Pensar o Direito (Parte II de VI): “Direito e Ordem Natural”


II – DIREITO E ORDEM NATURAL

A realidade histórica aponta que não há sociedade sem direito, nem direito sem sociedade. A existência de normas jurídicas, mais do que fundada numa obra da consciente vontade dos homens, resulta de uma necessidade natural: a vida em comunidade gera naturalmente uma ordem social, fato que pode ser observado mesmo nas sociedades de malfeitores. Não há sociedade humana sem uma ordem.

Como a política, a realidade e a disciplina que trata dos problemas do poder, a existência de normas jurídicas não foi fruto de um contrato social, mas decorre da natureza social do homem. E ele, como ser racional e transcendente, precisa de uma ordem, porém, não de uma ordem instintiva, como numa colmeia ou numa colônia de formigas, mas de uma ordem justa, aspiração esta inscrita no coração do homem e atestada por expoentes diversos como São Paulo e Rousseau.

A busca de uma ordem justa, que se dá por meio das leis, é fruto de uma construção humana voluntária no seio da interação social. Mas essa tarefa não é imune ao erro e, logo, o direito pode até tornar-se injusto, principalmente hoje, em que a noção de direito está, a nosso ver, na prática, concretizada pela ideia, cada vez mais cativante, de que a singela declaração de uma norma pelo poder estatal bastaria para a solução de um caso específico, o que, às vezes, pode não atender os ditames de justiça ali exigidos.

A ordem social, da qual o direito faz parte, ergue-se, também, sobre os alicerces de uma ordem natural, baseada na constante e perpétua vontade de justiça existente na natureza humana. Basta visitar a entrada de um fórum durante o período de sessão de júri de algum homicida mais cruel que a média: é só o que se lê nas faixas e cartazes. De todos os tipos e com todos os erros de português. Mas com o mesmo sentimento.

Aristóteles já observou que há um direito justo por natureza, de valor universal e imutável. É justo como o fogo “que queima do mesmo modo na Grécia e na Pérsia”. Assim como nas leis da física, onde a vontade do homem é irrelevante (se eu tentar voar, vou cair pela ação da lei da gravidade), também tomam parte, na ordem natural do universo, alguns princípios imutáveis de ordem social e jurídica.

O respeito pela vida, pela integridade física e moral das pessoas, pela liberdade e pela propriedade, o direito à legítima defesa e à restituição do estado anterior no caso de dano, enfim, estes e outros que não precisariam de um código escrito para ter vigência.

É bem verdade que nem sempre foram reconhecidos ou respeitados por muitos povos durante a história da humanidade. Mesmo Roma, no auge de seu esplendor imperial e de sua riqueza jurídica, mantinha a instituição da escravidão regulada por leis, como se fosse algo trivial. Mas a trivialidade, verdadeira transgressão à ordem natural, cobrou seu preço: quando ela cessou e a economia descambou, foi o começo do fim.

No século XX, não foi diferente. Um regime que se baseava no purismo de sua raça e que, por isso, matava os “impuros” indiscriminadamente, só podia terminar no mal absoluto que Hannah Arendt bem descreveu e, ao cabo, na própria ruína.

O outro regime, que almejava virar a mesa da natureza intrínseca das relações econômicas, da natureza imperfeita do homem e da própria dinâmica natural das relações em sociedade, constituindo-se num projeto insano de reengenharia social, seguiu o mesmo fim. Não adianta: toda sociedade que insiste em desrespeitar àquela ordem natural não resta imune à sua queda.

E, à medida que a história ensina os acertos e desacertos nesse assunto, o direito vai incorporando novos princípios ao patrimônio jurídico da humanidade e demonstrando a vitalidade e a perenidade de sua ordem natural. Como, de resto, nas leis físicas: até que Copérnico apresentasse o sistema heliocêntrico, passaram-se séculos e mais séculos. Mas, nem por isso, a astronomia caiu em descrédito depois.

Hoje, divulga-se a ideia de direito como sinônimo exclusivo de segurança jurídica. A segurança jurídica é como um guarda-chuva: protege, mas obriga. Abriga, mas é um incômodo. No limite, o mundo dos chapéus-de-chuva é um universo cinzento de pessoas sem rosto. Abrigadas, seguras, mas, como a sociedade da qual fazem parte, desprovidas de vitalidade e de personalidade.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximos artigos da série “Pensar o Direito”:

Parte III: “A crise do Direito”

Parte IV: “Resgate da Essência do Direito”

Parte V : “Direito e Filosofia: Cara e Coroa”

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”

*Já publicados:

Parte I: “Pensando o Direito”  – para ler clique AQUI