Populismo penal?

Sem Categoria | 12/12/2014 | |

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De volta à rotina, o Congresso resolveu retomar a pauta dos projetos de lei e, nessa bacia de salvação das almas, está a reforma do nosso idoso código penal, já cheio de bengalas e andadores decorrentes da inúmeras alterações pontuais que foram sendo feitas nos últimos trinta anos. Modificações localizadas que, em regra, foram sempre levadas a cabo, em “regime de urgência”, depois que algum crime grave deixou as páginas policiais para virar manchete dos jornais. Não dá para esperar um direito penal sério e eficaz quando o legislador só resolve agir sob os influxos das emoções sociais.

Qualquer pauta para a reforma de um importante código como o de direito penal deve ser fruto de uma política criminal que indique um propósito definido aos atores sociais, algo que passa, necessariamente, pelas ideias de mundividência societária das questões penais, justiça distributiva e bem comum. O direito penal não pode ser vítima de periódicos surtos de clamor social, ainda que tais surtos sejam muito importantes para, muitas vezes, um parlamentar como o nosso que, em sua maioria, parece estar em constante estado de sonambulia legiferante, acordar para a consciência do problema.

Então, nota-se que uma política criminal decente não se resume ao binômio rigorismo versus laxismo, entendido restritamente pela maior ou menor severidade no apenamento de certas condutas delinquentes, incluindo-se, nesse debate, ainda, a referência a posturas descriminalizantes de certos fatos sociais. Vai mais além e, ao envolver aquelas ideias, ao mesmo tempo, mostra-nos outro dado bem concreto: o direito penal não pode ser, por via de uma politica criminal, a primeira resposta para a solução de inúmeros problemas sociais.

O direito penal, como diz a tradição jurídica, é sempre a “última razão” ou o “último recurso” (do latim, ultima ratio): deve atuar somente quando as demais esferas jurídicas anteriores não conseguiram proteger os bens da vida mais sensíveis para um grupo social (vida, liberdade, patrimônio, etc…). Quando o direito penal é alçado à condição de “primeira razão”, a política criminal transforma-se, bem ao gosto dos políticos caçadores de votos dos inocentes úteis, numa espécie de “populismo penal”, por intermédio do qual se difunde a falsa crença de que a pena criminal é suficiente para se alcançar eficazmente os mesmos objetivos sociais que demandariam anos e anos de implementação de políticas públicas sociais e econômicas.

Logo, essa natural limitação do direito penal obriga o legislador ao protagonismo de outros discursos mais, digamos, preventivos, porque o Estado deve atuar nas áreas em que sua ausência faz-se atualmente presente, onde, justamente, são as mais sensíveis ao problema da criminalidade, a saber, educação, saúde, segurança e emprego. Mas, para nossos sonâmbulos legisladores, é mais cômodo adotar os discursos repressivos que, no fundo, nada mais fazem que chancelar sua incompetência legislativa: “ROTA na rua!”, “Bandido bom é bandido morto!”, “Redução da maioridade penal já!”, entre outros.

A proposta de uma política criminal, ciente dos limites do direito penal, não só é uma pauta social útil, porém, necessária. Afinal, se Rousseau tivesse razão quanto à natureza do homem, as leis penais nunca teriam feito falta. A aceitação racional da realidade das coisas sociais e de seus problemas exige uma meditação, por parte de nosso legislador, que abarque a totalidade do mundo e a existência humana. Crime e castigo, sim. Mas não só crime e castigo. Porque, onde só há preocupação com crime e castigo, o império do direito penal deixa o horizonte do uso e ingressa no do abuso.Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em filosofia e história da educação, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/SP, da Academia Campinense de Letras e coordenador do IFE Campinas (fernandes.agf@hotmail.com).