideia, cada vez mais cativante, de que a singela declaração de uma norma pelo poder estatal bastaria para a solução de um caso específico, o que, às vezes, pode não atender os ditames de justiça ali exigidos.

A ordem social, da qual o direito faz parte, ergue-se, também, sobre os alicerces de uma ordem natural, baseada na constante e perpétua vontade de justiça existente na natureza humana. Basta visitar a entrada de um fórum durante o período de sessão de júri de algum homicida mais cruel que a média: é só o que se lê nas faixas e cartazes. De todos os tipos e com todos os erros de português. Mas com o mesmo sentimento.

Aristóteles já observou que há um direito justo por natureza, de valor universal e imutável. É justo como o fogo “que queima do mesmo modo na Grécia e na Pérsia”. Assim como nas leis da física, onde a vontade do homem é irrelevante (se eu tentar voar, vou cair pela ação da lei da gravidade), também tomam parte, na ordem natural do universo, alguns princípios imutáveis de ordem social e jurídica.

O respeito pela vida, pela integridade física e moral das pessoas, pela liberdade e pela propriedade, o direito à legítima defesa e à restituição do estado anterior no caso de dano, enfim, estes e outros que não precisariam de um código escrito para ter vigência.

É bem verdade que nem sempre foram reconhecidos ou respeitados por muitos povos durante a história da humanidade. Mesmo Roma, no auge de seu esplendor imperial e de sua riqueza jurídica, mantinha a instituição da escravidão regulada por leis, como se fosse algo trivial. Mas a trivialidade, verdadeira transgressão à ordem natural, cobrou seu preço: quando ela cessou e a economia descambou, foi o começo do fim.

No século XX, não foi diferente. Um regime que se baseava no purismo de sua raça e que, por isso, matava os “impuros” indiscriminadamente, só podia terminar no mal absoluto que Hannah Arendt bem descreveu e, ao cabo, na própria ruína.

O outro regime, que almejava virar a mesa da natureza intrínseca das relações econômicas, da natureza imperfeita do homem e da própria dinâmica natural das relações em sociedade, constituindo-se num projeto insano de reengenharia social, seguiu o mesmo fim. Não adianta: toda sociedade que insiste em desrespeitar àquela ordem natural não resta imune à sua queda.

E, à medida que a história ensina os acertos e desacertos nesse assunto, o direito vai incorporando novos princípios ao patrimônio jurídico da humanidade e demonstrando a vitalidade e a perenidade de sua ordem natural. Como, de resto, nas leis físicas: até que Copérnico apresentasse o sistema heliocêntrico, passaram-se séculos e mais séculos. Mas, nem por isso, a astronomia caiu em descrédito depois.

Hoje, divulga-se a ideia de direito como sinônimo exclusivo de segurança jurídica. A segurança jurídica é como um guarda-chuva: protege, mas obriga. Abriga, mas é um incômodo. No limite, o mundo dos chapéus-de-chuva é um universo cinzento de pessoas sem rosto. Abrigadas, seguras, mas, como a sociedade da qual fazem parte, desprovidas de vitalidade e de personalidade.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximos artigos da série “Pensar o Direito”:

Parte III: “A crise do Direito”

Parte IV: “Resgate da Essência do Direito”

Parte V : “Direito e Filosofia: Cara e Coroa”

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”

*Já publicados:

Parte I: “Pensando o Direito”  – para ler clique AQUI

Pensar o Direito (Parte I de VI): “Pensando o Direito”

Direito | 02/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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I – PENSANDO O DIREITO

Evito falar diretamente sobre leis. Depois de passar um bom período do dia debruçado sobre processos e códigos, o que menos quero, depois da jornada de trabalho, é ficar debatendo sobre a lei tal ou a lei qual. Parece que estou levando lição para casa.

Já fiz o suficiente nesta vida e, mesmo quando não tinha, acabava por fazer tarefa da mesma maneira: lá no Porto Seguro, os professores tinham uma irresistível atração “pedagógica” por prova surpresa ou chamada oral…

Contudo, não me furto a pensar o direito, que não se confunde com a lei, que se resume a seu instrumento. Pensamento, dizia o poeta inglês, não paga imposto (Noite de Reis, I-3). Se ele conhecesse a voracidade fiscal do nosso governo ou mesmo meu filho, para quem pensar é muito cansativo, talvez refizesse a afirmação: “pensamento, se for contra a coroa, pode ser confiscado” ou “como é bom não pensar em nada e, depois, descansar”.

E, quando resolvo pensar a fundo a situação atual do direito, tenho a vontade de imitar meu filho quando o assunto envolve, por exemplo, direito penal, essa área tão importante no cotidiano das pessoas. Tomemos dois exemplos.

A Lei Maria da Penha, mais uma dessas legislações promulgadas no calor dos fatos, ainda que tenha seu reto propósito, muitas vezes, na prática, é um verdadeiro desafio à inteligência e ao bom senso.

A mulher agredida (em regra, covarde e repugnantemente) vai até o plantão do fórum e consegue uma medida de afastamento do agressor que convive com ela sob o mesmo teto. Algumas horas depois, a mesma vítima, na porta de sua residência, implora ao oficial de justiça que não dê cumprimento à medida, porque o agressor é o homem de sua vida e que seu amor por ele é incondicional.

Quando ouvi isso pela primeira (e última) vez, disse à distinta senhora que seu amor pelo agressor não era incondicionado, mas bem epidérmico: começava com beijos e abraços, passava pelos tapas e terminava com hematomas.

E, neste caso, como em outros iguais, minha ignorância era incapaz de entender, do ponto de vista humano (o jurídico já tinha comido poeira), esse fenômeno antropológico. Não é o foco destas linhas, mas a resposta passa pelo perdão. E alguém já disse que, se não existisse o perdão, nossa vida seria um inferno…

De qualquer forma, ao que parece e apesar dos constantes arrependimentos que os processos registram, nossa experiência foi feliz, tanto que a estamos importando para os países do primeiro mundo (tenho lá minhas duvidas sobre o acerto desta expressão nos dias atuais, ainda mais porque constato que a profecia de um amigo piadista toma, cada vez mais, a forma de realidade: se o Brasil não se tornar primeiro mundo, o primeiro mundo vai virar Brasil…).

A Lei de Tóxicos transformou-se num diploma da lei penal benevolente. Já não via muito sentido em dar sermão em usuário de classe média-alta, porque se o sujeito não ouvia nem o pai dele, quanto mais alguém que fizesse as vezes dele. Depois, a lei incrementou a figura de “doente” do usuário. Mas o vício não se reduz a uma questão médica.

Seus componentes fisiológicos reais são, na verdade, predisponentes, mas não condicionantes, ao contrário da opinião difundida por médicos e viciados e, logo, tratar uma questão essencialmente não médica como uma patologia piora a visão das coisas, ao invés de melhorá-la.

Agora, o “pequeno” traficante não precisa ir mais para a prisão, como se essa figura existisse numa realidade criminosa de total simbiose entre produtor, distribuidor, traficante, maus policiais e usuário, cada qual, de sua maneira e na escala própria, trazendo danos sociais e familiares, às vezes, irreversíveis.

Na essência, ambas as leis têm suas bases alienadas das realidades éticas do homem e da sociedade. As objeções aqui levantadas podem ser resumidas numa única questão: não haveria um ponto de apoio capaz de atribuir ao direito um novo relevo, baseado na adoção de um lugar de destaque para a reflexão da justiça e de seu fundamento axiológico? Será que a academia não poderia ensinar em pensar “a” lei e não “na” lei?

Deixo a pergunta para a reflexão do leitor, que já tem as informações essenciais para se viver neste mundo. Mas não basta tê-las. É necessário levantar a cabeça para pensar, para ver além delas, inclusive no direito, essa realidade tão cara e sensível para a sociedade. Do contrário, teremos vivido a vida “não examinada” da pesada sentença de Sócrates. Menos meu filho, que ainda tem uma vida inteira pela frente para mudar.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximos artigos da série “Pensar o Direito”:

Parte II: “Direito e Ordem Natural”

Parte III: “A crise do Direito”

Parte IV: “Resgate da Essência do Direito”

Parte V : “Direito e Filosofia: Cara e Coroa”

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”