"Uma carta", conto traduzido de Hugo von Hoffmansthal

Literatura | 22/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Esta é a carta que Philip, lorde Chandos, filho mais moço do conde de Bath, escreveu a Francis Bacon – futuro lorde Verulam e visconde de Santo Albano –, desculpando-se por haver abandonado a atividade literária.

***

É benevolência vossa, mui estimado amigo, não fazer qualquer caso do meu silêncio, que já dura dois anos, e vos dignar a escrever-me. Já exprimir com graça e mão tão leve a solícita surpresa vossa ante o bloqueio mental de que me credes presa é mais que benevolência, é obra exclusiva, creio, daqueles grandes homens que, experimentando os perigos da vida, ainda assim não desanimam.

Concluís com o aforismo de Hipócrates – “Qui gravi morbo correpti dolores non sentiunt, iis mens aegrotat” [1] – e pretendeis que preciso da medicina, não só para curar o mal de que padeço, claro, mas também, e o que é mais, para tomar mais aguda consciência do meu estado íntimo. Gostaria de vos responder como mereceis, de me abrir totalmente convosco, mas não sei como fazê-lo. Mal sei, com efeito, se ainda sou o mesmo a que se dirige a vossa epístola, deliciosa epístola; sou eu agora um homem de vinte e sete anos, que apenas com dezenove escreveu O novo Páris, O sonho de Dafne e um certo Epitalâmio, essas bucólicas que, sob o fausto das palavras, não passam de composições capengas, que uma celeste rainha e alguns lordes e senhores mais que indulgentes ainda se dignam a rememorar? Sou o mesmo, ademais, que sob as arcadas da grande praça de Veneza achou em si a estrutura dos períodos latinos, cuja planta e construção me encantaram muito mais que os monumentos de Palladio e Sansovin emergindo das águas? E poderia eu, caso fosse realmente o mesmo, ter tão completamente apagado do meu inapreensível íntimo todo traço e estigma desse como que rebento do meu pensamento mais atilado, de modo que, na vossa carta, a qual jaz diante de mim, o título de um meu pequeno tratado me olhe friamente como um estranho, e eu nem sequer o possa tomar qual corriqueira estampa de palavras justapostas, mas o tenha de ler palavra por palavra, como se esses termos latinos, ligados dessa maneira, chegassem à minha vista pela primeira vez? Eu sou o mesmo, contudo, é claro, e há retórica nessas perguntas – retórica que convém às mulheres ou à Câmara dos Comuns, cujos instrumentos de poder, tão superestimados neste nosso tempo, não conseguem penetrar no íntimo das coisas.

O meu íntimo, porém, eu vos devo expor, uma excentricidade, um vício, ou, se se quiser, uma doença do meu espírito, a fim de que compreendais que um abismo infranqueável me separa tanto das obras literárias aqui (ao que parece) diante de mim, quanto daquelas lá atrás de mim e que eu, por me olharem com um olhar alheio, hesito em chamar de minhas.

Não sei se me admira mais a intensidade da vossa benevolência ou a inacreditável precisão da vossa memória ao revocardes os distintos (e pequenos) planos com que me entretinha naqueles belos dias do nosso comum entusiasmo. Eu realmente queria pintar os primeiros anos de reinado do nosso glorioso soberano Henrique VIII, bem-aventurado seja! O memorial que herdei de meu avô, o duque de Exeter, concernente às suas negociações com a França e Portugal, constituíam o meu fundamento, ou algo assim. E, partindo de Salústio, em dias, como aqueles, tão felizes e animados, o entendimento da forma me afluía como que por canais que jamais entopem, aquela forma íntima, verdadeira e profunda vislumbrada apenas além do curral dos artifícios retóricos, da qual não se pode mais dizer que organiza o material, pois o penetra, supera e cria juntamente poesia e verdade, uma interação de forças eternas, uma coisa tão magnífica quanto a música e a álgebra. Era bem esse o meu dileto plano. Mas o que é o homem para fazer planos!

Eu me entretinha com outros planos igualmente. Vossa benévola missiva também os faz vir à tona. Ora, cada um, saturado com uma gota do meu sangue, dança agora à minha frente qual mosca em parede escura, na qual não bate mais o ledo sol do dia claro.

Eu queria decifrar as fábulas e mitos que os antigos nos legaram – nos quais pintores e escultores um deleite sem cuidados, sem limites vêm achando –, qual se foram os hieróglifos de uma secreta e inexaurível sabedoria, cujo sopro acreditei sentir, vez por outra, como sob um véu.

Eu me recordo desse plano. E um não sei que apetite sensível e inteligível o sustinha: como o cervo perseguido busca a água, buscava eu os corpos nus e reluzentes, as dríadas e as sereias, Narciso e Proteu, Perseu e Acteão: e neles desvanecer, e com eles voltar a falar. Isso eu buscava. E buscava muito mais. Pensei em organizar uma recolha de apotegmas, como a que Júlio César escreveu: haveis de vos lembrar da sua menção numa epístola de Cícero. Pensei compô-la com as mais célebres sentenças que, no meu trato com sábios e mulheres finas deste tempo, bem como, dentre o vulgo, com gente mui particular, e, por fim, com eruditos e personagens distintas, minhas viagens me deixassem recolher; ao que acrescentaria belos ditos e reflexões dos antigos e dos italianos, e quanto lustro intelectual – em livros, manuscritos e conversas – cruzasse eventualmente o meu caminho; finalmente, o arranjo de belas festas e cortejos, crimes perversos e casos de furor e ódio, a descrição dos maiores e mais excêntricos monumentos da Holanda, França, Itália e ainda muito mais. Obra toda cujo título, por sua vez, não devia ser outro além de Nosce te ipsum [2].

Numa palavra: imersa numa como embriaguez contínua, toda a existência me soava então como uma coisa só: o mundo sensível e o inteligível não se opunham um ao outro, nem tampouco o cortesão e a besta, a arte e a não-arte, solidão e companhia; em tudo eu sentia a natureza, tanto nas aberrações da loucura quanto nos maiores requintes de um cerimonial espanhol; nas patetices de jovens camponeses e nas mais doces alegorias; e em toda a natureza me sentia a mim; quando, em minha cabana de caça, eu bebia o leite morno e espumante que um sujeito maltrapilho, com balde de madeira, tirara de uma bela vaca de olhos mansos, em nada diferia se, sentado, em meu estúdio, no banco ante a janela, sorvesse do in-fólio a nutrição do espírito, tão doce e espumante quanto aquela. Uma e outra eram iguais; nenhuma excedia a outra em natureza onírica, celeste até, nem tampouco em intensidade corpórea, o que se propagava por toda a espessura da vida, à esquerda e à direita; e no meio de tudo estava eu, e jamais guardava a mera aparência: e tudo me dava a impressão de ser um símile, e cada criatura a chave de outra, e eu bem me sentia capaz de tomá-las como pela alça, uma a uma, e escancarar com ela as que pudesse escancarar. O que bem explica o título de obra tão enciclopédica.

A quem seja susceptível a tais estados d’alma, poderia parecer um plano longamente acalentado da divina Providência que o meu espírito haja tombado de infladíssima arrogância neste poço extremo de fraqueza e desalento, em que consiste agora o permanente estado do meu íntimo. Concepções assim religiosas não têm, contudo, qualquer força sobre mim; elas pertencem, com efeito, às teias através das quais minhas idéias mergulham no vazio, enquanto muitas companheiras suas lá se prendem e descansam. Os mistérios da fé se me condensaram numa altíssima alegoria: sobre os campos da vida minha esplende um arco-íris na lonjura perpétua, sempre pronto a recuar caso me ponha no seu encalço, ou queira me cobrir com a borda do seu manto.

Os conceitos mundanos, porém, venerando amigo, se me escapam da mesma maneira. Como vos hei de pintar esses raríssimos tormentos do espírito, esses galhos que, crescendo com espantosa rapidez, levam os frutos para longe da mão que os procura, essa água que recua ante a sede dos meus lábios?

Meu caso, em suma, é o seguinte: perdi completamente a capacidade de pensar ou falar com coerência sobre o que quer que seja.

Primeiro, e pouco a pouco, fui ficando inapto a discorrer sobre temas gerais e de mais alta monta, e não dava com as palavras de que toda a gente, sem a mais mínima hesitação, costuma se servir. A simples menção de termos como ‘espírito’, ‘alma’ e ‘corpo’ me causava um inexplicável mal-estar. Ao que me tocava a mim, achava impossível portar um julgamento sobre os negócios da corte, os sucessos do parlamento ou o que quer que venhais a imaginar. E isso não por uma qualquer forma de decoro, pois sabeis que minha franqueza pode chegar à leviandade: senão as palavras propriamente abstratas, de que naturalmente a língua lança mão para formular qualquer juízo, desfaziam-se em minha boca como cogumelos podres. Ora, aconteceu-me então repreender minha filha Catarina Pompília, que contava quatro anos, por uma mentira que inventara, e querer que compreendesse o elevado mister de falar sempre a verdade, quando os conceitos que afluíam à minha boca assumiram de repente tantos e tão variados matizes, imbricando-se um no outro, que não pude mais que precipitar o final da sentença, qual se fora acometido de um mal súbito – e, efetivamente, com rosto pálido e feroz dor de cabeça, deixei a criança entregue a si própria, cruzei a porta atrás de mim e apenas consegui bem ou mal me recompor depois de um galope a cavalo pelo pasto solitário.

Gradativamente, porém, essa impugnação se expandiu como ferrugem, carcomendo o que lhe viesse ao encontro. Mesmo aqueles juízos que se costumam disparar à-toa, com certeza sonâmbula, nas mais triviais conversas de família, exigiam-me agora tanto escrúpulo que deixei de tomar parte em tais conversas. Uma ira inexplicável me invadia – a qual, a despeito de muito esforço, eu mal conseguia ocultar – se ouvisse coisas como: ‘Fulano ou Beltrano saiu-se bem ou mal em tal empresa’; ‘O delegado X é mau, o capelão Y, porém, é um bom homem’; ‘Pobre do feitor Z, seus filhos acabam com tudo’; ‘Feliz de Não-sei-quem, suas filhas gastam pouco’; ‘Essa família chega às alturas, essoutra desce aos infernos’. Pois tudo me parecia tão mentiroso, furado e indemonstrável quanto possível. E todas as coisas que ocorressem em tais conversas meu espírito me impelia a examinar de perto, monstruosamente de perto: assim como, certa feita, eu olhara na lupa a cutícula do mindinho, e ela mais se pareceu a uma planície esburacada, assim também procedia agora no meu trato com os homens e as suas ações. Não conseguia mais apreendê-los com o olhar do costume, que une e simplifica. Tudo se me desfazia em pedaços, e esses de novo em outros pedaços, e não havia mais nada que se deixasse atrelar a um conceito. As palavras, em mim, boiavam isoladas; então coalhavam e eram olhos me encarando, que eu encarava de volta: eram vórtices cuja mera visão me dava vertigem, que fluíam sem parada e desaguavam no vazio.

Tentei me salvar dessa situação apelando aos Antigos. Platão eu evitei; pois temia os perigosos vôos da sua imaginação. Pensei em ater-me sobretudo a Sêneca e Cícero. Essa harmonia de conceitos definidos e ordenados me haveria de curar. Mas não pude chegar até eles. Eu entendia muito bem esses conceitos: observava o maravilhoso jogo das suas relações crescer diante de mim como engenhosas cascatas movendo esferas de ouro. Podia andar à sua volta e ver como se solicitavam: mas só tinham que ver um com o outro, e o mais fundo e pessoal do meu pensamento ficava de fora da sua dança. Sobreveio-me, então, ali, entre eles, uma terrível solidão; senti-me como que encerado num jardim cheio de estátuas cegas que falassem; fugi de novo para campo aberto.

Desde então, suspeito, mal podereis imaginar a existência que levo, fluindo assim sem qualquer conta do espírito, do pensamento, e coisas afins; uma existência que decerto mal difere da dos meus vizinhos, parentes e da maioria dos senhores de terras deste reino, e que tem lá os seus momentos de alegria e animação. Não me é nada fácil vos dizer onde se encontram tais momentos; as palavras novamente me abandonam. Pois se trata de algo totalmente inominado – se é que é passível de nominação – que, nesses momentos, transbordando como a um vaso cada manifestação do quotidiano ao meu entorno em vida plena e superior, faz-e notar por mim e se revela. Não posso esperar que me compreendais sem mais exemplos, cujo caráter ordinário, aliás, demanda vossa indulgência. Um regador, um rastelo esquecido no campo, um cão tomando sol, um cemitério humilde, um aleijado, uma pequena choupana – tudo isso pode ser o vaso da minha revelação. Cada objeto desses e milhares de outros semelhantes, pelo quais o olho costuma passar com natural indiferença, pode, então, de súbito, em qualquer momento que seja – o qual, a propósito, absolutamente não está em meu poder ocasionar –, assumir um cunho tão excelso e comovente que não creio possa exprimir-se em palavras. Ora, mesmo sobre certa representação de um objeto ausente pode recair a imponderável escolha, enchendo-a até a borda com a suave e de repente transbordante plenitude da emoção divina. Eu ordenara, pois, recentemente, que se espalhasse abundante veneno de rato junto aos depósitos de leite de uma das minhas feitorias. Como já podeis imaginar, na hora do crepúsculo montei num cavalo e simplesmente me esqueci do assunto. Então, como eu trotasse no meio da lavoura e nada mais grave houvesse à minha volta do que um ninho de codornas e o grande sol poente sobre os campos ondulados, abriu-se-me de súbito um depósito interior, e encheu-se com a agonia da população de ratos. Tudo estava em mim: o ar úmido e frio do depósito, carregado do agridoce do veneno e acompanhado de guinchos estridentes, agonizantes, que o mofo das paredes abafava; aqueles espasmos de impotência, apinhando-se um no outro, e desespero atrás de desespero; a busca tresloucada da saída; o olhar gélido de fúria, enfim, se um topasse com algum outro numa fenda bem vedada. Eis-me de novo no encalço das palavras – coisa que já conjurei! Porventura recordais, meu caro, um maravilhoso passo de Lívio, em que descreve as horas imediatamente anteriores à destruição de Alba Longa? Como erram pelas ruas que não mais verão… como dizem adeus às pedras dos caminho. Digo-vos, pois, amigo meu: isso eu guardei comigo lá no fundo, assim como Cartago em chamas; mas isso era mais, e mais divino, e mais animalesco; e era o presente, o mais pleno e colossal presente. Lá estava uma mãe que se cercara dos filhotes moribundos e lhes não lançava a eles, nem às implacáveis paredes de pedra, o seu olhar, senão ao ar livre ou antes, através do ar, ao infinito, com pranto e ranger de dentes! Um escravo cheio de horror e impotência ante Níobe virando pedra deve ter passado pelo que passei quando a alma desse bicho, dentro em mim, rosnou ante o destino ingente.

Perdoai-me a descrição, mas não penseis que fora misericórdia o que então me acometeu. Não no penseis, repito, pois, nesse caso, o exemplo escolhido terá sido infeliz. Era muito mais e muito menos que misericórdia: era participar totalmente, era desaguar naquelas criaturas ou sentir que um fluido de vida e de morte ali desaguasse por um momento – mas de onde? Pois o que teria que ver com misericórdia, com associação minimamente razoável de humanas idéias, o encontrar, certa tarde, sob uma nogueira, um regador semi-vazio que um jardineiro olvidara, e esse regador e a água que contém (escurecida pela sombra da árvore) e um besouro nadando em sua superfície de uma escura margem para a outra e essa junção de nulidades, enfim, me estremecer com a presença do infinito, me estremecer da cabeça aos pés, de modo que bem explodiria em palavras de que bem sei, caso as achasse, que derrubariam os querubins em que não creio? Agora, semanas depois de voltar tão mudo quanto lá chegara, quando avisto a tal nogueira olho-a apenas de soslaio, timidamente, e vou-me logo embora, pois não quero afugentar a lembrança do milagre flutuando ao redor do tronco, nem dispersar o calafrio mais que terreno bafejando no arvoredo vizinho.

Nesses momentos, uma criatura insignificante, um cão, um rato, um besouro, uma disforme macieira, uma estrada serpenteando pelo monte, uma pedra coberta de musgo – são mais do que jamais foi a mais bela e devota amada na noite mais feliz. Tais criaturas mudas – e às vezes inanimadas – se elevam a tal plenitude, a tanta presença de amor que o meu bem-aventurado olho não dá com borrão sem vida ao redor de si. Eis que tudo me parece, tudo o que existe, tudo o que lembro, tudo o que os mais turvos pensamentos meus manipulando vão, tudo me parece ser alguma coisa. Mesmo o meu próprio peso e a costumeira obtusidade do meu cérebro me parecem alguma coisa; sinto um dança deliciosa e numa palavra infinita em mim e ao meu redor, e das coisas que dançam entre si não há nenhuma em que eu não possa me escoar. É como se, então, o meu corpo fosse feito de sonoras cifras que me abrissem tudo. Ou como se entrássemos em nova, em divinatória relação com toda a existência, e começássemos a pensar com o coração. Mas logo que esse estranho encantamento me abandona, não sei testemunhar mais nada a seu respeito; e seria tão pouco capaz de dizer em termos racionais o que era essa harmonia que me cosia ao mundo todo, e como ela me tornava sensível, quanto proferir algo de exato sobre os movimentos peristálticos ou a congestão sangüínea.

Afora esses casos estranhíssimos, os quais, de resto, mal sei se deva atribuir ao espírito ou ao corpo, vivo uma vida incrivelmente vazia e peno muito para esconder de minha mulher a apatia do meu íntimo, e dos agregados a minha indiferença ante as vicissitudes da fazenda. A boa e severa educação que devo a meu saudoso pai e o costume antigo de não deixar ociosa nenhuma hora do dia são, segundo me parece, as únicas coisas que mantêm uma postura de vida exteriormente satisfatória e uma aparência adequada ao meu posto e pessoa.

Estou construindo uma ala do castelo onde moro, e de quando em quando consigo conversar com o arquiteto sobre os progressos do seu trabalho; administro meus bens, e meus feitores e agregados talvez me achem mais lacônico, porém não menos benevolente que outrora. Nenhum deles, tirando o chapéu quando passo a cavalo, ao fim da tarde, pela porta da respectiva casa há de suspeitar que o meu olhar, que ele sói interceptar com o todo o devido respeito, anseia em silêncio pelas tábuas podres debaixo das quais ele procura minhocas para pescar, flui por grades estreitíssimas e mergulha em bolorentas câmaras, em cuja quina um leito baixo que um lençol de muitas cores cobre parece estar sempre à espera de quem vai morrer ou vai nascer; que o meu olho pousa longamente sobre os odientos filhotes de cão ou sobre o gato que fareja, flexível e faceiro, entre os vasos de flores, e que esse olho busca, enfim, entre todos os mais pobres e rudes objetos da existência rural aquele cuja forma discreta, cuja desprezada presença, cuja essência muda se possa tornar em fonte daquele enigmático, inefável, ilimitado encanto. Pois essa minha inominável, bem-aventurada sensação antes me vem de uma longínqua e só fogueira de um qualquer pastor que da visão do céu estrelado; antes do trilado do último grilo, já próximo da morte, quando o vento de outono sopra as nuvens invernais sobre os campos vazios que do majestático trom de um órgão. E vez por outra chego a comparar-me a Crasso, o orador, de quem se afirma ter-se tanto e tão desmesuradamente enamorado de uma moréia, um olhirrubro peixe surdo e mudo do seu aquário doméstico, que se tornara o assunto da cidade; e quando em pleno senado, certa feita, Domício censurou-lhe as lágrimas por ocasião da morte do peixe e qui-lo representar qual se fora quase um tolo, Crasso lhe respondeu: “Assim fiz eu na morte do meu peixe, o que vós nem na morte da vossa primeira mulher, nem tampouco na da segunda, todavia lograstes fazer”.

Não sei quão freqüentemente dou com Crasso e a sua moréia refletidos sobre o abismo dos séculos qual reflexo de mim mesmo. Tal não se deve, porém, à resposta que deu a Domício. A resposta pôs o riso ao seu favor, e o negócio todo acabou em piada. Em mim, contudo, o negócio cala fundo, e ainda que Domício chorara lágrimas de sangue, da mais sincera dor, por ambas as suas mulheres, calaria fundo mesmo assim. Pois Crasso ainda estaria diante dele, com as suas lágrimas pela moréia. E sobre essa imagem, cujo caráter ridículo e desprezível, aliás, no meio de um senado que governa o mundo e discute as coisas mais elevadas, só pode saltar à vista – sobre essa imagem algo de inefável me impele a refletir, e isso de um modo tal que me parece totalmente tolo no instante mesmo em que o tento exprimir em palavras.

Há noites em que esse retrato de Crasso me fende a cabeça, como um prego a cuja volta tudo supura, pulsa, ebule. Então é como se eu pegasse fogo, borbulhasse, fervesse, chamejasse. E tudo é uma espécie de pensamento febril, mas pensamento com um material mais imediato, dúctil, incandescente que as palavras. Há vórtices também, mas não do tipo que, como os da língua, parece conduzir ao insondável, senão dos que transportam a alguma parte dentro em mim, ao regaço mais fundo, mais pacífico.

Já vos enfadei além da conta, estimadíssimo amigo, com extensas descrições de um estado inexplicável que, segundo o seu costume, fica trancado nas entranhas minhas.

Ao declarar vossa insatisfação com tal estado tanta e tamanha foi a vossa benevolência que nenhum livro de minha autoria pode mais “Compensar-vos pela ausência de comércio entre nós”. Neste mesmo instante tive toda a certeza, não de todo livre de um penoso sentimento, que nos anos vindouros e seguintes e restantes, em suma, dessa minha vida não escreverei obra em latim ou em inglês: e isso por um motivo cuja dolorosa excentricidade eu deixo à vossa infinita superioridade intelectual, que observa impassível o harmônico reino dos fenômenos físicos e metafísicos estender-se diante de vós, a tarefa de classificar: a saber, porque a língua em que me seria dado, não apenas escrever, mas também pensar, talvez, não é a latina nem a inglesa nem a italiana nem a espanhola, mas uma língua de que não conheço nenhuma palavra, uma língua em que me falam as coisas mudas, e na qual um dia terei quiçá de me justificar, depois de morto, ante um juiz desconhecido.

Gostaria que me fosse dado, nas últimas palavras dessa que é provavelmente a última epístola que escrevo a Francis Bacon, condensar todo o amor e gratidão e admiração sem fim pelo maior benfeitor do meu espírito e primeiro entre os britânicos do nosso tempo; sentimentos, esses, que guardo e guardarei no coração até que a morte o despedace.

Aos vinte e dois de agosto deste milésimo sexcentésimo terceiro ano de Nosso Senhor Jesus Cristo,

Phi. Chandos.

Tradução de Érico Nogueira (Hugo von Hofmannsthal. Ein Brief. In: Der Brief des Lord Chandos: Schriften zur Literatur, Kunst und Geschichte. Philip Reclam jun., 2000, pp. 46-59).


[1] “Aqueles que, acometidos de grave moléstia, não sentem qualquer dor, também sofrem dos males do espírito” (N. do T.).

[2] “Conhece-te a ti mesmo” (N. do T.).


Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Ed. nº 4, Dez/2009.


Imagem:  Uma carta de Arthur Conan Doyle sobre The Hound of the Baskervilles. Disponível [online] no link: https://www.flickr.com/photos/43021516@N06/8346428573/. Imagem em Domínio Público.


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