Arquivo da tag: Literatura

image_pdfimage_print

Menos Kelsen, mais Shakespeare

Opinião Pública | 18/05/2016 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

No mês passado, comemoramos os quatrocentos anos do aniversário da morte de William Shakespeare (1564-1616), o Bardo, que dispensa apresentação. Voltaire, nas Cartas da Inglaterra, descreveu-o como um selvagem, ébrio e ignorante das regras de convivência social. Não duvido. Ponto para Voltaire. Porém, se as obras de Voltaire são um caos de ideias claras, as do Bardo compõem uma claridade de um caos obscuro. Ponto para ele.

Essa claridade mostra-nos o talento do Bardo em construir tantos seres diferenciados, além da invenção do humano, isto é, um processo de descoberta e de compreensão da natureza humana, rivalizado somente com Homero. Minha primeira leitura de Shakespeare, ainda na graduação, foi Medida por Medida. Depois que li todas as outras, resolvi aderir à bardolatria. De lá para cá, passei a estudar o Bardo sob o olhar do direito.

Descobri um conjunto de peças que compõem uma fecunda interação entre literatura e direito. Sim, essas duas dimensões podem e devem trocar olhares para, depois, andarem de mãos dadas. O direito, no fundo, representa um conjunto de histórias, só que contadas por legisladores, juízes, advogados e partes. Muitos finais felizes, muita tragédia e, não raro, alguma comédia.

Para cada normativa legal, existe um épico; para cada decálogo legislativo, uma escritura sacra. Não conseguimos captar a essência do direito, a menos que compreendamos como seus textos formais estão repletos de narrativas que lhes conferem sentido e alcance, a reclamar por uma voz que os proclamem.

Em meu cotidiano forense, sempre preciso dizer algo sobre tais textos, mas não sem deixar de ouvir o que os textos têm a me dizer antes. Conselho de Gadamer. Conselho de Shakespeare: “Quando a voz da lei não pode fazer justiça, é legal impedir que seja injusta”.

Certa vez, propus um curso sobre direito e literatura baseado no Bardo para minha então coordenadora-acadêmica. Ouvi dela, uma pessoa que amava uma e outra arte, mas não as duas juntas, como resposta: “Interagir a literatura com o direito é o mesmo que ler a Revolução dos Bichos como um tratado sobre gestão agropecuária”. Para ela, valia a máxima de Balzac, que dizia amar o cabelo das mulheres e a sopa, mas não o cabelo delas na sopa.

De fato, sopa com cabelo não nos parece uma experiência agradável. Assim como um porco ditador tomando de assalto uma fazenda inteira. Contudo, em ambos os casos, existem regras de conduta, baseadas em textos costumeiros ou legais, que foram quebradas e que clamam, em sua correição, por um épico ou por uma escritura sacra, tarefa em que a obra do Bardo faz-nos sentir incluído na trama intrincada de nossa realidade, porque ele escreveu todas as palavras que envolvem a invenção do humano, cada tipo de personalidade que já encontrei e praticamente cada ideia que já tive.

O Bardo conhecia bem o direito. Na exata medida em que conhecia bastante de tudo. Além da peça já citada, tantas outras nos dão bem o tom de sua genialidade nas questões jurídicas mais intrincadas. Contudo, bem longe de defendermos ser ele capaz de nos dar todas as respostas para tais questões, ao contrário de Leopold Bloom, de Joyce, que “sempre recorria ao Bardo para resolver problemas difíceis na vida real”.

A perenidade da obra do Bardo ainda impressiona pela quantidade de questões contemporâneas relacionadas ao direito – sobretudo, à justiça – que é apta a esclarecer. Mesmo sob olhar de Eliot, segundo o qual, o máximo que podemos esperar de Shakespeare é estarmos errados dentro de uma nova abordagem, estou certo de que seu pensamento nos fala alto e, subconscientemente, claro. O direito precisa disso para iluminar muito do caos obscuro formado pelos labirintos do legalismo. Moral da crônica: menos Kelsen e mais Shakespeare. Com respeito à divergência, é o que penso.

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras.

 

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 18/5/2016, Página A-2, Opinião.

Lançamento do livro “O Prazer de Pensar”, de Theodore Dalrymple

Filosofia | 24/03/2016 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Capa_Frente_O Prazer de PensarUma jornada pelos prazeres e surpresas da bibliofilia para curiosos incuráveis, no inconfundível estilo de Dalrymple.

Por que ditadores adoram histórias em quadrinhos? Como um pênalti pode causar uma guerra entre dois países? Os livros garimpados da biblioteca de Dalrymple contam casos curiosos não com as histórias dos textos originais que carregam, mas com a sua própria trajetória. São elas que fazem o pensamento do autor viajar e trazer à tona, em seu estilo instigante, memórias e observações críticas sobre literatura, história, política, filosofia, medicina, sociedade, viagens etc. 

Por meio de uma série de histórias sobre anotações feitas a mão, cartas esquecidas e frases sublinhadas, Theodore Dalrymple conduz o leitor pelos prazeres e surpresas que certos livros especiais de sua biblioteca pessoal guardam. Em capítulos curtos, essas trajetórias são acompanhadas suas próprias memórias e apontamentos críticos sobre os mais diversos assuntos em seu estilo já conhecido do leitor. 

“Encontramos coisas em livros velhos: principalmente insetos mumificados, é claro, mas também manchas de sangue, flores secas prensadas, bilhetes velhos de ônibus, listas de compras, fichas de embarque, orçamentos de consertos a serem feitos, contas de açougue, marcadores de página de livros anunciando seguros de vida, festivais de arte e livrarias e alguns chegam a chamar o leitor para a fé e o arrependimento.”

O Prazer de Pensar, página 23 

“Agradáveis descobertas feitas por acaso são um dos maiores prazeres de folhear livros, e nada substitui a sensação de poder ter um livro físico nas mãos. […] A alegria de descobrir algo que não sabíamos existir e que está profunda e inesperadamente conectado a algo que nos interessa no momento é uma das recompensas de folhear livros ao acaso, uma recompensa desconhecida para aqueles que têm uma visão apenas instrumental das livrarias, indo embora delas assim que descobrem que o livro que desejam não está disponível.”

Theodore Dalrymple, em artigo para The Telegraph em 2/2/2016

Sobre o autor

Theodore Dalrymple é um dos pseudônimos de Anthony Daniels, nascido em 1949, em Londres. Além de ensaísta, é médico psiquiatra, trabalhou em quatro continentes e atuou até 2005 no Hospital da Cidade e na Winson Green Prison, ambos em Birmingham, Inglaterra. Escreve para o City Journal, publicado pelo Manhattan Institute, e para veículos como The British Medical Journal, The Times, The Observer, The Daily Telegraph, The Spectator, The Salisbury Review, National Review e Axess. Possui diversos livros publicados, entre eles A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou o Que Restou Dela, Podres de Mimados – As Consequências do Sentimentalismo Tóxico, e Em Defesa do Preconceito – A Necessidade de se Ter Ideias Preconcebidas, editados pela É Realizações Editora.

Fonte: imprensa@erealizacoes.com.br

René Girard, vida e luz

Opinião Pública | 16/12/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Seu pensamento tem uma natureza dramática, não porque seus enredos sejam restritos a melodramas clichês. Pelo contrário, ele continuamente submete suas novas descobertas à uma tensão contínua e arriscada de cotejo com as anteriores, buscando encadeá-las harmonicamente. Quanto mais se aprofunda na leitura de suas obras, mais se percebe que ele nos conduz ao âmago de muitos de nossos problemas atuais – como a violência que estampa nossas tragédias sociais e as recorrentes atrocidades dos jihadistas pelo mundo – ao lançar luzes que resgatam o conhecimento clássico.

Sua grande contribuição, sem dúvida, foi a da “triangularidade do desejo”: a descoberta de que o ser humano aprende a desejar por imitação dos desejos do próximo. A geometria do desejo é triangular, porque o ser humano não se relaciona diretamente com o que quer intimamente, mas sempre e somente por meio de um modelo desejante. Daí brotam as relações de admiração, rivalidade e ódio recorrentes em toda história da literatura que, no fundo, são uma imagem especular da beleza e da miséria da humanidade.

Girard diagnostica isso a partir de uma crítica analítica das grandes obras da literatura mundial e expõe seu achado arqueológico em sua surpreendente obra inaugural – Mentira Romântica e Verdade Romanesca –, na qual ele tem as primeiras intuições sobre a dita triangularidade, localizadas, por ele, nas obras de Cervantes, Stendhal, Flaubert, Proust, Dostoiévski e Shakespeare que, conscientes disso, refletiram essa geometria triangular do desejo em seus escritos.

Esse desejo mimético, ao recair sobre qualquer objeto, mas sempre intermediado pelo outro, desata um inevitável conflito, suscetível de expandir-se dentro dessa geometria, por sua própria natureza triangular e, como efeito, produz uma espiral de inveja e violência devastadoras, se não encontram, instintiva ou casualmente, um bode expiatório para sublimar a conta – de um modo secretamente arbitrário – das culpas de todos os envolvidos.

Consumado o sacrifício, a paz renasce, ainda que seja momentânea. Quando o conflito é retomado, trata-se de repetir aquilo que o aplacou. Ou seja, mais violência e sangue. O bode expiatório originário converte-se em mito fundante e a vítima é divinizada. Esse mecanismo não só é constatado em muitíssimos costumes primitivos, mas também nos clássicos, apto a explicar as grandes obras literárias, em especial, as do teatro clássico grego e as tragédias de Shakespeare.

Não demorou muito para, empurrado por suas descobertas, dar uma passo a mais e adentrar na teologia. Deixando a salvo o núcleo misterioso da fé e a partir do estudo dos livros de Jó, dos Salmos e dos escritos dos antigos padres, o Girard agnóstico que havia sido encerrou-se quando viu ser a paixão de Cristo a denúncia perfeita e acabada desse mecanismo vitimário. A única vítima absolutamente inocente, Jesus de Nazaré, entrega-se, como cordeiro ao matadouro, para quitar os pecados de toda a humanidade. Rompe a espiral de violência, assumindo-a desde dentro e redimindo-a.

Hoje, assistimos às tragédias que produzem vítimas e mais vítimas, muitas delas sacrificadas inocentemente nos altares do terrorismo e do hedonismo contemporâneos, por meio de mecanismos de violência real ou simbólica. Não basta reproduzi-los ou imitá-los para exorcizá-los. Conseguiremos poucos resultados. É preciso desconstruir a violência a partir de dentro e para isso, “é preciso passar pela conversão e ser revestido pela graça de uma novidade fundamental”, como dizia Girard. Que ele descanse em paz, mas não suas ideias. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 16/12/2015, Página A-2, Opinião.