René Girard, vida e luz


Seu pensamento tem uma natureza dramática, não porque seus enredos sejam restritos a melodramas clichês. Pelo contrário, ele continuamente submete suas novas descobertas à uma tensão contínua e arriscada de cotejo com as anteriores, buscando encadeá-las harmonicamente. Quanto mais se aprofunda na leitura de suas obras, mais se percebe que ele nos conduz ao âmago de muitos de nossos problemas atuais – como a violência que estampa nossas tragédias sociais e as recorrentes atrocidades dos jihadistas pelo mundo – ao lançar luzes que resgatam o conhecimento clássico.

Sua grande contribuição, sem dúvida, foi a da “triangularidade do desejo”: a descoberta de que o ser humano aprende a desejar por imitação dos desejos do próximo. A geometria do desejo é triangular, porque o ser humano não se relaciona diretamente com o que quer intimamente, mas sempre e somente por meio de um modelo desejante. Daí brotam as relações de admiração, rivalidade e ódio recorrentes em toda história da literatura que, no fundo, são uma imagem especular da beleza e da miséria da humanidade.

Girard diagnostica isso a partir de uma crítica analítica das grandes obras da literatura mundial e expõe seu achado arqueológico em sua surpreendente obra inaugural – Mentira Romântica e Verdade Romanesca –, na qual ele tem as primeiras intuições sobre a dita triangularidade, localizadas, por ele, nas obras de Cervantes, Stendhal, Flaubert, Proust, Dostoiévski e Shakespeare que, conscientes disso, refletiram essa geometria triangular do desejo em seus escritos.

Esse desejo mimético, ao recair sobre qualquer objeto, mas sempre intermediado pelo outro, desata um inevitável conflito, suscetível de expandir-se dentro dessa geometria, por sua própria natureza triangular e, como efeito, produz uma espiral de inveja e violência devastadoras, se não encontram, instintiva ou casualmente, um bode expiatório para sublimar a conta – de um modo secretamente arbitrário – das culpas de todos os envolvidos.

Consumado o sacrifício, a paz renasce, ainda que seja momentânea. Quando o conflito é retomado, trata-se de repetir aquilo que o aplacou. Ou seja, mais violência e sangue. O bode expiatório originário converte-se em mito fundante e a vítima é divinizada. Esse mecanismo não só é constatado em muitíssimos costumes primitivos, mas também nos clássicos, apto a explicar as grandes obras literárias, em especial, as do teatro clássico grego e as tragédias de Shakespeare.

Não demorou muito para, empurrado por suas descobertas, dar uma passo a mais e adentrar na teologia. Deixando a salvo o núcleo misterioso da fé e a partir do estudo dos livros de Jó, dos Salmos e dos escritos dos antigos padres, o Girard agnóstico que havia sido encerrou-se quando viu ser a paixão de Cristo a denúncia perfeita e acabada desse mecanismo vitimário. A única vítima absolutamente inocente, Jesus de Nazaré, entrega-se, como cordeiro ao matadouro, para quitar os pecados de toda a humanidade. Rompe a espiral de violência, assumindo-a desde dentro e redimindo-a.

Hoje, assistimos às tragédias que produzem vítimas e mais vítimas, muitas delas sacrificadas inocentemente nos altares do terrorismo e do hedonismo contemporâneos, por meio de mecanismos de violência real ou simbólica. Não basta reproduzi-los ou imitá-los para exorcizá-los. Conseguiremos poucos resultados. É preciso desconstruir a violência a partir de dentro e para isso, “é preciso passar pela conversão e ser revestido pela graça de uma novidade fundamental”, como dizia Girard. Que ele descanse em paz, mas não suas ideias. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 16/12/2015, Página A-2, Opinião.