Vidas politizadas

Sem Categoria | 27/12/2014 | |

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Começamos mais um período de propaganda eleitoral obrigatória. Na pauta dos candidatos, temos, basicamente, propostas de gestão administrativa: “Vou trazer mais recursos para os hospitais de nossa região. Vote em mim por mais saúde!”, “Implantei o bilhete-único em nossa cidade. Vote em mim por mais transporte coletivo!”, “Vou combater os desvios nos gastos da educação. Contra a corrupção, vote em mim!”, e assim por diante. Cada um se agarra num bordão feito sob medida pelo marqueteiro de plantão e nós somos obrigados a ouvi-lo até alcançarmos um estado de náusea política no último dia da campanha.

Como prezo por minha saúde mental, concentro minha atenção na atenta leitura das propostas contidas nos sites e, sobretudo, nos debates e entrevistas, ocasiões em que podemos testar o sentido e o alcance da plataforma eleitoral do candidato. Nessa tarefa, procuro distinguir e identificar algo mais profundo: os valores que estão por trás daqueles bordões, porque, como a politização de todas as esferas da vida humana parece ter se tornado uma meta para muitos grupos influentes na mídia e na universidade, importa – e muito – compreender quais daquelas esferas devem ser retiradas dessa pauta politizadora, a fim de não serem vitimadas pela mão pesada da imposição estatal.

Num ambiente social em que absolutamente tudo é politizado, “do couro da sola de nosso sapato até os tijolos do telhado”, a política – esta natural e nobre dimensão humana — deixa de cumprir sua função essencial e acaba por minar suas próprias condições de possibilidade, como, de resto, já observara a filosofia política grega: a tutela dos valores morais que derivam da natureza humana que, como efeito, assegura a sociabilidade e a dignidade da pessoa contra os excessos estatais. Daí decorre aquela minha preocupação na investigação dos valores que sustentam os monocórdicos bordões da cena eleitoral.

Quando politizamos todas as realidades sociais, de certa forma, transferimos a compreensão do sentido dos assuntos politizados ao Estado, que, em sua versão moderna, já deixou, em muitos campos, a saudável condição de zelar pelo bom governo dos destinos da cidade e assumiu uma faceta absolutista e abrangente do todo, desde o nascimento até a morte do cidadão: a versão atual do deus ex machina da literatura grega.

Esse leviatã estatal ataca nossa condição humana, porque, na função de definir aquela compreensão do sentido das coisas, acaba por chamar para si a condição de senhor do bem e do mal, expulsando o espaço próprio de uma moralidade externa que brota justamente daqueles valores, solapando- os em favor de outros que prezam a organização burocrática das massas, a dominação e a ideologia: todos os ingredientes que mais lembram uma espécie de “banzo estatal” dos totalitarismos do século 20, uma realidade vivida e pensada por muitos de nós.

Mas não é só. Além disso, esse estado-titã provoca o isolamento e o desenraizamento da sociedade, como bem disse Arendt. O isolamento, entendido como o impasse no qual os homens se veem diante da destruição da esfera política em suas vidas, mina a capacidade de agir politicamente. O desenraizamento, significando não ter no mundo um lugar reconhecido pelos outros, desagrega a vida privada e elimina o relacionamento social.

Ponto para Nietzsche: o Estado, da maneira aqui descrita, realmente, é o mais frio dos monstros. E, nós, suas vítimas. Por natural sanidade, nosso povo costuma descarregar na piada o que outro descarregaria no explosivo. Entretanto, começo a achar difícil ver alguma graça nesse processo erosivo de nossa condição humana e já está na hora de despolitizarmos muitas questões. As próximas eleições podem ser uma boa oportunidade para isso. E termino, à semelhança dos candidatos políticos, com meu bordão semanal, que, aliás, tem, por trás, um valor perene muito evidente: com respeito à divergência, é o que penso.

■■ André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP e coordenador do IFE Campinas.

Publicado no jornal Correio Popular, quarta-feira, 27 de agosto de 2014, Página A2 – Opinião.