Dias da Marmota

Opinião Pública | 02/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Passei várias semanas, incluindo um dia dos pais, entre oxímetros, ventiladores pulmonares, luvas, máscaras e sons. Muitos sons: sons do batimento cardíaco, do respiradouro do ventilador e do pinga-pinga da sonda de alimentação. Mas o som que mais me chocou foi o som silencioso das vezes em que minha filha recém-nascida, entubada e sedada, punha-se a chorar.

Meus tímpanos não suportavam tanta ausência de vibração no vazio e meu coração clamava por voz que propagasse uma mínima notação: nem que fosse um simples “buá!”. Foram semanas, dias, horas, minutos e segundos que repetiam-se. Cada dia era o “dia da marmota”, na feliz síntese de minha esposa. Preso no “feitiço do tempo”, você acaba por reavaliar sua vida e suas prioridades.

Minha filha, nascida quinze dias antes, foi internada quando ainda lhe restavam algumas horas de vida, por causa de uma estúpida bronquiolite, uma patologia silenciosa e arrasadora para recém-nascidos. No pronto socorro, depois do atendimento imediato de quase duas horas, feito por cinco enfermeiros e três médicos, além do puxão de orelha do chefe da turma de branco, mal sabia eu que estava prestes a assistir a algo inaudito: uma nova gestação fora do útero. Uma gestação entre toda aquela parafernália eletrônica e tantas outras crianças em estado de saúde igual ou pior que o de seu filho.

Você olha para tudo isso e pergunta-se: “Por quê?” até o momento em que não encontra respostas racionais para aquela situação. Então, passa a se questionar: “Para quê?”. Sem dúvida, precisamos de menos Descartes e de mais Aristóteles. Mas não sem antes passar por uns arroubos de aforismos nietzschenianos, apimentados ou não de niilismo.

Bom, racionalidades à parte, na órbita dos afetos, ficamos apavorados porque nunca sentimos tanta compaixão por um ser tão frágil. E, como diz a irmã mais velha desse ser, “que nem sabe que ela é ela”. Nada como a profundidade da sabedoria infantil, sempre acompanhada da costumeira “pontualidade fundamentada”.

Se a sabedoria infantil é profunda, mais profunda é a sensação de facada no peito no retorno ao lar, já que, por mais Aquiles que exale de seu eu interior, você não consegue ficar diuturnamente numa UTI: é uma dose altamente concentrada de triste realidade pueril. Então, uma vez em casa, você abre a porta do quarto daquele frágil ser, contempla o vazio e quer voltar para a UTI. Você fica dias sem abrir aquela porta, sem saber se, em algum dia, tornará novamente a fazê-lo. Ou, quem sabe, já o fez pela última vez, sem se dar conta disso.

Foi o pensamento que me atacou, de súbito, quando entrei num dos “dias da marmota” na UTI e a enfermeira disse: “Pai, aguarde lá fora por favor! Temos uma intercorrência no leito D!”. Depois de alguns minutos, soube que havia uma criança a menos na UTI. Foram três paradas cardíacas antes do último suspiro.

Naquele dia, quando cheguei em casa, não consegui dormir. Passei a noite em vigília, diferentemente das demais, quando dormia de roupa e tênis, enquanto minha esposa dormia também de roupa e tênis. Lá na UTI. Tirei um firme propósito: minha filha precisava sentir que estava inteira por ela, ainda que, longe dela e de minha esposa, resolvesse deixar meus contidos olhos perolados para desabar num dilúvio diário de lágrimas.

Curioso notar que esse dique ameaçava realmente a romper enquanto passava as horas do dia, entre um mistério e outro do rosário, lendo ao lado do leito de minha filha, sedada até a alma, já que só uma razão do coração para se ler para alguém que não pode te ouvir.

Conforme os “dias da marmota” vão se sucedendo, você vai ganhando antiguidade na UTI e, de certa forma, quase se vê compelido a transmitir a experiência acumulada para os pais mais novos. De certa maneira, acaba por criar novos vínculos, baseados em alguma amizade e muita confidência: confidência de pais e mães de UTI. Na medida em que você assiste a alta dos outros bebês, passa a contemplar a alegria de seus pais, que se despediam de nós. Nesse momento, eu repetia comigo: “Minha vez vai chegar!”.

E minha vez chegou. Quais serão as sequelas desses “dias da marmota”? Socraticamente, só sei que nada sei. Corrijo: sei que chegará a vez dos outros pais da UTI. E, hoje, depois de atravessar noites, noites e mais noites sem minha filha em casa, sei também que a noite é justamente mais escura logo antes do amanhecer. Minha filha renasceu e, daqui por diante, serei cumprimentado, a cada novo amanhecer, pelos olhos de uma criança, por intermédio dos quais posso ver o reflexo do paraíso, depois desse tempo de provação na fé, formado por seu beijo e seu sorriso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 2/9/2015, Página A-2, Opinião.