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Ignorância abençoada – por Flávio Quintela

Opinião Pública | 07/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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O final do século vinte nos trouxe uma das mais poderosas ferramentas de disseminação de conhecimento já vistas pelo homem, a internet. Desde o primeiro e-mail que enviei, quando ainda estava na faculdade, até hoje, passaram-se apenas vinte anos, mas a quantidade de avanços tecnológicos na área de telecomunicações foi imensa, permitindo que atualmente qualquer pessoa que possua um celular com plano de dados acesse desde o último vídeo do funkeiro do momento até as obras da maior biblioteca do mundo, a Biblioteca do Congresso, nos Estados Unidos. E é justamente esse amplo acesso à informação, jamais presente na história do homem em épocas anteriores, que se apresenta a nós como um paradoxo: mesmo diante de um oceano quase infinito de livros, dados, reportagens, aulas, poemas, contos, canções etc., todos a alguns toques de dedos de distância, a maioria das pessoas se aprofundou na ignorância, num movimento completamente oposto ao que o senso comum nos levaria a esperar.

Existe um ditado popular na língua inglesa que diz “A ignorância é uma bênção”. Esse ditado nunca pareceu tão verdadeiro como hoje. Parece que essa massa de dados e informações atingiu o homem comum como um grande peso sobre seu peito. Talvez uma analogia mais clara seja a de uma pessoa que está morrendo de sede e é jogada em um grande tanque de água, mas sem saber nadar. Assim como a água é o desejo físico do corpo sedento, a informação é o desejo da mente submetida à aridez de ideias. Mas assim como o corpo não treinado para nadar se afoga na abundância da água, também se afoga a mente não treinada na abundância de informações. E ali, circundada por algo que não pode vencer, ou que não acredita que pode vencer, a pessoa se agarra a qualquer coisa que a mantenha flutuando, e constrói sua ilha de ignorância. Afinal, a ignorância só pode ser uma bênção se ela for de alguma forma salvadora.

Mas há mais. Essa ilha não é deserta, de forma alguma. Uma das grandes atrações da ignorância é seu caráter inclusivo: sempre há espaço para mais gente, e lá nunca se está sozinho. Muitas pessoas que conseguem romper barreiras e ascender intelectualmente experimentam em seguida um sentimento de solidão. Acabam descobrindo que aquela ilha era na verdade um continente populoso, e que a viagem agora é através de lugares bem mais ermos. A busca pelo conhecimento acaba se tornando uma busca pela verdade, e a busca pela verdade se dá em caminhos cada vez mais solitários. Cada nova descoberta, cada esclarecimento que penetra a mente e depois a alma, traz consigo um pouco mais dessa solidão mental. E por mais que alguém nessa jornada queira se manter próximo a todos os que sempre estiveram ao seu lado, essa proximidade se torna cada vez mais predominantemente física. E então é chegado o ponto em que todo viajante intelectual já enfrentou ou irá enfrentar, quando aquela pergunta vem à mente: essa busca vale a pena? É realmente melhor buscar o conhecimento e a verdade, e fazer parte de um grupo cada vez menor? Não seria melhor simplesmente aceitar a bênção universal da ignorância e viver feliz com as coisas mais simples da vida?

Tenho uma notícia boa e uma ruim para você que já fez essas perguntas. Vamos primeiro à ruim: você não tem como voltar atrás. É como o cego que passa a enxergar e não consegue mais viver de olhos fechados. Mas não há motivo para se desesperar. A notícia boa é que você foi feito para isso. Nossa diferença para os outros animais é a capacidade de questionarmos nossa própria existência, e com isso mudarmos tudo ao nosso redor. Criamos coisas belíssimas em nossa breve história, tesouros radiantes que conseguem refletir o toque de divindade que nos foi dado em nossa criação. A humanidade tem muito de que se envergonhar, não há dúvida, mas há tanto mais para se orgulhar, na arte, na ciência, na filosofia. E o que foi produzido de melhor por aqueles que hoje chamamos de gênios, só o foi por uma simples razão: eles se dispuseram a abandonar o conforto da ignorância e se aventuraram pelo desafio solitário de conhecer, de superar, de exceder, de fazer jus à condição de ser humano.

■■ Flavio Quintela é bacharel em Engenharia Elétrica, escritor, tradutor de obras sobre política, filosofia e história, e membro do IFE Campinas. É o autor do livro “Mentiram (e muito) para mim” (flavio@quintelatranslations.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 22/08/2014, Página A2 – Opinião.

“O Grito Silencioso (The Silent Scream)” (Documentário)

Política e Sociologia | 30/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Grito-Silencioso(doc)O documentário The Silent Scream (“O Grito Silencioso”, em português, de 1984) mostra com detalhes o que um bebê sofre no útero materno enquanto realizam seu aborto, de modo que se percebe que o bebê sofre dor e desconforto enquanto se realiza a operação. O documentário é dirigido pelo Dr. Bernard Nathanson, também conhecido como “Rei do Aborto” (admitiu ser responsável por mais 75.000 abortos), mas que, depois de algum tempo, realizando abortos com técnicas de ultrassonografia, reviu sua posição, deixando de apoiar tal prática. Segue o documentário:

 

 

Repercussão do artigo “Cruzando os limites da ética”, de Beatriz Rezende

Opinião Pública | 30/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Ética 1
Giovanna Lima
Estudante universitária
(…) Como leitora, venho opinar sobre o artigo Cruzando os limites da ética, de Beatriz Rezende, publicado em 20/9. Um texto muito bem escrito e fundamentado, que deixa claro ao leitor qual é o limite dessa ética e em contrapartida, permite uma reflexão sobre o que é o limite da ética. Diante de um assunto polêmico, a clareza das palavras torna o texto leve e compreensível. Como estudante de jornalismo, pela PUC-Campinas, gosto muito de me deparar com textos que vão ao encontro de teorias que estudo e que busco usar em meus textos.

Ética 2
João Marcos Travassos Romano
Professor universitário, Paulínia
Parabéns ao Correio e à jovem autora, Beatriz Figueiredo de Rezende, pela publicação do recente artigo: Cruzando os limites da ética. Para quem trabalha no meio universitário, é gratificante ver os estudantes debatendo, de forma racional e equilibrada, temas fundamentais da vida humana. As questões éticas não podem ser tratadas com argumentos meramente pragmáticos, pois, como bem disse a autora, uma vez ultrapassados certos limites, não há mais volta, e não há mais limites.

Cartas publicadas na seção “Correio do Leitor” do jornal “Correio Popular”, em 28 de setembro de 2014, Página A3 – Opinião. As cartas referem-se ao artigo de Beatriz Rezende de 20 de setembro de 2014, “Cruzando os limites da ética”, disponível aqui no site do IFE Campinas neste link: http://ifecampinas.org.br/cruzando-limites-etica-beatriz/

O fim da arte – por Roger Kimball

Artes | 26/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Montagem-Arte-KimballQuase todo mundo tem – ou diz ter – interesse pela arte. Afinal, a arte enobrece o espírito, eleva a mente e educa as emoções. Será mesmo? Na realidade, há uma tremenda ironia no modo como a nossa cultura investe – emocional, financeira e socialmente – na arte. Agimos como se fosse algo especial, importante, algo revigorante para o espírito; mas, quando examinamos a lista dos artistas célebres hoje, o que em geral encontramos está muito longe do espírito e com certeza é muito pouco revigorante.

É uma situação curiosa. Tradicionalmente, a meta das belas-artes consistia em produzir objetos belos. E a idéia de beleza vinha carregada de uma pesada bagagem metafísica platônica e cristã, que em alguns pontos era indiferente ou mesmo hostil à arte. Mas a arte sem beleza era considerada, se não uma verdadeira contradição em termos, ao menos uma arte frustrada.

Hoje, se por um lado muitos setores da arte mundial eliminaram o tradicional elo entre arte e beleza, por outro nada fizeram para descartar as prerrogativas sociais da arte. Com efeito, padecemos de um tipo peculiar de anestesia moral – como se o fato de algo ser arte tornasse automaticamente dispensável qualquer juízo moral. A lista de atrocidades é longa, bem conhecida e bastante ridícula. No final das contas, porém, o efeito disso tudo não foi nem um pouco divertido; foi um desastre cultural. Ao universalizar o espírito de contestação, o projeto das vanguardas transformou a prática da arte em um empreendimento puramente negativo, em que a arte ou é oposição, ou não é nada. E a celebridade substituiu as realizações estéticas como meta da arte.

Semelhante situação deixa-nos tentados a concordar com Lev Tolstói. Em uma famosa passagem do O que é arte?, Tolstói escreveu que “a arte foi tão pervertida na nossa sociedade que não apenas a arte ruim passou a ser considerada boa, mas se perdeu a própria percepção do que a arte realmente é”.

E isso foi na década de 1890. Imaginem só Tolstói passeando pelas galerias de arte de Chelsea, de Nova York, ou pela Tate Modern, de Londres. Suspeito que não julgaria Andy Warhol um grande artista, mas admiraria a sua sinceridade e agudeza – porque, como Warhol observou em 1987, “arte é aquilo que você consegue fazer passar por arte”.

Hoje em dia, o mundo da arte dá muito valor à novidade. Mas aí mesmo é que está a ironia: quase tudo o que se defende como “inovador” é essencialmente uma cansativa repetição de atitudes inauguradas por gente como Marcel Duchamp, criador do primeiro engradado-de-garrafas-obra-prima e da primeira fonte-urinol.

*

É claro que nem tudo são más notícias no mundo da arte. Há hoje uma produção abundante de arte vigorosa e tecnicamente perfeita, só que raramente se encontra anunciada nas galerias de arte de Chelsea, festejada no New York Timesou exposta nos meios artísticos mais em voga. A arte séria dos dias de hoje tende a ser discreta e a ficar de lado, longe dos refletores.

Mas isso dificilmente teria bastado para alegrar Tolstói. De fato, apesar de ser fácil concordarmos com a sua afirmação de que a arte foi “pervertida”, conviria hesitarmos diante daquilo que ele considerava “realmente arte”. Tolstói era extremamente rígido quanto aos sentimentos que julgava aptos a serem transmitidos pela arte. A seu ver, as “elites” da sua própria sociedade, “por causa da descrença”, tinham favorecido uma arte “reduzida à transmissão dos sentimentos de vaidade, de tédio perante a vida e, principalmente, de luxúria”. Para Tolstói, a arte é “um órgão espiritual da vida humana”, o que soa muito reconfortante. Só que a sua concepção do que é legitimamente espiritual mostra-se tão estreita que exclui não apenas os Damien Hirsts da vida, mas praticamente a maioria dos grandes artistas do mundo.

Dentre a literatura da sua época, por exemplo, Tolstói parece ter aprovado alguns singelos contos e fábulas populares sobre camponeses, e não muito mais que isso. Abominava qualquer coisa que tocasse o mistério ou o simbolismo: Baudelaire (“egotismo cru erigido em teoria”) não passa no escrutínio, nem Verlaine (“licenciosidade frouxa”) ou Mallarmé (“desprovido de sentido”). Uma sonata de Beethoven para o piano “não é senão uma tentativa de arte malsucedida”, e a Nona Sinfonia é “sem dúvida alguma” um fracasso. Kipling e até Dante são igualmente reprovados, e assistir a Hamlet faz Tolstói contorcer-se. A arte, no seu ponto de vista, ou é uma serva que transmite algum tipo de pedagogia moral, ou está corrompida.

Essa atitude suspicaz está longe de ser uma exceção, pois tradicionalmente a atitude das pessoas com relação à arte e à beleza foi marcada tanto pela suspeita como pelo louvor. Existe uma preocupação recorrente de que as atrações da beleza podem levar-nos a deixar de lado o bem em favor de um bem. “Os olhos deleitam-se em formas belas de diversos tipos e em cores brilhantes e atraentes”, escreveu Agostinho para alertar sobre as tentações do prazer visual. “Não gostaria de que essas coisas tomassem posse da minha alma. Seja apenas Deus a possuí-la, Ele que as criou todas. Ele as fez todas muito boas, mas somente Ele é o meu Bem, não elas”.

A tradição platônica dentro do cristianismo confere à Beleza um significado ontológico, confiando-lhe a tarefa de revelar a unidade e a proporcionalidade daquilo que verdadeiramente é. A nossa apreensão da beleza mostra, pois, que reconhecemos uma realidade que nos transcende e nos submetemos a ela. No entanto, se a beleza pode usar a arte para exprimir a verdade, a arte também pode usar a beleza para criar sedutoras falsidades. Nas palavras de Jacques Maritain, a arte é capaz de fundar “um mundo à parte, fechado, limitado, absoluto”, um mundo autônomo que, ao menos por um instante, nos alivia do “incômodo de viver e decidir”. Em vez de dirigir a nossa atenção para além da beleza sensível, em direção à sua fonte supra-sensível, a arte pode deixar-nos fascinados com a presença aparentemente auto-suficiente da beleza; pode fingir que é ao invés de revelar.

Considerada um fim em si mesma, separadamente de Deus ou do ser, a beleza torna-se uma usurpadora, oferecendo não um antegozo da felicidade, mas umsubstituto dela criado pelos homens. “A arte é perigosa”, disse Iris Murdoch certa vez, “principalmente porque pode macaquear o espiritual para sutilmente disfarçá-lo e banalizá-lo”.

Isso ajuda a explicar por que o pensamento ocidental acerca da arte tendeu a oscilar entre a adulação e a suspeita profunda. “A beleza é o campo de batalha em que Deus e o diabo guerreiam pela alma do homem”, diz Dostoiévski pelos lábios Misha Karamázov. E essa batalha trava-se em um nível bastante profundo.

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Quando lamentamos o terrível estado em que a arte se encontra hoje – Tolstói não exagerou ao usar a palavra “pervertida” -, tendemos a voltar os olhos para a Renascença e vê-la como uma idade de ouro em que a arte e a religião estavam em harmonia e tudo corria bem no mundo. Para muitos pensadores tradicionais, porém, a Renascença foi justamente o começo dos problemas. Maritain, por exemplo, levanta a acusação de que “a Renascença haveria de enlouquecer o artista e fazer dele o mais miserável dos homens […], revelando-lhe a sua grandeza peculiar e soltando contra ele a besta selvagem da Beleza, que a Fé até então mantivera encadeada com a sua sedução e conduzira dócil atrás de si”.

Assim, junto com o despedaçamento do cosmos medieval e o florescimento do humanismo renascentista, “Arte, a pródiga, aspirava a tornar-se o fim último do homem, o seu Pão e o seu Vinho, o espelho consubstancial da Beleza beatífica”. Até que ponto podemos levar a sério essa retórica que funde as aspirações da arte e da religião? Não há dúvida de que há algo de hipérbole nela. Mas, como a maioria das hipérboles, dizer que o artista é um “segundo deus” é uma tentativa de fazer a linguagem exceder-se para exprimir algo que em si já é um excesso: a nascente autoconsciência do homem que pretende afirmar-se como ser autônomo e criativo.

Teremos de esperar pelo Romantismo e pelo florescimento do culto ao gênio para ver essa descoberta chegar ao auge. Mas a apoteose da criatividade artística começou muito antes do século XIX. Com o surgimento da perspectiva, sistematizada e popularizada no século XV por Alberti em seu tratado Da pintura, o artista ganhou uma nova consciência da sua liberdade e criatividade. Como mostrou Erwin Panofsky, a descoberta da perspectiva marcou não apenas a elevação da arte à categoria de ciência (um panorama que entusiasmou os artistas da Renascença), mas também “uma objetivação do subjetivo”, uma sujeição do mundo visível às regras da matemática.

Há uma curiosa correspondência interna entre a perspectiva e aquilo que pode ser considerado a atitude mental típica da Renascença: o processo de projetar um objeto em um plano de tal modo que a imagem resultante é determinada pela distância e pela localização de um “ponto de fuga” simbolizava, por assim dizer, a Weltanschauung de uma época que inseriu uma distância histórica – bastante semelhante à perspectiva – entre si e o passado clássico e reservou à mente humana um lugar “no centro do universo”, tal como a perspectiva reservava ao olho um lugar no centro da representação gráfica.

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Neste sentido, o aperfeiçoamento da perspectiva linear simbolizou não apenas o domínio de uma determinada técnica artística, mas implicou também uma nova atitude para com o mundo. Progressivamente, a natureza foi deixando de ser o livro de Deus sobre o destino humano para transformar-se me matéria-prima para as brincadeiras do artista divinizado.

À medida que nos aproximamos dos dias atuais, a associação do artista com Deus torna-se mais ostensiva e desavergonhada. Alexander Baumgarten, por exemplo, em meados do século XVIII, comparou o poeta a um deus e a sua criação a “um mundo”: “De maneira que, por analogia, tudo o que é evidente para os filósofos em relação ao mundo real, o mesmo deve-se pensar em relação a um poema”. E Lord Shaftsbury, que exerceu uma influência enorme sobre a estética do século XVIII, afirmou que o artista, ao usar a sua imaginação, torna-se um “um segundo deus, o justo Prometeu sob Júpiter”. É claro que, como Ernst Cassirer observou na sua glosa a Shaftsbury, “a diferença entre homem e Deus desaparece quando olhamos o homem não apenas tendo em vista os seus poderes formadores originais e imanentes; quando olhamos o homem não como criatura, mas como criador… É então que a sua verdadeira natureza prometeica vem à luz”.

“A sua verdadeira natureza prometeica…”: se nos tempos modernos o artista emerge como um segundo deus, a sua divindade tenderá a isolar-se da realidade a fim de abrir espaço para as fabricações da arte. Assim, o artista tende a aproximar-se do demoníaco, que Søren Kierkegaard definiu lucidamente como uma liberdade “que se fecha” para o bem. (“Eu próprio sou o Inferno”, declara o Satã de Milton em um instante de assustadora autoconsciência). Se “todo o trabalho do artista é fazer algo a partir do nada”, como disse Paul Valéry, então, incapaz de cumprir esta exigência, o artista se verá perambulando sozinho entre as sombras do mundo que abandonou a fim de salvaguardar a sua liberdade e a sua criatividade. A divinização abre caminho para a demonização. O impulso por trás dessa evolução tem as suas raízes na exigência de liberdade em um mundo em que a liberdade está cada vez mais eclipsada.

Há nisso tudo uma analogia implícita entre beleza e bem-aventurança. Quando entendida como um antegozo da bem-aventurança, a beleza ocupa o seu lugar em uma ordem ontológica integrada; como irradiação do ser, a beleza está subordinada ao que ela mesma revela. Mas, emancipada dessa ordem, a beleza ameaça deslocar a totalidade que antes iluminava, substituindo-a pela sua própria ordem.

Não precisamos de Nietzsche para nos dizer que a desintegração da visão de mundo platônico-cristã, iniciada já no final da Idade Média, é hoje um dado cultural. Também não é novidade que a configuração da modernidade – forjada em grande medida pela confiança do homem na razão e na tecnologia para recriar o mundo à sua imagem – tornou cada vez mais difícil de sustentar a visão tradicional que unia a beleza ao ser e à verdade, conferindo-lhe significado ontológico. A modernidade, herdeira do deslocamento cartesiano da verdade para o sujeito (“Cogito, ergo sum”), implica a autonomia da esfera estética e, portanto, o isolamento da beleza com relação ao ser e à verdade. Quando se faz da razão a medida da realidade, o aspecto ontológico da beleza torna-se meramente estético, pura questão de sentimento.

No final do seu livro Human Accomplishment (2004), Charles Murray afirma que “a religião é indispensável para impulsionar a realização da grande arte”. Tenho uma simpatia considerável pela intenção que está por trás dessa frase, mas a minha primeira resposta às suas afirmações sobre a necessidade da religião para a arte pode ser resumida naquela charge de Saul Steinberg, em que um minúsculo sim voa em direção a um MAS gigantesco. Murray fez o máximo para precisar a sua argumentação, explicando que por “religião” não entende freqüência à igreja ou mesmo teologia. Neste sentido, tem razão ao dizer que a Grécia clássica, embora secular (e até diríamos pagã) era, em certo sentido, um dínamo religioso a impulsionar a “contemplação madura” da “verdade, da beleza e da bondade”.

Tenho lá as minhas dúvidas: será tal contemplação necessariamente religiosa em algum sentido que não seja o de uma mera “menção honrosa”? Murray reconhece que a nossa cultura atual é agressivamente secular – nomes como Darwin, Marx, Freud e Einstein erguem-se como faróis no caminho da progressiva desilusão da humanidade consigo mesma – e sugere que o desengano moderno talvez venha a mostrar-se passageiro, um simples estágio no amadurecimento espiritual da humanidade. Segundo ele, o período situado entre o Iluminismo e o século XX talvez seja visto no futuro “como um tipo de adolescência da espécie”. Quem o poderá dizer? Kant pensava que a maturidade tinha vindo com o Iluminismo: segundo ele, o Iluminismo representava a maioridade do homem, o “abandono da sua imaturidade auto-infligida”, e por imaturidade queria dizer “a incapacidade de usar a própria inteligência sem a orientação de outrem”. O principal impedimento para a iluminação plena não era portanto intelectual, mas moral: consistia, ainda segundo o filósofo, em uma falta de coragem para encarar o mundo como realmente era.

Há muito a criticar no Iluminismo (assim como há muito a comemorar), mas o que me interessa aqui é apenas perguntar se a relação simbiôntica entre a grande arte e a religião é mesmo tão estreita como Murray sugere. Fra Angelico, um pintor profundamente religioso, foi um grande artista, mas também o foi Ticiano, homem notoriamente mundano. Bach foi uma alma piedosa e talvez o maior compositor que jamais existiu, mas, e quanto a Beethoven? Se era religioso, era-o em um sentido completamente diferente. Jane Austen seguia a religiosidade convencional da sua época na sua vida pessoal, mas os seus romances atingem a grandeza pela sua agudez e sabedoria mundanas. Tanto arte como religião são palavras valorativas; dizer que tal ou qual coisa é uma obra de arte é conferir-lhe uma aura de valor, e o mesmo acontece se dissermos que é religiosa. Mas esses dois serão o mesmo tipo de valor?

David Jones, poeta católico do século XX, natural do País de Gales, acertou ao sugerir que “não é possível esperar nenhuma arte integrada, bem difundida e que ao mesmo tempo mereça ser chamada de propriamente religiosa a não ser que haja enormes mudanças no caráter, orientação e natureza da nossa civilização” – mudanças que, penso, estariam na contramão do nosso engajamento em favor da democracia liberal. Jones pensa que seria bom se “o melhor das potências criadoras do homem” estivesse “diretamente a serviço do templo”, mas isso só pode acontecer “quando a própria época está impregnada dessa qualidade”. Não é, prossegue, uma questão de opções pessoais: o que é possível a um artista quanto à criação de arte religiosa “pouco ou nada tem a ver com a vontade ou os desejos deste ou daquele artista”. Mesmo que seja o mais piedoso dos pintores, não pode “transformar-se em um artista de outro período ou cultura”. Algumas coisas que eram possíveis na Idade Média, hoje já não o são.

A ameaça real à arte, ainda segundo ele, consiste na crescente submissão do mundo moderno à tecnocracia, a uma visão inteiramente instrumental da vida que não dá espaço para o que chama de o intransitivo – para a liberdade e o desinteresse tradicionalmente associados à experiência religiosa, de um lado, e à experiência estética, do outro.

Essa disjunção é crucial. Tanto o sacerdote como o artista podem ser enviados às catacumbas, mas trata-se de catacumbas distintas. A religião busca a perfeição da alma; a arte busca a perfeição de uma obra. Não existe uma arte particularmente católica, afirma Jones, tal como não existe “uma ciência hidráulica católica, um sistema vascular católico ou um triângulo eqüilátero católico”. W.H. Auden pensava da mesma maneira: “Não pode haver uma arte ‘cristã’, da mesma forma que não pode haver uma ciência cristã ou uma dieta cristã. Apenas pode haver um espírito cristão, segundo o qual um artista ou um cientista age ou não”.

*

Vivemos em um tempo em que a arte está vinculada a todo o tipo de projetos extra-artísticos, desde a “política de gênero” até o esquerdismo raivoso dos neo-marxistas, pós-estruturalistas e de toda a fauna exótica que se congrega em torno do mundo da arte e da academia. A submissão da arte – e da vida cultural em geral – aos fins da política foi uma das grandes tragédias espirituais da nossa época. Entre muitas outras coisas, dificulta cada vez mais uma apreciação da arte naquilo que lhe é próprio, como algo que transmite o seu próprio tipo de descobertas e de alegrias. Os críticos – mesmo aqueles que procuram insistir na dimensão religiosa da arte – são forçados a lutar em favor das qualidades estéticas que só a arte pode proporcionar, e contra a tentativa de redução da arte a uma espécie de propaganda.

Ao mesmo tempo, perdemos algo de importante quando falta uma dimensão espiritual na nossa concepção de arte. Teríamos de concordar com Murray, se é isso que ele quis dizer quando afirmou que a religião, ou pelo menos uma atenção séria aos autênticos fins da vida humana, “é indispensável para impulsionar a realização da grande arte” . Ou seja: se a politização da estética representa uma grave ameaça à integridade da arte, isolar o estético das outras dimensões da vida representa uma ameaça de outro tipo. O princípio da “arte pela arte”, observou T. S. Eliot, “continua válido na medida em que pode ser compreendido como uma exortação ao artista para que se atenha ao seu métier; nunca foi nem poderá ser válido para o espectador, o ouvinte ou o leitor”.

Por volta do século XIX, fazia já bastante tempo que a arte se havia libertado dos fins ideológicos da religião; a crise espiritual da época, porém, carregou-a de fardos espirituais ainda maiores, fardos que continuam a ser sentidos ainda hoje. Nas palavras de Wallace Stevens, “uma vez abandonada a crença em Deus, a poesia torna-se a essência que assume o lugar dela como redentora da vida”.

A idéia de que a arte deveria servir de fonte de sustento espiritual – e talvez a mais importante dessas fontes – é uma idéia nascida no Romantismo e que continua a ecoar poderosamente nos dias de hoje. Ajuda a explicar, por exemplo, a aura especial que envolve a arte e os artistas, permitindo que poseurs como Andres Serrano, Bruce Nauman e Gilbert & George sejam tidos como artistas por pessoas que no entanto se mostram cordatas em outros temas.

Essa herança do Romantismo também já esteve presente, em diversas variantes, em boa parte da cultura de vanguarda. Passou-se já muito tempo desde que Dostoiévski disse: “Por incrível que pareça, chegará o dia em que os homens discutirão mais ferozmente sobre arte do que sobre Deus”. Se esse percurso significou ou não um progresso, talvez seja uma pergunta em aberto. A meu ver, Eliot estava certo ao depreciar os esforços que moralistas estéticos como Matthew Arnold e Walter Pater faziam para encontrar na arte um substituto para a religião, “a fim de preservarem as emoções sem as crenças que lhes estavam historicamente associadas”.

Isso – penso – está bem claro: sem fidelidade à beleza, a arte degenera em uma caricatura de si mesma; é a beleza que anima a experiência estética, tornando-a tão sedutora; mas a experiência estética em si degenera em um tipo de ídolo ou fetiche caso seja vista como um fim em si mesma, sem ser contrastada com os outros aspectos da vida.

Parece-me que há tantas oportunidades para a confusão quantas para a iluminação mútua no entrelaçamento das ambições da arte e da religião. Há muito o que lamentar na situação da arte e da cultura hoje: antes de mais nada, a falta de seriedade endossada pela ignorância das técnicas tradicionais. Mas, ao mesmo tempo, penso que a emancipação da arte com relação à religião é antes uma oportunidade do que um empecilho. Como notou Auden nas suas reflexões sobre cristianismo e arte: “Não é possível haver liberdade sem a possibilidade de abusar dela. A secularização da arte permitiu ao artista verdadeiramente talentoso desenvolver ao máximo os seus dons; mas também permitiu aos que têm pouco ou nenhum talento produzir uma vasta quantidade de lixo fraudulento ou vulgar”.

O triunfo do lixo não impede a promessa e as realizações do talento. O homem é um tipo de criatura que, por natureza, se deleita na arte e na experiência estética; e creio que é também, por natureza, um animal religioso: uma criatura que se torna aquilo que realmente é apenas quando reconhece aquilo que a transcende. Esses diferentes aspectos da humanidade freqüentemente cooperam entre si, mas prestaríamos um desserviço aos dois se ignorássemos ou esfumássemos as suas diferenças essenciais.

 

Artigo traduzido da revista First Things, junho/julho de 2008. Copyright © Roger Kimball e First Things, 2008. Todos os direitos desta tradução reservados aDicta&Contradicta.

Roger Kimball é crítico de arte e editor executivo do The New Criterion Magazine. Publicou, entre outros, os livros The Rape of the Masters: How Political Correctness Sabotages Art (Encounter Books, 2004), The Long March: How the Cultural Revolution of the 1960s Changed America (Encounter Books, 2000) eTenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher Education(HarperCollins, 1990). Uma versão anterior deste ensaio foi apresentada no American Enterprise Institute e publicada no livro recém-lançado Religion and the American Future (AEI Press, 2008).

Tradução de Cristian Clemente, licenciado em Letras pela FFLCH-USP.

Artigo publicado originalmente em português na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, nº 2, 2008.

Imagem desta postagem: montagem com uma pintura de Ticiano (Anunciação, 1522, óleo sobre madeira, Bréscia), no canto superior esquerdo; com um trabalho de Duchamp (A fonte, 1917), no canto superior direito; e de Fra Angelico (Anunciação, 1430-1432, Madrid, Museo do Prado), abaixo.

Lógica, retórica e bebês para livre abate

Política e Sociologia | 25/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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O dia de  28 de setembro foi definido como o dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização do Aborto, no V Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho, realizado na Argentina há mais de dez anos. O movimento feminista, desde então, costuma sair às ruas para lutar por esse direito. A descriminalização do aborto tem, por parte dos movimentos a seu favor, discursos e argumentos. Mas será que os argumentos e discursos pró-aborto são logicamente consistentes? Paremos um pouco para pensar a partir do artigo que segue:

LÓGICA, RETÓRICA E BEBÊS PARA LIVRE ABATE

Não venho aqui para replicar mais um argumento abortista pela singela razão de que não se pode replicar algo que não existe: as propostas abortistas são insustentáveis quando se aplica a lógica formal sem muito esforço teórico. A ideia de redigir estas linhas veio enquanto assistia a uma aula de lógica formal na pós-graduação. A lógica formal é a lógica criada por Aristóteles: Pedro é homem. Todo homem pensa. Logo, Pedro pensa.

É uma lógica cuja conclusão já está na argumentação. Leia novamente as duas proposições anteriores, excluindo o predicado na primeira e o sujeito da segunda. As teses abortistas são assim: como partem de premissas falsas ou inexistentes, as contradições saltam aos olhos quando são submetidas ao mesmo exercício lógico.

Além da questão lógica, do ponto de vista retórico, submeter as ideias abortistas ao filtro da razão constitui-se um exercício muito interessante, porque cada nova conclusão a que se chega só vem a reforçar a coerência dos argumentos antiabortistas. Por isso, tenho um certo fascínio intelectual pelo tema.

Então, com a licença do leitor, vamos exercitar a lógica e a retórica. Macabramente. Se um feto pode ser perfeitamente abortado, por que não um recém-nascido? Sim, um recém-nascido, aquele ser que já deu um sinal sonoro de vida, já mexeu as pernas e os braços e, no caso de meu primeiro filho, já deu sua primeira esguichadinha?

É uma pergunta muito boa. E tão perigosa quanto as curvas da Rio-Santos. Recentemente, os filósofos italianos Alberto Giubilini e Francesca Minerva tentaram respondê-la afirmativamente no reputado “The Journal of Medical Ethics”. O que seria um mero desdobramento lógico da cartilha abortista fez corar intelectuais europeus. Talvez, pelo ineditismo da proposta. Ou, quem sabe, pelo excesso de lógica aplicada…

E, apesar da Europa não ser uma grande nação islã (embora alguns países caminhem a passos firmes nessa direção), o casal de pensadores sofreu várias ameaças de morte. Lógica macabra pode ser mortal. Ou pensar demais pode fazer mal à vida.

Depois que pude ler o ensaio científico (“After-birth abortion: why should the baby live?”), reconheço a lógica implacável e o rigor teórico do estudo, embora discorde das premissas. Eis uma das ideias: em muitas sociedades ocidentais, o aborto pode ser feito por mera vontade dos pais, variando apenas o limite temporal de semanas. Ou seja, não é preciso invocar nenhuma justificativa médica para encerrar a gravidez. É suficiente querer. E, depois, fazer.

Constatada essa autonomia extrema, uma das principais linhas da argumentação abortista, por que ela não poderia ser estendida ao recém-nascido, sobretudo se são diagnosticadas doenças ou deformações que não foram captadas durante a gestação, como a asfixia perinatal, a síndrome “Treacher-Collins”, que afeta a formação craniofacial, ou mesmo a síndrome de Down, cujos casos não são totalmente diagnosticados desde a gravidez?

Mas a lógica e a retórica macabras ainda podem permitir novas e mais horripilantes conclusões. Na Holanda, por exemplo, o Protocolo Groningen, cuja referência é feita pelo casal de pesquisadores, já permite que crianças com doenças ou sofrimentos insuportáveis sejam submetidas à eutanásia por mera liberalidade dos pais e aconselhamento do médico.

A diferença entre o protocolo holandês e a proposta do casal de pensadores é que o aborto “pós-nascimento” não é propriamente uma eutanásia, porque não é a vontade da criança que deve ser respeitada, mas a dos pais. O mesmo casal de pesquisadores afirma que o aborto “pós-nascimento” considera que a vontade das pessoas atuais (os pais) é superior “aos hipotéticos interesses de hipotéticas pessoas potenciais” (o recém-nascido).

Também, em razão disso, o aborto “pós-nascimento” não pode ser confundido com o infanticídio, porque, para que o aborto “pós-nascimento” seja reputado ilícito (na ótica do casal de pesquisadores), é necessário existir uma pessoa no “sentido moral” do termo, ou seja, alguém que atribui a sua própria existência algum valor, considerando o fim dessa existência uma perda real. Fico a imaginar uma criança com um ano de idade, sentada em seu pinico, na posição da famosa estátua de Rodin, refletindo profundamente sobre o sentido de sua existência…

Quando um Estado encampa não só essa versão sofisticada de defesa abortista, mas qualquer outra exposta na gôndola do libertarianismo reinante, comete um erro político (em bom português: estamos falando de estritos critérios de justiça política no seio da esfera social, ou seja, de argumentos de razões públicas): um erro que implicaria a quebra de lealdade e de confiança que eu, como cidadão, deposito no ente estatal para que ele proteja valores essenciais para a sobrevivência de qualquer sociedade minimamente sensível. E, se o Estado não protege uma vida nascente (ou mesmo uma vida poente), para que serve o Estado, afinal?

Da maneira posta, o ensaio é intrigante. Porque leva até o limite da lógica uma das principais premissas abortistas. Se o debate do aborto envolve a inviolabilidade do feto e a autonomia absoluta dos pais, nosso coerente casal de pensadores limita-se a esticar os argumentos em favor do aborto do feto até a morte de um recém-nascido indesejado. Eis a lógica e a retórica do aborto: lógica e retórica a serviço da morte com a chancela estatal.

André Gonçalves Fernandes (IFE Campinas)