Arquivo da tag: Engano

image_pdfimage_print

Música, ficção e mundo real

Opinião Pública | 27/07/2016 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

A paixão pela música veio-me desde cedo. Meu pai tocava violão e, alguns vizinhos também e, em particular, um deles tinha banda. Uns e outros ouviam e tocavam. Esse background movia-me e provavelmente daí nasceu o gosto pela música, de modo que aprendi alguns instrumentos, não enveredando, entretanto, para a profissão musical.

Olhando hoje, é difícil encontrar quem não goste de algum tipo de música. Um bom arranjo de instrumentos e vozes com harmonia, além de boa letra, é aprazível aos ouvidos. Além disso, a música muitas vezes comunica-nos emoções e sentimentos. Claro que as sensações provocadas dependem da música e do estilo musical: pode-se ir do depressivo ao alegre. Mas me parece que, no fundo, tendemos a preferir aquelas que nos provocam boas emoções, que nos fazem bem, ou que nos elevam – para usar o termo de Henri Angel para bons filmes.

No entanto, há canções que não seguem – ou seguem pouco – nesse sentido, das quais o mercado musical hoje está cheio: varia desde canções apelativas e baixas (inclusive servindo à objetificação dos corpos, como se não fôssemos uma pessoa, mas objetos úteis), até aquelas de letras que parecem um conto de fadas. De todo modo, embora exista quem goste de canções apelativas e baixas, muitas vezes estas nos impactam e as repelimos; percebemos que não é coisa boa.

Por outro lado, há canções cujo arranjo de instrumentos, vozes e harmonias são muito bons, porém, com letras que transmitem-nos – sutil ou explicitamente – uma mensagem de “malandragem”, de ilusão/imaginação, “safadeza” etc. De um modo explícito são aquelas que, por exemplo, fazem apologia à traição com palavras mais leves, cantando coisas como “eu não sou fiel” e o público acompanhando. A melodia etc. pode até ser legal, mas por trás disso está a vida real: quanto sofrimento traz uma traição, quantas famílias sofrem e se esfacelam por isso… Na imaginação, não é difícil conceber um mundo em que tudo pode ser feito buscando-se a própria satisfação, com uma liberdade ilusória (traição gera peso interior), mas na realidade a história é outra.

As músicas que transmitem de modo sutil o que acima afirmo, talvez sejam as mais abundantes. São dessas também que tendemos a gostar de algum modo, a nos acostumar e a achar normal (tocam no rádio, pegam, fixam), mas aqui reside o problema: acostumar-se e achar normal o que é fictício, “malandro”, incluso o descrito no parágrafo anterior.

Os exemplos nesse sentido são muitos, mas é possível concentrar-se em pontos principais. As músicas transmitem algo que é aparentemente bom, possível, ou realizável, mas cujo fundo é a busca da satisfação do “eu”: “sou feliz porque isso ou você me satisfaz”. E a letra – que quase passa despercebida – é aos poucos assimilada e tida como normal, de modo que se passa a considerar normais coisas como: elevar a mulher ao status de uma deusa e estrela guia, ou o homem como “o capaz” de dar a ela tudo o que deseja; atitudes vingativas em vez do perdão; o álcool como “saída” de problemas; imaginar um cenário ideal para um relacionamento, com tudo bonitinho… quando, na verdade, muitas dessas coisas não acontecem na vida real – não por pessimismo, mas pelo fato de a realidade ser diferente daquilo que o romantismo hodierno propaga.

Claro que há músicas com senso de realidade, sem deixar de lado a poesia, a harmonia etc., e que não tendem para a “sacanagem”, para o ilusório, nem para o egocentrismo. Mas é preciso vigilância e filtro, se não tomamos por “normal” algo que pode nos enganar e/ou nos enroscar, levando-nos à frustração. Um antídoto para isso é o contrário do egoísmo, tendo em mente o amor enquanto virtude: entre a busca da satisfação própria que diz: “Amo você porque me torna feliz”, ficar com a virtuosa “Sou feliz porque amo você”, isto é, porque se doa e não busca a si mesmo.

■■ João Toniolo é mestre e doutorando em Filosofia e gestor do Núcleo de Filosofia do IFE Campinas (joaotoniolo@ife.org.br)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 27/07/2016, Página A-2 – Opinião.

Nossos sonhos e a propaganda

Opinião Pública | 29/09/2014 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Como é bom sonhar! Desde pequeninos temos sonhos. Uns querem ser pilotos de avião, outros médicos, engenheiros e por aí vai. Outros sonham em ter um super carro, uma super casa. Desde cedo sonhamos. Ao mesmo tempo em que sonhamos quando pequenos, nossos pais colocam ou não limites aos nossos sonhos: ou dizem até onde é possível conquistar o sonho desejado, ou dizem se é impossível ou, ainda, alimentam em nós sonhos impossíveis de se tornarem realidade.

Conforme vamos crescendo, vamos tomando consciência de nossos limites e temos alguns sonhos esquecidos ou frustrados, embora ainda sonhemos com outras coisas. Afinal, é justo sonhar: quantas coisas boas tornaram-se realidade porque alguém as sonhou? Várias obras caritativas foram assim. Várias belas construções arquitetônicas que alegram ou elevam a alma de um povo surgiram assim. E a cura de uma doença conquistada por uma equipe de cientistas que sonharam com ela um dia?

Acontece que, como apontei há pouco, sonhar tem limites. Nossa imaginação pode nos fazer ir longe, a ponto de conceber coisas que não existem nem são possíveis na realidade, como imaginar um centauro ou uma sereia verdadeiros. Podemos até sonhar este mundo com coisas que lhe são impossíveis, como a ausência de sofrimento, dificuldades e problemas de toda sorte. Enfim, com nossa imaginação podemos criar em nossa mente um paraíso.

Isso é mais ou menos o que acontece com boa parte do imaginário do homem contemporâneo, e de modo muito notável no âmbito da propaganda. Esta última alimenta em nosso imaginário cenários e possibilidades irreais. Quando andamos pelas ruas, quando entramos em instituições, quando assistimos tevê, enfim, quase em todo lugar nos é oferecida muita propaganda com imagens, sons e vídeos. Grande parte é ficção em comparação com a realidade concreta de nossa vida cotidiana.

Muitas coisas belas e prazerosas nos são apresentadas como se fossem reais, como o caso que ficou conhecido por muitos como “família Doriana”: uma família irreal que sempre é feliz. Pois uma propaganda apresenta um produto cujo uso está associado à felicidade de uma família, como se aquela família sempre fosse feliz. Ou frases de efeito em meios a jogos de futebol televisionados: “Aqui tem alegria, amor, paz, felicidade”, como se o consumo de tal ou qual produto trouxesse alegria, amor, paz e felicidade. Ou ainda panfletos e outdoors que mostram belas pessoas sorrindo oferecendo uma faculdade ou comércio, como se passar naquela faculdade ou comprar naquele comércio nos trouxesse felicidade. É uma explosão de imagens, sons e vídeos que visam nos seduzir para comprarmos um produto, criando em nós falsas sensações de que sempre é possível uma família feliz, sempre é possível uma boa faculdade; em resumo, de que sempre é possível a felicidade, como se no mundo em que vivemos tudo fosse bom, belo e prazeroso.

Mas tudo isso que recebemos através dos sentidos, se não temos uma consciência vigilante para separá-los ou repudiá-los, mexe com nossa imaginação, criando em nós a idéia de que o impossível é possível, de que todo sonho é realidade. Mas, como sabemos pela própria experiência, não é assim: nem todo sonho é realidade, nem tudo o que concebemos na imaginação pode ser concebido na realidade. Muitas vezes insistimos em mudar algo, e jamais o conseguimos, justamente porque foi semeada em nós a idéia de que aquilo que sonhamos ou desejamos não tem limites, ou de que é possível mudar uma realidade que não muda. Sim, a realidade tem limites e ela não corresponde a tudo o que possamos imaginar. O máximo que conseguimos é sonhar dentro das possibilidades dadas pela realidade. Neste mundo, nunca veremos uma sereia real; nunca veremos a ausência de todos os problemas.

A solução para não cairmos nas armadilhas da propaganda e da nossa própria imaginação é aceitar que somos limitados, apesar de nossa tremenda capacidade imaginativa, e aceitar a realidade que está dentro e fora de nós tal como ela é. Mais precisamente, saber separar a verdade da falsidade, e sempre ficar com a verdade. Não é possível criar um novo mundo, não é possível acabar com todos os problemas, não é possível que façamos deste mundo um paraíso. Justamente, a noção de Paraíso é a de que ele não é este mundo.

João Toniolo é mestrando em Filosofia e Gestor do Núcleo de Filosofia do IFE-Campinas (joaotoniolo@ife.org.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 21/12/13, Página A2 – Opinião.