Mais Platão e menos Marx

Opinião Pública | 07/06/2017 | | IFE CAMPINAS

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Vivemos em clima de correria. Da casa para o trabalho, do trabalho para a casa. Nem sequer paramos para olhar à nossa volta. Um dia desses, um amigo de tênis reclamava que não tinha um tempo diário para conversar com a esposa e os filhos.

Como ele é médico, sugeri que passasse a almoçar com os filhos um ou dois dias por semana e fazer um hobby junto com a esposa. Depois de uns meses, o sujeito era outro. “Vi que minha agenda era só fazer isso e fazer aquilo. Não tinha tempo entre ‘um game’ e outro, justamente quando paramos para refletir sobre nosso jogo’”.

Quando nos dedicamos à reflexão, alcançamos, aos poucos, os alicerces da realidade e, mesmo que se chegue à algumas conclusões sobre nós e o mundo, sempre será possível se aprofundar mais, nem que seja para conhecermos melhor a porcaria da qual somos feitos. Um saber fechado e a reflexão excluem-se.

Muitos pensadores finalmente compreenderam o valor da reflexão, quando passaram a contemplar a ordem do universo, o sentido das coisas ou o fim da existência. O homem atual vê boa parte de suas perguntas científicas resolvidas, mas lhe faltam ainda as respostas para seus problemas de fundo ou mesmo para os contratempos mais prosaicos, como no relato de nosso médico, inquieto em não conseguir conciliar a família com os afazeres do consultório e do hospital.

Quem não vive uma vida examinada, termina sua existência encerrado pelo preconceito, pelas opiniões voláteis e pelos modismos de época. É o que mais se vê nas posturas fragmentárias dos indivíduos nas redes sociais. O sujeito copia e cola um trecho de um desses gurus executivos ou desses filósofos de boutique e sai por aí repetindo o que leu como se fosse um papagaio de pirata. Não sabe discernir se aquele saber lhe convém em suas circunstâncias ou não.

Quem não pensa por conta própria, não é livre. Conhecer a fundo nossa cabeça é a melhor maneira de evitar outra igual. É um tipo de remédio – para a cura de muitos de nossos males existenciais – que não se vende na drogaria da esquina, não se retira num posto de saúde ou se requisita na farmácia de alto custo do governo. E tem uma posologia simples: a posologia da busca do conhecimento. De si mesmo e do mundo.

É a mesma posologia de Tales, ludibriado em Teeteto, um famoso diálogo platônico. Desde a antiga grecidade, o oposto da reflexão era o negotium, o que, hoje, corresponderia ao mundo business. Poderíamos até inverter a frase de Marx. O papel da filosofia não é mais o de transformar o mundo, mas de refleti-lo, porque o mundo em que vivemos prefere a realidade dos negotia: fama, dinheiro, poder, glamour e celebridade.

Uma postura reflexiva vai para além do mundo dos negotia, o qual, contemporaneamente, apresenta-se com uma pretensão de totalidade até então desconhecida no Ocidente. A risada da criada trácia sobre a queda de Tales no poço, como narrada por Platão no mesmo diálogo, soa como uma resposta ainda mais alta e contundente do espírito de galhofa atual para com essa postura reflexiva.

O mundo dos negotia enxerga a realidade posta como uma mera matéria-prima da ação humana. E só. Se o mundo passa a ser visto somente de um prisma instrumentalizado e instrumentalizante, não pode haver mais espaço para uma reflexão. Mas não é o fim da linha. A liberdade humana também decai, porque tudo vira funcionalização, utilitarismo e dependência de uma legitimação sempre a partir de uma tarefa socialmente estabelecida.

Longe de negar o valor do mundo dos negotia, a reflexão, quando excede esse mundo, acaba por afirmá-lo. Uma sã reflexão funda-se na crença de que a riqueza autêntica do ser humano não está na estrita satisfação de suas necessidades materiais, mas em sermos capazes de ver a totalidade da realidade que nos circunda. Mesmo que essa realidade se resuma a um problema de agenda familiar. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 07/06/2017, Página A-2, Opinião.