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Lembrança de Bernanos (Gustavo Corção)

Literatura | 01/10/2015 | | IFE CAMPINAS

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Lembrança de Bernanos – Gustavo Corção

A Fernando Carneiro

O primeiro sentimento que me veio, quando Fernando Carneiro me comunicou por telefone a morte de Bernanos, foi uma falta enorme, instantânea, brusca, como se aquele homem que apenas encontrara meia dúzia de vezes, e que se achava perdido para mim, “somewhere in France”, estivesse ligado à minha vida com os vínculos de uma antiga amizade. E estava. Realmente, estava. Sem que eu mesmo o soubesse, Bernanos tinha deixado em mim a marca inapagável de um contato verdadeiramente humano. Um minuto antes da notícia, mal me lembrava de seu vulto, de sua voz, de suas bengalas, de sua cólera pronta e de sua prontíssima ternura. Agora, pondo o fone no gancho, eu sentia crescer em mim, por todos os lados, em torno, atrás, adiante, nas recordações e nas esperanças uma falta enorme.

Desenhava-se, com a nitidez das coisas duras que se partem, os contornos do buraco que acabara de me engolir um amigo. E eu via, ampliados e detalhados, o que deveriam ter sido os nossos poucos encontros – e o que não foram. A sensação crispada de uma frustração assaltava-me lembrando cada conversa nossa, cada gesto, cada tentativa de entendimento perfeito que se havia detido em nossos duros limites. Mesmo agora, poucos dias atrás, eu devia ter escrito uma carta – e não a escrevi. Devia ter enviado umas revistas em que nós o defendíamos e que certamente lhe dariam prazer – e não as enviei. Adiara a carta, protelara a remessa das revistas, calculando, como se costuma fazer entre vivos, que o tempo é ilimitado e a vida inextinguível.

A morte projeta uma luz rasante e crua que tem a esquisita propriedade de exaltar as minudências de um passado perdido, transformando a lembrança aparentemente mais clara e mais lisa numa paisagem lunar com suas montanhas e crateras. Que importância tem agora a carta que interrompi e que não enviarei hoje a um amigo distante que ainda pertence à orgulhosa aristocracia dos vivos? Nenhuma, evidentemente. Que importância tem o gesto de enfado com que hoje afasto a criança que me puxa pelas calças? Nenhuma, evidentemente. E o telefone que não toquei, e a mão que encolhi, e a visita que adiei? A vida é uma planície imensa mal varrida, cheia de quinquilharias inúteis: cacos de gestos, cacos de palavras, por aqui, por ali, dificultando os passos… quantas vezes temos vontade de proceder a uma sistemática eliminação de incômodos, e de por um pouco de ordem nesse chão cheio de escombros?

Chega então a morte, e de repente, no cemitério das lembranças truncadas, corre um frêmito de vida. E as lembranças aleijadas se levantam, e tudo na vida passada nos parece abortivo e irremediável. Quem poderia adivinhar que aquele desenho de criança, representando uma casinha no alto de um morro, com um sol ingenuamente dardejante por trás, seria contemplado com religioso temor, à luz da morte, por entre a névoa das lágrimas? A mãe do menino atropelado desculpa-se de ter posto fora os outros desenhos. O irmão do menino atropelado chora de ter comido na véspera o pedaço maior da sobremesa. E tudo isto, entre nós, os vivos, os orgulhosos vivos, que não sentiram o gosto dos abismos, parece ridículo, insensato, passageiro, porque entre nós parece estar definitivamente estabelecido que essas coisas miúdas são o lixo da vida.

O que no primeiro momento mais se chora no morto não é falta que se adivinha para amanhã ou depois: é a falta atroz que ele já faz no passado. É a decepção, é o sentimento agudo de uma frustração naquilo mesmo que mais solidamente nos parecia adjudicado. A falta que o morto irá fazer dia por dia, no futuro, essa, chegará a seu tempo envolta numa tristeza que, de certo modo, é boa e harmoniosa. Imaginamos facilmente encontros perfeitos, soluções perfeitas, se o morto estivesse ali. Ao contrário, a retrospecção, diante da morte, deixa-nos o gosto amargo dos encontros imperfeitos e das soluções imperfeitas. E o peso do nunca-mais nos oprime intoleravelmente.

Nós não precisamos corar da boa e humilde saudade de nossos mortos; nem precisamos pensar que a Fé e a Esperança nos proíbem as lágrimas da saudade. Mas o que não devemos permitir, de modo algum, é que se instale em nós esse primeiro dardo com que a notícia da morte nos fere.

Eu gostaria de dizer a quem tenha seus mortos, à mãe do menino atropelado, ao irmão que chora hoje pelo olho-grande de ontem, e aos outros, que têm seus mortos, que a tristeza de não ter dado o que devia ter sido dado tem uma solução perfeita.

O insulto que a morte nos causa não pode ser vencido pela Fé e pela Esperança, que são virtudes da peregrinação. A idéia de que o morto esteja no céu, e o consolo de esperar que lá o encontraremos, não basta entretanto para curar a ferida das faltas que ficaram para trás. Precisamos abraçar-nos à virtude que não passa, à Caridade, que é a única que vence a morte e que desconhece a separação entre o passado e o futuro. A solução perfeita desta tremenda sabatina da morte está na transferência das dívidas. Pague-se aos outros o que já não se pode pagar ao que morreu, e vem tudo a dar na mesma, e vem tudo se encontrar na mesma pirâmide de ofertas e donativos, o patrimônio da comunhão dos santos, de cuja distribuição Deus mesmo se encarrega. Valha-nos agora essa angústia passageira causada pelo invisível para que melhor sirvamos o visível, e assim o morto começa logo na eternidade o seu ofício de advogado dos vivos.

A falta que senti de Bernanos, brusca, instantânea, era dessa amarga espécie, feita de retrospecções. Não se tratava do buraco enorme, difícil de preencher. Não me lembrei de Bernanos escritor, de Bernanos grande, de Bernanos genial, senão mais tarde, no dia seguinte, lendo o jornal. Lembrei-me de Bernanos-Bernanos. No momento em que depus o fone no gancho, mal acabando de ouvir a voz perturbada de Carneiro, não me passou pela idéia escrever um artigo que começasse assim: “Calou-se uma grande voz…”. Não me ocorreu escrever artigo nenhum; e efetivamente não o escrevi; mas não me gabo disto, porque seria melhor ter escrito.

O que me surgiu pela frente, naquele instante, foi o decalque, o negativo absoluto da figura de Bernanos, viva, pessoal, única, para me cobrar as oportunidades perdidas. E andei longo tempo, sentindo do morto a saudade que não sentira do vivo, até conseguir alinhavar, para os outros, para o que desse e viesse, essa meia dúzia de páginas de recordações.

Foi numa tarde de domingo, há três ou quatro anos, que recebi pelo telefone o aviso — e até diria o apelo — do amigo Fernando Carneiro:

— Bernanos está aqui. Em casa de Murilo! Venha! Venha!

Larguei o jornal que estava lendo e expliquei à minha mulher a natureza e a procedência do recado, acrescentando que não me esperasse para o jantar. Desci a rua contente. Ia ver Bernanos.

Mas — levado pelo péssimo costume de discutir tudo comigo mesmo, e de analisar e esmiuçar as razões dos menores prazeres, arriscando-me a achar a razão perdendo o prazer, ou levado talvez pelo comodismo domingueiro que me censurava o abandono do jornal e da poltrona — pus-me logo a criticar esse desejo de ver Bernanos, essa fútil curiosidade, como se possa haver o que mereça ser visto num autor de livros. De fato, o que ele tinha de melhor estava-me ao alcance da mão, sem por a gravata e sem tomar o ônibus. Bastava tirar um volume da estante para ter Bernanos, a melhor parte de Bernanos. Bastava abrir Journal d’un Cure de Campagne ou Lettre aux Anglais, para receber, com segurança e conforto, as golfadas de gênio do escritor que ousou dizer o escândalo da verdade, e ousou sondar o escândalo da santidade.

Além disso, desde aquele tempo, embora não tanto como hoje, eu já tinha uma sadia aversão por essas reuniões de pessoas implacavelmente condenadas a só dizerem coisas interessantes. Gostava de visitar Murilo, aquele doente que a gente ia ver para sair confortado. Gostaria de conversar com Bernanos, se pudesse começar pela centésima vez. Mas a idéia daquele encontro arranjado e fugaz, que mal daria tempo para vencer as primeiras dificuldades do vocabulário, fazia crescer em mim o desejo de voltar atrás trocando Bernanos pelo livro e a caminhada pela poltrona.

Felizmente — digo-o hoje, depois de saber que Bernanos morreu — o meu discurso interior durou tanto quanto a caminhada e quando chegava à pessimista conclusão sobre o valor das conversas literárias, estava diante do portão da velha casa em que Murilo morava. E, fosse pela lei do quadrado da distância, fosse pela vitória da simplicidade sobre os retorcidos meandros de minha dialética, o fato é que entrei.

Anoitecia. O casarão, recuado da rua enfronhado entre as árvores de um velho jardim de outrora, parecia esconder-se dos indiscretos, como um fidalgo arruinado que disfarçasse a pobreza. O portão era pesado e rangia. Onde e quando empurrara eu assim, faz muito tempo, um portão pesado que rangia? Indecisamente, oscilando entre as calças curtas e o despontar do bigode, ora moço, ora menino, entrei pelo jardim a dentro, sem saber se era brinquedo ou chicote queimado ou encontro de namorada. Dois patos, graves e pachorrentos como duas tias velhas de muito antigamente, passaram falando qualquer coisa de mim — do menino travesso ou do moço galante — e desapareceram na sombra, continuando a conversa, cuáh-cuáh-cuáh …, num tom mexeriqueiro e confidencial.

Abriu-me a porta uma senhora idosa, alta e magra, que trazia um gato ao colo. Fez-me um sinal misterioso; exatamente o que deveria fazer se nós dois tivéssemos saído, naquele instante, duma estampa de livro de aventuras e crimes. Atravessei uma sala de estar espaçosa e mal iluminada, onde cinco ou seis pessoas de nacionalidades indecifráveis conversavam com cicios, como se conspirassem, entre a fumaça dos cigarros. Ao pé da escada um gato preto, que lambia um pires de leite, olhou-me com maldade e fugiu, pondo ao canto desse quadro, já sombrio, uma sinuosa pincelada negra.

Subi uma escada imensa que me deixou num corredor ainda mais escuro. No fundo, à direita, uma fresta de luz, uma porta, um retrato de Mozart: era o quarto de Murilo.

Nessa noite o quarto estava cheio. Perdi-me na confusão dos boas noites, uns em francês, outros em vernáculo, e foi só depois de me instalar numa cadeira ao canto, perto da porta, e depois de me aliviar da humilhante sensação de recém-chegado, que pude reparar em Bernanos.

Bernanos, no centro do quarto, sentado numa cadeira de braços, estava sendo torturado pelos quatro cavalos da amizade e da admiração. Parecia cansado e angustiado. Enquanto um senhor desconhecido, grego, rumáico ou tcheco, tentava em vão economizar Bernanos, Carneiro, do outro lado, sentado num tamborete baixo, procurava acender o misterioso pavio que fizesse explodir a mina da esperada e generosa indignação.

Bernanos pareceu-me uma montanha. Estava sendo explorado. Estava sendo escalado, percorrido, sondado por mineiros ávidos de novos filões. Ou então era um navio, um enorme e velho navio de muitas viagens, que tivesse encalhado ali em país exótico, com os porões abarrotados de tesouros…

Na rua choviscava. Bernanos, apoiado em suas bengalas, recusava-se a acompanhar Carneiro, queixando-se do cansaço, da angústia, da escada imensa que mal conseguira vencer com suas pernas entropiadas, e que descera depois, a força das bengalas, com o estrépito de um centauro doente. Carneiro bem sabia como ele estava doente, como sofria, e assim mesmo fizera-o falar diante daquelas pessoas. Que dissera ele? Que dissera ele àquelas pessoas? Que esperava Carneiro que ele pudesse dizer àquelas pessoas que lá o tinham ido escutar?

Mas Carneiro, esquivando-se às objurgatórias do artista inquieto de como falara, e do arauto preocupado com o que falara, puxou pelo menino escondido dentro do velho atleta, e levou-o dali, já docilmente, embora ainda a gemer, para um jantar no Recreio, sou les arbres.

Escolhemos porém a mesa na varanda, por causa da chuva, que crescera. Bernanos mal percebeu a falta das árvores. Sentado diante de mim, cotovelos fincados na mesa, capa impermeável aberta no peito, chapéu do mesmo pano, amassado, e posto de qualquer jeito no alto da cabeça, ele me parecia agora um recém-chegado de dolorosa peregrinação que ainda trouxesse no rosto a agonia dos naufrágios e o susto das emboscadas.

Ali estava George Bernanos. Agüentava a cabeça fatigada nas mãos, e os dedos entravam pelas carnes do rosto envelhecido, indo esmagar o olho esquerdo que tomava posições e proporções cômicas, enquanto o outro, livre da brutal trituração, guardava a serenidade e a candura de um olho azul de criança.

Ali estava George Bernanos. O autor de Sous le Soleil de Satan. O francês de verbo fustigante que viera ao Brasil “cuver as honte”. O bom cristão que, pelo menos, não tinha a pesar na consciência o crime de calar a justa indignação e a vergonha de fazer da mediocridade um estandarte e um voto.

Provocado por Carneiro, pôs-se a contar que passara toda a manhã em São Bento, que conversara muito com o Père Paul, que recebera a santa comunhão na capela… e logo, num salto brusco, pôs-se a rugir contra o barroco da igreja, e contra o especial estilo de cristandade inventado pelos portugueses. E enquanto ele falava, parecia-me ver no seu olho direito (porque o esquerdo, cada vez mais macerado, parecia prestes a saltar) o itinerário daquele peregrino. Não sei por que, se pela capa mal abotoada, ou pelo fato de ser um estrangeiro, voltava-me com persistência a idéia de que era um recém-chegado. “Quelqu’un qui vient d’arriver”. E que, depois de comer com pressa, vai continuar, agarrado às suas bengalas, a jornada apenas interrompida. Bernanos, não sei porque, não me deixava pensar em coisas quietas e estáveis: em família, em casa, em jardins. Ao contrário, o panorama que obscuramente corria por trás de suas palavras, eram quilhas erguidas nas ondas, ou eram cavalos fogosos com crinas ao vento, em planícies imensas vistas num relance, da janela de um trem, e longe, lá num horizonte de sonho, as montanhas roxas, como um renque de enormes hortênsias de pedra.

Mas, esse itinerário que eu via na transparência de seu olho, agora perdido num ponto do espaço, acima de nossas cabeças, era o da aventura nascida na infância, e continuada no obstinado menino que aquele hercúleo São Cristóvão carregava pelas águas. Ele diz que esse menino morreu: “Le plus mort des morts est le petit garçon que je fus…” Mas já contava com esse morto supervivo para o instante supremo, esse de que Carneiro me deu notícia há pouco pelo telefone: “… et pourtant, l’heure venue, c’est lui qui reprenda as place a la tête de ma vie, rassemblera mês pauvres années jusqu’a la dernière, et, comme um jeune chef ralliant ses veterans et la troupe em desordre, entrera le premier dans la Maison du Père”.

Bernanos continuava a falar. Ora exaltado, ora enternecido. Sua indignação, aliás, não é outra coisa senão a viril manifestação de sua infantil e inesgotável capacidade de se enternecer. Como poucos, ele sente os contrastes. Sente o claro-escuro do mundo. Adivinha a tragédia de seu tempo. E debate-se entre um mundo de traficantes, e um mundo de maravilhas.

Foi então que Fernando Carneiro, aproveitando um silêncio maior, e usando o quase privilégio seu de improvisar situações absurdas, perguntou:

— Bernanos, você gosta deste meu amigo?

Em condições ordinárias essa pergunta teria uma enorme banalidade ou uma chocante impropriedade. No caso, de absurda, tornou-se simples e natural. Em lugar de responder logo com amabilidade, ou de esquivar-se com um subterfúgio, Bernanos levou a sério a pergunta, e, detendo o discurso que ia recomeçar por cima de nossas cabeças, olhou-me demoradamente, e, por fim, com um sorriso franco e bom, declarou que gostava.

Nesse momento exato nós três, Bernanos, Carneiro e eu, poderíamos ter calças curtas e blusas à marinheira, porque, no fogo de uma amizade nova, tínhamos os corações limpos dos meninos de oito anos.

 

Publicado originalmente em: <http://www.formacaopolitica.com.br/artigos/lembranca-de-bernanos-gustavo-corcao/>

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Viagem de um ao mesmo lugar (G.K. Chesterton)

Literatura | 28/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Alguém que me pareceu ser um viajante, a julgar pelas aparências, aproximou-se de mim e indagou-me: “Qual é o caminho mais curto para se ir de um lugar ao mesmo lugar?”

O sol ocultava-se atrás de sua cabeça, de modo que não pude decifrar-lhe o rosto.

— Certamente, respondi, é permanecer no mesmo lugar.

— De modo algum, replicou. O caminho mais curto para se ir de um lugar ao mesmo lugar é dar volta ao mundo.

E foi-se.

White Wynd vivia com a família na Fazenda Branca, ao pé do rio. Ali mesmo nasceu, cresceu e contraiu casamento. A Fazenda era cercada pelo rio por três lados, como um castelo. No quarto havia estábulos e além dos estábulos uma horta, e além da horta um pomar, e além do pomar um muro baixo, e além do muro uma estrada, e além da estrada um pinheiral, e além do pinheiral um campo de trigo, e além o campo de montanhas furando o céu, e além… mas não devemos, a despeito da tentação, catalogar o mundo inteiro.White Wynd não conhecia outro lar senão o seu. O seu mundo estava confinado àquelas paredes. O céu era o telhado.

Tudo isso é que torna tão estranho o seu procedimento.

Nos últimos anos ele já raramente transpunha a soleira da porta. A indolência deixava-o inquieto e mal humorado. Vivia ansiando pelo próximo momento.

A esposa e os filhos, muito embora fossem ótimas pessoas, eram os que mais sofriam com as mudanças de seu temperamento. Mesmo para eles seu coração tornara-se árido e amargo. Recordava-se, confusamente, dos dias difíceis de luta pelo pão, quando, regressando à noite do trabalho, via sua casa brilhar como ouro, como se estivesse povoada de anjos. Mas a lembrança esfumava-se como um sonho.

Cada dia que passava sentia-se mais capaz de compreender outros lares, menos o seu. O seu era apenas uma casa. A nostalgia tomara conta dele, fechando-lhe os olhos e os ouvidos.

Alguma coisa, enfim, se passava dentro dele: um vulcão; um terremoto; um eclipse; uma aurora; um dilúvio; um apocalipse. Não será o apêlo a palavras grandiosas que nos desvendará o mistério de seu coração.

Muitas e muitas vezes a manhã surpreendera a pequena familia reunida na cosinha para a primeira refeição. Na última vez o pai, interrompendo o café, falou cismadoramente:

— Aquele campo verde, brilhando ao sol, como que me lembra um campo de meu próprio lar.

— Seu próprio lar? perguntou a esposa. Esse é o seu lar.

White Wynd ergueu-se e sua figura parecia cobrir toda a sala. Apanhou o chapéu e o bordão, cobertos de pó.

— Pai! exclamou um dos filhos. Aonde vai?

— Para casa.

— Como assim? Se esta é sua casa. Aonde vai, pai?

— Para a Fazenda Branca, ao pé do rio.

— Mas é esta!

Ele as olhava tranqüilamente quando a filha mais velha leu a verdade nos seus olhos.

— Oh! Ele está louco, gritou.

E enterrou o rosto nas mãos.

White Wynd falava calmamente.

— Você, acrescentou dirigindo-se à filha, você me lembra um pouco a minha primogênita… mas não tem o mesmo olhar dela, aquele olhar que era como uma benção depois do trabalho.

— Senhora, disse, voltando-se cortesmente para a esposa boquiaberta, agradeço-lhe a hospitalidade, mas receio que já haja abusado muito dela. E meu lar…

— Pai! Pai! responde-me. Não é este o seu lar?

O velho brandiu o bordão no ar.

— Os portais estão cobertos de teias de aranha e as paredes estão marcadas pelas chuvas. As portas dobram-me e as vigas esmagam-me. Só há ninharia, disputa e rancores atrás dessas rótulas onde tenho vivido há tanto tempo. Lá na casa onde nasci, longe do mundo, há pão e água, fogo e roupa, e todos os mistérios e artifícios do amor. Há descanso para os pés fatigados e rostos tranqüilos para repouso dos corações famintos.

— Onde? Onde?

— Na Fazenda Branca, ao pé do rio.

E atravessou a porta, o sol brilhando-lhe na face. E os moradores da Fazenda Branca olharam-se com espanto.

White Wynd, na ponte de madeira sobre o rio, sentiu o mundo a seus pés. Um grande vento veio-lhe ao encontro, do outro lado do céu (da terra de maravilhosos reverberos). Quem pode saber o que significa para o homem o efeito do primeiro vento soprando em campo aberto? Ele, pelo menos, sentia-se como se Deus houvesse puxado sua cabeça para trás e beijado-lhe a fronte.

Wynd gastara-se no repouso, sem saber que o remédio está no sol, no vento e no próprio corpo. Estava propenso a acreditar que usava agora a bota de sete léguas.

Ia para casa. A Fazenda Branca devia estar atrás de cada bosque e além de cada montanha. Procurava-a como procuramos o país das fadas, em cada volta do caminho. Só não a buscava numa direção, lá onde, a uma milha atrás, erguia-se a Fazenda Branca, fulgurando contra o céu brumoso da manhã.

Sentia-se como um gigante comparado com os dentes-de-leão e os grilos ao seu redor. É um velho costume nosso medir-nos pelas montanhas. Todo objeto pode ser infinitamente grande como infinitamente pequeno. E Wynd cresceu como um crucificado na sua incontida grandeza.

— Ó Deus, vós que me criastes e a todas as coisas, ouvi quatro cantos de louvor. Um por meus pés, que fizestes fortes e ligeiros sobre vossas margaridas; um por minha cabeça, que vós erguestes e coroastes acima dos quatro cantos do céu; um por meu coração, que fizestes igual ao coração dos anjos entoando a vossa glória. E um por aquela nuvenzinha pálida ao longe, sobre as colinas.

E White sentiu-se como um novo Adão recentemente criado. Era o senhor de todas as coisas, inclusive do sol e das estrelas.

Devia ser uma epopéia a história da viagem de White Wynd. Ele viveu esquecido e esmagado nas grandes cidades. Contudo não esmoreceu. Trabalhou nas pedreiras, nas docas de todos os países por onde passou. Viveu inúmeras existências, como uma alma errante. Até entre vagabundos, forçados, marinheiros e pescadores. Cada um contou-lhe o acontecimento decisivo de sua vida. Até o homem alto e magro, de olhos iguais a duas estrelas, estrelas de uma velha obstinação.

Mas ele nunca se desviou dos limites da terra. Uma tarde suave de verão, todavia, sucedeu-lhe a coisa mais estranha de toda a viagem. Esforçava-se penosamente para galgar uma enorme duna, que tudo ocultava, como se fosse a própria cúpula do mundo, quando, de súbito, invadiu-o uma sensação estranha. Olhou para trás a ver se descobria qualquer sinal de fronteira, pois a sua sensação era de quem acabasse de ingressar no país das fadas. Com o espírito abrasado por novos sentimentos, assaltado por lembranças confusas, marchou penosamente no topo da colina. O sol no ocaso raiava na sua glória universal. Entre ele e o sol, à altura dos campos, uma como nuvem branca surgiu ante seus olhos marejados. Não, não era uma nuvem. Era um palácio de mármore. Não, era a Fazenda Branca, ao pé do rio.

Chegara ao fim do mundo. Todo lugar na terra é o começo ou o fim, segundo o coração do homem. Eis a vantagem de se viver num planeta esférico.

Anoitecia. Toda a extensão da terra onde estava fundira-se em ouro. A relva transformara-se em fogo sob seus pés. White Wynd estava tão quieto que os pássaros pousaram no seu bordão.

A terra inteira na sua glória parecia rejubilar-se com a volta do homem pródigo, os pássaros reconheciam-no. A própria Natureza estava na posse do seu segredo, o homem que tinha viajado de um lugar para o mesmo lugar.

Apoiou-se com fadiga no cajado. E mais uma vez ergue a sua voz.

— Ó Deus, vós que me criastes e a todas as coisas, ouvi quatro cantos de louvor. Primeiro por meus pés, que estão feridos e vagarosos, agora que se aproximam de minha casa. Um por minha cabeça, que está dereada e encanecida, agora que a coroastes com o sol. Um por meu coração, porque lhe ensinastes na tristeza e na esperança sempre adiada, que é a estrada que faz a casa. E um pelas margaridas a meus pés.

Desceu a encosta da colina e penetrou no pinheiral. Os raios vermelhos e dourados do sol agonizante derramavam-se sobre as casas da fazenda e os galhos verdes das macieiras. Era agora o seu lar. Mas ele só ficou sendo o seu lar depois de o ter abandonado. Só agora que voltava de uma longa viagem. Era o Filho Pródigo.

Saiu do pinheiral e atravessou a estrada. Transpôs o muro baixo, errou através do pomar e da horta, passou pelos estábulos dos animais. E no pátio de pedra viu sua mulher puxando água.

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“Uma carta”, conto traduzido de Hugo von Hoffmansthal

Literatura | 22/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Letter_from_Arthur_Conan_Doyle_to_Herbert_Greenhough_Smith

Esta é a carta que Philip, lorde Chandos, filho mais moço do conde de Bath, escreveu a Francis Bacon – futuro lorde Verulam e visconde de Santo Albano –, desculpando-se por haver abandonado a atividade literária.

***

É benevolência vossa, mui estimado amigo, não fazer qualquer caso do meu silêncio, que já dura dois anos, e vos dignar a escrever-me. Já exprimir com graça e mão tão leve a solícita surpresa vossa ante o bloqueio mental de que me credes presa é mais que benevolência, é obra exclusiva, creio, daqueles grandes homens que, experimentando os perigos da vida, ainda assim não desanimam.

Concluís com o aforismo de Hipócrates – “Qui gravi morbo correpti dolores non sentiunt, iis mens aegrotat” [1] – e pretendeis que preciso da medicina, não só para curar o mal de que padeço, claro, mas também, e o que é mais, para tomar mais aguda consciência do meu estado íntimo. Gostaria de vos responder como mereceis, de me abrir totalmente convosco, mas não sei como fazê-lo. Mal sei, com efeito, se ainda sou o mesmo a que se dirige a vossa epístola, deliciosa epístola; sou eu agora um homem de vinte e sete anos, que apenas com dezenove escreveu O novo Páris, O sonho de Dafne e um certo Epitalâmio, essas bucólicas que, sob o fausto das palavras, não passam de composições capengas, que uma celeste rainha e alguns lordes e senhores mais que indulgentes ainda se dignam a rememorar? Sou o mesmo, ademais, que sob as arcadas da grande praça de Veneza achou em si a estrutura dos períodos latinos, cuja planta e construção me encantaram muito mais que os monumentos de Palladio e Sansovin emergindo das águas? E poderia eu, caso fosse realmente o mesmo, ter tão completamente apagado do meu inapreensível íntimo todo traço e estigma desse como que rebento do meu pensamento mais atilado, de modo que, na vossa carta, a qual jaz diante de mim, o título de um meu pequeno tratado me olhe friamente como um estranho, e eu nem sequer o possa tomar qual corriqueira estampa de palavras justapostas, mas o tenha de ler palavra por palavra, como se esses termos latinos, ligados dessa maneira, chegassem à minha vista pela primeira vez? Eu sou o mesmo, contudo, é claro, e há retórica nessas perguntas – retórica que convém às mulheres ou à Câmara dos Comuns, cujos instrumentos de poder, tão superestimados neste nosso tempo, não conseguem penetrar no íntimo das coisas.

O meu íntimo, porém, eu vos devo expor, uma excentricidade, um vício, ou, se se quiser, uma doença do meu espírito, a fim de que compreendais que um abismo infranqueável me separa tanto das obras literárias aqui (ao que parece) diante de mim, quanto daquelas lá atrás de mim e que eu, por me olharem com um olhar alheio, hesito em chamar de minhas.

Não sei se me admira mais a intensidade da vossa benevolência ou a inacreditável precisão da vossa memória ao revocardes os distintos (e pequenos) planos com que me entretinha naqueles belos dias do nosso comum entusiasmo. Eu realmente queria pintar os primeiros anos de reinado do nosso glorioso soberano Henrique VIII, bem-aventurado seja! O memorial que herdei de meu avô, o duque de Exeter, concernente às suas negociações com a França e Portugal, constituíam o meu fundamento, ou algo assim. E, partindo de Salústio, em dias, como aqueles, tão felizes e animados, o entendimento da forma me afluía como que por canais que jamais entopem, aquela forma íntima, verdadeira e profunda vislumbrada apenas além do curral dos artifícios retóricos, da qual não se pode mais dizer que organiza o material, pois o penetra, supera e cria juntamente poesia e verdade, uma interação de forças eternas, uma coisa tão magnífica quanto a música e a álgebra. Era bem esse o meu dileto plano. Mas o que é o homem para fazer planos!

Eu me entretinha com outros planos igualmente. Vossa benévola missiva também os faz vir à tona. Ora, cada um, saturado com uma gota do meu sangue, dança agora à minha frente qual mosca em parede escura, na qual não bate mais o ledo sol do dia claro.

Eu queria decifrar as fábulas e mitos que os antigos nos legaram – nos quais pintores e escultores um deleite sem cuidados, sem limites vêm achando –, qual se foram os hieróglifos de uma secreta e inexaurível sabedoria, cujo sopro acreditei sentir, vez por outra, como sob um véu.

Eu me recordo desse plano. E um não sei que apetite sensível e inteligível o sustinha: como o cervo perseguido busca a água, buscava eu os corpos nus e reluzentes, as dríadas e as sereias, Narciso e Proteu, Perseu e Acteão: e neles desvanecer, e com eles voltar a falar. Isso eu buscava. E buscava muito mais. Pensei em organizar uma recolha de apotegmas, como a que Júlio César escreveu: haveis de vos lembrar da sua menção numa epístola de Cícero. Pensei compô-la com as mais célebres sentenças que, no meu trato com sábios e mulheres finas deste tempo, bem como, dentre o vulgo, com gente mui particular, e, por fim, com eruditos e personagens distintas, minhas viagens me deixassem recolher; ao que acrescentaria belos ditos e reflexões dos antigos e dos italianos, e quanto lustro intelectual – em livros, manuscritos e conversas – cruzasse eventualmente o meu caminho; finalmente, o arranjo de belas festas e cortejos, crimes perversos e casos de furor e ódio, a descrição dos maiores e mais excêntricos monumentos da Holanda, França, Itália e ainda muito mais. Obra toda cujo título, por sua vez, não devia ser outro além de Nosce te ipsum [2].

Numa palavra: imersa numa como embriaguez contínua, toda a existência me soava então como uma coisa só: o mundo sensível e o inteligível não se opunham um ao outro, nem tampouco o cortesão e a besta, a arte e a não-arte, solidão e companhia; em tudo eu sentia a natureza, tanto nas aberrações da loucura quanto nos maiores requintes de um cerimonial espanhol; nas patetices de jovens camponeses e nas mais doces alegorias; e em toda a natureza me sentia a mim; quando, em minha cabana de caça, eu bebia o leite morno e espumante que um sujeito maltrapilho, com balde de madeira, tirara de uma bela vaca de olhos mansos, em nada diferia se, sentado, em meu estúdio, no banco ante a janela, sorvesse do in-fólio a nutrição do espírito, tão doce e espumante quanto aquela. Uma e outra eram iguais; nenhuma excedia a outra em natureza onírica, celeste até, nem tampouco em intensidade corpórea, o que se propagava por toda a espessura da vida, à esquerda e à direita; e no meio de tudo estava eu, e jamais guardava a mera aparência: e tudo me dava a impressão de ser um símile, e cada criatura a chave de outra, e eu bem me sentia capaz de tomá-las como pela alça, uma a uma, e escancarar com ela as que pudesse escancarar. O que bem explica o título de obra tão enciclopédica.

A quem seja susceptível a tais estados d’alma, poderia parecer um plano longamente acalentado da divina Providência que o meu espírito haja tombado de infladíssima arrogância neste poço extremo de fraqueza e desalento, em que consiste agora o permanente estado do meu íntimo. Concepções assim religiosas não têm, contudo, qualquer força sobre mim; elas pertencem, com efeito, às teias através das quais minhas idéias mergulham no vazio, enquanto muitas companheiras suas lá se prendem e descansam. Os mistérios da fé se me condensaram numa altíssima alegoria: sobre os campos da vida minha esplende um arco-íris na lonjura perpétua, sempre pronto a recuar caso me ponha no seu encalço, ou queira me cobrir com a borda do seu manto.

Os conceitos mundanos, porém, venerando amigo, se me escapam da mesma maneira. Como vos hei de pintar esses raríssimos tormentos do espírito, esses galhos que, crescendo com espantosa rapidez, levam os frutos para longe da mão que os procura, essa água que recua ante a sede dos meus lábios?

Meu caso, em suma, é o seguinte: perdi completamente a capacidade de pensar ou falar com coerência sobre o que quer que seja.

Primeiro, e pouco a pouco, fui ficando inapto a discorrer sobre temas gerais e de mais alta monta, e não dava com as palavras de que toda a gente, sem a mais mínima hesitação, costuma se servir. A simples menção de termos como ‘espírito’, ‘alma’ e ‘corpo’ me causava um inexplicável mal-estar. Ao que me tocava a mim, achava impossível portar um julgamento sobre os negócios da corte, os sucessos do parlamento ou o que quer que venhais a imaginar. E isso não por uma qualquer forma de decoro, pois sabeis que minha franqueza pode chegar à leviandade: senão as palavras propriamente abstratas, de que naturalmente a língua lança mão para formular qualquer juízo, desfaziam-se em minha boca como cogumelos podres. Ora, aconteceu-me então repreender minha filha Catarina Pompília, que contava quatro anos, por uma mentira que inventara, e querer que compreendesse o elevado mister de falar sempre a verdade, quando os conceitos que afluíam à minha boca assumiram de repente tantos e tão variados matizes, imbricando-se um no outro, que não pude mais que precipitar o final da sentença, qual se fora acometido de um mal súbito – e, efetivamente, com rosto pálido e feroz dor de cabeça, deixei a criança entregue a si própria, cruzei a porta atrás de mim e apenas consegui bem ou mal me recompor depois de um galope a cavalo pelo pasto solitário.

Gradativamente, porém, essa impugnação se expandiu como ferrugem, carcomendo o que lhe viesse ao encontro. Mesmo aqueles juízos que se costumam disparar à-toa, com certeza sonâmbula, nas mais triviais conversas de família, exigiam-me agora tanto escrúpulo que deixei de tomar parte em tais conversas. Uma ira inexplicável me invadia – a qual, a despeito de muito esforço, eu mal conseguia ocultar – se ouvisse coisas como: ‘Fulano ou Beltrano saiu-se bem ou mal em tal empresa’; ‘O delegado X é mau, o capelão Y, porém, é um bom homem’; ‘Pobre do feitor Z, seus filhos acabam com tudo’; ‘Feliz de Não-sei-quem, suas filhas gastam pouco’; ‘Essa família chega às alturas, essoutra desce aos infernos’. Pois tudo me parecia tão mentiroso, furado e indemonstrável quanto possível. E todas as coisas que ocorressem em tais conversas meu espírito me impelia a examinar de perto, monstruosamente de perto: assim como, certa feita, eu olhara na lupa a cutícula do mindinho, e ela mais se pareceu a uma planície esburacada, assim também procedia agora no meu trato com os homens e as suas ações. Não conseguia mais apreendê-los com o olhar do costume, que une e simplifica. Tudo se me desfazia em pedaços, e esses de novo em outros pedaços, e não havia mais nada que se deixasse atrelar a um conceito. As palavras, em mim, boiavam isoladas; então coalhavam e eram olhos me encarando, que eu encarava de volta: eram vórtices cuja mera visão me dava vertigem, que fluíam sem parada e desaguavam no vazio.

Tentei me salvar dessa situação apelando aos Antigos. Platão eu evitei; pois temia os perigosos vôos da sua imaginação. Pensei em ater-me sobretudo a Sêneca e Cícero. Essa harmonia de conceitos definidos e ordenados me haveria de curar. Mas não pude chegar até eles. Eu entendia muito bem esses conceitos: observava o maravilhoso jogo das suas relações crescer diante de mim como engenhosas cascatas movendo esferas de ouro. Podia andar à sua volta e ver como se solicitavam: mas só tinham que ver um com o outro, e o mais fundo e pessoal do meu pensamento ficava de fora da sua dança. Sobreveio-me, então, ali, entre eles, uma terrível solidão; senti-me como que encerado num jardim cheio de estátuas cegas que falassem; fugi de novo para campo aberto.

Desde então, suspeito, mal podereis imaginar a existência que levo, fluindo assim sem qualquer conta do espírito, do pensamento, e coisas afins; uma existência que decerto mal difere da dos meus vizinhos, parentes e da maioria dos senhores de terras deste reino, e que tem lá os seus momentos de alegria e animação. Não me é nada fácil vos dizer onde se encontram tais momentos; as palavras novamente me abandonam. Pois se trata de algo totalmente inominado – se é que é passível de nominação – que, nesses momentos, transbordando como a um vaso cada manifestação do quotidiano ao meu entorno em vida plena e superior, faz-e notar por mim e se revela. Não posso esperar que me compreendais sem mais exemplos, cujo caráter ordinário, aliás, demanda vossa indulgência. Um regador, um rastelo esquecido no campo, um cão tomando sol, um cemitério humilde, um aleijado, uma pequena choupana – tudo isso pode ser o vaso da minha revelação. Cada objeto desses e milhares de outros semelhantes, pelo quais o olho costuma passar com natural indiferença, pode, então, de súbito, em qualquer momento que seja – o qual, a propósito, absolutamente não está em meu poder ocasionar –, assumir um cunho tão excelso e comovente que não creio possa exprimir-se em palavras. Ora, mesmo sobre certa representação de um objeto ausente pode recair a imponderável escolha, enchendo-a até a borda com a suave e de repente transbordante plenitude da emoção divina. Eu ordenara, pois, recentemente, que se espalhasse abundante veneno de rato junto aos depósitos de leite de uma das minhas feitorias. Como já podeis imaginar, na hora do crepúsculo montei num cavalo e simplesmente me esqueci do assunto. Então, como eu trotasse no meio da lavoura e nada mais grave houvesse à minha volta do que um ninho de codornas e o grande sol poente sobre os campos ondulados, abriu-se-me de súbito um depósito interior, e encheu-se com a agonia da população de ratos. Tudo estava em mim: o ar úmido e frio do depósito, carregado do agridoce do veneno e acompanhado de guinchos estridentes, agonizantes, que o mofo das paredes abafava; aqueles espasmos de impotência, apinhando-se um no outro, e desespero atrás de desespero; a busca tresloucada da saída; o olhar gélido de fúria, enfim, se um topasse com algum outro numa fenda bem vedada. Eis-me de novo no encalço das palavras – coisa que já conjurei! Porventura recordais, meu caro, um maravilhoso passo de Lívio, em que descreve as horas imediatamente anteriores à destruição de Alba Longa? Como erram pelas ruas que não mais verão… como dizem adeus às pedras dos caminho. Digo-vos, pois, amigo meu: isso eu guardei comigo lá no fundo, assim como Cartago em chamas; mas isso era mais, e mais divino, e mais animalesco; e era o presente, o mais pleno e colossal presente. Lá estava uma mãe que se cercara dos filhotes moribundos e lhes não lançava a eles, nem às implacáveis paredes de pedra, o seu olhar, senão ao ar livre ou antes, através do ar, ao infinito, com pranto e ranger de dentes! Um escravo cheio de horror e impotência ante Níobe virando pedra deve ter passado pelo que passei quando a alma desse bicho, dentro em mim, rosnou ante o destino ingente.

Perdoai-me a descrição, mas não penseis que fora misericórdia o que então me acometeu. Não no penseis, repito, pois, nesse caso, o exemplo escolhido terá sido infeliz. Era muito mais e muito menos que misericórdia: era participar totalmente, era desaguar naquelas criaturas ou sentir que um fluido de vida e de morte ali desaguasse por um momento – mas de onde? Pois o que teria que ver com misericórdia, com associação minimamente razoável de humanas idéias, o encontrar, certa tarde, sob uma nogueira, um regador semi-vazio que um jardineiro olvidara, e esse regador e a água que contém (escurecida pela sombra da árvore) e um besouro nadando em sua superfície de uma escura margem para a outra e essa junção de nulidades, enfim, me estremecer com a presença do infinito, me estremecer da cabeça aos pés, de modo que bem explodiria em palavras de que bem sei, caso as achasse, que derrubariam os querubins em que não creio? Agora, semanas depois de voltar tão mudo quanto lá chegara, quando avisto a tal nogueira olho-a apenas de soslaio, timidamente, e vou-me logo embora, pois não quero afugentar a lembrança do milagre flutuando ao redor do tronco, nem dispersar o calafrio mais que terreno bafejando no arvoredo vizinho.

Nesses momentos, uma criatura insignificante, um cão, um rato, um besouro, uma disforme macieira, uma estrada serpenteando pelo monte, uma pedra coberta de musgo – são mais do que jamais foi a mais bela e devota amada na noite mais feliz. Tais criaturas mudas – e às vezes inanimadas – se elevam a tal plenitude, a tanta presença de amor que o meu bem-aventurado olho não dá com borrão sem vida ao redor de si. Eis que tudo me parece, tudo o que existe, tudo o que lembro, tudo o que os mais turvos pensamentos meus manipulando vão, tudo me parece ser alguma coisa. Mesmo o meu próprio peso e a costumeira obtusidade do meu cérebro me parecem alguma coisa; sinto um dança deliciosa e numa palavra infinita em mim e ao meu redor, e das coisas que dançam entre si não há nenhuma em que eu não possa me escoar. É como se, então, o meu corpo fosse feito de sonoras cifras que me abrissem tudo. Ou como se entrássemos em nova, em divinatória relação com toda a existência, e começássemos a pensar com o coração. Mas logo que esse estranho encantamento me abandona, não sei testemunhar mais nada a seu respeito; e seria tão pouco capaz de dizer em termos racionais o que era essa harmonia que me cosia ao mundo todo, e como ela me tornava sensível, quanto proferir algo de exato sobre os movimentos peristálticos ou a congestão sangüínea.

Afora esses casos estranhíssimos, os quais, de resto, mal sei se deva atribuir ao espírito ou ao corpo, vivo uma vida incrivelmente vazia e peno muito para esconder de minha mulher a apatia do meu íntimo, e dos agregados a minha indiferença ante as vicissitudes da fazenda. A boa e severa educação que devo a meu saudoso pai e o costume antigo de não deixar ociosa nenhuma hora do dia são, segundo me parece, as únicas coisas que mantêm uma postura de vida exteriormente satisfatória e uma aparência adequada ao meu posto e pessoa.

Estou construindo uma ala do castelo onde moro, e de quando em quando consigo conversar com o arquiteto sobre os progressos do seu trabalho; administro meus bens, e meus feitores e agregados talvez me achem mais lacônico, porém não menos benevolente que outrora. Nenhum deles, tirando o chapéu quando passo a cavalo, ao fim da tarde, pela porta da respectiva casa há de suspeitar que o meu olhar, que ele sói interceptar com o todo o devido respeito, anseia em silêncio pelas tábuas podres debaixo das quais ele procura minhocas para pescar, flui por grades estreitíssimas e mergulha em bolorentas câmaras, em cuja quina um leito baixo que um lençol de muitas cores cobre parece estar sempre à espera de quem vai morrer ou vai nascer; que o meu olho pousa longamente sobre os odientos filhotes de cão ou sobre o gato que fareja, flexível e faceiro, entre os vasos de flores, e que esse olho busca, enfim, entre todos os mais pobres e rudes objetos da existência rural aquele cuja forma discreta, cuja desprezada presença, cuja essência muda se possa tornar em fonte daquele enigmático, inefável, ilimitado encanto. Pois essa minha inominável, bem-aventurada sensação antes me vem de uma longínqua e só fogueira de um qualquer pastor que da visão do céu estrelado; antes do trilado do último grilo, já próximo da morte, quando o vento de outono sopra as nuvens invernais sobre os campos vazios que do majestático trom de um órgão. E vez por outra chego a comparar-me a Crasso, o orador, de quem se afirma ter-se tanto e tão desmesuradamente enamorado de uma moréia, um olhirrubro peixe surdo e mudo do seu aquário doméstico, que se tornara o assunto da cidade; e quando em pleno senado, certa feita, Domício censurou-lhe as lágrimas por ocasião da morte do peixe e qui-lo representar qual se fora quase um tolo, Crasso lhe respondeu: “Assim fiz eu na morte do meu peixe, o que vós nem na morte da vossa primeira mulher, nem tampouco na da segunda, todavia lograstes fazer”.

Não sei quão freqüentemente dou com Crasso e a sua moréia refletidos sobre o abismo dos séculos qual reflexo de mim mesmo. Tal não se deve, porém, à resposta que deu a Domício. A resposta pôs o riso ao seu favor, e o negócio todo acabou em piada. Em mim, contudo, o negócio cala fundo, e ainda que Domício chorara lágrimas de sangue, da mais sincera dor, por ambas as suas mulheres, calaria fundo mesmo assim. Pois Crasso ainda estaria diante dele, com as suas lágrimas pela moréia. E sobre essa imagem, cujo caráter ridículo e desprezível, aliás, no meio de um senado que governa o mundo e discute as coisas mais elevadas, só pode saltar à vista – sobre essa imagem algo de inefável me impele a refletir, e isso de um modo tal que me parece totalmente tolo no instante mesmo em que o tento exprimir em palavras.

Há noites em que esse retrato de Crasso me fende a cabeça, como um prego a cuja volta tudo supura, pulsa, ebule. Então é como se eu pegasse fogo, borbulhasse, fervesse, chamejasse. E tudo é uma espécie de pensamento febril, mas pensamento com um material mais imediato, dúctil, incandescente que as palavras. Há vórtices também, mas não do tipo que, como os da língua, parece conduzir ao insondável, senão dos que transportam a alguma parte dentro em mim, ao regaço mais fundo, mais pacífico.

Já vos enfadei além da conta, estimadíssimo amigo, com extensas descrições de um estado inexplicável que, segundo o seu costume, fica trancado nas entranhas minhas.

Ao declarar vossa insatisfação com tal estado tanta e tamanha foi a vossa benevolência que nenhum livro de minha autoria pode mais “Compensar-vos pela ausência de comércio entre nós”. Neste mesmo instante tive toda a certeza, não de todo livre de um penoso sentimento, que nos anos vindouros e seguintes e restantes, em suma, dessa minha vida não escreverei obra em latim ou em inglês: e isso por um motivo cuja dolorosa excentricidade eu deixo à vossa infinita superioridade intelectual, que observa impassível o harmônico reino dos fenômenos físicos e metafísicos estender-se diante de vós, a tarefa de classificar: a saber, porque a língua em que me seria dado, não apenas escrever, mas também pensar, talvez, não é a latina nem a inglesa nem a italiana nem a espanhola, mas uma língua de que não conheço nenhuma palavra, uma língua em que me falam as coisas mudas, e na qual um dia terei quiçá de me justificar, depois de morto, ante um juiz desconhecido.

Gostaria que me fosse dado, nas últimas palavras dessa que é provavelmente a última epístola que escrevo a Francis Bacon, condensar todo o amor e gratidão e admiração sem fim pelo maior benfeitor do meu espírito e primeiro entre os britânicos do nosso tempo; sentimentos, esses, que guardo e guardarei no coração até que a morte o despedace.

Aos vinte e dois de agosto deste milésimo sexcentésimo terceiro ano de Nosso Senhor Jesus Cristo,

Phi. Chandos.

Tradução de Érico Nogueira (Hugo von Hofmannsthal. Ein Brief. In: Der Brief des Lord Chandos: Schriften zur Literatur, Kunst und Geschichte. Philip Reclam jun., 2000, pp. 46-59).


[1] “Aqueles que, acometidos de grave moléstia, não sentem qualquer dor, também sofrem dos males do espírito” (N. do T.).

[2] “Conhece-te a ti mesmo” (N. do T.).


Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Ed. nº 4, Dez/2009.


Imagem:  Uma carta de Arthur Conan Doyle sobre The Hound of the Baskervilles. Disponível [online] no link: https://www.flickr.com/photos/43021516@N06/8346428573/. Imagem em Domínio Público.


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"Uma carta", conto traduzido de Hugo von Hoffmansthal

Literatura | 22/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Letter_from_Arthur_Conan_Doyle_to_Herbert_Greenhough_Smith

Esta é a carta que Philip, lorde Chandos, filho mais moço do conde de Bath, escreveu a Francis Bacon – futuro lorde Verulam e visconde de Santo Albano –, desculpando-se por haver abandonado a atividade literária.

***

É benevolência vossa, mui estimado amigo, não fazer qualquer caso do meu silêncio, que já dura dois anos, e vos dignar a escrever-me. Já exprimir com graça e mão tão leve a solícita surpresa vossa ante o bloqueio mental de que me credes presa é mais que benevolência, é obra exclusiva, creio, daqueles grandes homens que, experimentando os perigos da vida, ainda assim não desanimam.

Concluís com o aforismo de Hipócrates – “Qui gravi morbo correpti dolores non sentiunt, iis mens aegrotat” [1] – e pretendeis que preciso da medicina, não só para curar o mal de que padeço, claro, mas também, e o que é mais, para tomar mais aguda consciência do meu estado íntimo. Gostaria de vos responder como mereceis, de me abrir totalmente convosco, mas não sei como fazê-lo. Mal sei, com efeito, se ainda sou o mesmo a que se dirige a vossa epístola, deliciosa epístola; sou eu agora um homem de vinte e sete anos, que apenas com dezenove escreveu O novo Páris, O sonho de Dafne e um certo Epitalâmio, essas bucólicas que, sob o fausto das palavras, não passam de composições capengas, que uma celeste rainha e alguns lordes e senhores mais que indulgentes ainda se dignam a rememorar? Sou o mesmo, ademais, que sob as arcadas da grande praça de Veneza achou em si a estrutura dos períodos latinos, cuja planta e construção me encantaram muito mais que os monumentos de Palladio e Sansovin emergindo das águas? E poderia eu, caso fosse realmente o mesmo, ter tão completamente apagado do meu inapreensível íntimo todo traço e estigma desse como que rebento do meu pensamento mais atilado, de modo que, na vossa carta, a qual jaz diante de mim, o título de um meu pequeno tratado me olhe friamente como um estranho, e eu nem sequer o possa tomar qual corriqueira estampa de palavras justapostas, mas o tenha de ler palavra por palavra, como se esses termos latinos, ligados dessa maneira, chegassem à minha vista pela primeira vez? Eu sou o mesmo, contudo, é claro, e há retórica nessas perguntas – retórica que convém às mulheres ou à Câmara dos Comuns, cujos instrumentos de poder, tão superestimados neste nosso tempo, não conseguem penetrar no íntimo das coisas.

O meu íntimo, porém, eu vos devo expor, uma excentricidade, um vício, ou, se se quiser, uma doença do meu espírito, a fim de que compreendais que um abismo infranqueável me separa tanto das obras literárias aqui (ao que parece) diante de mim, quanto daquelas lá atrás de mim e que eu, por me olharem com um olhar alheio, hesito em chamar de minhas.

Não sei se me admira mais a intensidade da vossa benevolência ou a inacreditável precisão da vossa memória ao revocardes os distintos (e pequenos) planos com que me entretinha naqueles belos dias do nosso comum entusiasmo. Eu realmente queria pintar os primeiros anos de reinado do nosso glorioso soberano Henrique VIII, bem-aventurado seja! O memorial que herdei de meu avô, o duque de Exeter, concernente às suas negociações com a França e Portugal, constituíam o meu fundamento, ou algo assim. E, partindo de Salústio, em dias, como aqueles, tão felizes e animados, o entendimento da forma me afluía como que por canais que jamais entopem, aquela forma íntima, verdadeira e profunda vislumbrada apenas além do curral dos artifícios retóricos, da qual não se pode mais dizer que organiza o material, pois o penetra, supera e cria juntamente poesia e verdade, uma interação de forças eternas, uma coisa tão magnífica quanto a música e a álgebra. Era bem esse o meu dileto plano. Mas o que é o homem para fazer planos!

Eu me entretinha com outros planos igualmente. Vossa benévola missiva também os faz vir à tona. Ora, cada um, saturado com uma gota do meu sangue, dança agora à minha frente qual mosca em parede escura, na qual não bate mais o ledo sol do dia claro.

Eu queria decifrar as fábulas e mitos que os antigos nos legaram – nos quais pintores e escultores um deleite sem cuidados, sem limites vêm achando –, qual se foram os hieróglifos de uma secreta e inexaurível sabedoria, cujo sopro acreditei sentir, vez por outra, como sob um véu.

Eu me recordo desse plano. E um não sei que apetite sensível e inteligível o sustinha: como o cervo perseguido busca a água, buscava eu os corpos nus e reluzentes, as dríadas e as sereias, Narciso e Proteu, Perseu e Acteão: e neles desvanecer, e com eles voltar a falar. Isso eu buscava. E buscava muito mais. Pensei em organizar uma recolha de apotegmas, como a que Júlio César escreveu: haveis de vos lembrar da sua menção numa epístola de Cícero. Pensei compô-la com as mais célebres sentenças que, no meu trato com sábios e mulheres finas deste tempo, bem como, dentre o vulgo, com gente mui particular, e, por fim, com eruditos e personagens distintas, minhas viagens me deixassem recolher; ao que acrescentaria belos ditos e reflexões dos antigos e dos italianos, e quanto lustro intelectual – em livros, manuscritos e conversas – cruzasse eventualmente o meu caminho; finalmente, o arranjo de belas festas e cortejos, crimes perversos e casos de furor e ódio, a descrição dos maiores e mais excêntricos monumentos da Holanda, França, Itália e ainda muito mais. Obra toda cujo título, por sua vez, não devia ser outro além de Nosce te ipsum [2].

Numa palavra: imersa numa como embriaguez contínua, toda a existência me soava então como uma coisa só: o mundo sensível e o inteligível não se opunham um ao outro, nem tampouco o cortesão e a besta, a arte e a não-arte, solidão e companhia; em tudo eu sentia a natureza, tanto nas aberrações da loucura quanto nos maiores requintes de um cerimonial espanhol; nas patetices de jovens camponeses e nas mais doces alegorias; e em toda a natureza me sentia a mim; quando, em minha cabana de caça, eu bebia o leite morno e espumante que um sujeito maltrapilho, com balde de madeira, tirara de uma bela vaca de olhos mansos, em nada diferia se, sentado, em meu estúdio, no banco ante a janela, sorvesse do in-fólio a nutrição do espírito, tão doce e espumante quanto aquela. Uma e outra eram iguais; nenhuma excedia a outra em natureza onírica, celeste até, nem tampouco em intensidade corpórea, o que se propagava por toda a espessura da vida, à esquerda e à direita; e no meio de tudo estava eu, e jamais guardava a mera aparência: e tudo me dava a impressão de ser um símile, e cada criatura a chave de outra, e eu bem me sentia capaz de tomá-las como pela alça, uma a uma, e escancarar com ela as que pudesse escancarar. O que bem explica o título de obra tão enciclopédica.

A quem seja susceptível a tais estados d’alma, poderia parecer um plano longamente acalentado da divina Providência que o meu espírito haja tombado de infladíssima arrogância neste poço extremo de fraqueza e desalento, em que consiste agora o permanente estado do meu íntimo. Concepções assim religiosas não têm, contudo, qualquer força sobre mim; elas pertencem, com efeito, às teias através das quais minhas idéias mergulham no vazio, enquanto muitas companheiras suas lá se prendem e descansam. Os mistérios da fé se me condensaram numa altíssima alegoria: sobre os campos da vida minha esplende um arco-íris na lonjura perpétua, sempre pronto a recuar caso me ponha no seu encalço, ou queira me cobrir com a borda do seu manto.

Os conceitos mundanos, porém, venerando amigo, se me escapam da mesma maneira. Como vos hei de pintar esses raríssimos tormentos do espírito, esses galhos que, crescendo com espantosa rapidez, levam os frutos para longe da mão que os procura, essa água que recua ante a sede dos meus lábios?

Meu caso, em suma, é o seguinte: perdi completamente a capacidade de pensar ou falar com coerência sobre o que quer que seja.

Primeiro, e pouco a pouco, fui ficando inapto a discorrer sobre temas gerais e de mais alta monta, e não dava com as palavras de que toda a gente, sem a mais mínima hesitação, costuma se servir. A simples menção de termos como ‘espírito’, ‘alma’ e ‘corpo’ me causava um inexplicável mal-estar. Ao que me tocava a mim, achava impossível portar um julgamento sobre os negócios da corte, os sucessos do parlamento ou o que quer que venhais a imaginar. E isso não por uma qualquer forma de decoro, pois sabeis que minha franqueza pode chegar à leviandade: senão as palavras propriamente abstratas, de que naturalmente a língua lança mão para formular qualquer juízo, desfaziam-se em minha boca como cogumelos podres. Ora, aconteceu-me então repreender minha filha Catarina Pompília, que contava quatro anos, por uma mentira que inventara, e querer que compreendesse o elevado mister de falar sempre a verdade, quando os conceitos que afluíam à minha boca assumiram de repente tantos e tão variados matizes, imbricando-se um no outro, que não pude mais que precipitar o final da sentença, qual se fora acometido de um mal súbito – e, efetivamente, com rosto pálido e feroz dor de cabeça, deixei a criança entregue a si própria, cruzei a porta atrás de mim e apenas consegui bem ou mal me recompor depois de um galope a cavalo pelo pasto solitário.

Gradativamente, porém, essa impugnação se expandiu como ferrugem, carcomendo o que lhe viesse ao encontro. Mesmo aqueles juízos que se costumam disparar à-toa, com certeza sonâmbula, nas mais triviais conversas de família, exigiam-me agora tanto escrúpulo que deixei de tomar parte em tais conversas. Uma ira inexplicável me invadia – a qual, a despeito de muito esforço, eu mal conseguia ocultar – se ouvisse coisas como: ‘Fulano ou Beltrano saiu-se bem ou mal em tal empresa’; ‘O delegado X é mau, o capelão Y, porém, é um bom homem’; ‘Pobre do feitor Z, seus filhos acabam com tudo’; ‘Feliz de Não-sei-quem, suas filhas gastam pouco’; ‘Essa família chega às alturas, essoutra desce aos infernos’. Pois tudo me parecia tão mentiroso, furado e indemonstrável quanto possível. E todas as coisas que ocorressem em tais conversas meu espírito me impelia a examinar de perto, monstruosamente de perto: assim como, certa feita, eu olhara na lupa a cutícula do mindinho, e ela mais se pareceu a uma planície esburacada, assim também procedia agora no meu trato com os homens e as suas ações. Não conseguia mais apreendê-los com o olhar do costume, que une e simplifica. Tudo se me desfazia em pedaços, e esses de novo em outros pedaços, e não havia mais nada que se deixasse atrelar a um conceito. As palavras, em mim, boiavam isoladas; então coalhavam e eram olhos me encarando, que eu encarava de volta: eram vórtices cuja mera visão me dava vertigem, que fluíam sem parada e desaguavam no vazio.

Tentei me salvar dessa situação apelando aos Antigos. Platão eu evitei; pois temia os perigosos vôos da sua imaginação. Pensei em ater-me sobretudo a Sêneca e Cícero. Essa harmonia de conceitos definidos e ordenados me haveria de curar. Mas não pude chegar até eles. Eu entendia muito bem esses conceitos: observava o maravilhoso jogo das suas relações crescer diante de mim como engenhosas cascatas movendo esferas de ouro. Podia andar à sua volta e ver como se solicitavam: mas só tinham que ver um com o outro, e o mais fundo e pessoal do meu pensamento ficava de fora da sua dança. Sobreveio-me, então, ali, entre eles, uma terrível solidão; senti-me como que encerado num jardim cheio de estátuas cegas que falassem; fugi de novo para campo aberto.

Desde então, suspeito, mal podereis imaginar a existência que levo, fluindo assim sem qualquer conta do espírito, do pensamento, e coisas afins; uma existência que decerto mal difere da dos meus vizinhos, parentes e da maioria dos senhores de terras deste reino, e que tem lá os seus momentos de alegria e animação. Não me é nada fácil vos dizer onde se encontram tais momentos; as palavras novamente me abandonam. Pois se trata de algo totalmente inominado – se é que é passível de nominação – que, nesses momentos, transbordando como a um vaso cada manifestação do quotidiano ao meu entorno em vida plena e superior, faz-e notar por mim e se revela. Não posso esperar que me compreendais sem mais exemplos, cujo caráter ordinário, aliás, demanda vossa indulgência. Um regador, um rastelo esquecido no campo, um cão tomando sol, um cemitério humilde, um aleijado, uma pequena choupana – tudo isso pode ser o vaso da minha revelação. Cada objeto desses e milhares de outros semelhantes, pelo quais o olho costuma passar com natural indiferença, pode, então, de súbito, em qualquer momento que seja – o qual, a propósito, absolutamente não está em meu poder ocasionar –, assumir um cunho tão excelso e comovente que não creio possa exprimir-se em palavras. Ora, mesmo sobre certa representação de um objeto ausente pode recair a imponderável escolha, enchendo-a até a borda com a suave e de repente transbordante plenitude da emoção divina. Eu ordenara, pois, recentemente, que se espalhasse abundante veneno de rato junto aos depósitos de leite de uma das minhas feitorias. Como já podeis imaginar, na hora do crepúsculo montei num cavalo e simplesmente me esqueci do assunto. Então, como eu trotasse no meio da lavoura e nada mais grave houvesse à minha volta do que um ninho de codornas e o grande sol poente sobre os campos ondulados, abriu-se-me de súbito um depósito interior, e encheu-se com a agonia da população de ratos. Tudo estava em mim: o ar úmido e frio do depósito, carregado do agridoce do veneno e acompanhado de guinchos estridentes, agonizantes, que o mofo das paredes abafava; aqueles espasmos de impotência, apinhando-se um no outro, e desespero atrás de desespero; a busca tresloucada da saída; o olhar gélido de fúria, enfim, se um topasse com algum outro numa fenda bem vedada. Eis-me de novo no encalço das palavras – coisa que já conjurei! Porventura recordais, meu caro, um maravilhoso passo de Lívio, em que descreve as horas imediatamente anteriores à destruição de Alba Longa? Como erram pelas ruas que não mais verão… como dizem adeus às pedras dos caminho. Digo-vos, pois, amigo meu: isso eu guardei comigo lá no fundo, assim como Cartago em chamas; mas isso era mais, e mais divino, e mais animalesco; e era o presente, o mais pleno e colossal presente. Lá estava uma mãe que se cercara dos filhotes moribundos e lhes não lançava a eles, nem às implacáveis paredes de pedra, o seu olhar, senão ao ar livre ou antes, através do ar, ao infinito, com pranto e ranger de dentes! Um escravo cheio de horror e impotência ante Níobe virando pedra deve ter passado pelo que passei quando a alma desse bicho, dentro em mim, rosnou ante o destino ingente.

Perdoai-me a descrição, mas não penseis que fora misericórdia o que então me acometeu. Não no penseis, repito, pois, nesse caso, o exemplo escolhido terá sido infeliz. Era muito mais e muito menos que misericórdia: era participar totalmente, era desaguar naquelas criaturas ou sentir que um fluido de vida e de morte ali desaguasse por um momento – mas de onde? Pois o que teria que ver com misericórdia, com associação minimamente razoável de humanas idéias, o encontrar, certa tarde, sob uma nogueira, um regador semi-vazio que um jardineiro olvidara, e esse regador e a água que contém (escurecida pela sombra da árvore) e um besouro nadando em sua superfície de uma escura margem para a outra e essa junção de nulidades, enfim, me estremecer com a presença do infinito, me estremecer da cabeça aos pés, de modo que bem explodiria em palavras de que bem sei, caso as achasse, que derrubariam os querubins em que não creio? Agora, semanas depois de voltar tão mudo quanto lá chegara, quando avisto a tal nogueira olho-a apenas de soslaio, timidamente, e vou-me logo embora, pois não quero afugentar a lembrança do milagre flutuando ao redor do tronco, nem dispersar o calafrio mais que terreno bafejando no arvoredo vizinho.

Nesses momentos, uma criatura insignificante, um cão, um rato, um besouro, uma disforme macieira, uma estrada serpenteando pelo monte, uma pedra coberta de musgo – são mais do que jamais foi a mais bela e devota amada na noite mais feliz. Tais criaturas mudas – e às vezes inanimadas – se elevam a tal plenitude, a tanta presença de amor que o meu bem-aventurado olho não dá com borrão sem vida ao redor de si. Eis que tudo me parece, tudo o que existe, tudo o que lembro, tudo o que os mais turvos pensamentos meus manipulando vão, tudo me parece ser alguma coisa. Mesmo o meu próprio peso e a costumeira obtusidade do meu cérebro me parecem alguma coisa; sinto um dança deliciosa e numa palavra infinita em mim e ao meu redor, e das coisas que dançam entre si não há nenhuma em que eu não possa me escoar. É como se, então, o meu corpo fosse feito de sonoras cifras que me abrissem tudo. Ou como se entrássemos em nova, em divinatória relação com toda a existência, e começássemos a pensar com o coração. Mas logo que esse estranho encantamento me abandona, não sei testemunhar mais nada a seu respeito; e seria tão pouco capaz de dizer em termos racionais o que era essa harmonia que me cosia ao mundo todo, e como ela me tornava sensível, quanto proferir algo de exato sobre os movimentos peristálticos ou a congestão sangüínea.

Afora esses casos estranhíssimos, os quais, de resto, mal sei se deva atribuir ao espírito ou ao corpo, vivo uma vida incrivelmente vazia e peno muito para esconder de minha mulher a apatia do meu íntimo, e dos agregados a minha indiferença ante as vicissitudes da fazenda. A boa e severa educação que devo a meu saudoso pai e o costume antigo de não deixar ociosa nenhuma hora do dia são, segundo me parece, as únicas coisas que mantêm uma postura de vida exteriormente satisfatória e uma aparência adequada ao meu posto e pessoa.

Estou construindo uma ala do castelo onde moro, e de quando em quando consigo conversar com o arquiteto sobre os progressos do seu trabalho; administro meus bens, e meus feitores e agregados talvez me achem mais lacônico, porém não menos benevolente que outrora. Nenhum deles, tirando o chapéu quando passo a cavalo, ao fim da tarde, pela porta da respectiva casa há de suspeitar que o meu olhar, que ele sói interceptar com o todo o devido respeito, anseia em silêncio pelas tábuas podres debaixo das quais ele procura minhocas para pescar, flui por grades estreitíssimas e mergulha em bolorentas câmaras, em cuja quina um leito baixo que um lençol de muitas cores cobre parece estar sempre à espera de quem vai morrer ou vai nascer; que o meu olho pousa longamente sobre os odientos filhotes de cão ou sobre o gato que fareja, flexível e faceiro, entre os vasos de flores, e que esse olho busca, enfim, entre todos os mais pobres e rudes objetos da existência rural aquele cuja forma discreta, cuja desprezada presença, cuja essência muda se possa tornar em fonte daquele enigmático, inefável, ilimitado encanto. Pois essa minha inominável, bem-aventurada sensação antes me vem de uma longínqua e só fogueira de um qualquer pastor que da visão do céu estrelado; antes do trilado do último grilo, já próximo da morte, quando o vento de outono sopra as nuvens invernais sobre os campos vazios que do majestático trom de um órgão. E vez por outra chego a comparar-me a Crasso, o orador, de quem se afirma ter-se tanto e tão desmesuradamente enamorado de uma moréia, um olhirrubro peixe surdo e mudo do seu aquário doméstico, que se tornara o assunto da cidade; e quando em pleno senado, certa feita, Domício censurou-lhe as lágrimas por ocasião da morte do peixe e qui-lo representar qual se fora quase um tolo, Crasso lhe respondeu: “Assim fiz eu na morte do meu peixe, o que vós nem na morte da vossa primeira mulher, nem tampouco na da segunda, todavia lograstes fazer”.

Não sei quão freqüentemente dou com Crasso e a sua moréia refletidos sobre o abismo dos séculos qual reflexo de mim mesmo. Tal não se deve, porém, à resposta que deu a Domício. A resposta pôs o riso ao seu favor, e o negócio todo acabou em piada. Em mim, contudo, o negócio cala fundo, e ainda que Domício chorara lágrimas de sangue, da mais sincera dor, por ambas as suas mulheres, calaria fundo mesmo assim. Pois Crasso ainda estaria diante dele, com as suas lágrimas pela moréia. E sobre essa imagem, cujo caráter ridículo e desprezível, aliás, no meio de um senado que governa o mundo e discute as coisas mais elevadas, só pode saltar à vista – sobre essa imagem algo de inefável me impele a refletir, e isso de um modo tal que me parece totalmente tolo no instante mesmo em que o tento exprimir em palavras.

Há noites em que esse retrato de Crasso me fende a cabeça, como um prego a cuja volta tudo supura, pulsa, ebule. Então é como se eu pegasse fogo, borbulhasse, fervesse, chamejasse. E tudo é uma espécie de pensamento febril, mas pensamento com um material mais imediato, dúctil, incandescente que as palavras. Há vórtices também, mas não do tipo que, como os da língua, parece conduzir ao insondável, senão dos que transportam a alguma parte dentro em mim, ao regaço mais fundo, mais pacífico.

Já vos enfadei além da conta, estimadíssimo amigo, com extensas descrições de um estado inexplicável que, segundo o seu costume, fica trancado nas entranhas minhas.

Ao declarar vossa insatisfação com tal estado tanta e tamanha foi a vossa benevolência que nenhum livro de minha autoria pode mais “Compensar-vos pela ausência de comércio entre nós”. Neste mesmo instante tive toda a certeza, não de todo livre de um penoso sentimento, que nos anos vindouros e seguintes e restantes, em suma, dessa minha vida não escreverei obra em latim ou em inglês: e isso por um motivo cuja dolorosa excentricidade eu deixo à vossa infinita superioridade intelectual, que observa impassível o harmônico reino dos fenômenos físicos e metafísicos estender-se diante de vós, a tarefa de classificar: a saber, porque a língua em que me seria dado, não apenas escrever, mas também pensar, talvez, não é a latina nem a inglesa nem a italiana nem a espanhola, mas uma língua de que não conheço nenhuma palavra, uma língua em que me falam as coisas mudas, e na qual um dia terei quiçá de me justificar, depois de morto, ante um juiz desconhecido.

Gostaria que me fosse dado, nas últimas palavras dessa que é provavelmente a última epístola que escrevo a Francis Bacon, condensar todo o amor e gratidão e admiração sem fim pelo maior benfeitor do meu espírito e primeiro entre os britânicos do nosso tempo; sentimentos, esses, que guardo e guardarei no coração até que a morte o despedace.

Aos vinte e dois de agosto deste milésimo sexcentésimo terceiro ano de Nosso Senhor Jesus Cristo,

Phi. Chandos.

Tradução de Érico Nogueira (Hugo von Hofmannsthal. Ein Brief. In: Der Brief des Lord Chandos: Schriften zur Literatur, Kunst und Geschichte. Philip Reclam jun., 2000, pp. 46-59).


[1] “Aqueles que, acometidos de grave moléstia, não sentem qualquer dor, também sofrem dos males do espírito” (N. do T.).

[2] “Conhece-te a ti mesmo” (N. do T.).


Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Ed. nº 4, Dez/2009.


Imagem:  Uma carta de Arthur Conan Doyle sobre The Hound of the Baskervilles. Disponível [online] no link: https://www.flickr.com/photos/43021516@N06/8346428573/. Imagem em Domínio Público.


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Kafka à beira do abismo (por Rodrigo Duarte Garcia)

Literatura | 23/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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Ilustração: Paulo von Poser

 

Em um de seus poemas mais famosos, Eugenio Montale pedia que dele não esperassem a fórmula do mundo, mas apenas sílabas torcidas e secas como um ramo. São dois versos e uma assombrosa explicação do que deve ser a literatura e, principalmente, do que ela não deve ser. Montale procurava apenas retratar a realidade em colagens e imagens móveis, fugindo da armadilha de tentar conformá-la a esquemas conceituais, o mundo como idéia de que nos fala Bruno Tolentino. A existência não pode mesmo ser resolvida e representada em fórmulas matemáticas embaladas a vácuo. A obra de arte ordena as trevas da vida – em sílabas torcidas e secas como um ramo -, e a impulsiona imortalizada à frente, com todas as imperfeições inevitáveis da linguagem.

A literatura é, assim, essencialmente o resultado da fissura que existe entre as palavras e a realidade, essa brecha inevitável diante de todas as limitações do conhecimento humano perante a complexidade e o mistério do mundo. Ao defrontar-se com a grandeza da existência e seus dramas intrincados – a solidão, a finitude, o mal, enfim, todos os pontos que definem os paradoxos do ser -, o autor é inevitavelmente impelido a tomar partido por uma de duas posições que, a bem da verdade, podem ser resumidas no respeito diante do assombro ou uma certa arrogância. A tentativa orgulhosa de aprisionar toda a tensão do real em sistemas abstratos encerrados em si mesmos, ou aceitar com prudência o mistério da realidade e a limitação da linguagem para exprimi-lo, renunciando a uma onipotência artística impossível.

É essa, por exemplo, a escolha de Joseph Conrad, que sabia ser a missão do escritor a de apenas fazer o leitor ver e sentir a voragem do abismo. Ou a de Manuel Bandeira e suas platitudes: “Se há estrelas no céu, refleti-las. / E se os céus se pejam de nuvens, / como o rio, as nuvens são água, / refleti-las também, sem mágoa, / nas profundidades tranqüilas”. E também a de Shakespeare, que levava às últimas conseqüências a lição de Hamlet à companhia de atores:

 “[…] qualquer coisa exagerada foge ao propósito de representação, cujo fim, tanto no princípio como agora, era, e é, oferecer um espelho à natureza; mostrar à virtude seus próprios traços, ao ridículo sua própria imagem, e à própria idade e ao corpo dos tempos sua forma e aparência” (Hamlet, Ato 3, cena 2, 19-24; trad. Anna Amélia Carneiro de Mendonça).

 Se ao artista é mesmo exigida uma posição firme frente à realidade que pretende retratar, o verdadeiro criador – de Dante a Bach a Turner – é exatamente aquele que toma o mistério da existência como a sua premissa mais importante. Mário Ferreira dos Santos dizia que no sublime há sempre algo de misterioso, algo que infunde na alma temor e beatitude. E se – em seu impulso à eternidade – a grande arte busca o belo e o sublime, ela precisa necessariamente conter, ainda que de maneira subjacente, os fundamentos transcendentes do ser.

Por outro lado, a exigência de que se tenha como princípio estético esse assombro perante as tessituras da realidade de maneira alguma equivale à defesa de uma arte estritamente religiosa. O exemplo da pintura holandesa – o insight é de Hegel, na Estética – é bastante esclarecedor, porque, embora a arte flamenga do Século de Ouro estivesse completamente inserida no contexto do calvinismo e do horror à representação de imagens sagradas, ela ainda assim se assentava sobre uma base metafísica. É notável verificar como mesmo aqueles temas profanos – as paisagens, as naturezas-mortas, todas as cenas do quotidiano – estão sempre ancorados em luzes e cores de uma visão de mundo transcendente, nesse profundo respeito pelo mistério da existência, o inesauribile segreto de que falam Ungaretti (“Ali chega o poeta / e depois regressa à luz com seus cantos / e os dispersa / Desta poesia / me sobra / aquele nada / de inesgotável segredo“; trad. Geraldo Holanda Cavalcanti) e o Drummond de Claro Enigma.

Na longa história da literatura, as grandes obras foram sempre construídas sobre esses pilares metafísicos da realidade, mas não muitos autores fizeram do próprio mistério do mundo o seu projeto, como de maneira universal o fez Franz Kafka. Dirigindo a luz da literatura para os recantos mais escuros e insondáveis da natureza humana, ele de fato não apenas tomava os fundamentos transcendentes do mundo como sua premissa estética. Muito além, Kafka fez do mistério o seu tema central. E o resultado, como nos diz Borges, são parábolas sobre a relação moral do indivíduo com a divindade e o universo, uma obra feita de fábulas terríveis que retratam em fragmentos toda a agonia da existência.

O peso desse mistério existencial foi mesmo a constante que acompanhou Kafka durante a vida inteira. Na Carta ao pai (1919), é ele próprio quem diz: “Desde que comecei a pensar, tive uma preocupação com a afirmação espiritual da minha existência que tudo o mais me foi indiferente” [1]. De fato, tudo o mais lhe foi indiferente, e essa preocupação – com todos os assombros de estilo – acabou refletida inteiramente na obra que Kafka se propôs a construir. Ele costumava dizer que havia passado o tempo a escrever e representar os seus piores pesadelos, de maneira que “não sobrou muito da vida”.

Vida que enfim lhe foi curta e relativamente sem emoções: nascido em Praga, no verão de 1883, Kafka passou ali quase toda a existência. Formou-se em direito e trabalhou como advogado para algumas companhias de seguro, utilizando todo o tempo livre – que incluía temporadas de convalescença devidas à tuberculose que viria a matá-lo – para escrever. Sentia-se terrivelmente oprimido em sua relação com o pai, que desprezava o ofício de escritor e a literatura como um todo. Embora tenha chegado a envolver-se com algumas mulheres, havendo inclusive frustrado dois noivados com Felice Bauer, Kafka nunca se casou e acabou morrendo aos quarenta anos, em um sanatório nos arredores de Viena.

A obra de Franz Kafka é composta de fragmentos móveis e colagens, à maneira justa e dolorosa dos paradoxos que percebia na realidade. São contos, novelas e romances que – em um estilo transparente lapidado nas leituras de Flaubert, Swift e das Sagradas Escrituras – retratam o respeito pelo mistério do mundo e todo o assombro da existência.

Se de um modo ou de outro toda arte tem pretensão ao realismo, Kafka buscava representar em formas novas essa realidade psíquica do espírito atormentado e espantado pelo mistério. As atmosferas criadas em sua obra remetem a terras devastadas, campos estéreis de inverno, labirintos burocráticos, catedrais arquitetonicamente incorretas e aldeias isoladas, perdidas na neve. Do mesmo modo, cada personagem é sempre construído conforme o plano de um intermediário com o inefável em suas formas mais terríveis: o mal e a culpa. Por isso talvez seja mesmo impossível amar um personagem de Kafka. São anti-heróis burocratas, agrimensores e caixeiros-viajantes por quem experimentamos às vezes – e no máximo – uma certa pena, mas é só.

A verdade é que, para retratar a face mais terrível da realidade, Kafka renunciou a uma arte que buscasse o belo e atirou-se de cabeça a uma representação do sublime, tal como o entendia Edmund Burke, em seu A Philosophical Inquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful, de 1757: aquele delight fundado no terror que despertam em nós a vastidão e o infinito, o atributo artístico psicológico que infunde no receptor uma sensação de terror, aliada entretanto à margem de segurança da consciência serena de que, na realidade, não se está a correr perigo algum. É essa, por exemplo, a experiência que nos marca quando lemos em Melville a descrição da batalha travada entre Ahab e Moby Dick. Kafka, porém, levou essa empreitada da representação do sublime às últimas conseqüências. Porque, em suas obras, o horror não apresenta margem de segurança alguma. Muito ao contrário, faz aflorar a consciência assustadora de que o perigo está sempre à espreita e é inerente à existência humana.

As imagens simbólicas e transcendentes permeiam toda a obra de Franz Kafka, e – ao contrário do que se poderia supor -, seus escritos não deixam de ser uma afirmação de fé e esperança. A angústia metafísica não é desespero. No melhor estilo do que propõe Kierkegaard, ela é apenas a conseqüência da fé difícil que vem de uma agonia. Em um aforismo famoso, Kafka dizia que “a fé é como uma guilhotina, tão leve, tão pesada”. Mas o fato é que este ato kafkiano de fé não propõe modelos ou algum tipo de resposta exata: é de certa forma uma abstenção, uma suspension of disbelief elevada à segunda potência, nos limiares da sanidade. Em muitos momentos, o respeito que ele demonstra pelo mistério toma mesmo ares de uma completa incomunicabilidade [2], que, entretanto, a sua grandeza espiritual não seria nunca capaz de conceber.

Kafka era um judeu heterodoxo – “às portas de um cristianismo em que é incapaz de entrar”, segundo Otto Maria Carpeaux – e que, em todo caso, sentia-se incapaz de dar uma resposta a certas perguntas da existência. Pelo que enfim devemos agradecer imensamente. Tolstoi foi irrelevante quando se propôs a fundar uma nova religião e passou a escrever fábulas de um cristianismo água-com-açúcar. Franz Kafka nunca teve pretensão semelhante. Para ele, as possibilidades deixadas em aberto representam sempre uma recusa consciente.

Mário Ferreira dos Santos dizia que a unidade do verdadeiro artista está no fato de que a transposição de cada limite e de cada fronteira não implica jamais um salto no abismo, mas sempre uma preparação para a transfiguração. Que em Kafka nunca vem – e não por perversão ou niilismo. O anti-clímax e a ausência de redenção refletem justamente essa renúncia de Kafka a pretender resolver artisticamente os paradoxos do ser. Mas também não era um pessimista, pois sabia que, apesar das sombras, do peso da culpa e do mal no mundo, há sempre a esperança em algo além. Kafka nos traça uma janela apavorante no mais das vezes, mas verdadeiramente aberta ao infinito.

Franz Kafka realmente não pretendia explicar o mundo por meio da literatura e, a bem da verdade, parecia possuir um verdadeiro terror de que os leitores o tomassem – e a sua obra – como fio condutor para o que quer que fosse. E talvez tenha sido justamente esse repúdio por um papel sagrado – que efetivamente não lhe podia pertencer – o motivo pelo qual pediu que os seus escritos fossem queimados pelo amigo e testamenteiro Max Brod, no que foi sabidamente desobedecido. Em um pequeno conto das Narrativas do espólio (1914-1924), é inevitável pensar em Kafka como o guarda que, ao ser consultado por alguém sobre direções e caminhos a serem tomados, responde: “De mim você quer saber o caminho? Desista, desista”. E podemos ler no mesmo contexto as últimas linhas do conto “Uma folha antiga”, de Um médico rural (1919): “A nós, artesãos e comerciantes, foi confiada a salvação da pátria; mas não estamos à altura de uma tarefa dessas, nem jamais nos vangloriamos de estar. É um equívoco e por causa dele vamos nos arruinar”.

Do escritor não se deve mesmo exigir nada além de sílabas secas como um ramo. Porque a arte em si não redime nada, não pode salvar ninguém. A narração e a memória podem perpetuar tanto a luz da salvação quanto a treva da mais terrível perdição. É exatamente a questão que Ian McEwan propõe em Reparação: “Como pode um romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de decidir como a história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado, a que ela possa perdoá-la. Não há nada fora dela. Na sua imaginação, ela determina os limites e as condições” (trad. Paulo Henriques Britto). McEwan conta o caminho da expiação de uma culpa antiga por meio da literatura e a sua conclusão é o desespero, o reconhecimento tardio de que “desde o início a tarefa era inviável”. Em uma cena famosa de A metamorfose (1912) – considerada por muitos como a obra-prima de Kafka -, Gregor Samsa é atraído à sala de estar pela música do violino tocado por sua irmã e, arrastando-se sob a forma de um inseto asqueroso, quer ser redimido de sua condição pelo belo e pela identificação com aquilo que nos torna homens. E é na frustração e no anti-clímax desse objetivo que somos mais uma vez confrontados com a verdade dura de que, se a arte humaniza e civiliza, em última análise não salva ninguém.

O mistério da salvação foi um tema muito caro a Kafka. Em duas de suas obras principais, O Processo (1914) e O Castelo (1922), a questão é vista sob pontos de vista diametralmente opostos, mas complementares. A primeira – O Processo – conta a trilha circular de Josef K., “detido sem ter feito mal algum”, e que passa a buscar os motivos desse processo ao mesmo tempo em que tenta ser absolvido das acusações feitas por um tribunal insondável. Kafka dizia que o Juízo Final é uma corte marcial permanente, e é justamente essa realidade transcendente que ele parece querer retratar nos fragmentos de O Processo: a sombria noção de um pecado original talvez irremissível e de uma divindade de quem muito pouco ou quase nada se pode saber. A impressão que temos é a de que o mal percebido por ele é tão grande que a própria idéia de salvação lhe parece bastante improvável. E Josef K. revolta-se: “Não há dúvida de que por trás de todas as manifestações deste tribunal […] se encontra uma grande organização. […]. E que sentido tem essa grande organização, meus senhores? Consiste em prender pessoas inocentes e mover contra elas processos absurdos e na maioria das vezes infrutíferos, como no meu caso. Diante dessa falta de sentido do conjunto, como evitar a pior das corrupções entre os funcionários? É impossível, nem o supremo magistrado teria êxito”.

Por outro lado, há a perspectiva da personagem Leni, uma mulher lá não muito casta, por assim dizer, mas que aponta o caminho para Josef K.: “Por favor, não pergunte nomes, mas corrija os seus erros, não seja mais tão inflexível, contra esse tribunal não é possível se defender, é preciso fazer uma confissão. Na próxima oportunidade, faça essa confissão. Só aí existe a possibilidade de escapar – só aí. No entanto, mesmo isso não é possível sem ajuda externa”. Reconhecer a própria miséria, humilhar-se e talvez contar com a ajuda da graça divina, mas Kafka não parece admitir esse socorro gratuito com muita facilidade. E Josef K. também não parece muito empenhado em acatar o conselho de Leni e empreender qualquer tentativa de auto-conhecimento de suas próprias faltas, preferindo investigar os motivos externos que poderiam ter originado o seu processo. A questão da culpa e da necessidade de uma autoconsciência das próprias falhas humanas já havia sido tratada como tema central da pequena obra-prima Na colônia penal (1914), sobre a máquina terrível que usa uma espécie de rastelo para imprimir o castigo das sentenças no corpo dos condenados.

De uma forma ou de outra, Kafka faz do percurso individual a única possibilidade de salvação. Em O Processo, ele diz: “Nada que seja comum pode se impor contra o tribunal. Cada caso é examinado em si mesmo, é o tribunal mais cauteloso que existe. Portanto, não se pode obter nada numa ação conjunta, só um indivíduo isolado às vezes alcança alguma coisa em segredo – e só quando o alcança é que os outros ficam sabendo; ninguém sabe como aconteceu”. É o mesmo ponto de vista mostrado no conto “Diante da Lei”, de Um médico rural – também uma parábola incorporada a O Processo -, em que existe uma única porta e via de salvação para cada indivíduo. E as perspectivas de alcançá-la não parecem nada boas. No final, a morte de Josef K. – “como um cachorro” – reforça a consciência de que, embora a existência e a salvação sejam um mistério a que aspiramos em nossa condição humana caída, não podemos obter todas as respostas. E nem Kafka se propõe a fornecê-las.

Se em O Processo esse mistério da salvação é apresentado sob uma perspectiva “de cima para baixo”, O Castelo inverte completamente as premissas e coloca a questão sob uma ótica oposta. Otto Maria Carpeaux dizia que O Processo narra o processo de Deus contra o Homem, ao passo que em O Castelo, ao inverso, é o Homem quem move um processo contra Deus. O romance conta a história de K., o agrimensor que chega no meio da noite a uma aldeia isolada e envolta pela neve e a névoa escura. Aparentemente contratado pelo conde do lugar, ele passa então a buscar a sua admissão no Castelo – repetida e sumariamente recusada – e é confrontado com uma infinidade de situações absurdas, entre a inacessibilidade das autoridades oficiais e a contradição que reina entre todas as suas ordens. K. persiste e persegue obsessivamente as respostas que não lhe podem ser dadas. A história é uma narração épica e metafísica do homem em busca de sentido, em busca da salvação. E a atmosfera em que o enredo se dá é idêntica a de um daqueles pesadelos terríveis em que tentamos chegar a certo lugar sem nunca conseguir. Borges comparava o drama kafkiano de O Castelo a uma renovação literária do famoso paradoxo de Zenão de Eléia: a flecha não pode jamais alcançar o seu alvo porque precisa antes passar por sucessivos pontos intermediários ad infinitum.

Kafka costumava dizer que por impaciência fomos expulsos do Paraíso e também por impaciência é que não chegamos à vida eterna. Porque a impaciência conduz ao desespero. E o desespero está sempre a rondar o agrimensor K., em O Castelo: “Certamente essa permanência e essa espera inúteis, dia após dia, que sempre se renovam sem qualquer perspectiva de mudança, que esmagam, tornam a pessoa incerta e, no final, até mesmo incapaz para qualquer outra coisa que não seja esse ficar sem fazer nada desesperado”. A tentação da angústia é transformar-se em desespero. Daí a importância dessa paciência que vem de uma fortaleza sobrenatural. Kierkegaard afirmava que, ao contrário da justiça e da coragem, a paciência é a virtude mais difícil de retratar e simbolizar poeticamente. O insight é interessante e Kafka talvez tenha conseguido esse prodígio na representação da perseverança de K.
em suas andanças perdidas entre borrascas de inverno e os becos sem saída que nunca o levam ao Castelo. E essa paciência vem-lhe da certeza de uma vocação insondável: afinal, “o que poderia ter me atraído para este lugar ermo se não fosse o desejo de permanecer aqui?”

Mas a perseverança de K. tem algo também de diabólico, da justificação auto-suficiente e a qualquer custo pelas próprias obras – à mesma maneira descrita em O Processo -, sem recurso à graça divina ou sequer aceitação da sua possibilidade. K. pretende alcançar o Castelo exclusivamente por seus méritos, mesmo porque não lhe parece haver outra hipótese possível. As tribulações do caminho representam para ele a certeza do abandono definitivo de um deus absconditus, e é confrontando essa impressão que a personagem Olga lhe diz: “Existem obstáculos, pontos discutíveis, decepções, mas isso significa apenas aquilo que já sabíamos antes, que nada será dado de presente a você”.

Apenas nas últimas e inacabadas páginas do romance é que K. toma consciência dessa impossibilidade de extorquir a salvação a fórceps. No diálogo final, ele percebe enfim que as suas tentativas de chegar ao Castelo com mãos de ferro são “como se nós dois tivéssemos nos empenhado muito, com bastante ruído, infantilmente demais, inexperientes demais, para alcançar algo que, por exemplo, com a tranqüilidade, a objetividade de Frieda, tivesse sido fácil de ganhar, fácil e imperceptivelmente; como se esperássemos obtê-lo através do choro, arranhando, puxando, à maneira de uma criança que puxa a toalha da mesa mas não consegue nada, apenas põe abaixo todo o esplendor exposto e o torna inacessível para sempre”. A tentativa empreendida durante toda a história de alcançar o Castelo à força é a perdição de K. Ao fazê-la, torna as portas do Paraíso inacessíveis para sempre. “Quem quiser salvar a sua vida, a perderá”, diz o Evangelho. A perseverança de K. era, desde o início, apenas um anúncio do seu fracasso.

O universo de Kafka é feito exatamente dos paradoxos e vielas obscuras que infundem no leitor essa perplexidade frente à verdade exposta de que certas coisas simplesmente não podemos conhecer. A realidade é misteriosa e a literatura de Franz Kafka espelha os fragmentos desse mistério, o terror de nossas limitações em face de toda a vastidão que envolve a existência humana. Em um grande ensaio, Samuel Johnson conta a lenda do monarca oriental que possuía um empregado apenas para lembrá-lo de sua mortalidade. Todas as manhãs, em determinada hora, o homem gritava: “Remember, prince, that thou shalt die“. A obra de Kafka é esse oficial de plantão, lembrando-nos a cada momento do mistério que circunda cada vão de nossas misérias. E, diante disso, o impulso que nos assalta é o de repetir-lhe o que sussurra ao médico o paciente do conto Um médico rural, no livro homônimo: “Em vez de me socorrer, está tornando mais estreito o meu leito de morte”. Franz Kafka não queria socorrer ninguém. Ele não podia socorrer ninguém. E a verdade é que autor nenhum pode. Olhando de frente o mistério do mundo e todos os seus abismos, Kafka segue à risca os versos de Montale e oferece apenas as sílabas torcidas e secas que tornam mais estreito e incômodo esse nosso leito de dor.

Rodrigo Duarte Garcia, poeta, escritor e ensaísta, é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, vice-presidente do Instituto de Formação e Educação e trabalha como advogado em São Paulo.


NOTAS:

[1] Todas as transcrições da obra de Kafka remetem aqui às traduções de Modesto Carone ao português, nas edições da Companhia das Letras.

[2] No pequeno conto “O novo advogado”, de Um médico rural (1919), o narrador afirma: “mas ninguém, ninguém, sabe guiar até a Índia. Já naquela época as portas da Índia eram inalcançáveis, mas a direção delas estava assinalada pela espada do rei. Hoje as portas estão deslocadas para um lugar completamente diferente, mais longe e mais alto; ninguém mostra a direção; muitos seguram espadas, mas só para brandi-las; e o olhar que quer segui-las se confunde”.


Texto originalmente publicado na revista-livro Dicta&Contradicta (Edição nº 1, Junho/2008) do Instituto de Formação e Educação (IFE). Disponível [online] também em <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-1/kafka-a-beira-do-abismo/>.