Mais do mesmo

Sem Categoria | 29/12/2014 | |

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Não adianta ocupar esse espaço semanal para fomentar o debate sobre vários assuntos com argumentos de razões públicas (Correio, 15.10) que, invariavelmente, os representantes da patrulha laicista entopem minha caixa de mensagens para dizer, de uma maneira ou de outra, que “preconceitos religiosos devem ser postos de lado em prol de um debate mais produtivo ou racional”. Ou, ainda, resolvem deslocar o foco da argumentação para outra que sequer foi tangenciada: como se diz no tênis, devemos tirar nosso adversário na quadra de “sua zona de conforto”. Sem dúvida, mas não sem endurecer o jogo antes.

Então, vamos devolver três bolas tortas com bastante aceleração. Em primeiro lugar, já se discute, em ambientes acadêmicos europeus, a adoção de uma postura “pós-secular” nos assuntos de ordem pública, superando-se essa ultrapassada visão da realidade que separa, no ringue do debate social, os argumentos religiosos num canto e os argumentos racionais no outro. Essa nova concepção leva em conta a perene vitalidade do fenômeno religioso ao mesmo tempo que sublinha a importância de se traduzir os conteúdos éticos das tradições religiosas para incorporá-los a uma perspectiva filosófica que possa ser manejada no âmbito público da razão.

Não é só. Essa mesma postura “pós-secular” parte do pressuposto que interpenetração entre a nascente cristandade e a metafísica grega fomentou uma “apropriação” de conteúdos genuinamente cristãos pela filosofia. Esse trabalho de “apropriação” transformou o sentido originariamente religioso, mas não o deflacionou ou consumiu de modo que o esvaziasse por completo.

Em segundo lugar, ao se interromper uma gravidez indesejada, a mulher não está exercendo um direito próprio, mas violando o direito à vida de outro ser “bem vivo” e com um código genético diferente e irrepetível. A bandeira do suposto direito ao próprio corpo já foi arriada e somente se justificava nos limitados conhecimentos científicos do início do século passado e, hoje, não resiste às evidências científicas contemporâneas.

Assim, compete à mulher o dever de respeitar essa nova vida e, para isso, ao proclamar o direito à vida de toda pessoa indistintamente, nossa Lei Maior obriga o Estado a assegurá-lo em todos os sentidos. Primordialmente, por via da promoção de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência, inclusive com incentivo ao planejamento familiar e ao apoio alimentar à gestante, como previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, ou pondo a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, como prevê o Código Civil. Assim, evita-se que a mulher seja uma vítima fácil dos aborteiros clandestinos de plantão.

E, subsidiariamente, compete ao Estado a tutela penal do bem jurídico envolvido, a vida do nascituro: se a mulher cometeu um aborto, fora das hipóteses de estupro e de salvação da própria vida, as quais, diga-se de passagem, são escusas absolutórias (reconhece-se o crime, mas se afasta a pena, sabiamente, por razão humanitária), ela deve responder pelo delito, sempre temperado por todas as circunstâncias atenuantes e causas de diminuição de pena que envolvem a mulher nesta situação.

Em terceiro lugar, quando se propõe “acolher” a gestante pela facilitação do aborto sob demanda na rede pública de saúde, no fundo, está se escondendo a ineficiência administrativa na gestão da saúde. Se o Estado não é capaz de garantir acesso a várias outras espécies de cirurgias muito mais importantes em tempo razoável, o que justificaria tal medida, salvo o caráter meramente político de tal opção, tomado a partir de diretivas de órgãos internacionais, a fim de se aumentar o poder dos condicionamentos dos quais, nós, os cidadãos, já somos vítimas? Nessa ótica, o aborto não é uma questão de saúde pública, mas de incompetência da saúde pública.

Devolvidas todas as bolas, termino dizendo ser sempre bom polemizarmos com pessoas bem intencionadas e cordatas. Mesmo que um não consiga convencer o outro sobre o acerto de sua posição, o exercício serve para refinarmos nossas próprias opiniões e, também, tirarmos novas conclusões sobre assuntos já estudados. E, por ora, só me resta concluir que a posição discordante continua trilhando pelo mais do mesmo. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em filosofia e história da educação, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP, da ADFAS e da UJUCASP, coordenador do IFE Campinas e titular da cadeira 30 da Academia Campinense de Letras (agfernandes@tjsp.jus.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 29 de outubro de 2014, Página A2 – Opinião.