Pausa no trajeto

Opinião Pública | 08/06/2016 | | IFE CAMPINAS

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Não há mérito algum em se chegar na casa dos quarenta. Nos dias atuais, qualquer um que não tiver maltratado excessivamente seu organismo com álcool ou tabaco pode conseguir. Assim como quem nunca viveu para trabalhar, mas trabalha para viver. Sem dúvida, é uma fase vital para uma se fazer uma saudável pausa no trajeto, olhar para trás e, depois, retomar a caminhada.

Contemplo meu rastro existencial em retrospectiva e vejo muitas histórias. Aquelas que me contaram, as que vivi, li, inventei e escrevi. Em suma, histórias para todos os sentidos e alcances. As mais pretéritas são da minha avó, obviamente, falando da infância de meu pai e de suas traquinices.

Conheci, nesse arco de vida, muitas pessoas interessantes. Mas as mais interessantes foram aquelas que, pela minha voz, ganhavam vida na letra morta das obras de literatura. O tempo, nesses casos, ao invés de apagá-las, revitaliza-as. Na infância, recordo-me dos personagens das fábulas de Esopo e de Monteiro Lobato: Pedrinho, Narizinho, Cuca, a raposa e as uvas, o lobo e o cordeiro e a cigarra e a formiga.

Na adolescência, Bento Santiago, em Dom Casmurro ainda marca um compasso de reminiscência ao pretender atar as duas pontas da vida e, entre esses dois momentos, relata as memórias de sua juventude, sua vida no seminário, seu caso com Capitu e o ciúme que surge no seio dessa relação, alçado a enredo central a trama.

Também Jean Valjean, de Os Miseráveis, cuja trágica peripécia — longos anos de prisão, decorrente de um legalismo desumano, por ter roubado um pão — sempre me estremeceu de indignação e continua a me comover desde a primeira vez que li esse extraordinário romance.

Não é fácil dizer a imensa riqueza de sentimentos, sobretudo para um homem em cujas veias corre neve derretida, como nas de Ângelo, o regente de Viena em Medida por Medida, de Shakespeare, que os bons livros que li me deram. Nada me acalma mais quando estou inquieto do que uma boa leitura.

Ainda me lembro da fascinação com a qual li os romances de Faulkner, os contos de Borges e Cortázar, a invenção do humano de Shakespeare, as aventuras e desventuras de Dom Quixote e do pequeno príncipe de Exupéry, os ensaios de Camus, as sagas de Balzac, de Dickens, de Zola, de Dostoiésvki e o difícil desafio intelectual que foi poder conseguir desfrutar de Guerra e Paz de Tólstoi e da Ilíada e da Odisseia de Homero.

Tudo já foi dito sobre o mistério em que consiste inventar histórias e moldá-las de tal maneira, fazendo uso das palavras para que pareçam verdadeiras e cheguem aos leitores e os façam chorar e rir, sofrer desfrutando e desfrutar sofrendo, ou seja, viver um pouco melhor graças à literatura.

Escrever ainda parece ser um processo enigmático, onde as raízes se afundam no mais profundo do inconsciente. Por que existem certas experiências — ouvidas, vividas ou lidas — como as audiências que presido, que, sem mais, sugerem-me uma história, algo que, pouco a pouco, vai se tornando urgente e peremptório?

Nunca sei por que existem algumas vivências que se tornam exigências para fantasiar uma história, que me provocam um desassossego e uma ansiedade que são aplacados quando ela vai surgindo, sempre com surpresas e derivas imprevisíveis, como se os protagonistas de minhas crônicas fossem apenas intermediários, uma espécie de leva-e-traz de uma fantasia que vem de alguma região ignota do espírito e, em seguida, emancipa-se de seu suposto autor e vai viver sua própria vida nas minhas linhas.

Escrever é uma atividade em que se aprende muito sobre si mesmo. “Escrever é uma maneira de viver”, disse Flaubert. Com razão. Não se escreve para viver, embora muitos ganhem a vida escrevendo, o que não é meu caso. No meu caso, vive-se para escrever, porque o escritor de vocação continuará escrevendo. Nem que seja para si mesmo. E não sem, primeiro, ler muito, porque não conheço nenhum grande escritor que não tenha sido, antes, um grande leitor. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição 8/8/2016, Página A-2, Opinião.